A
literatura, enquanto uma das dimensões do imaginário, a despeito de seu
flerte com o mundo social, não pode ser vislumbrada como mera reprodução dos
elementos neles presentes. Neste sentido, a relação entre literatura e
sociedade adquire contornos dialéticos, sendo-nos impossível separá-las como
se fossem entidades autônomas. Em um esforço de se relevar estas
considerações preliminares, não pretendemos aqui a uma sociologia da
literatura, mas antes a um diálogo entre literatura e ciências humanas.
Se Walter Benjamin indicava a existência de um homem-estojo, talvez
possamos registrar a existência de um pensamento-estojo, confinado
nos limites aparentes das ciências humanas. Talvez uma das maneiras
possíveis de se respirar novos ares – para além do tédio dos estojos – seja
o cruzamento entre forma literária e contexto social, acentuando a
riqueza da literatura enquanto uma das manifestações do imaginário,
sobretudo nesses tempos em que a arte é amiúde cindida da própria vida.
A escrita vê-se hoje rechaçada em face da imagem sobrevalorizada. A
experiência que parece advir da escrita parece-nos às vezes mutilada, nestes
tempos – como já antevira Drummond – de homens partidos. Portanto,
como pensarmos a melancolia contemporânea por meio de um romance se no
alardeado tempo livre temos uma profusão de imagens – reiterando o que não
somos mas poderíamos ser – que colocam em descrédito a experiência advinda
da leitura da linguagem escrita. No entanto, preferimos pensar nossa
melancolia contemporânea não por meio das imagens tão aureoladas, mas antes
pelo sulco imaginativo aberto pela escrita, pela ficção que beira a
confissão, sussurrando os nossos sofrimentos em noites frias. Isto é,
visamos aqui mapearmos traços de nossa melancolia – intensificada pelo
mal-estar da modernidade – por meio da leitura de Graciliano Ramos do
romance Angústia (1936).
Pensemos um pouco sobre a própria literatura. Se olhássemos para as vitrines
das livrarias, à maneira do narrador-personagem de Angústia, teríamos
“pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se” (Ramos, 2003).
No entanto, o deleite estético da literatura ainda persiste no mundo
contemporâneo. Mas, afinal, por que a literatura nestes tempos? Estejamos
com Luiz Costa Lima:
A arte e a literatura se justificam por
expressarem, a partir do lócus semântico do polissêmico (Della Volpe), uma
visão articulada do tempo. Visão que ao leitor ou ao expectador conseqüente
não pode ser apenas motivo de contemplação , elemento de desfrute, prazer
dos sentidos, porém mais do que isso, condição para o entendimento crítico
da realidade. E quando dizemos crítico pensamos em um ato que não se encerra
em compreender, mas em atuar a partir desta compreensão (LIMA, 1969, p. 08).
Em Angústia a verve do narrador-personagem está orientada por um
sarcasmo implacável em relação aos outros e por um pessimismo mórbido em
relação a si mesmo. Tudo é submetido ao crivo do narrador, o mundo, as
coisas, a imaginação, as sensações dos coadjuvantes flutuam por meio do
fluxo narrativo programado pelo narrador. Temos daquelas páginas uma
narrativa gordurosa, fuliginosa, entremeada de reminiscências da infância do
narrador-personagem, sensações sobre o calor da cidade grande e juízos
corrosivos em relação aos ordinários da repartição pública.
O romance está concatenado pelo pessimismo. A esperança ali é sórdida, a
vida é conjugada quase sempre em tempos pretéritos, não há um resgate de um
passado glorioso, já que Graciliano faz o seu ofício a partir das ruínas –
embora não conserve o passado no sentido de repeti-lo, mas antes no intuito
da redenção de suas experiências fundamentais. Falta tranqüilidade,
inocência, o narrador-mórbido, ensandecido, leva-nos a delírios, ao ambiente
empoeirado das repartições, ao tédio do espaço privado e ao medo que atordoa
as ruas. A redenção talvez esteja no amor, no erotismo, na carne que pulsa e
deseja em meio ao caos. Às impressões do narrador-personagem em relação ao
corpo talvez pudéssemos observar as melhores páginas da literatura
brasileira acerca de um erotismo que é ao mesmo tempo lírico e bruto.
O sistema literário de Graciliano Ramos leva-nos a algumas observações sobre
a narrativa, tendo como norte o filósofo alemão Walter Benjamin. Por certo,
Benjamin não escapa, às vezes, a um tom nostálgico, comum, aliás, à maioria
dos teóricos do desencantamento do mundo, ao evocar as comunidades de
outrora nas quais a memória, palavras e práticas sociais estavam ao alcance
de todos. Portanto, nas linhas de nossa proposta, evitamos a moda
ditirâmbica aureolada em torno de Benjamin, que acaba por vislumbrá-lo
enquanto arauto da impossibilidade de toda experiência coletiva na
modernidade. Adotemos, pois, a acuidade de Jeanne Marie Gagnebin ao lermos
“a filosofia da história e a filosofia da linguagem em Benjamin como uma
reflexão centrada na modernidade, no co-pertencimento do eterno e do
efêmero” (Gagnebin, 1994).
Portanto, existe uma produtividade da perda e da morte, seja na história ou
na linguagem. Walter Benjamin consegue vislumbrar no declínio da
experiência, o surgimento de um caleidoscópio de novas narrativas,
relacionadas ao tempo cindido industrial, diferentes, pois, da tessitura da
narrativa tradicional e artesanal. Todavia, o raciocínio de Benjamin se faz
num processo no qual aquilo que se esvai enche-se de beleza. Temos, pois, no
jogo daquele raciocínio uma “tensão entre o reconhecimento lúcido do fim das
formas seculares de experiência, do fim da narração em particular, e a
afirmação da necessidade política e ética da rememoração” (Gagnebin,
1994).
Os lampejos alegóricos, a constelação de sensações em face da beleza e do
efêmero do moderno, traços da cadência do raciocínio de Benjamin, guiarão
nossas impressões sobre Graciliano Ramos. Se o conhecimento alegórico de
Benjamin é tomado pela vertigem, Graciliano Ramos é tomado pela urgência do
relato, do depoimento.
Portanto, seguindo a própria cadência do filósofo alemão, tentamos à maneira
da sobriedade de Jeanne Marie Gagnebin, lermos Experiência e Pobreza
(1933) e O Narrador (1936) por meio de uma postura de diálogo entre
ambos textos, procedendo à moda alegórica do próprio Benjamin. A barbárie
positiva do primeiro texto é substituída pela doença da tradição
captada no segundo na narrativa de Kafka. Em tempos de desmoronamento da
tradição, a tensão em Graciliano Ramos entre a ficção e a confissão, coloca
em relevo o ofício do escritor alagoano, de dizer com palavras que não foram
feitas para brilhar.
Em Experiência e Pobreza (1933), Walter Benjamin conta-nos sobre uma
parábola – já encontrada em Esopo – de um velho que no momento da morte
revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos.
A moral da história está relacionada ao fato de que a felicidade não
está no ouro, mas no trabalho. No cerne daquela parábola, está a capacidade
de intercambiar experiências, geralmente transmissíveis de pais para filhos.
Todavia, as ações da experiência estão em declínio, os homens voltam mudos,
sem o viço da fala, após a experiência truculenta das trincheiras.
A orquestra inicial do século XIX é sintomática do declínio da experiência e
o surgimento da barbárie positiva, enquanto nascimento, primeiramente, da
interioridade, dos vestígios na vida privada do habitante cuja vida pública
é gélida – neste momento, Benjamin à maneira de uma cartografia das
sensibilidades e do imaginário, capta que o objeto precioso é o veludo – e
num segundo momento, da cultura do vidro, que a tudo expõe, cujo núcleo é o
aniquilamento do mistério.
Benjamin, já em O Narrador (1936) indica-nos que o narrador não está
entre nós, que o seu trabalho artesanal perdeu-se na aurora dos tempos. E
indica-nos que cada vez mais a morte é excluída da vida dos vivos e, por
corolário, a sua dimensão catártica, de intercâmbio de experiências e
conselhos.
Embora cada texto apresente suas nuanças, em ambos, nos deparamos com a
escrita dialética de Walter Benjamin, com a tensão entre o desmoronamento da
narrativa tradicional, do declínio da aura e da emergência de uma cultura do
vidro, e a urgência da rememoração, do lampejo de uma nova escrita da
história. Mas naquilo que se esvai há beleza:
O conselho tecido na substância viva da
existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a
sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção. Nada seria mais tolo
que ver nele um sintoma de decadência ou uma característica moderna. Na
realidade, esse processos que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do
discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo,
tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das
forças produtivas. (BENJAMIN, 1994, p. 202).
Acreditamos que uma vez ancorados pelo melindre de Jeanne Marie Gagnebin,
podemos ir adiante no pensamento de Walter Benjamin, deixando o que há de
mais sublime em sua obra em aberto, isto é, o seu raciocínio cuja cadência
sempre é a do aceno, do convite a reflexão. Ancorados nesta posição,
podemos, aliás, adentramos na tensão da ficção e da confissão em Graciliano
Ramos, no âmago da narrativa de um homem que se debruçou sobre os
sofrimentos e angústias de seu tempo.
Portanto, seguindo os rastros da melancolia do pensador alemão, caminhando
por alamedas de nostalgia e esperança, deparamos em Graciliano Ramos a
missão da escrita, do depoimento que não quer se calar. Em Angústia,
a cidade é colocada em suspenso, enquanto local que exaspera nossos
sofrimentos.
Georg Simmel, na passagem do século XIX para o século XX, observou que os
habitantes das grandes cidades esbarravam uns aos outros sem ao menos se
preocuparem em se conhecer de maneira mais humana. Para o sociólogo alemão,
a segurança dos cidadãos do meio urbano depende cada vez mais da dominação
de códigos cada vez mais complicados. Temos, portanto, um mal-estar que
prolifera nas cidades, pois as contradições destas são, com efeito,
contradições da sociedade. O que as cidades fazem é concentrar, exasperar
contradições latentes da sociedade. Exasperar que, na pena de Graciliano, é
seco e irônico.
Luís da Silva, narrador-personagem de Angústia, é funcionário público
e nas horas vagas aventura-se na literatura com algumas glosas para jornais.
Tal personagem é áspero, deixando o leitor em suspenso, sem fôlego, pois não
consegue acompanhar a rapidez com que caracteriza, disseca, rabisca as
saliências de outras personagens. Narrador misantropo? Talvez, mas
acreditamos que se trata de um narrador pessimista, cuja crença é que só aos
desgraçados é dada a possibilidade de um aviso de incêndio.
Certamente, não possamos observar em Angústia um amor visceral, entre
aquelas personagens, mas mesmo sob tal impossibilidade, temos um amor
real, permeado por desejos e interesses. É justamente nesta dimensão
real que podemos evocar a dimensão do efêmero nas relações afetivas na
sociedade contemporânea, desenvolvendo amores líquidos, para
utilizarmos uma expressão de Zygmunt Bauman, ao contrário daquele amor de
Graciliano. Nas franjas daquela sociedade, temos um amor que vai de um eu
partido para um outro eu partido, contrariando, portanto, a premissa de
Simmel, isto é, o amor deve efetivamente ir da pessoa inteira à pessoa
inteira.
A sociedade moderna quer reduzir e, se possível, apagar a dimensão do tato,
pois é a partir do toque, que podemos sentir algumas características físicas
das coisas. Trata-se, no limite, da reificação das relações sociais,
do achatamento dos elementos humanos presentes na produção de valores úteis.
Para o uso refinado do conceito de reificação, usemos Fredic Jameson:
A outra definição de reificação que tem sido
relevante nos últimos anos é a do apagamento dos traços da produção do
próprio objeto, da mercadoria assim produzida. Esse procedimento consiste em
ver a questão do ponto de vista do consumidor: sugere o tipo de culpa da
qual as pessoas são liberadas se conseguirem não se lembrar do trabalho que
foi necessário para produzir seus brinquedos e mobílias. Na verdade, essa é
a razão para termos nosso próprio mundo-objeto, e paredes, e uma distância
amortecedora e um silêncio relativo a nosso redor; é para esquecer de todos
esses inúmeros outros por algum tempo; você não quer pensar nas mulheres do
Terceiro Mundo cada vez que usar seu processador de textos, ou em todas
aquelas pessoas de classe baixa, com suas vidinhas de classe baixa, cada vez
que você decidir usar ou consumir seus outros produtos de luxo: seria como
ter vozes dentro de nossas cabeças; de fato, isso viola o espaço íntimo de
nossa privacidade ou das extensões de nosso corpo. (JAMESON, 2004,
p.318.)
Certamente, por pintar o mal-estar da modernidade, o Graciliano de
Angústia seja tão amargo para os leitores acostumados com panacéias.
Graciliano não oferece consolos, tudo é submetido ao crivo de um mundo às
avessas, irracional. É deste mundo, às avessas, que Graciliano, faz o seu
ofício através de diatribes.
Luís da Silva, narrador-personagem de Angústia, vê que a possibilidade do
amor está nas mãos do acaso, na possibilidade do bilhete da loteria sair
premiado. Sorte grande, tal como percebida por Silviano Santiago, quando
dialoga com um próprio fragmento de Graciliano:
Cem contos de reis, dinheiro bastante para
felicidade de Marina. Se eu possuísse aquilo, construiria um bangalô no alto
do Farol, um bangalô com vista para a lagoa. Sentar-me-ia ali, de volta da
repartição, à tarde, com Tavares & Cia, dr Gouveia e os outros, contaria
estórias à minha mulher, olhando os coqueiros, as canoas dos pescadores.
-16384.
Marina dormiria num colchão de paina. E
quando saltasse da cama, pisaria num tapete felpudo que lhe acariciaria os
pés descalços.
-16384 (SANTIAGO, 2003, p.279).
Só da (boa) sorte brota a esperança de Graciliano, tal como dito alhures.
Esperança permeada por pessimismo, que não oferece panacéias tal como os
profetas. O Graciliano de Angústia não foi profeta e tampouco arauto de boas
novas, apenas flertou, veio com os dedos queimados, prontos para incendiar a
narrativa.
Das anotações às margens de Graciliano Ramos, percebemos que a tessitura da
ficção que se emaranha na confissão ganha contornos nos quais um “grande
narrador” teria comunicado sua desorientação. Walter Benjamin percebera em
Kafka, uma “doença da tradição”, pois se a obra de Kafka confirma o fim de
uma tradição, ela não afirma a necessidade de reencontrar qualquer baluarte.
Em tons próximos, Graciliano Ramos não está afeito ao conselho – a dimensão
utilitária da sabedoria épica na visão de Benjamin – , no entanto, elege
como ponto de partida da sua escrita o dizer sem brilhos, o falar daquilo
que é sentido e vivido. O escritor nordestino não oferece panacéias, figura
num ambiente também kafkiano, empoeirado, gorduroso, irracional. É por estas
razões que a pobreza da própria experiência é vista, sentida, observada por
Graciliano Ramos, que embora declare não conservar notas, no ramerrão e na
promiscuidade atroz das páginas de Memórias do Cárcere, elege a
confissão como missão da sua arte.
Seguindo os encalços de Antonio Candido, em Ficção e Confissão,
percebemos como a escrita seca de Graciliano registra na sua própria ficção
elementos autobiográficos e emaranha-os num todo marcado pela permanente
tensão entre a ficção e a confissão. Captamos a dimensão do depoimento e do
relato em Graciliano Ramos – sobretudo em relatos tal como Infância
nos quais a memória adquire relevo – misturada à verve áspera do romancista
de Angústia. Como desdobramento, vislumbrarmos em Graciliano Ramos
uma postura tal como a encontrada em Walter Benjamin, que aos grandes
escritores uma obra terminada pesa menos que aqueles fragmentos em que
trabalharam a vida inteira. Portanto, a urgência da escrita – que deve dizer
e não brilhar – traz à baila a memória, no intuito, de reunir os fragmentos
dispersos da vida, tentando afastá-los do esquecimento atroz.
A idiossincrasia do homem Graciliano afastava do romancista o espectro da
vaidade, e instaurava a vergonha de ser empolado, elogiado, conduzindo-o a
um léxico áspero, a um olhar de soslaio para qualquer admiração e uma verve
bruta esculpida na madeira tal como Paulo Honório. Para mergulharmos
na tensão entre a urgência do relato e a pobreza da experiência, poderíamos
ler Infância a partir de Infância em Berlim por volta de 1900
de Walter Benjamin ou até mesmo Angústia a partir de O caráter
destrutivo do filósofo alemão.
Graciliano Ramos só gostava de expor a coisa observada e sentida, à maneira
das lavadeiras lá de Alagoas, resguardou para a escrita o traço da
perfeição, no intuito, de evitar pilhérias. Em tempos de dilaceramento da
esfera pública – como já bem notara Hannah Arendt – assistimos a emergência
de uma vida íntima solitária. Se outrora a palavra encarnava-se sobretudo no
diálogo e nos debates dos espaços públicos, animando a dimensão conflituosa
da política, na ordem contemporânea, o sinal se inverte, e temos a palavra,
de uma certa maneira, desmanchada no ar das imagens sobrevalorizadas, ar
este que além de rarefeito está relacionado a existência de uma sociedade
cujo maior sintoma é a angústia. Ao insistir na rica experiência da
escrita atada à coisa observada e sentida, Graciliano Ramos supera a
melancolia dengosa da modernidade, configurando-se entre os homens que em
tempos sombrios – para retomarmos a força de Arendt – acreditam que o
mundo que poderia ser um paraíso aqui e agora – e transformar-se-á no
inferno de amanhã – pode se afastar do monólogo tedioso da modernidade rumo
ao calor da experiência da escrita e das palavras.
Portanto, que num futuro próximo – teimosos estamos ao imaginarmos outros
futuros no tédio do eterno presente – mesmo que amargurados tal
como Paulo Honório ou Luís da Silva, escrevamos mesmo que em notas
surradas de papel sobre a nossa própria condição e lembremos das várias
Madalenas, Marinas e Fabianos que passaram pelos nossas vidas secas,
permeadas de angústia, mas marcadas pela escrita direta atrelada a nossa
memória.