SHEYLA CASTRO DINIZ

Graduanda em Ciências Sociais e Música pela Universidade Federal de Uberlândia e bolsista do PIBIC/CNPq.

 

* Este artigo é fruto de pesquisa realizada no período de agosto de 2006 a julho de 2007, com financiamento do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, sob a orientação do Prof. Dr. Adalberto Paranhos

 

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Entre o Rio e Minas: 

a Bossa Nova nas Geraes*

Sheyla Castro Diniz

 

Resumo: Este artigo, afinado com o objeto principal da pesquisa desenvolvida, se volta para a cena musical belo-horizontina da década de 1960, período em que despontou o Conjunto Sambacana, liderado por Pacífico Mascarenhas, cuja mola mestra foram às canções de cunho bossa-novista. O propósito do trabalho é mostrar, especialmente através da discografia disponível, as interações e reapropriações da Bossa Nova mineira, tendo em vista o que já era feito no Rio de Janeiro, além de sua importância na carreira de músicos como Milton Nascimento e o Clube da Esquina, que posteriormente seguiriam por outros caminhos.

Palavras-chave: História, Música Popular, Bossa Nova.

Abstract: The goal of this research project seeks to analyze the musical scene of Belo Horizonte, State of Minas Gerais in the sixties. At this time the Conjunto Sambacana, led by Pacífico Mascarenhas, centered on the type of music known as Bossa Nova. The objective of this project is, therefore, to show, through available discography, the dialogues and appropriations of Bossa Nova in the state of Minas Gerais, keeping in mind what had been done in the State of Rio de Janeiro as well as its importance in the career of musicians such as Milton Nascimento and the Clube da Esquina, that later on developed and evolved, musically, in other directions.

Keywords: History, Popular Music, Bossa Nova.

 

Revista 3Tempos. Belo Horizonte, 13 de janeiro de 1963Introdução

 

“Todo mundo foi afetado pelo acontecimento denominado Bossa Nova, que atravessou todo o espectro cultural brasileiro”.

(Caetano Veloso. Apud PARANHOS, 1990, p. 95)

Esta pesquisa está em linha de sintonia com o crescente interesse pelos estudos promovidos nesse campo, que ganharam corpo especialmente por meio de trabalhos de cientistas sociais e historiadores, para além daqueles levados adiante pelos profissionais da área específica da Música. Inspirei-me em contribuições como as dos sociólogos Santuza Cambraia Naves (2001) e José Roberto Zan (1996), do antropólogo Hermano Vianna (1995), do cientista político e historiador Adalberto Paranhos (1999) e outros mais.

Durante muito tempo, a canção popular foi desdenhada no plano acadêmico, uma vez que era vista mais como uma forma de entretenimento do que como um objeto de estudo e conhecimento. Porém, com a valorização de “novos objetos”, ela, ao lado das fontes visuais, foi se constituindo um desafio para os investigadores, à medida que estes passaram a enxergar nessas novas fontes uma enorme riqueza de informações e significações. Neste trabalho, a concepção de música adotada se baseou em suas dimensões literária e, sobretudo, sonora, com base na qual me propus a pesquisar registros fonográficos de LPs da época – uma parcela dos quais foi relançada em CDs – como recurso documental.

É muito comum os pesquisadores de música popular ficarem restritos quase exclusivamente às letras das canções, como se elas fossem, acima de tudo mais, as responsáveis pela explicitação de seu(s) significado(s). Caminhando em sentido diverso, assumi uma opção metodológica que implica, diante do material coletado, a conjugação de letra e música, elementos que tanto podem se complementar como até se contrapor, na dependência da performance dos seus intérpretes. Isso, além do mais, evidencia que uma canção não é dotada de um significado único no tempo, como se pairasse acima dos momentos históricos em que ela se situa (cf. PARANHOS, 2000 e 2004). Daí que tal procedimento metodológico me conduziu à audição das gravações originais registradas nos anos 1960, buscando apontar peculiaridades de interpretação, harmonização, instrumentação e desenhos melódicos bossa-novistas e as apropriações e reapropriações presentes nas relações estabelecidas entre músicos que forjaram a Bossa Nova, seja no Rio, seja nas Geraes. Para tanto, parti da escolha de algumas canções que oferecem melhor campo de análise.

A pesquisa também foi calcada nas entrevistas de dois expoentes da Bossa Nova em Minas Gerais: Pacífico Mascarenhas, líder do Conjunto Sambacana, e Roberto Guimarães, autor de “Amor certinho” (gravada por João Gilberto), que viria a integrar igualmente o Sambacana. As entrevistas, realizadas no dia 09 de junho de 2007, em Belo Horizonte, se basearam nas técnicas de entrevista oral. Procurei deixar meus entrevistados livres para exporem suas memórias, guiando-os apenas por perguntas pontuais, para que, dessa forma, o foco da conversa não se perdesse, mas sem que isso interferisse em suas falas.

A necessidade das entrevistas, em primeiro lugar, se deu pelo fato delas envolverem temas dos quais as outras formas de documentos (sonoros e textuais) não conseguiam dar conta, considerada a precariedade e escassez de referências ao movimento bossa-novista belo-horizontino na bibliografia especializada da área de música popular brasileira. Contudo, a utilização dos depoimentos prestados não se processou de maneira desarticulada, uma vez que é preciso saber “interpretar as reminiscências e (...) combiná-las com outras fontes históricas para descobrir o que ocorrera no passado” (THOMSON, 1997, p. 52).

Além dos materiais sonoros, a pesquisa se sustentou na bibliografia sobre Bossa Nova e também em outros tipos de fontes, como, por exemplo, internet, capas de LPs e CDs, revistas, dicionários de música e enciclopédias, sempre com o propósito de estabelecer comparações entre as variadas formas de documentos usados.

A emergência da Bossa Nova e suas ressonâncias em Minas

A cena musical brasileira, no final da década de 1940 e início dos anos 50; começou a sofrer aos poucos uma importante modificação estilística e estética. O que se ouvia nas paradas de sucesso, além do baião e dos vários tipos de samba, que já se transformara em ícone nacional, era, muitas vezes, uma canção abolerada, com letras melodramáticas sobre amores perdidos, traições, embriaguez etc, tratamento mais ou menos operístico no canto e estrutura harmônica relativamente simples.

Percebe-se, desse modo, que uma parte de rapazes e moças do Rio de Janeiro nos anos 1940/50 ansiavam por leveza, naturalidade, sofisticação, sutileza na música popular. O surgimento de uma batida diferente consagrada ao violão por João Gilberto (v. GARCIA, 1999), um jeito intimista de cantar, a integração da linha melódica com o todo[1], prosa e poesia coloquial, harmonia sofisticada e dissonante, balanço de samba e por vezes associado ao gingado de jazz, enfim, tudo o que representa a Bossa Nova em termos práticos pode ter sido uma resposta a essas ansiedades de jovens interessados em música em meados do século passado, mais precisamente no final dos anos 50.

Mas a Bossa Nova não foi recebida de braços abertos nem obteve aprovação unânime dos pesquisadores e aficionados da música popular brasileira. Para uns, ela teria significado a chegada da modernidade estética no cenário musical do Brasil, inovando as batidas do samba e assimilando procedimentos jazzísticos e eruditos, o que em nada subestimaria a criatividade e a riqueza da música popular: pelo contrário, a tornaria ainda mais rica. No caso específico do maestro Júlio Medaglia, ele ressalta que, “se uma modalidade de samba era extrovertida, adequada para a prática musical de massa e de rua, outra visava a uma versão musical introvertida, apropriada para a intimidade de pequenos recintos, versão camerística, portanto, sem que a presença de uma implicasse a negação da outra” (Medaglia, 1978, p. 71).

Outros, ligados radicalmente à defesa de uma certa tradição musical, viam na Bossa Nova a deturpação e o abandono de nossas “raízes culturais”, já que o samba era considerado algo genuíno, e a Bossa Nova nada mais do que uma filha bastarda do jazz  mera “armação do imperialismo norte-americano”. No dizer de um desses críticos, “um grupo desses moços da Zona Sul, quase todos entre dezessete e vinte e dois anos, resolveu romper definitivamente com a herança do samba popular, para modificar o que lhe restava de original, ou seja, o próprio ritmo” (Tinhorão, 1998, p. 310).

Apesar de tais posições divergentes e de tantos outros debates em torno do assunto, um denominador comum é o reconhecimento da Zona Sul do Rio de Janeiro como palco central e às vezes único da Bossa Nova, sem falar das referências quase exclusivamente a uma classe média branca, de formação universitária (ou quase), no movimento bossa-novista. 

As praias de onde surgiu e por onde transitou a Bossa Nova não remetem tão-somente à Zona Sul carioca (local em que se situava o famoso apartamento de Nara Leão, ponto de encontro de jovens bossa-novistas, e o Beco das Garrafas, em Copacabana, onde se cultivavam, inicialmente, as jam sessions e, posteriormente, a Bossa Nova). Para não ir muito longe, basta lembrar que o Sinatra-Farney Fã Clube (do qual saíram figuras destacadas da “moderna música popular brasileira” , como João Donato e o negro Johnny Alf), estava localizado na Tijuca, bairro da Zona Norte carioca.

Se, por outro lado, não se pode negar a contribuição decisiva da Zona Sul do Rio de Janeiro para a constituição do estilo bossa-novista, convém frisar que o primeiro disco de Bossa Nova de João Gilberto, o histórico Chega de Saudade, de 1958, fez primeiramente mais sucesso em São Paulo que no Rio de Janeiro. E, como se sabe, em terras paulistas o culto à Bossa Nova encontrou até seus templos (como o Teatro Paramount, o “templo da Bossa”) e disseminou-se por um sem-número de casas noturnas e pelos ambientes universitários. 

E é paralelamente a todos esses acontecimentos que em Belo Horizonte, em meados dos anos 1950, uns tantos jovens, freqüentadores da Praça da Savassi, também estavam à procura de coisas novas, musicalmente falando, e, para regar as serenatas que faziam, escolhiam o que havia de mais moderno na área dos sambas-canções.

A turma da Savassi é uma turma que a gente tinha e fazia ponto na padaria Savassi. A gente saía dos colégios, depois da aula se reunia lá, uns 60 jovens ... Vendo o movimento, esperando a hora do almoço, e de tarde a gente voltava de novo... E a gente, naquela época, gostava de fazer muita serenata de noite. Essas serenatas eram assim mais modernas. O que a gente cantava era samba-canção, aquelas músicas do Lúcio Alves, Dick Farney. A gente tinha um grupo que gostava de música, ensaiava um vocal e cantava (trecho da entrevista concedida por Pacífico Mascarenhas, exclusivamente para esta pesquisa. Belo Horizonte/MG, 09 de junho de 2007).

O nome que mais veio a se destacar dentre os jovens que freqüentavam a Praça da Savassi, no bairro dos Funcionários, em Belo Horizonte, foi Pacífico Mascarenhas. Originário da classe média relativamente bem situado do ponto de vista social, Pacífico já levava jeito com o piano e o violão e embalava as serenatas juntamente com seus amigos da turma da Savassi. Ele relata, então, como foi que se deu conta de que poderia começar a compor os seus primeiros sambas-canções:

Nessas serenatas eu encontrei um amigo meu, Alceu Tunes, lá na porta do Colégio Izabela, um internato feminino; ele tava fazendo uma serenata lá... Aí ele começou a cantar uma música, e eu falei: “Alceu, mas que música bonita é essa?” E ele: “fui eu que fiz”. Aí eu falei: “mas num é possível. Você fez uma música? Uai, Alceu, vai lá em casa amanhã pra eu ver que história de música é essa. Eu tô impressionado de você ter feito uma música, eu nem imaginava que pudesse fazer uma música...” Na hora que ele foi lá em casa com uma música dele, eu fiz a letra de “Pam-pam-pam”: “Pam-pam-pam, meu bem, cheguei”. Pam-pam-pam era a buzina do carro. “Anda depressa/ que moleza é essa/ eis meu carro, meu violão/ ouço daqui seu coração”. Daí fiz outra e depois eu peguei o jeito como era. Eu já tocava piano e já tava aprendendo violão. Foi por meados de 1955. Peguei o jeito e comecei a fazer uma série de sambas-canções, tipo a música “Anos Dourados” (entrevista com Pacífico Mascarenhas, BH/MG, 2007).

Em 1956, a passeio na cidade de Diamantina, onde sua família possuía uma tecelagem na região, conheceu ninguém menos que João Gilberto (v. CASTRO, 1990, p. 45-46). Depois de um turbilhão de acontecimentos em sua vida, João Gilberto se encontrava deprimido: sua única saída foi procurar refúgio na casa de sua irmã Dadainha que vivia em Diamantina. Pacífico Mascarenhas, ao saber que havia um jovem na cidade que também gostava de música e tocava violão, foi procurá-lo. O encontro não rendeu muita coisa. Anos depois, Pacífico reencontraria João Gilberto em outras condições no Rio de Janeiro.

Um dia, eu tava lá em Diamantina, e um pessoal falou que tinha um camarada do Rio lá... Aí eu fiquei conhecendo o João Gilberto antes dele gravar o primeiro disco. Eu tive pequenos contatos com ele: ele muito tímido, e tal. E depois, mais tarde, minha amizade com ele aumentou no Rio de Janeiro. Aí eu já procurei ele no Rio, já freqüentava a casa dele, fui pegando o jeito. E tive a oportunidade de ver a gravação que ele fez, quando gravou um 78 rotações: de um lado a música ‘Desafinado’ e do outro lado ‘Bim-bom’ (entrevista com Pacífico Mascarenhas, BH/MG, 2007).

Pacífico, voltando para Belo Horizonte, estreitou ainda mais seus contatos com o pessoal do Rio de Janeiro. Sempre que ia ao Rio, procurava por João Gilberto, que já começara a ficar famoso. Através desses contatos, conheceu Tom Jobim, Roberto Menescal, Eumir Deodato, Dorival Caymmi e outros.

Em Belo Horizonte, a turma da Savassi já ganhara nome e, geralmente, quem se responsabilizava por traduzir os sentimentos da turma em canções era Pacífico. A partir de então, suas canções começaram a ganhar uma conotação bossa-novista. “Muita coisa que a gente queria falar pras moças e namoradas não tinha música, daí eu inventava: ‘Se eu tivesse ao menos coragem de dizer que te amo...’, tudo que a turma sentia, eu ia fazendo melodias, com as letras falando nesses assuntos” (entrevista com Pacífico Mascarenhas, BH/MG, 2007). Ainda em 1958, Pacífico preparou seu primeiro disco para ser gravado no Rio Janeiro, Um passeio musical, ao lado de outros dois músicos mineiros, Paulo Modesto e Gilberto Santana, pela Companhia Brasileira de Disco (hoje Universal), mas com produção independente.

Muitas das reuniões da turma da Savassi aconteciam nas casas dos integrantes da turma, e aqueles grupinhos que, costumeiramente, se encontravam para tocar violão e conversar passaram a realizar o que se chamou Sambacana, ou seja, “reuniões na base de samba e cana, nas quais eram mostradas as novas composições aos amigos” (cf. Pacífico Mascarenhas). 

Outro nome importante da turma do Sambacana é Roberto Guimarães, que, segundo seu próprio relato em entrevista, só teria conhecido Pacífico Mascarenhas e participado dessas reuniões, após sua música “Amor certinho” haver sido gravada por João Gilberto. O primeiro contato de Roberto Guimarães com a Bossa Nova foi através da Rádio Nacional, que começara a tocar o primeiro 78 rpm gravado por João Gilberto e também através de seu primo Márcio Guimarães, que morava no Rio de Janeiro e tinha aulas de violão na academia de Carlinhos Lyra.

O Márcio veio passar umas férias em BH e ficou hospedado lá em casa. E ele foi me passando uns acordes de Bossa Nova, e eu me encantei com aquilo. Mas o meu primeiro contato realmente com a Bossa Nova foi na casa do meu pai. Eu tava saindo e na sala tinha um rádio, aqueles grandões RCA, e comecei a ouvir João Gilberto cantando “Chega de Saudade”. Aquilo foi como um soco na minha cara. Nunca tinha ouvido nada parecido, em termos de ritmo, de jeito de cantar, de emissão de voz. Eu fiquei parado, que coisa maravilhosa! O João Gilberto tinha lançado um 78 rpm, que, de um lado, era “Chega de Saudade” e, do outro lado, ‘Oba-la-la’ (trecho da entrevista concedida por Roberto Guimarães, exclusivamente para esta pesquisa. Belo Horizonte/MG, 09 de junho de 2007).

A partir daí, Roberto Guimarães, que já possuía alguns sambas-canções, começou a compor músicas de Bossa Nova. E compôs tão bem que foi contemplado com a gravação de sua música “Amor certinho” por João Gilberto no LP O amor, o sorriso e a flor, em 1960. João Gilberto, em 1959, foi fazer um show em Belo Horizonte no Minas Tênis Clube, quando Roberto Guimarães o conheceu. A mesma canção fora gravada anteriormente por Jonas Silva, ex-integrante do grupo vocal Os Garotos da Lua, a pedido do próprio João Gilberto, que também atuou no grupo.

Lá na turma nossa, tinha umas moças de Diamantina, eram amigas minhas, e por coincidência o João veio aqui com a Astrud Gilberto, a mulher dele na época... A Astrud é carioca, o pai dela acho que é descendente de alemão, e a mãe é descendente desse pessoal de Diamantina. Aí quando acabou o show, as minhas amigas lá de Diamantina falaram assim: “ô, Roberto, o João e a Astrud vão lá pra casa da nossa tia” (que era há dois quarteirões do Minas). “Você quer ir lá conosco?” Falei: “vamos, uai”.Chegamos na casa da tia delas, o João já tava na sala sentado no sofá com a Astrud. E aí elas entraram e me apresentaram: “esse aqui é o Roberto Guimarães, um amigo nosso, faz serenata, é compositor, cantor, tem umas músicas aí que ele queria te mostrar”.Mas a gente não tinha combinado nada disso. Nunca tive a pretensão de achar que eu ia cantar pro João Gilberto. Mas aí pegaram o violão do João, porque eu não tava com violão, e botaram na minha mão, eu peguei e cantei. Cantei umas cinco músicas que eu tinha, e o João não se pronunciava; eu cantava e ele só ficava olhando. Aí acabou, ele falou assim comigo: “canta aquela segunda de novo” (era o ‘Amor certinho’); eu cantei, né? Ele falou assim: “canta de novo”, cantei de novo. Aí ele pegou o violão, tirou a harmonia toda, pediu pra eu escrever a letra e falou assim: “eu vou gravar a sua música”.Eu quase caí pra trás... (entrevista com Roberto Guimarães, BH/MG, 2007).

Em 1963, Pacífico inventou um método de acompanhamento de violão com os acordes desenhados para aparecer na capa do disco. E para esse LP, intitulado Conjunto Sambacana, lançado em 1964 pela Odeon, nada mais bossa-novista do que os arranjos ficarem por conta de Roberto Menescal e Hugo Marotta, e os teclados, a cargo de Eumir Deodato. As vozes eram de um tal de Toninho (que nunca mais apareceu no meio musical) e Joyce, que, convidada por Menescal, pela primeira vez colocava sua voz em disco, ela que anos mais tarde seria uma das referências da Bossa Nova.

O Conjunto Sambacana, formado praticamente para a gravação desse primeiro disco, na realidade não existia como grupo. Aliás, “uma porção de gente queria contratar o grupo que praticamente não existia” (cf. Pacífico Mascarenhas). Convidado pela Odeon, em 1965, para gravar o segundo Sambacana – Quarteto Sambacana – Pacífico, que havia acabado de conhecer Bituca (Milton Nascimento) e Wagner Tiso, recém-chegados de Três Pontas, os levou para o Rio de Janeiro, juntamente com Marcos de Castro, compositor e arranjador mineiro, e também Gileno, irmão de Wagner Tiso. Registre-se que “a primeira vez que Bituca entrou num estúdio foi para gravar ‘Barulho de trem’. A segunda foi para gravar como vocalista num disco de Pacífico Mascarenhas” (BORGES, 2004, p. 69).

Marco fundamental na carreira de Milton Nascimento: seus primeiros passos musicais o ligam à Bossa Nova, sem falar que ele ao contrabaixo, mais Wagner Tiso ao piano e Paulo Braga na bateria, compunham o Berimbau Trio que tocava jazz e Bossa Nova nas noites belo-horizontinas. Logo se vê que a turma da Savassi e o Sambacana, liderado por Pacífico Mascarenhas, funcionaram como pontes entre o Rio de Janeiro e Belo Horizonte, estabelecendo conexões que vamos analisar mais adiante.

Quando Minas consome e produz Bossa Nova

A Bossa Nova veio ao mundo com o lançamento de “Chega de Saudade”, primeiramente sob o formato de 78 rpm, em 1958, e, na seqüência, no LP de mesmo nome, em 1959. Nas palavras do maestro Júlio Medaglia (1978, p. 75), “o aspecto que de início chamou a atenção do ouvinte foi o caráter coloquial da narrativa musical”, coisa que João Gilberto sabia fazer muito bem com sua interpretação despojada, deixando incomodadas as pessoas acostumadas com grandes vozes. Para elas, ele estaria quase que se anulando como cantor, por reproduzir uma espécie de canto-falado, intimista, mais natural e relaxado. Em relação à parte instrumental, “em vez de servir de background para o ‘solista’, com grandes introduções e finais sinfônicos, era, ao contrário, camerístico, econômico e muito transparente” (Medaglia, 1978, p. 75).

Outro aspecto importante ressaltado por Medaglia foi o desenvolvimento da linguagem violonística de acompanhamento. Antes, as músicas eram tratadas com os acordes básicos da harmonia tradicional, ou seja, tônica (define o tom da canção), dominante (quinto grau em relação à tônica, com caráter de aproximação), tônica com sétima (preparação para o acorde seguinte) e, por fim, subdominante (que geralmente marca o clímax de uma canção e dá idéia de afastamento em relação à tônica). Os acordes, além de sempre colocados em posição fundamental (a nota principal como o baixo ou o bordão do acorde), eram articulados sob um ritmo simétrico.

Daí a revolução provocada pelo lançamento do primeiro LP de João Gilberto. Os acordes passaram a ser tratados em posições invertidas e incorporavam notas estranhas ou dissonantes em relação à harmonia tradicional, manejados agora sob um ritmo próprio, não dependente do canto. Com Chega de Saudade uma nova cartada estava lançada na música popular brasileira, como uma espécie de síntese do que vinha sendo procurado pelos meninos e meninas do Sinatra-Farney Fã-Clube ou pelos moços e moças de Copacabana e também, por que não?; pelos rapazes da turma da Savassi em Belo Horizonte.

Um pouco depois da gravação do primeiro LP de Pacífico Mascarenhas, Um passeio musical, de 1958, ele e Roberto Guimarães gravaram juntos um compacto (entre o fim de 1959 e início de 1960) contendo de um lado três composições de Pacífico e, de outro, outras três de Roberto. A música “Amor certinho”, de Roberto Guimarães, já estava nas mãos de João Gilberto para ser lançada no LP O amor, o sorriso e a flor, no começo de 1960. Dentre as cinco músicas que Roberto Guimarães apresentara a João Gilberto, por que será que ele escolhera justamente esta?

Amor à primeira vista/ amor de primeira mão/ é ele que chega cantando, sorrindo/ pedindo entrada no coração/ o nosso amor já tem patente/ tem marca registrada/ é amor que a gente sente/ eu gravo até em disco todo esse meu carinho/ todo mundo vai saber/ o que é amar certinho/ esse tal de amor não foi inventado/ foi negócio bem bolado/ direitinho pra nós dois/ foi ou não foi?/ esse tal de amor não foi inventado/ foi negócio bem bolado/ direitinho pra nós dois.

O estilo de João Gilberto, principalmente o seu modo de cantar, suave e intimista, parece adaptar-se perfeitamente à letra de Roberto, tão “certinha” em detalhes e ao mesmo tempo singela em seu ar prosaico e coloquial, sem falar nos aspectos musicais, que se estruturam numa linguagem tipicamente bossa-novista. Elementos diferentes aparecem apontando o caminho da metalinguagem: o amor, que já tem patente, pode ser gravado em disco para todo mundo tomar conhecimento.[2] Música e letra, como se percebe, se autocomentam aí.

O primeiro LP de maior repercussão gravado por Pacífico Mascarenhas foi, como já vimos, Conjunto Sambacana. O disco conta com 14 faixas, todas fiéis às características inauguradas da Bossa Nova por Chega de Saudade. A voz de Joyce e a de Toninho têm um timbre doce e se expressam de um jeito intimista, com impostação natural e despojada. Interessante também foi a idéia de Pacífico de reproduzir os acordes do violão na contracapa do LP, um método criado e patenteado em 1963. Os acordes utilizados nas suas composições estão permeados daquelas notas estranhas à harmonia tradicional. Dessa forma, o comprador do disco era agraciado com as canções e poderia ainda aprender a tocar aqueles “acordes dissonantes”.

Em se tratando das letras das composições bossa-novistas, já foi salientado por muitos analistas que nelas prepondera a economia de palavras, escritas em tom coloquial e prosaico. Seu modo de dizer as coisas configura o recurso a “outras palavras” para se comunicar de maneira mais direta com seu público (v. PARANHOS, 1990, p. 48-56). A naturalidade e a prosa das letras da Bossa Nova revelam a cara de muitos jovens da época. Elas também estão presentes nas canções de Pacifico Mascarenhas, como, por exemplo, em “Bolo” (parceria com Augusto M. Guimarães), no LP Conjunto Sambacana. Nessa faixa se relata o desabafo de um amigo a outro, contando que a namorada não apareceu ao encontro marcado; porém nem por isso o rapaz fica desconsolado e sai à procura de outro amor.

Hoje eu combinei/ encontro com meu bem/ ela não vem/ marquei às oito horas/ e não apareceu até agora/ passa meia hora, ela não vem/ olho na esquina,  não tem ninguém/ será que essa menina já me esqueceu?/ Por que me deu o bolo?/ eu não vou fazer papel de tolo/ e ligar se ela não vem/ vou seguir o meu passeio/ e se ela ainda vier/ lhe diga, por favor/ que eu já saí à procura de outro amor.

Aliás, as músicas de Pacífico Mascarenhas são um retrato do que acontecia entre os jovens de sua turma, como ele mesmo esclarece: “Tinha muita coisa que a gente queria falar pras moças e pras namoradas. Então eu inventava”.Ele mesmo, na entrevista, cantou um trecho de sua música “Se eu tivesse coragem”, outra faixa do LP Conjunto Sambacana, composição que “emprestava” a muitos de seus amigos na hora de conquistar uma garota.

Se ao menos tivesse coragem/ de dizer que te amo e te quero/ que te adoro, meu bem/ e há muito espero/ por você, meu amor, já sofri/ por você, meu amor, morrerei/ eu não consigo lhe dizer/ que gosto tanto de você/ fico sem jeito de pedir/ que me dê logo o seu amor/ se um dia você resolver/ confessar que ama também/ tão feliz eu seria/ se tivesse um dia/ um instante sequer ao seu lado/ um momento feliz com você.

Nesse primeiro disco Sambacana, como é típico da Bossa Nova que acolhe mais abertamente procedimentos jazzísticos, há lugar para improvisações curtas ao piano, passando ainda pela flauta, que tanto anuncia a melodia cantada, como, por vezes, faz variações em torno dela. Outro detalhe são as vocalizações, que em certos momentos formam blocos de acordes, não aqueles tradicionais, e, sim, apoiados em notas “dissonantes”, mostrando o colorido bossa-novista. Essas vocalizações em acordes aparecerão melhor no segundo LP do Sambacana, cuja gravação contou com a participação de Milton Nascimento.

Uma peculiaridade da Bossa Nova de Pacífico Mascarenhas está no fato dele buscar registrar sua visão da realidade belo-horizontina nas letras. Além da Praça da Savassi, uma das suas fontes de inspiração, no LP Conjunto Sambacana há uma música intitulada “Ônibus colegial” (Pacífico Mascarenhas e Ubirajara Cabral), “que falava nos colégios todos de Belo Horizonte. As moças dos colégios, quando ela tocava no rádio, todo mundo se ligava nela” (Pacífico Mascarenhas). Para essa música, Roberto Menescal, o arranjador do disco, utilizou o recurso de, na pequena introdução e no final, imitar com os instrumentos a buzina do ônibus colegial.

Vou descobrir onde mora/ essa garota colegial/ que passa sempre dando bola/ dentro de um especial/ não sei se essa menina estuda no Colégio Assunção/ se é do Santa Marcelina/ ou do Sagrado Coração/ já me disseram que ela mora lá na Serra/ já estudou no Izabela/ no Sion e Helena Guerra/ esta garota talvez seria aquela do Sacré Couer/ que muito me prestigia com a do Santa Maria/ hoje o especial passou/ e ninguém olhou pra mim/ ou ela não foi à aula/ ou não gosta mais de mim.

É importante destacar, por outro lado, a faixa de abertura do LP, “Pouca duração” por se tratar de uma composição especialíssima, que, num certo sentido, remete a obras como “Desafinado” e “Samba de uma nota só” (ambas de Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça). Abro um parêntesis.

Affonso Romano de Sant’Anna (2004) é um dos autores que se debruçam sobre a inovação literária produzida nas letras da Bossa Nova. Ele retoma exemplos clássicos, mencionados igualmente por outros autores, ao se referir às canções “Desafinado” e Samba de uma nota só “. Ressalta, então, que os compositores conseguem falar de aspectos musicais, lançando mão da própria música, num caso explícito de utilização da metalinguagem. Em meio a tantas polêmicas em que a Bossa Nova foi envolvida, em ”Desafinado” o intérprete, fingindo criticar a si próprio, sob o pano de fundo de uma história de amor, criticava aqueles que insistiam em chamá-lo (ou em chamar os bossa-novistas) de desafinado e antimusical. Ao mesmo tempo, a melodia, propositalmente trilha caminhos estranhos diante do que era considerado convencional, dando idéia de desafinação para os ouvidos da época: “Se você disser que eu desafino, amor/ saiba que isso em mim provoca imensa dor/ só privilegiados têm ouvido igual ao seu/ eu possuo apenas o que Deus me deu...”.

Em “Samba de uma nota só”, canta-se exatamente o que se está ouvindo. Na primeira parte, “Eis aqui este sambinha/ feito numa nota só/ outras notas vão entrar/ mas a base é uma só”, a melodia se escora numa única nota e somente muda, quando se diz “Esta outra é conseqüência/ do que acabo de dizer/ como sou a conseqüência inevitável de você”. Na segunda parte, a melodia faz uma série de peripécias, quem sabe alfinetando aqueles que criticavam a economia de elementos na Bossa Nova, enquanto a letra lembra que “Tanta gente existe por aí/ que fala tanto e não diz nada/ ou quase nada/ já me utilizei de toda escala/ e no final não deu em nada/ não sobrou nada”. Daí o intérprete volta pra sua nota, na letra e na melodia, e, claro, também volta para a pessoa amada.

Fechado o parêntesis, note-se que a utilização da metalinguagem não passou despercebida a Pacífico Mascarenhas. Em “Pouca duração” música e letra igualmente se entrecruzam:

Esta canção terá pouca duração/ como o nosso amor/ que tão cedo acabou/ pode compará-la também com uma flor/ que desabrochou/ mas não durou, secou/ por isso a canção só terá essa parte/ a outra existirá na imaginação/ vamos combinar/ eu termino a canção/ se você voltar/ mas só se você voltar/ se você voltar para o meu coração.

Usa-se a canção, de pouca duração, para falar de uma história de amor que tão cedo acabou. E a composição só tem uma parte, assim como o amor que não foi completo. Mas a proposta é lançada: se a pessoa amada voltar, e o amor se completar, a canção será retomada; caso contrário, a outra parte ficará apenas na imaginação.

Uma outra característica significativa apontada por Sant’Anna nas letras bossa-novistas é a substituição do dramático pelo lírico. Canções anteriormente preocupadas em descrever passaram simplesmente a retratar e contemplar os acontecimentos. A Bossa Nova celebrizou um tipo de “canção-retrato”, na qual não há especificação do sujeito, nem o que aconteceu a ele – esquema típico de músicas de outrora. Exemplo disso é “Garota de Ipanema” (Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes) ou “Corcovado” (Antônio Carlos Jobim) ou ainda “O barquinho” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli), as quais parecem capturar um momento único, como uma fotografia.

E assim chegamos ao LP do Quarteto Sambacana, Muito pra frente, de 1965. Para exemplificar esse tipo de “canção-retrato”, menciono a faixa “O navio e você”, composição de Pacífico Mascarenhas e Wagner Tiso, que desse disco participou cantando.

Olha pro mar/ o navio vai chegar/ ele que vem do sul/ trazendo o meu amor/ flutua no mar azul/ vai navegando e assim/ estou a esperar/ cada vez mais para amar você/ certo que não me esqueceu/ este tempo e.../ olha pro cais/ o navio apitou/ trouxe assim todas as promessas que levou/ fazendo-me feliz/ pois meu amor voltou.

Nesse segundo disco do Sambacana, as músicas recebem arranjos vocais considerados “modernos”. Salvo as partes reservadas para o solista, há momentos em que um conjunto de vozes toma a cena, à base de acordes sofisticados, com notas diferentes, que começaram a ser incluídas nas harmonizações a partir da Bossa Nova. Espaços para improvisações não faltam no LP, e ainda há presença garantida dos “lá-lá-lás”, “oh-oh-ohs” ou “bem-bem-boms”, salientando o singelo e o econômico, bem a caráter de “bim-bom, bim, bim, bom”, que o diga João Gilberto. Uma música que mostra bem isso é a primeira faixa, “Tom da canção”, de Pacífico Mascarenhas, que incorpora parcialmente a prática da metalinguagem.

Olhe, meu bem/ achei o tom/ o tom da canção para você cantar/ não repare, não/ que eu toco mal violão/ se você quiser/ peço alguém pra acompanhar/ obrigado, meu bem/ já pode começar/ farei todo possível/ pros acordes não errar/ vai sair horrível/ assim mesmo vou tentar/ só para ouvir você cantar/ bem, bem, bem, bem-bom/ bem, bem, bem, bem-bom.

Além do mais, esse LP é uma prova concreta de que a formação de Milton Nascimento passou pelos caminhos da Bossa Nova, tal como a de outros futuros integrantes do Clube da Esquina. Milton Nascimento foi convidado por Pacífico para cantar em seu disco, aceitou e, a partir daí, se abriram muitas portas para ele. Pacífico Mascarenhas conta que

Quando o Milton veio pra cá, eu arrumei um lugar pra ele e o Wagner lá na Savassi, na pensão do Badi, ali na rua Antônio de Albuquerque. Eles ficaram lá uma temporada e de vez em quando iam na Savassi, pois eles tavam a um quarteirão de lá. Depois eles sumiram. (...) Eu que praticamente levei ele pro Rio pra gravar o primeiro disco, e lá ele ficou, ele e o Wagner. Apresentei o Bituca à Elis Regina, ao Eumir Deodato...

Márcio Borges, outra legenda do Clube da Esquina[3], confirma esse depoimento: “Quanto a Bituca, progredia, apesar dos dias apertados. Andava viajando bastante e conhecendo muita gente importante na música, através de Pacífico Mascarenhas”. (BORGES, 2004, p. 122).

Apesar de Milton Nascimento ter tomado outros rumos – uma mistura aleatória das toadas de congada e carros de boi com The Beatles, rock e muito mais –, sua base já estava dada. Sua música revelava marcas indeléveis da “modernidade musical”, em todos os parâmetros, aqui incluída a Bossa Nova. Isto vale também para Wagner Tiso e toda a turma da capital mineira que se reunia na rua Divinópolis, esquina com a rua Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza, na Belo Horizonte dos anos 60: Toninho Horta, Tavito, Nivaldo Ornelas, Tavinho Moura, Nelson Ângelo, Márcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos, e mesmo quem veio depois, como Lô Borges, Beto Guedes, Flávio Venturini, Murilo Antunes. A propósito, Nelson Ângelo, violonista e compositor, ao se mudar para o Rio de Janeiro, envolveu-se com os expoentes da Bossa Nova carioca, e posteriormente, namorou a cantora Joyce, com a qual gravou pela Emi-Odeon, em 1972, o disco Nelson Ângelo e Joyce.

Por sinal, como que a atestar os vínculos entre a Bossa Nova, o Sambacana e músicos que comporiam, mais tarde, o Clube da Esquina, Pacífico Mascarenhas fez, anos depois, uma homenagem, no estilo bossa-novista, aos integrantes do Clube da Esquina, em um CD especial chamado Sonho no Clube da Esquina, que contém uma música de mesmo nome:

Sonhei que eu estava no Clube da Esquina/ na Divinópolis com Paraisópolis/ vendo Lô Borges no “Trem azul” / Beto Guedes fazendo “Avião”.../ depois quem chegou foi Toninho Horta/ veio no jipe “Manuel Audaz” trazendo Marilton/ Murilo Antunes, Tavinho Moura, Ronaldo Bastos/ vejam só que coisa maluca/ Fernando Brant, Marcinho, Bituca/ pedindo notícias do mundo de lá/ ao Flávio Venturini na “Estação de trem”/ surpreso eu fiquei quando já ia embora/ uma homenagem tão calorosa/ Nelson Ângelo ao violão/ Wagner Tiso, acordeão/ Nivaldo Ornelas tocando “Pouca duração”.

Personagens diferentes foram aparecendo na história da Bossa Nova em Minas Gerais à medida que Pacífico foi gravando seus discos. O terceiro LP do Sambacana, datado de 1969, registrou a presença do músico belo-horizontino Bob Tostes. O quarto LP, de 1976, além da participação de Wagner Tiso e Toninho Horta, incorporou ao “trem mineiro” Suzana Tostes, irmã de Bob. Na época, os dois irmãos já possuíam um grupo de jazz e Bossa Nova que se apresentava pela cidade.

Mas voltemos à Praça da Savassi. Como cada lugar tem suas praias ou praças, ela adquiriu, nas composições de Pacífico Mascarenhas, significado aproximado ao de Copacabana na produção bossa-novista carioca. Muitas músicas de Pacífico remontam o ambiente da Savassi dos anos 60, algumas mais recentes cantam: “Cristóvão Colombo com Getúlio Vargas/ hoje eu aqui, que saudade/ daquele tempo dos anos Savassi/ ah, se essa praça falasse...” (Pacífico Mascarenhas, “Anos Savassi”, CD Guinnesss Bossa Novíssima, 2002).

Uma clara referência à Savassi aparece numa canção composta entre o final da década de 1960 e início dos anos 70, uma das faixas do LP IV Sambacana, de 1971, “Programa de domingo”:

Aconteceu no verão um piquenique/ um bate-papo/ um bingo e uma esticada até o pique/ para iniciar o nosso encontro no domingo/ à tarde passeamos na Savassi/ e depois você insinuou/ vamos ao Babos ou Sebastião/ e depois de lá uma seresta um violão/ quando o outro dia clareou/ você brigou/ e o nosso programa terminou/ mas eu vou sentir muita saudade/ do domingo que passou.

Acrescente-se que, em 2002, Pacífico teve a ousada idéia de reunir em um único CD 60 músicas de sua autoria, na intenção de entrar para o livro dos recordes – Guinness Book. O CD Guinness Bossa Novíssima contou com regravações de músicas feitas anteriormente, como as dos anos 60, e outras posteriores. Nesse CD, gravado por alguns dos melhores músicos e cantores de Belo Horizonte, há muitas canções de culto à Savassi, bem como à cidade de Belo Horizonte: “Belo Horizonte que eu gosto/ não é de ontem, de hoje, de agora/ era de quando eu conheci meu amor/ nos tempos de outrora...” (Pacífico Mascarenhas, “Belo Horizonte que eu gosto”, CD Guinness Bossa Novíssima, 2002). Para mostrar suas relações afetivas e musicais com o Rio de Janeiro, não poderia faltar uma ou outra composição que rendesse homenagens à “cidade maravilhosa”: “Rio de Janeiro, como eu gosto de você/ sua cor é tão azul/ gostei logo de você... / eu sou mineiro/ mas foi no Rio de Janeiro/ que eu encontrei a minha namorada...” (Pacífico Mascarenhas, “Rio de Janeiro”, CD Guinness Bossa Novíssima, 2002).

Se, de início, a produção dos bossa-novistas sediados no Rio de Janeiro cativou Pacífico Mascarenhas e outros mais, posteriormente ele foi também relembrado como um expoente da Bossa Nova nas Geraes. O alcance de sua obra pode ser avaliado pelo aval recebido de ninguém menos que Luiz Eça, maestro, compositor e instrumentista. Músico experiente e reconhecido como um dos melhores pianistas do país, referência nos anos dourados do Beco das Garrafas e líder do Tamba Trio, Luiz Eça gravou em 1995, pela Velas, juntamente com Luiz Alves e Ricardo Costa (Luiz Eça Trio), 20 canções de autoria de Pacífico Mascarenhas, uma em parceria com Gilberto Mascarenhas (“Olhando as estrelas do céu”) e outra com Marcos de Castro (“Tarde azul”). Para esse CD, as músicas ganharam novos arranjos, somente instrumentais, nos quais Luiz Eça não esconde – e não teria por que fazê-lo – suas influências jazzísticas.

Muitos músicos, ao longo desses quase 50 anos, gravaram composições de Pacífico Mascarenhas, entre eles o Coral de Ouro Preto, no começo dos anos 1970, e Eumir Deodato. Cliff Korman, destacado pianista dos Estados Unidos, por sua vez, gravou 17 músicas de Pacífico com o Quartet Bossa Jazz. E recentemente, no início de 2007, Pacífico foi contemplado com a gravação de 14 de suas músicas por Jorge Cutello (CD Un argentino en Brasil: La obra de Pacífico Mascarenhas), pianista e cantor da Argentina, apreciador de Bossa Nova. Das 13 primeiras canções, 12 foram, inclusive, traduzidas para o idioma espanhol pelo próprio Jorge Cutello, enquanto a faixa "Demolição" o intérprete preferiu cantar no original, e "Manhã já vem" recebeu apenas tratamento instrumental.

E por falar em ressonâncias atuais da Bossa Nova produzida nas Geraes, outro trabalho que aqui não pode ser esquecido é o CD Roberto Guimarães e convidados – Amor certinho - lançado em 2003. Além de resgatar a música “Amor certinho”, na voz de Lô Borges, traz composições bem elaboradas, duas das quais põem em destaque quão importante foi para ele o contato e a aprendizagem com João Gilberto e João Donato, reverenciando-os como ícones da renovação estético-estilística na música popular brasileira.

Um abraço João Gilberto/ foi de peito aberto e traço certo/ que o seu desafinado/ me fez tão encantado/ chega de saudade, a realidade/ é que em cinqüenta e tal/ a primeira vez que te encontrei, afinal/ bem no meio do dial/ na onda que trazia/ o Rio na Rádio Nacional/ Rio que mora no mar/ de onde eu curtia Lúcio Alves/ Dick Farney, o Radamés e o Tom Jobim/ nos morros gerais de Minas/ em rimas e desvarios/ o meu Rio/ um abraço João Gilberto/ que me deixa tão desperto/ vem me tirar o sossego/ de meu mineiro aconchego/ ai, ai, ai, , ai que chamego/ você foi arranjar/ que esse sonho tão desperto/ essa mania de João Gilberto/ não pode acabar (de Roberto Guimarães, intérprete Marina Machado, “Mania de João Gilberto”, CD Roberto Guimarães e convidados – Amor certinho, 2003).

Este samba é pro Donato/ que é João, é um barato/ todo João é uma canção/ de piano ou violão/ ou é santo ou pecador/ mas é sempre cantador/ vem do Acre ou da Bahia/ tem o lacre da poesia/ é bim-bom, café com pão/ sapo, rã, lugar comum/ olodum, emoriô/ quem não sabe já dançou/ passarinho em bananeira/ que besteira é não cantar/ quem não curte já morreu/ não nasceu para bailar/ acredite João Donato/ te curtir é um barato/ aqui vai simples carinho/ de quem tem amor certinho/ pelo samba verdadeiro/ balançado brasileiro/ só de ouvir sou muito grato/ pelo samba do Donato (de Roberto Guimarães, intérprete Vanessa Falabella, “Samba pra Donato”, CD Roberto Guimarães e convidados – Amor certinho, 2003).

Conclusão

O esforço deste trabalho consistiu em mostrar que a Bossa Nova, como um movimento dotado de grande dinamismo e de fronteiras móveis, desenvolveu-se também em Minas Gerais, não como mera conseqüência do que acontecia no Rio, e, sim, muito mais como produto das buscas de um grupo de jovens que, na época, ansiavam pelo “moderno”, mesmo sem saber o que isso implicaria. Para fazer avançar a pesquisa, procurei investigar a obra do mineiro Pacífico Mascarenhas, figura central entre os que transitaram pela ponte Rio-Minas, levando e trazendo a Bossa Nova. Roberto Guimarães foi outra personalidade destacada nesses vaivéns, ao lado de tantos outros que tiveram sua parcela de contribuição.

Apesar da pesquisa ter-se centrado nas décadas de 1950 e, especialmente,  1960, período que marca, respectivamente, o surgimento e o ápice da Bossa Nova, isso não significa que a perspectiva adotada neste trabalho seja a de que, a partir daí, ela tenha se estancado. Como tentei evidenciar, a própria Bossa Nova foi fundamental para Milton Nascimento e os demais músicos do Clube da Esquina.

Lembro que Luiz Tatit chega a distinguir o que seria Bossa Nova “intensa”, ou o movimento musical propriamente dito, e outra, mais “extensa”. A primeira, “que durou por volta de cinco anos (de 1958 a 1963), criou um estilo de canção, um estilo de artista e até um modo de ser que virou marca nacional de civilidade, de avanço ideológico e de originalidade” (TATIT, 2004, p. 179). Penso que a produção do Sambacana estendeu um pouco o que Tatit chama de Bossa Nova “intensa”, principalmente se nos basearmos nos dois primeiros discos Sambacanas, um de 1964, o outro, de 1965. “Outra coisa é Bossa Nova ‘extensa’, que se propagou pelas décadas seguintes, atravessou o milênio, e tem por objetivo nada menos que a construção da ‘canção absoluta’, aquela que traz dentro de si um pouco de todas as outras compostas no país” (idem, 2004, p. 179). Sob essa ótica, as sementes da Bossa Nova encontram-se espalhadas até hoje, de uma forma ou de outra, em maior ou menor escala, na produção dos músicos populares, que às vezes podem nem se dar conta disso.

Por essas e outras, ao ser questionado sobre a relevância da Bossa Nova nos dias atuais, Pacífico Mascarenhas diz, em alto e bom som: “Para você ver que a música de Bossa Nova não enjoa... Daqui a 10 anos ainda será uma música moderna”.

 

Bibliografia

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CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. 3.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.   

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MEDAGLIA, Júlio. Balanço da bossa nova. In CAMPOS, Augusto de (org.). Balanço da bossa e outras bossas. 3.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1978,

NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001.

PARANHOS, Adalberto. A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo. ArtCultura, n.º 9, Uberlândia, Edufu, jul.-dez. 2004.

__________________. Novas bossas e velhos argumentos: tradição e contemporaneidade na MPB. História & Perspectivas, n.º 3, Uberlândia, UFU, jul.-dez. 1990.

__________________. O Brasil dá samba?: os sambistas e a invenção do samba como “coisa nossa”. In: Música popular en América Latina. Santiago de Chile: Fondart, 1999.  

__________________. Sons de sins e de nãos: a linguagem musical e a produção de sentidos. Projeto História, n.º 20, São Paulo, Educ/Fapesp/Finep, abr. 2000.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. 4.ª ed. São Paulo: Landmark, 2004.

TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê, 2004.

Tinhorão, José Ramos. Pequena história da música popular: da modinha ao tropicalismo. 5.ª ed. Petrópolis: Vozes, 1986.  

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THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre história oral e memórias. Projeto História, n.º 15, São Paulo, abr. 1997.

VIANNA, Hermano. O mistério do samba. 2.ª Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 1995.

ZAN, José Roberto. Do fundo do quintal à vanguarda: contribuição para uma história social da música popular brasileira. Tese de doutorado em Ciências Sociais. Campinas: Unicamp, 1996.

Discografia

- Conjunto Sambacana. LP Odeon, 1964 (relançado em CD).

- Conjunto Sambacana. V. III. LP Odeon, 1969.

- João Gilberto. LP Chega de saudade. Odeon, 1959.

- João Gilberto. LP O amor, o sorriso e a flor. Odeon, 1960 (relançado em CD).

- Jorge Cutello. Un argentino en Brasil: la obra de Pacífico Mascarenhas. S/grav., 2007.

- Luiz Eça Trio. CD Velas, 1995.

- Milton Nascimento. LP Courage. A & M Records, 1968 (relançado em CD).

- Milton Nascimento. LP Travessia. Codil, 1967 (relançado em CD).

- Nelson Ângelo e Joyce. Nelson Ângelo & Joyce. Emi-Odeon, 1972.

- Pacífico Mascarenhas. CD Guinness Bossa Novíssima. Song Disc, 2002.

- Quarteto Sambacana. Muito pra frente. Odeon, 1965 (relançado em CD).

- Roberto Guimarães e convidados. Amor certinho. Sonhos & Sons, 2003.

- Sambacana. LP Royal, 1981.

- Sambacana. LP VI Sambacana. Ariola, 1988 (relançado em CD).

- Sambacana VII. Bossa Nova, 2006.

Fontes consultadas

- Acervo do Centro de Documentação e Pesquisa em História da Universidade Federal de Uberlândia.

- Acervo particular de Adalberto Paranhos.

- Caras (edição especial) nº 19, ano 3 – jun. 1996, v. 2: A história da Bossa Nova.

- Enciclopédia da música brasileira: popular, erudita e folclórica. 2ª ed. São Paulo: Art/ Publifolha, 1998.

- Entrevista com Pacífico Mascarenhas, em 09 de junho de 2007, em Belo Horizonte/MG.

- Entrevista com Roberto Guimarães, em 09 de junho de 2007, em Belo Horizonte/MG.

- http://www.museudepessoas.com.br

- http://www.pacíficomascarenhas.com

__________

[1] Geralmente, as músicas bossa-novistas apresentam integração entre a linha da melodia, que no caso é assinalada pela voz do cantor, com a estrutura harmônica como um todo, deixando de lado a prática convencional de solista e acompanhamento.

[2] Essa canção, após uma série de gravações desde que saiu na voz de João Gilberto, foi gravada em 2003, no CD de Roberto Guimarães e convidados – Amor certinho, por Lô Borges, artista oriundo do bairro de Santa Tereza em Belo Horizonte, um dos gigantes do Clube da Esquina.

[3] Márcio Borges é um dos componentes mais importantes desse movimento, famoso por suas letras em parceria com Milton Nascimento e Lô Borges.

 

 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 22 abril, 2008.