Resenha:
Andrea Daher.
O Brasil Francês: as singularidades da França Equinocial. 1612-1615.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
O Brasil Francês:
a colonização revisada
Mário Maestri
Homens e mulheres de corpos perfeitos, vivendo inocentemente
nus em terras de verão meigo e sem fim, dedicados aos próprios prazeres
malditos do sexo sem o opróbrio do pecado. Seria a costa brasílica metáfora
ou resquício do Éden? Mas como explicar que os filhos perdidos de Adão
participassem com gosto e sem pena do banquete canibal, provando a própria
mãe a carne tenra do pimpolho tido com o inimigo?
Nos séculos 16 e 17, o europeu boquiaberto consumiu
vorazmente os relatos de navegantes, comerciantes e aventureiros que
chegavam de portos da Europa e sobretudo da França para manterem rendosas
trocas com os nativos de litoral reivindicado zelosamente pelo lusitano.
Após provarem furtivamente, por longo tempo, o fruto proibido, os franceses
tentaram abocanhá-lo, por duas vezes, para sempre. A primeira, em 1555-67,
com a expedição à Guanabara que, apesar do malogro da França Antártica,
produziu o valioso relato sobre os povos da região, a Viagem ao Brasil,
do calvinista francês Jean de Léry. A segunda, em 1612-15, no Maranhão,
onde também fracassou a França Equinocial.
Em 1995, Andrea Daher doutorou-se, na França, com a tese
“Singularités de la France équinoxiale: histoire de la mission des pères
capucins au Brésil (1612-1615)”, publicada, em Paris, em 2002. Agora,
traduzido do francês, o livro é apresentado pela Civilização Brasileira com
título mais abrangente – O Brasil francês: as singularidades da França
Equinocial, 1612-1615. Sobretudo, o trabalho procurou analisar a
especificidade missionária francesa no Maranhão. Estudo na área da “história
cultural”, a grande tese da autora é instigante. A missão franciscana
registraria projeto inconcluso de difusão da civilização francesa apoiado na
cordialidade e no respeito, em dissensão com as práticas dos jesuítas
portugueses que viam os brasis como brutos descendentes de Cã, o
filho maldito de Noé, incapazes de conversão.
Para desancar os lusitanos, a autora utilizou sobretudo o
Diálogo sobre a conversão do gentio, do padre Anchieta, de 1556-57,
servindo-se principalmente do relato do capuchinho Claude d’Abbeville,
“Histoire de la mission des Pères Capucins en l’Isle de Maragnan et terres
circonvoisines”, publicado e reeditado, em 1614, em Paris, e apresentado, em
português, 1945 e 1975, para tecer palavras doces aos ouvidos franceses, de
ontem e de hoje. Os relatos cotejados refletem momentos distintos da
colonização americana, reiterada, em regiões diversas, em tempos diversos.
De inícios do Seiscentos, a narrativa franciscana reflete os primeiros
passos da ocupação colonial francesa, colonização já consolidada pelos
portugueses, em meados do Quinhentos, quando Anchieta escrevia seu Diálogo.
Alexander Marchant publicou, em inglês, precioso estudo,
traduzido ao português, em 1943,
Do escambo à escravidão: As
relações econômicas de portugueses e índios na colonização do Brasil.
(1500‑1580), sobre os
contatos amigáveis entre nativos e europeus, ensejados pelas trocas
voluntárias de pau-brasil, papagaios, sagüis, peles e penas de animais
sobretudo por machados de ferro e outros manufaturados europeus. Uma época
em que os europeus, acolhidos nas moradias coletivas nativas, aceitavam
gostosamente as esposas oferecidas pelos anfitriões e, seduzidos pela vida
americana, desertavam navios e feitorias para viver, entre tupinambás, como
tupinambás.
Essas relações amigáveis foram inapelavelmente superadas com
o início da colonização territorial pelos portugueses, em 1532. Então, o
brasileiro, o comerciante de pau-brasil, cedeu a cena ao colonizador,
ávido de terra e do braço autóctone. No novo contexto, a narrativa
maravilhada sobre os nativos gentis, ao estilo da Carta de Caminha,
deixou lugar aos relatos preconceituosos, ao igual dos de Gândavo, sobre o
selvagem insubmisso à religião, à cultura e à dominação européia.
Apenas chegados à América, em 1549, o jesuíta Manoel da
Nóbrega e seus acompanhantes exultaram com as fáceis conversões, ao igual
que os bons franciscanos franceses, anos mais tarde. Muito logo, sob as
novas injunções, recuaram no otimismo, sem jamais negarem a impossibilidade
da conversão do tupinambá. Em 1612-15, quando os capuchinhos repetiam os
passos e as ilusões iniciais dos jesuítas, havia mais de um século que os
contrabandistas franceses escambavam em paz no litoral brasílico. Porém,
para que a França Equinocial vivesse, a lógica colonial devia pôr fim às
trocas voluntárias, exigindo também o domínio da terra e do trabalho do
nativo. Transição terrível registrada profeticamente pelo velho principal
Momboréuaçu, na casa
grande de aldeia tupinambá, ao assinalar que, igual aos lusitanos
alhures, também os franceses, no Maranhão, falavam em fixar-se na terra,
desrespeitavam os costumes nativos e, sobretudo, exigiam escravos.
A narrativa franciscana fez parte de literatura apologética
cristã da colonização que comumente descrevia um homem americano que não
procurava realmente entender. O mais valioso da descrição etnográfica de
Abbeville, que passou apenas quatro meses no Maranhão, foi, como assinalado
por Andrea Daher, pinçado na obra de Jean Léry. Roger Chartier, orientador
da tese, assinala na introdução do livro, que a autora procurou “compreender
o que significava para os franceses do início do século XVII a descoberta”
das singularidades da costa brasílica, ainda que não responda como os
tupinambás “perceberam e viveram, para além das palavras de aceitação e de
submissão” “as novas crenças e obediências que deveriam ser as suas”.
Apesar de possuirmos no Brasil
riquíssima bibliografia especializada, Andrea Daher pouco se ocupou com a
apresentação e a explicação da sociedade tupinambá. O Brasil Francês: as
singularidades da França Equinocial constitui uma erudita e valiosa aventura
que se mantém muito próxima à realizada pelos capuchinhos, que terminaram
falando de mundo preste a ser engolido pela colonização, sem saírem
jamais, realmente, da Europa.