por NELSON DE JESUS TEIXEIRA JÚNIOR

Graduando do Curso de Letras e Artes da UESC – (IC – FAPESB/UESC), tendo como orientadora a Professora Doutora do DLA da UESC: Patrícia Kátia da Costa Pina

 

 

 

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O estrangeiro em Iararana e Macunaíma: caminhos de leitura

Nelson de Jesus Teixeira Júnior

 

Resumo:

Este artigo analisa a representação do leitor em Iararana e Macunaíma, enquanto estrangeiro das letras. O objetivo geral dessa proposta é entender como pontos de indeterminação presentes nos textos poderão provocar no leitor o desempenho similar ao de um estrangeiro em novas terras, viabilizando que desenvolva habilidades múltiplas para decifrar o novo. Para tanto foi estudada nas obras aqui pontuadas a chegada de estrangeiros vindos de terras desconhecidas, além disso, foram selecionados trechos que evidenciavam os vazios textuais enquanto pontos convidativos à intervenção do leitor. Este estudo fundamenta-se na Teoria do Efeito Estético de Wolgang Iser, bem como nas reflexões de Luiz Costa Lima, Paul Zumthor, Tzvetan Todorov e Frederick Karl.

Palavras-chave: Literatura; Leitor; Vazios Textuais; Modernismo Brasileiro.

Abstract:

This article analyzes the representation of the reader in Iararana and Macunaíma, as an illiterate. The main goal of this proposal is to demonstrate that some extracts in the texts might provoke in the reader the similar behavior to a foreigner’s one in new land, with the possibility that the person develops multiple abilities to decipher the new one. For this reason it was analyzed in the mentioned pieces the arrival of foreigners to unknown territories, moreover, extracts have been selected to put in evidence the incongruity in terms of the reader's intervention. This analysis is both based on Theory of the Stetic Effect by Wolgang Iser, and the studies of Luiz Costa Lima, Paul Zumthor, Tzvetan Torodov e Frederic Karl.

Key-words: Literature; Reader; Literal emptinesses; Brazilian Modernism.

 

Diante do texto ficcional, o leitor é forçosamente convidado a se comportar como um estrangeiro, que a todo instante se pergunta se a formação de sentido que está fazendo é adequada à leitura que está cumprindo. (Luiz Costa Lima. A literatura e o leitor).

 

A leitura permite ser entendida, também, como uma intervenção do leitor no texto, a qual se pode comparar ao comportamento de um estrangeiro em terras desconhecidas, onde a curiosidade, as perguntas e as respostas (às vezes nem tão esclarecedoras) e a intuição farão parte da performance[1] desse aventureiro das letras.  É justamente nesse encontro do leitor com o texto ficcional, que surge a importância dos vazios textuais e, para refletir um pouco acerca desses vazios, recorreremos a um estudo reflexivo sobre a obra Macunaíma de Mário de Andrade e Iararana do autor Sosígenes Costa, isso, meditando sobre como se dá a presença do personagem estrangeiro nas respectivas obras.

A obra Macunaíma foi publica em 1928, enquanto Iararana, provavelmente, no início dos anos 30 do século XX, ambas as obras foram produzidas no momento conhecido literariamente como Modernismo, época de reivindicação e de solidificação das novas concepções artísticas que vieram para redimensionar as idéias tradicionais e, por outro lado, trazer o novo ideário modernista, fundamentado nas idéias surrealistas de Freud, na pintura cubista de Picasso, no futurismo de Marinneti e na Filosofia de Nietzsche, além de diversas outras ideologias impregnadas nesse início do novecentos. Para F. Karl, o Modernismo:

(...) é coisa tão revolucionária à sua própria maneira como experiências em linguagem, sondagens psicológicas, atonalidade, cubismo e abstração. (...) daí, torna-se impossível ignorar que o modernismo viera para tudo varrer, como se houvesse sido uniformemente organizado por alguma inteligência de ânimo igual.  (KARL. 1988, p. 431).

Em Iararana, o estrangeiro presente na obra, representado aqui através do personagem Tupã-Cavalo, permite que se encontre certa descrição acerca do “outro”, o qual rompe oceanos em busca de novas terras distantes: “Ele nasceu na Oropa... / teve que disparar daquela terra... / atravessou o mar como quê...” (COSTA. 1959, p. 33).

A citação acima permite-me ainda trazer para este espaço de reflexão um pouco do que Todorov escreve em A conquista da América, a respeito da ação avassaladora do europeu em desterrar, violentar, aterrorizar, enfim, massacrar o índio das novas terras da América em busca do poder da posse sobre o ouro, sobre a terra e sobre o “objeto” indígena.  Não se satisfazendo com a carnificina, os europeus realizavam ainda uma violação moral:

Nem semelhante nem totalmente diferente, o sacrificado também é avaliado segundo suas qualidades pessoais: o sacrifício de guerreiros valorosos é mais apreciado do que o do joão-ninguém... O sacrifício é executado em praça pública... (Todorov, 1999, p. 171 – 172).

Essa afirmação de Todorov pode nos remeter ao momento em que o estrangeiro da obra Iararana (o trecho referido será citado e discutido posteriormente nesse mesmo texto) chega à nova terra, humilhando o pai do mato, escorraçando-o na frente dos nativos, ação metafórica, comparável à dos invasores que nos colonizaram no século XVI.

De volta à reflexão acerca do personagem estrangeiro, na obra sosigeniana existe um momento em que o sujeito poético, ao comentar a chegada do forasteiro, permite-nos deduzir acerca da personalidade desse ser colonizador, visto que o mesmo é citado como bicho, adjetivo que está associado à sua deformidade, agressividade e coragem, que tanto amedrontam o caboclo, exigindo, com isso, uma ação dos nativos em defesa de sua liberdade, de suas terras, de sua vida, e principalmente de suas águas. 

É mister lembrar a relação dos caboclos com o rio, posto que esses nativos podem ser entendidos como guardiões das águas que trazem as cheias, que produzem mantimento, que renovam a vida e que são habitadas por deuses.   E, é justamente através dessas águas, símbolos do sagrado, que surge o profano estrangeiro, tomando o espaço dos deuses locais, aparecendo como um ser estranho, que “bonga” as águas límpidas locais e espanta a pureza natural do rio:

─ Mas que bicho danado era este?

─ Mas que bicho danado era este, senhor?

─ Menino este bicho veio da Oropa.

(...)

os cabocos do rio se esconderam no mato

e quiseram dar flechada mas a flecha não pegou.

Não pegou não, meu avô?

Pegou que nada, menino do céu.  (COSTA. op. cit., 34)

 

Surge aqui a descrição física e espacial desse ser que invadiu a terra dos caboclos. O ser que tanto amedronta é o filho da grande serpente chamada “Diabo”, a qual veio tomar o que não lhe pertence, destruir identidades e culturas, além de matar povos, realizando assim sua função.  Daí o motivo de tanta força, pois segundo o dicionário dos símbolos: “O Diabo simboliza todas as forças que perturbam, inspiram cuidados, enfraquecem a consciência e fazem-na voltar-se para o indeterminado” (CHEVALLIER; GHEERBRANT, 2006, p.337). É válido lembrar que esse ser andrógeno não é filho de qualquer terra, mas, sim, do velho mundo, especificamente da Europa, continente citado pelo sujeito poético com certo ar depreciativo: “Oropa”, de onde nasceram muitos invasores que tomaram terras estrangeiras, dizimaram os nativos, produziram riquezas e escravizaram povos, por isso a ênfase dada à localidade de origem do estrangeiro: “Não vê que esse bicho era filho do diabo? / Esse bicho da Oropa tinha parte com o diabo. / Esse bicho da Oropa foi o diabo neste rio...” (Idem, p.34 )

Ao representar Tupã-Cavalo como o bicho da Oropa e também como filho do “Diabo”, o sujeito poético viabiliza ao leitor se deparar com a questão da mudança funcional e identitárias do personagem, exigindo maior atenção para o desenrolar do enredo da narrativa Iararana, o que nos faz lembrar um pouco do que pensa Ingarden: “Ingarden pensa que nem todos os pontos de indeterminação devam ser forçosamente preenchidos...” (ISER. 1979, p. 97).

Apesar de Ingarden expor a idéia pertinente de que nem todos os vazios acabam sendo combinados pelo leitor, não significa dizer que o vazio continuará eternamente presente, ou seja, ele só acaba sendo trabalhado pelo leitor que detém o repertório necessário para combinar os vazios. No caso específico do texto sosigeniano em estudo, podemos notar a exigência de repertório, quando o receptor se defronta com uma mudança de imagem do personagem, visto que Tupã-Cavalo (que tem imagem de centauro) agora é descrito como um bicho que tem parte com o “Diabo”, exigindo com isso, que o leitor entenda o personagem invasor como um ser disforme e ao mesmo tempo multiforme (dado à magia que o diabo tem de poder mudar sua aparência a todo instante... quem não se lembra da serpente que enganou Eva no Éden?!). Com isso notamos que os vazios convidam à intervenção do leitor, já que nesse caso específico do texto sosigeniano, o personagem foi descrito com uma imagem diferente das narradas anteriormente.

Haja vista suas habilidades, o comportamento desse “filho do Diabo” não seria outro, senão atacar os nativos de maneira bem violenta, lançando mão de armas de fogo produzidas pelo capitalismo sustentado pelas colônias, gerando uma carnificina.  Além de matar, o estrangeiro escorraçou o Pai-do-mato, figura de maior respeitabilidade local e que defende os nativos locais, além de interceder junto aos deuses da mata pelo seu povo.

Há algo de interessante nesse confronto do invasor com o Pai-do-mato, o estrangeiro não o mata, evitando certa associação de sua morte a de um mártir (ou surgimento de mais uma entidade religiosa), ao contrário, ele afugenta, demonstrando a fragilidade do pajem local e seus deuses (seria a idéia de substituição do forte pelo fraco).  Com tudo isso, o “filho do Diabo” demonstra ter vindo para dominar, construir posses, escravizar, enfim, tornar-se um grande mandatário das novas terras, o que lhe conferiu o nome de Tupã-Cavalo, o rei dos trovões que destroem matas e seres, o grande representante das forças desconhecidas e indeterminadas que amedrontam os caboclos.  Esse ser de aparência monstruosa possui a força e a velocidade do cavalo, além da astúcia e da sagacidade humana, o que nos permite associá-lo à figura mítica do Centauro:

Ele fez guerra com espingarda aos cabocos do mato

e venceu os cabocos e escorraçou o Pai-do-mato

e ficou no lugar dele e se chamou dono da gente.

Mas caboco com ódio o chamou Tupã-Cavalo

pois tinha corpo de cavalo e andava de quatro pés (...) (Idem, p.34).

 

Toda essa descrição do ser estrangeiro que vem de longe para atacar, tomar, escravizar e construir morada, nos faz retomar a História oficial da colonização do Brasil, que parte dos livros de história minimizam, tornando ameno esse momento de habitação portuguesa em terras brasileiras. Além disso, não podemos esquecer de citar aqui a considerada por muitos como a “certidão de nascimento de nosso Brasil”, a Carta de Caminha, documento que possui um conteúdo de metaficção-historiográfica e acima de tudo, de cunho malicioso, onde o narrador por motivos financeiros da Igreja e da Metrópole, encobre a verdadeira forma de posse e convívio com os nativos:  “E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã...” (http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/obras_download)

Visto que o olhar ideológico[2] de Pero Vaz de Caminha está voltado apenas para o que lhe convém observar, prova disso é essa visão idealizada de nativos bestiais a espera de serem escravizados pela coroa portuguesa.  Mas, essa idéia de posse implícita na Carta de Caminha é também trabalhado por Mário de Andrade, ao descrever o estrangeiro como um ser que vive em terras brasileiras e que detém certa autoridade sobre os nativos.

Mário de Andrade, seguido anos depois por Sosígenes Costa, lança mão do personagem estrangeiro em sua obra modernista Macunaíma, afinal, qualquer leitor que se encontra com Macunaíma vai perceber essa velocidade da obra, ao se deparar com cenas que se sobrepõe, enredo sem conexão lógica, além de uma linguagem bem eclética e cheia de vazios textuais que narra a obra.

E o homem era um grilo. Macunaíma teve ódio de tanta boniteza e chimpou uma bruta duma bolacha nas fuças do grilo. O grilo berrou, e enquanto falava numa frase em língua estrangeira agarrou o herói pelo congote.

Prrrêso!

O herói gelou.

Prêso por quê?

O polícia secundou uma porção de coisas em língua estrangeira e segurou firme.

Não estou fazendo nada! que o herói murmurava com mêdo. (Andrade. 1979, p. 127).

 

Entretanto, enquanto em Iararana, Sosígenes aborda principalmente a chegada do estrangeiro em terras nativas, na obra andradiana nos deparamos mais com uma estada já fixada, podendo perceber assim, como se dá a permanência do estrangeiro em nosso país.

No trecho acima escolhido da rapsódia andradiana, encontramos um episódio em que o personagem Macunaíma se encontra com o estrangeiro, nesse encontro de culturas e aparências distintas, o nativo é tomado por um choque de diferença física, o que o faz tomar uma decisão de dar um tapa na cara do estrangeiro descrito como grilo (podemos entender aqui como uma forma depreciativa de se referir a gringo).  

Entretanto, o que o protagonista da obra andradiana não tinha talvez esperado é que aquele gringo fosse na verdade uma autoridade local, o que acaba invertendo a idéia de nacionalidade, onde Macunaíma passa a ser o estrangeiro que respeita às ordens do nativo grilo, o qual reprime os comportamentos ofensivos à sua estadia. 

É válido salientar a imagem do gringo associada ao grilo, permitindo através de uma linguagem metafórica, entender o estrangeiro como um devorador de culturas e comportamentos e que impõe seu canto (sua língua) como um aviso de presença constante e destrutiva.

Do futurismo, Mário adota o princípio da velocidade moderna; do surrealismo, o do “sonhar” distraído, que se manifesta no fluxo de retalhos caóticos de pensamentos. Mário apresenta de forma brilhante o princípio moderno da “simultaneidade”, do “sincronismo (...) (ROSENFELD. 1994, p. 102)

A obra Macunaíma é um grande exemplo dessa velocidade descrita por Rosenfeld, posto que a obra traz em si uma dinâmica da linguagem, a qual se fragmenta por meio de termos regionais variados, fruto das pesquisas e viagens feitas no Brasil pelo autor. Esse dinamismo se dá, ainda, por um enredo fragmentado e plurissignificativo, em que o leitor se transforma em um personagem a parte, combinando os vazios presentes na obra à partir de seu imaginário.

Voltando à última descrição retirada da rapsódia, em que Macunaíma é preso, mesmo que o protagonista da obra andradiana tente se justificar e o povo tente interceder pelo detento, a decisão dos gringos é de prender o nativo. Outro fato nos chama atenção nessa narrativa, é justamente o desconhecimento da língua brasileira, posto que o estrangeiro mesmo vivendo em outra terra, não se importa em desenvolver a competência lingüística, o que nos aponta para uma aversão ao idioma e por conseguinte cultura local. Além de invadir e dizimar grande parte dos nativos, o estrangeiro se preocupou com a imposição de sua cultura e língua, tornando-o como idioma oficial, pois em situações como a que passou Macunaíma, os nativos precisavam entender um pouco da língua do outro, o que nos traz a lembrança do que aconteceu aqui no Brasil nas décadas iniciais da colonização, em que a companhia de Jesus criou mecanismos de aculturação indígena a partir também da imposição da aprendizagem da língua estrangeira.

Então o senhor fêz um discurso pros grilos, que êles não deviam de levar Macunaíma prêso porque o herói não fizera nada. Tinha ajuntado uma porção de grilos mas nenhum não entendia o discurso porque nenhum não pescava nada de brasileiro. As mulheres choravam com dó do herói. (Andrade, op. cit., 127)

Na obra Iararana, dentre as muitas “brechas” narrativas citamos um diálogo final do canto I:

E o capeta disse à caipora:

─ Minha avó, apareceu uma anta

com cara de gente na boca da barra,

entrou pelo rio, passou pelas ilhas

saltou na Linha espantando os bichos.

─ Hum! é cousa ...

Eu penso que já pela lngauíra.

O homem-de-saia fícou com medo

e entrou no mundo.

Aquela bruxa também azulou.

O lobisomem tomou um sumiço

e a mula-de-padre foi se esconder.

─ Hum! é cousa ...

─ O peixe do Bu flechou pra a Lagoa

quebrou o esporão, perdeu o aruá

de tanto correr com medo do bicho.

Não sei como não furou os olhos

Nos cavacos da boca do Bu.

─ Minha avó, o que será? (Idem, p.30)

 

Nas estrofes acima, percebemos que Romãozinho dialoga com sua avó Caipora acerca da chegada do monstro invasor, contudo, na mudança de canto, especificamente no início do canto II, o leitor é surpreendido com a continuação do mesmo diálogo, entretanto com personagens diferentes:

─ Mas que bicho danado era este?

Mas que bicho era este, senhor?

─ Menino, este bicho veio da Oropa.

─ Mas na Oropa tem anta me diga?

Olhe, meu avô, que na Oropa não tem anta.

─ Esta anta com cabeça de gente não era anta, meu neto.

Aquilo era cavalo com cabeça de gente. (Idem, p. 33)

 

Esses dois fragmentos citados anteriormente representam não apenas um vazio presente no texto, mas principalmente a quebra da good continuation, em que a estrutura textual traz uma superposição de imagem, convidando ao leitor para que intervenha na obra a partir de seu imaginário e, por conseguinte, acrescente ao texto novas possibilidades de leitura. É preciso lembrar que em outros momentos da obra sosigeniana a mudança do canto não será paralela à mudança estrutural (o que ratifica ainda mais a presença do vazio na mudança do canto I para o II), fato que podemos perceber no final do canto IV: “Fogo pegou na cana brava / ninguém passe mais por lá / que pode sair com fogo...” (Idem, p.44)

Já no início do canto V, a seqüência estrutural do texto vai se dar de maneira complementar ao canto anterior: “Ah! Depois de nove meses / que aquele fogo se deu...” (Idem, p. 45)

Em Macunaíma, também, o leitor se deparará com situações em que a “planificação” do texto perpassará por alguns pontos de indeterminação e isso se dará justamente no momento em que o capítulo IX nos apresenta a: “Carta pras icamiabas”, o que nos traz a lembrança de uma nova versão da carta de Caminha, agora relatada por um nativo.  A “Carta pras Icamiabas” representa um vazio um tanto convidativo, posto que o receptor é transportado de um plano de leitura (o enredo da obra) para outro plano de leitura (a carta).

Esse ponto de indeterminação acaba sendo, ainda, uma obra pequena com enredo próprio (a carta) dentro de outra obra grande (Macunaíma). Vejamos como se dará essa mudança estrutural, em que o receptor no final do capítulo VII lê o seguinte: “No outro dia Macunaíma não achou mais graça na capital da República. Trocou a pedra Vató por um retrato no jornal e voltou prá taba do igarapé Tietê.” (p.91).  Já no capítulo seguinte, a mudança estrutural é brusca, e o leitor se confronta com a seguinte informação:

As mui queridas súbditas nossas, Senhoras Ama-

zonas.

Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis,

São Paulo. (Idem, p. 95)

Essa mudança estrutural acaba sendo um vazio que de certa forma provoca uma “pausa” na leitura no enredo da obra Macunaíma e traz a atenção do leitor para o conteúdo da inesperada carta, retomando a idéia de que:

(...) a quebra da good continuation pelos vazios provoca o reforço da atividade de composição do leitor, que tem agora de combinar os esquemas contrafactuais, opositivos, contrastivos, encaixados ou segmentados, muitas vezes contra a expectativa aguardada. (ISER, 1971, p. 110)

Assim, podemos perceber, através desse estudo reflexivo acerca de Macunaíma e Iararana, a idéia de posse, violentação, imposição e habitação, que permeiam a chegada do estrangeiro em terras brasileiras, o que nos possibilitou fazer, através da associação dos personagens dessas obras com a História oficial de nosso país, um estudo reflexivo retomando a chegada do colonizador no Brasil.

Isso tudo, a partir também da reflexão acerca dos vazios textuais até aqui apontados nos trechos das duas obras em análise, o que nos permite entender o quanto de dialógico tem o texto, que, por mais que não seja uma relação diádica, carrega um processo comunicacional latente que permite certa interação. Por fim, entendemos, ainda, que mesmo Macunaíma e Iararana sendo obras aparentemente “difíceis”, sem personagens planos, com muitos ambientes, apresentando ausência de enredo linear, todas essas características textuais dessas narrativas permitem um rompimento com a idéia da good continuation, ou seja, das imagens bem encadeadas, o que lança sobre os vazios a importância de despertar no leitor a necessidade de interação com o texto.

 

Referências

ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins, 1979.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos.  Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

COSTA, Sosígenes. Iararana.  São Paulo: Cultrix, 1959.

LIMA, Luiz Costa.  A Literatura e o Leitor: textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

ROSENFELD, Anatol.  Letras e Leituras.  In: Mário de Andrade. São Paulo: Perspectiva, 1994.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

KARL, Frederick. O moderno e o modernismo: a soberania do artista, 1885-1925. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

Web site: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/obras_download, 24 de maio de 2007. 18:40.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura.  São Paulo: EDUC, 2000.

[1] Iser trabalha, em A interação do texto com o leitor, a idéia de receptor como um turista, e Zumthor trabalha, em Performance, recepção, leitura, a idéia de efeito gestual do leitor provocado pela leitura (o que o autor chama de performance). Os pensamentos dialógicos dos referidos teóricos permitiu-me refletir acerca do leitor, a performance e a literatura, enquanto um encontro mágico que provocará um efeito tanto no leitor quanto no texto.

[2] Entendo ideológico, aqui, como a mascaração da realidade.

 

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Publicado em 12.12.07 - Última atualização: 13 dezembro, 2007.