MARIANA ELIAS GOMES

Bacharel em Turismo pelo Unicentro Newton Paiva (Belo Horizonte, MG); Mestranda em Cultura e Turismo pela UESC – Ilhéus, BA. Bolsista da Fapesb

 

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A Semana Santa em Mariana, MG:

estudo da relação entre Patrimônio Imaterial e Turismo

Mariana Elias Gomes

 

Resumo: Este artigo tem a finalidade de apresentar uma discussão sobre a relação entre patrimônio imaterial e turismo. Para se alcançar tal objetivo, é feita uma revisão bibliográfica acerca da evolução do conceito de Patrimônio Imaterial ao longo da sua história, e como este se relaciona com a atividade turística. A Semana Santa, em Mariana, MG, é apresentada enquanto um exemplo de um espaço público utilizado tanto pela questão patrimonial quanto pela atividade turística.

Palavras-chave: patrimônio imaterial; turismo; Semana Santa.

Abstract: This article provides a review literature on the evolution of the concept of Intangible Heritage throughout its history, and study its relation to tourism. The Semana Santa, in Mariana, MG, is an example of this relationship, as a public space used by heritage and by tourism.

Keywords: intangible heritage, tourism, Semana Santa.

Vista parcial de Mariana(MG). Fonte: http://olhares.aeiou.pt/vista_parcial_de_mariana_mg/foto65764.htmlPatrimônio Imaterial: Históricos e Conceitos

Preservar a memória de fatos, personagens ou manifestações, por meio de construtos que as comemoram, narram ou representam, é uma prática que diz respeito a todas as sociedades humanas, e se apresenta em cada uma delas das mais variadas formas, de acordo com cada sociedade. Estes construtos são considerados enquanto patrimônios, e atualmente são alvos constantes de pesquisas, estudos e ações que visam ao seu desenvolvimento, com um aproveitamento maior por parte da sua população, e posteriormente por parte dos turistas.

Contudo, a porção imaterial dos patrimônios nem sempre foram valorizados por parte dos responsáveis políticos, ficando subestimados aos patrimônios materiais. Neste capítulo, buscou-se percorrer os caminhos dos estudiosos sobre patrimônio imaterial, desde as suas primeiras concepções até a atualidade, quando se abrange aqueles bens indispensáveis para a construção da identidade de uma nação.

Inicialmente, vale observar que Gonçalves (2003) destaca o caráter milenar dos patrimônios, ao afirmar que esta categoria não é simplesmente uma invenção moderna, mas sim um elemento presente no mundo clássico e na Idade Média, “sendo que a modernidade ocidental apenas impõe os contornos semânticos específicos que, assumidos por ela, podemos dizer que a categoria “patrimônio” também se faz presente nas sociedades tribais” (GONÇALVES, 2003, p. 22).

Os princípios que versam sobre ao que hoje se pensa patrimônio se consolidaram na França do século XIX, quando pela primeira vez foi utilizado o moderno conceito de patrimônio. Motivada pelas idéias do Iluminismo e com o objetivo de impedir o vandalismo que em alguns períodos acompanhou a Revolução Francesa, surgiu no país uma visão idealizada dos monumentos históricos, que foi apoiada jurídica e institucionalmente pela primeira vez.

Assim, o termo patrimônio de fato, surge com a Revolução Francesa, reportando-se ao que é gerado enquanto patrimônio, nascido de razões práticas e ajustado à ideologia do Estado Nacional. Para evitar a destruição (o “vandalismo”, neologismo cunhado à época para condenar a desaparição dos bens produzidos pelo “gênio do povo francês”) era preciso proteger e catalogar as propriedades remanescentes, pois, além da destruição muitas delas foram vendidas: da monarquia, dos aristocratas imigrados e da Igreja (CAMARGO, 2002).

A definição primária de patrimônio que ainda é usada nos dias de hoje para classificar os bens patrimoniais é originária deste esforço de organização, inclusive pelo conceito, funções e denominação modernos de museu, sendo que até o século XVIII a seleção de monumentos históricos produzia-se no mundo restrito dos antiquários e estetas, referindo-se basicamente a antiguidades gregas e romanas.

Desta maneira, o termo patrimônio no mundo ocidental foi, durante muito tempo, associado unicamente a coisas corpóreas. Dava-se, assim, valor extremo a grandes construções como palácios, castelos, fortalezas, pontes e igrejas, construções arquitetônicas que se destacavam devido a sua imponência histórica e artística[1], em detrimento da porção imaterial que compunha a cultura de um lugar.

Porém, durante a Revolução Francesa, a concepção se estendeu aos edifícios de um passado medieval mais recente, que também eram considerados obras de arte, testemunhos do saber humano, ou mesmo, de uma história. Assim, “os monumentos históricos, os saberes e as práticas que os rodeiam, institucionalizaram-se e, com a criação dos primeiros instrumentos de preservação – museus e inventários” (SANT´ANNA, 2003, p. 47). Neste momento surgiu e consolidou-se a idéia de patrimônio nacional, que passou a incluir tanto os bens materiais quanto os imateriais, com buscas a responder a um apelo nacional e também atender a uma conveniência econômica.

Essa nova percepção não surgiu, contudo, de uma reflexão européia e ocidental, mas da prática de preservação oriunda de países asiáticos e do chamado Terceiro Mundo, cujo patrimônio, em grande parte, é constituído de criações populares anônimas, não tão importantes em si por sua materialidade, mas pelo fato de serem expressões de conhecimentos, práticas e processos culturais, bem como de um modo específico de relacionamento com o meio ambiente (SANT´ANNA, 2003, p. 49).

Apesar do grande avanço obtido nesta época, com a expansão nos campos ideológicos que tratavam do tema, este possuía ainda grande complexidade, e, somente após a Segunda Guerra Mundial é que os processos e as práticas culturais começaram, lentamente, a serem vistos como bens patrimoniais em si, sem a necessidade da mediação de objetos, isto é, sem que objetos fossem chamados a representá-los, através dos monumentos, quadros, enfim.

Historicamente, o mundo passava por grandes mudanças, alterações políticas, culturais e sociais. Tais mudanças de certa forma influenciaram no relacionamento dos poderes público e privado e suas relações com os seus bens patrimoniais. O mundo passava por mais uma reforma, ao ver na cultura de cada lugar o impulso à sobrevivência e ao respeito próprio. Funari (2006, p. 20) indica que a ênfase no patrimônio nacional atinge seu ápice no período que vai de 1914 a 1945, quando as duas guerras mundiais eclodem sob o impulso do nacionalismo que, associado ao imperialismo, seria superado com o fim da Segunda Guerra Mundial, e a criação da Organização das Nações Unidas - ONU.

Segundo Cecília Londres (1997), esta idéia nacionalista garantiu o estatuto ideológico do patrimônio, sendo o Estado Nacional o responsável pela garantia de sua preservação. A noção de patrimônio estaria inserida em um projeto mais amplo de construção de uma identidade nacional, servindo ao processo de consolidação dos Estados nação.

Barbosa (2001, p. 68) indica também que a questão do patrimônio situa-se numa encruzilhada que envolve tanto o papel da memória e da tradição na construção de identidades coletivas, quanto os recursos a que têm recorrido os Estados modernos na objetivação e legitimação da idéia de nação, sendo que “o patrimônio tem um significado muito forte com o conceito de nação, pois ambos carregam o símbolo dos acontecimentos históricos de um povo” (BARBOSA, 2001, p. 68).

Entretanto, o mundo ocidental começou realmente a considerar uma visão ampla dos bens patrimoniais em 1972, após a aprovação da Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco, quando países do Terceiro Mundo reivindicaram e propuseram a realização de estudos como instrumentos de proteção às manifestações populares com valor cultural.

Como conseqüência desta e de outras reivindicações, somente em 1989, durante a XXV Conferência da Unesco, em Paris, o conceito de patrimônio cultural imaterial abarcou efetivamente a cultura tradicional e popular, fazendo menção de tratamento especial às culturas que não são dominantes, por meio da Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular. [2]

Até este momento, os bens de natureza imaterial ainda estavam sujeitos aos mecanismos de titulação e proteção postergados aos bens materiais, que obtinham maior visibilidade e chamavam maior atenção uma vez que estavam com a arte e a arquitetura em seu favor.

Inicia-se então o processo de classificação das diversas formações humanas e culturais, tais como as festas, as danças, as comidas típicas de cada região. Opondo-se ao chamado patrimônio “pedra e cal”, esta concepção passou a visar aspectos da vida social e cultural, e, como sugere o próprio termo, a ênfase agora recai menos nos aspectos materiais e mais nos aspectos ideais e de valor dessas formas de vida.

A partir de então, o termo patrimônio cultural passou a ser subdividido então entre material e imaterial, referindo-se e englobando o conceito antropológico de cultura enquanto todo fazer humano, desde objetos, conhecimentos, capacidades e valores.

Passou-se então a valorizar determinado objeto ou bem patrimonial não apenas pela sua história, ou antiguidade, mas também, e principalmente, apoiando-se em valores e sentimentos de pertença da população em relação ao bem. Vale aqui destacar que tais sentimentos inúmeras vezes não estão ligados a questões monetárias, ou de valor artístico, mas sim por questões muitas vezes subjetivas, mas repletas de sentido.

No que se refere à preservação dos bens imateriais, Gonçalves (2003) aponta que atualmente não é proposto o tombamento destes bens, todavia sugere-se a implementação de ações no sentido de que se registrem as práticas e as representações sociais, para que ocorra o acompanhamento e verificação da sua permanência e identificação das suas transformações ao longo dos anos[3]. O patrimônio imaterial passou a ser visto enquanto uma totalidade de culturas, sistemas de significação, o que ampliou as questões referentes à sua proteção e preservação, de forma mais dinâmica. A principal razão para se preservar um patrimônio cultural, segundo o Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais - IEPHA-MG (2006), é a melhoria da qualidade de vida da comunidade, que implica em seu bem estar material e espiritual, e na garantia do exercício da memória e da cidadania, já que a preservação visa à continuidade das manifestações culturais.

Diante desta concepção mais viva e dinâmica dos patrimônios imateriais, e objetivando a padronização dos estudos e a organização das classificações, para um posterior acompanhamento, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, estabeleceu em 2003 um critério que visou à diferenciação das manifestações culturais, através da seguinte classificação:

a) Tradições e expressões orais, incluindo a língua como vetor do patrimônio cultural imaterial;

b) Artes do espetáculo;

c) Práticas sociais, rituais e eventos festivos;

d) Conhecimentos e práticas relacionados com a natureza;

e) Aptidões ligadas ao artesanato tradicional.

Dessa maneira, apesar de não serem suficientes para garantir os direitos culturais dos seus detentores, é possível que através de ações como a identificação, inventários, documentações e registros, os estudos sobre patrimônios ganhem corpo teórico e importância, identificados como essenciais à relação humana com seus antepassados e história, e destacada a necessidade vital de valorização e promoção das inúmeras atividades humanas, através de seus representantes artísticos e culturais.

Patrimônio Imaterial e Turismo: análise da relação e suas interfaces

É comum observar estudos sobre a relação entre patrimônios materiais e imateriais e a atividade turística. Até mesmo a OMT (1998) sugere a definição dos chamados patrimônios turísticos, ao definir que “patrimonio turístico es el conjunto de bienes materiales e inmateriales que constituyen la materia prima que hace posible el desarollo del turismo” (NORRILD, 2002, p. 19).

Entretanto, o patrimônio imaterial é mais do que um simples atrativo turístico, mas um elemento capaz de destacar, preservar e oferecer subsídios para compreender a identidade cultural de cada comunidade, fonte que a impulsiona a uma cultura compartilhada, a experiências vividas entre pessoas de diferentes localidades e vivências, e, assim, deve ter seu significado respeitado. A opção pelo desenvolvimento turístico deverá conciliar-se aos objetivos de manutenção do patrimônio, do uso cotidiano dos bens culturais e da valorização das identidades culturais locais.

Segundo Sahlins (1997), as pessoas, relações e coisas que povoam a existência humana manifestam-se essencialmente através de valores e significados, que não podem ser determinados a partir de propriedades biológicas ou físicas. A sociedade local, seja em um país, uma região, ou um local específico, é compreendida enquanto uma coleção de indivíduos ou indivíduo coletivo, através da posse de seu patrimônio cultural ou da cultura que define a própria identidade.

Os sentimentos que o patrimônio evoca são transcendentes, ao mesmo tempo em que sua materialidade povoa o cotidiano e referencia fortemente a vida das pessoas. Patrimônio cultural é, portanto, a soma dos bens culturais de um povo. O patrimônio cultural dos mineiros é o conjunto dos bens culturais de Minas Gerais, portadores de valores que podem ser legados às gerações futuras.

As referências identitárias são construídas e desconstruídas num processo dialético, fazendo com que não ocorra uma perda, mas uma transformação, um deslocamento de identificações no contato com o outro e com as mais diversas influências externas. Assim, as trocas culturais que ocorrem entre os agentes envolvidos na atividade turística, leiam-se os visitantes, os moradores, políticos, empresários que trabalham e se relacionam diretamente ou não com os visitantes, devem ter como cerne de conduta o respeito pelo outro.

Além do contato entre os próprios moradores, este intercâmbio cultural que ultrapassa os limites geográficos da localidade e que se torna possível através da prática turística, segundo Chaney (apud Kuper 2002), evidencia a cultura de cada lugar, de cada grupo de pessoas, e representa a ponte que une os indivíduos e suas identidades coletivas. Cada cultura não se basta por si só, ou seja, toda cultura é multicultural, é o resultado de uma miscelânea, de empréstimos e misturas que ocorreram, embora em ritmos diferentes, desde os primórdios da humanidade.

É notável o interesse de governos e empresários turísticos em explorar não apenas as belezas cênicas ou naturais da sua região, mas como também buscam oferecer aos visitantes a possibilidade, o que ocorre em alguns lugares, de forma prioritária, de também conhecer e apreciar manifestações culturais típicas, tais como a culinária, as formas de expressão, festividades, comemorações religiosas, enfim, entrar em contato com o modo de viver e de se relacionar com o mundo daquela comunidade.

Neste ínterim, entretanto, é preciso observar que ao se falar de manifestações culturais, o turismo não está lidando apenas com uma simples mercadoria, como um cartão-postal, por exemplo, mas sim de uma gama de símbolos e significados que são construídos em busca da formação da identidade do local. Brandão destaca a importância, por exemplo, da Semana Santa para os moradores locais, e como esta se relaciona com a atividade turística.

A Semana Santa é um festejo tradicional porque congrega como participante as mais diversas categorias de pessoas “do lugar” e “de fora”. Tende a ser cada vez mais articulada, de ano a ano, de modo a comportar diferenças intencionais de participação. Para as autoridades eclesiásticas, os fiéis membros de irmandades e confrarias e para as inúmeras outras pessoas religiosas da cidade e de outras próximas, a Semana Santa não é apenas um acontecimento religioso; ela é o mais importante monumento cerimonial de um calendário litúrgico, que de certo modo se divide em suas grandes partes: antes e depois da Páscoa. Os acontecimentos são promovidos, qualificados e controlados pelas próprias autoridades religiosas (BRANDAO, 1989, p. 58-59).

Assim, para que ocorra de maneira a ser uma interferência positiva na dinâmica do evento, o uso turístico deve buscar maneiras para atuar no sentido do fortalecimento das culturas com as quais se envolve. Assim, a relação entre patrimônios culturais e turismo deve fundamentar-se em dois pilares: tanto na existência de pessoas motivadas em conhecer culturas diversas, quanto também na possibilidade de que o turismo sirva como um instrumento de valorização da identidade cultural, através da preservação e conservação do patrimônio em questão.

Assumir o patrimônio na sua integridade e diversidade implica na sua reformulação em termos de lastro cultural, expressão de identidades e diferenças, de consensos e conflitos, que permitem identificar os processos que originaram tais bens, assim como sua valorização, articulando-se a densidade histórica com os significados mais recentes, produzindo, portanto, ressignificações que ao se confundem com o uso indiscriminado da visitação turística (RODRIGUES, 2007, p. 24).

De acordo com o Ministério do Turismo (2006), a utilização turística dos bens culturais, produto do processo cultural, que proporciona ao ser humano o conhecimento e a consciência de si mesmo e do ambiente que o cerca (IEPHA, 2006), requer ações que as valorizem e promovam, ao mesmo tempo em que é mantida sua dinâmica própria e sua permanência ao longo do tempo. Ações que valorizam e promovem o patrimônio imaterial significa difundir o conhecimento sobre esses bens e facilitar-lhes o acesso e o usufruto, contribuindo para o apreço à sua identidade e memória.

Rodrigues (2007) indica que as responsabilidades na preservação e manutenção dos patrimônios culturais pertencem ao Estado (enquanto normatizador e muitas vezes proprietário), do setor privado (enquanto promotor do turismo e por vezes proprietário dos bens patrimoniais), e também da demanda turística e da população residente. Torna-se vital que estes agentes busquem construir uma relação de responsabilidade e compromisso com os bens, e também com as pessoas envolvidas, uma vez que o patrimônio imaterial não é simplesmente um produto a ser comercializado, mas sim mantenedor de sentimento de pertença, identidade e valorização de uma cultura.

A comunidade é a verdadeira responsável e guardiã de seus valores culturais. O patrimônio cultural pertence à comunidade que produziu os bens culturais que o compõem. Não se pode pensar em proteção de bens culturais, senão no interesse da própria comunidade, à qual compete decidir sobre sua destinação no exercício pleno de sua autonomia e cidadania.

Para preservar o patrimônio cultural é necessário, inicialmente, conhecê-lo através de inventários e pesquisas realizadas pelos órgãos de preservação, em conjunto com as comunidades. O passo seguinte será a utilização dos meios de comunicação e do ensino formal e informal para a educação e informação das comunidades, visando desenvolver o sentimento de valorização dos bens culturais e a reflexão sobre as dificuldades de sua preservação. A preservação do bem cultural está vinculada à sua correta utilização e integração ao cotidiano da comunidade. A atuação do poder público deve ser exercida em caráter excepcional, quando faltarem recursos técnicos ou materiais ou, ainda, organizações coletivas capazes de assumir as ações de preservação necessárias (IEPHA, 2006).

São diversas as formas de proteção do patrimônio cultural, desde o inventário e cadastro até o tombamento, passando pelo estabelecimento de normas urbanísticas adequadas, consolidadas nos planos diretores e leis municipais de uso do solo e, até, por uma política tributária incentivadora da preservação da memória.

Segundo Simão (2006, p. 17), a proteção do patrimônio cultural extrapola hoje os muros do Estado e alcança a sociedade, chamando a todos a serem atores em uma ação conjunta que beneficie e própria sociedade através dos seus bens culturais e patrimoniais.

Nesse sentido, Gramont (2006) afirma que o pensar e o atuar em relação ao Patrimônio Cultural, bem como em relação ao seu contato e a sua integração com a comunidade onde está inserido, devem construir uma postura de disponibilidade permanente para reflexões e modificações conceituais e práticas sem que isso represente não estar apto à tomada de decisões, mas pelo contrário, disposto a analisá-las também como parte de uma construção cultural.

Semana Santa em Mariana: Patrimônio Imaterial festejado através da religiosidade e mantido através da memória coletiva

Uma festividade religiosa popular é, geralmente, um momento onde os sujeitos se misturam e convivem através de um mesmo objetivo, e é também quando várias ações são ritualizadas, já que uma festa popular que envolve religião é uma mistura, ao mesmo tempo espontânea e ordenada, de momentos de rezar, cantar, dançar, torcer, cantar, orar.

Dentro do contexto de Mariana, cidade do interior de Minas Gerais, estas festas se mostram tão religiosas e, sobretudo tradicionais quanto tudo mais que é vivido ali, o que envolve aspectos como sua história, suas tradições, seus costumes. No caso específico do evento da Semana Santa, é possível observar que, além de todo o ritmo de festividade que envolve esta comemoração, ela oferece ainda uma sensação de estar parada no tempo, de maneira soleníssima, o que pode ser vivenciado nas missas, novenas, rezas lentas e procissões de um comovente pesar (Brandão, 1989, p. 44), valorizando a tradicionalidade que lhe é característica.

A festa é tida e vivida como tradicional, e justamente essa tradicionalidade é um de seus pontos fortes. Há diferenças sociais muito importantes aí. Elas dão a uma mesma idéia: o poder simbólico do tradicional (aquilo que é antigo, foi vivido e significado por ancestrais legítimos; é consagrado e, portanto, desejado no estado em que existe sem modificações) possui sentidos diversos (BRANDÃO, 1989, p. 52).

A prática de se comemorar a morte e ressurreição de Jesus Cristo está presente em diversas culturas em todo mundo, não sendo considerada uma atividade recente, pelo contrário. Com a difusão do cristianismo e o predomínio da Igreja entre os séculos IV e XV, período que abrangeu a Antiguidade tardia e Idade Média, o caráter aristocrático foi acrescentado um outro elemento, de força simbólica e coletiva: o caráter religioso, expresso tanto em formas materiais e espirituais, que mostrava a força da Igreja, ao mesmo tempo em que esta se fazia presente na vida desde os moradores mais simples quando mais abastados, sendo o que Brandão (1989, p. 54) chamou de devoção coletiva, capaz de encantar a seus moradores e também seus visitantes vindos de lugares distintos.

Em um contexto macro, é visível que no Brasil, país dominado por uma cultura católica, vinda de Portugal, que por sua vez era repleta de referências espanholas, a religiosidade se fez presente em toda a sua história, o que se reflete com especial singularidade nas terras mineiras, que são famosas e reconhecidas pela sua religiosidade, o que se reflete da mesma forma no barroco, estilo de arte considerado e compreendido como um misto de espetáculo e fé [4].

Atualmente, o estado de Minas Gerais apresenta uma enormidade de festas religiosas, que unem o sagrado e o profano, através dos bailes e quermesses, onde o divino e o humano se encontram, além de serem elementos que ajudam a caracterizar e a fortalecer a identidade cultural de cada localidade. Acrescentando valores múltiplos a este fortalecimento identitário, Geertz (2002) destaca ainda que os eventos tradicionais podem ser vistos também como instrumentos de interpretação da comunidade, levando o povo a ter um contato direto com fatos históricos, objetos e recriando eventos ou modos de vida, aumentando assim o seu conhecimento e apreço às tradições e à sua própria identidade. Tais tradições possuem valor para a comunidade a partir do momento em que fazem parte de seu cotidiano, e também quando são vivenciados de maneira simbólica, por meio de rituais, e são essenciais à manutenção da própria identidade daquela comunidade ao longo dos anos.

Segundo Thompson (2001, p. 163-165), tradição possui um significado de um traditum – isto é, qualquer coisa que é transmitida ou trazida do passado, e que de alguma maneira se tornam vivenciados ao longo dos anos dentro de uma comunidade. Para o autor, se faz útil distinguir quatro diferentes aspectos de tradição, que podem apresentar os aspectos hermenêuticos, normativo, legitimador e identificador, como visto abaixo. Na prática estes quatro aspectos se imbricam e se fundem uns com os outros, misturando-se, mas ao distinguí-los tem-se um sentido mais claro do que é implicado na existência da tradição.

O aspecto hermenêutico é um conjunto de suposições aceitas como-verdadeiras-sem-exame-prévio que fornecem uma estrutura para a compreensão do mundo, como um meio de dar sentido ao mundo. Já o aspecto normativo abarca um conjunto de pressuposições, crenças e padrões de comportamento trazidos do passado e que podem servir como princípio orientador para as ações e as crenças do presente, enquanto o aspecto legitimador reafirma que a tradição pode, em certas circunstâncias, servir como fonte de apoio para o exercício do poder e da autoridade. Finalmente, há o aspecto identificador, que age enquanto um conjunto de pressuposições, crenças e padrões de comportamento trazidos do passado, a tradições fornecem material simbólico para a formação da identidade tanto a nível individual quanto a nível coletivo, criando um sentido de pertença.

Da mesma maneira, pode-se compreender que toda tradição é uma busca de se manter viva a memória coletiva de um povo. Segundo Le Goff (1990, p. 477), “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro”. Neste sentido, na constante tentativa de se preservar a memória de um local, eventos que busquem reviver o passado são repletos de valor, seja este simbólico ou cultural, e por isso devem ser preservados.

Sobre esta relação entre passado e presente, Henry Rousso (s.d.) afirma que esta união se modifica segundo a dinâmica da realidade de cada tempo, e indica que a memória é um elemento a mais na construção e na restauração do sentido de identidade, reconhecimento e estima do grupo de pessoas.

A memória (...) é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do individuo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional. Portanto toda memória é, por definição, ‘coletiva’, como sugeriu Maurice Halbwachs. Seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao ‘tempo que muda’, às rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma, ela constitui – eis uma banalidade – um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros (ROUSSO, p. 94-95, s.d.).

Assim, o passado e suas referências marcadas no território, as manifestações culturais tradicionais, repassadas de geração em geração, as formas de fazer – objetos, alimentos, festas – voltam, na virada do milênio, a ser valorizados.

Ao se pensar na memória de um povo, consideram-se fundamentais os movimentos sociais de manutenção de heranças históricas, onde toda a população se une em busca de um só objetivo, buscando salvar o passado, para assim poder oferecê-lo aos que vierem depois. Para que isso ocorra, “a memória coletiva só pode existir enquanto vivência, isto é, enquanto prática que se manifesta no cotidiano das pessoas” (ORTIZ, 1994, p. 133), prática viva e, portanto dinâmica.

A memória coletiva se estrutura internamente como uma partitura musical, ou seja, é vivida através de um sistema estruturado, onde os atores sociais ocupam determinadas posições e desempenham determinados papéis (HALBWACHS, 1939, apud ORTIZ, 1994, p.133). Não há como uma partitura se transformar em música sem a participação dos musicistas; da mesma maneira, não existe memória coletiva sem a participação do seu povo. A memória de determinada população atua como uma operação ideológica, acarretando o desenvolvimento de um processo psíquico-social de representação de si próprio que reorganiza simbolicamente o universo das pessoas e das coisas.

Segundo Pollak (1992, apud BATISTA, 2006, p. 29), a memória é um elemento que constitui o sentimento de identidade individual e coletiva, na medida em que “ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade de coerência de uma pessoa de um grupo em sua reconstrução de si”. Sobre isso, o autor ainda acrescenta (1989, p. 09) que manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum seriam as duas funções essenciais da memória comum.

No que se refere à memória e sua ligação com comemorações religiosas como a Semana Santa, Freire e Pereira (2002, p. 123) irão destacar que estas festividades são importantes no processo de recomposição da identidade tanto no âmbito municipal quanto nacional, e que por isso mesmo merecem atenção especial dos poderes públicos e privados. As festividades religiosas são entendidas por um viés que privilegia rituais nacionais e também locais, exaltando-se sentimentos de identidade e respeito.

Faz sentido afirmar, assim, que a memória coletiva, vivida através dos seus patrimônios, é um elemento essencial para a construção da identidade de um povo, atuando como um elo que une a população e a sua história. Compreender determinado patrimônio histórico-cultural como responsável por representar o passado é uma tentativa de se compreender a própria identidade de um povo, que está intimamente ligada à memória, tanto através dos bens materiais, quanto pelos bens imateriais, o que é o caso da festividade da Semana Santa.

Assim como a individualidade de um indivíduo ou de uma família pode ser definida pela posse de objetos que foram herdados e que permanecem na família por várias gerações, também a identidade de uma nação pode ser definida pelos seus monumentos, aquele conjunto de bens culturais associados ao passado nacional. Estes bens constituem um tipo especial de propriedade: a eles se atribui a capacidade de evocar o passado, presente e futuro. (GONÇALVES, 1988, p. 267).

No que se refere à questão temporal, um patrimônio imaterial, vivido através de uma manifestação cultural, não se apresentará da mesma maneira ao longo dos anos, se não o contrário. Segundo Oliveira (2007, p. 05), é preciso sempre observar que as expressões da cultura devem ser compreendidas como partes, fragmentos de totalidades culturais que, sujeitas à dinâmica da história, estão em permanente transformação. Uma manifestação preservada não necessariamente será a mesma que ocorria há vinte anos atrás, mas sim aquela que ao longo dos anos consegue manter o seu significado entre os seus moradores, e atinge o seu objetivo de unir aquele grupo de pessoas dentro de um contexto social e histórico, a favor da memória coletiva e da identidade e união local.

Neste sentido, o evento religioso é um instrumento utilizado pela Igreja para se tornar viva na memória dos seus fiéis. A partir do momento em que esta vivência alcança também os turistas, estas celebrações passam a fazer sentido não apenas para os moradores, mas também para aqueles os visitantes através de práticas de fé que muitas vezes estão repletas de significados históricos e culturais.

A Semana Santa não é apenas a celebração da morte e ressurreição de Cristo, mas é também a oportunidade de que, através do forte simbolismo que o evento carrega em si, a própria Igreja se mantenha viva na memória dos fiéis, e, da mesma maneira, em um segundo momento contribua para o fortalecimento dos sentimentos de memória coletiva entre os próprios moradores.

Assume-se aqui a prática turística fundamentalmente enquanto um exercício onde são realizadas trocas simbólicas e, nesse sentido, compreende-se também a busca pelo divino em seus diversos espaços de manifestação, através das celebrações e rituais, através da sua união com o humano. Pois Brandão (1989, p. 85) afirma que a força da festa e de suas seqüências de celebrações está, entre outras coisas, no estabelecimento ritual da diferença, quando se significam contextos e relações de trocas entre diferentes categorias de pessoas e, depois, no consagrar simbólica e afetivamente o domínio de poderes e sentidos em que tudo isso se passa, dentro e depois do que acontece.

 

Referências

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[1] Funari (2006, p. 20) destaca três características dos primeiros pensamentos sobre patrimônio: primeiramente, no que se referia à construção das leis e diretrizes que versavam sobre os patrimônios, sua conservação, quando o patrimônio era entendido como um bem material concreto, um monumento, um edifício, assim como objetos de alto valor material e simbólico para a nação. Em segundo lugar, aquilo que é determinado como patrimônio é o excepcional, o belo, o exemplar, o que representa a nacionalidade. Uma terceira característica é a criação de instituições patrimoniais, além de uma legislação específica.

[2] Tal documento foi aprovado pela Conferência Geral da Unesco, e recomenda aos países membros a identificação, a salvaguarda, a conservação, a difusão e a proteção da cultura tradicional e popular, por meio de registros, inventários, suporte econômico, introdução do seu conhecimento no sistema educativo, documentação e proteção à propriedade intelectual dos grupos detentores de conhecimentos tradicionais. Em síntese, instrumentos bem diversos dos comumente utilizados na salvaguarda do patrimônio cultural de natureza material (SANT´ANNA, 2003, p. 50).

[3] O IPHAN atualmente apresenta 11 bens imateriais registrados no Brasil: Ofício das Paneleiras de Goiabeiras (ES), Arte Kusiwa dos Wajãpi (AP), Círio de Nazaré (PA), Samba de Roda no Recôncavo Baiano (BA), Viola-de-Cocho (MT/MS), Ofício das Baianas de Acarajé (BA), Jongo no Sudeste (RJ), Cachoeira de Iauaretê (AM), Feira de Caruaru (PE), Frevo (PE) e o Tambor de Crioula (MA).

[4] Tinhorão (2000, p. 105) ilustra a exuberância barroca na época do Ciclo do Ouro, uma vez que o sentido profundo dessa intenção de comover pelo esplendor da aparência nas Minas Gerais foi bem captado por Afonso Ávila em seu estudo Iniciação ao Barroco Mineiro: “Ao lado do arraigado religiosismo do colonizador português e de seus descendentes brasileiros, concorria para o caráter monumental emprestado aos templos a própria orientação até então seguida pela Igreja Católica, que buscava enfatizar o poder temporal da religião através da forma e do brilho exterior do culto. Daí o aspecto espetacular que assumiram as celebrações litúrgicas, quando toda a população das vilas mineiras parecia tomada de um êxtase ao mesmo tempo festivo e religioso”.

 

 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 22 abril, 2008.