Introdução
Segundo Karl Marx e Friedrich
Engels, “em apenas um século de sua dominação de classe, a burguesia criou
formas de produção mais importantes e mais colossais que todas as gerações
precedentes reunidas” (Marx & Engels, 2002, pp. 31-2.). E com essa frase,
ambos se referiam ao século XIX. O século XX assistiu a uma multiplicação de
poderes desenvolvidos pela inovação tecnológica que não teve precedentes na
história.
No campo das comunicações, o termo
produção deve ser modificado por inovação. As técnicas de
produção e inovação no período capitalista se multiplicaram em uma
progressão geométrica e o campo das telecomunicações foi, sem dúvida, um dos
campos mais afetados devido a este progresso.
Com relação tanto às inovações como
quanto às telecomunicações em si as opiniões mudam bastante. Há tanto
aqueles que vêem nas inovações tecnológicas das telecomunicações a
brutalidade da dominação, assim como há aqueles que vêem a técnica como um
elemento neutro, que pode servir tanto ao capitalismo, ao socialismo ou à
liberdade. Talvez Walter Benjamin seja o único que, textualmente, diz que a
técnica da reprodutibilidade democratiza a arte e a emancipa da sua
necessidade ritualesca para democratizá-la (Benjamin, 1987, p. 171). Porém,
esta é a visão que mais destoa com a de Sartori, portanto, o interesse aqui
é simplesmente mencioná-la. Convém pensar mais sobre outros três autores que
podem debater com o autor italiano de forma mais confluente.
O primeiro é Marcuse, autor para o
qual a técnica em si é neutra. “A técnica por si pode promover tanto o
autoritarismo quanto a liberdade” (Marcuse, 1999, p. 74). A grande questão é
como esta técnica tem sido utilizada para a disseminação da ideologia
burguesa e aviltamento dos indivíduos como massa.
O segundo é Adorno: é, de fato, o
autor com a opinião menos lisonjeira com relação aos meios de comunicação:
sobre a indústria cultural, diz que são “produtos adaptados ao consumo das
massas e que em grande medida determinam esse consumo” (Adorno, 1986, p. 91)
e que “ela [a indústria cultural] impede a formação de indivíduos autônomos,
independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente. Mas estes
constituem, contudo, a condição prévia de uma sociedade democrática, que não
se poderia salvaguardar e desabrochar senão através de homens não tutelados”
(Idem, p. 99). Para o autor, as mudanças que são vistas na moda e na música
não passam de ramos que se erguem em um esqueleto sempre fixo, no qual a
cultura ganha alguma importância pela necessidade do lucro. Historicamente é
falso dizer que o texto que Adorno escreveu com Horkheimer seria uma
resposta ao pensamento de Benjamin, porém, pode-se observar uma opinião
absolutamente antagônica: se a indústria cultural promove a democracia para
Benjamin, o que ela promove é a democratização da ignorância segundo Adorno.
Sartori concorda com a segunda sugestão.
O terceiro autor que convém ser
lembrado por agora é Bourdieu. A questão para este teórico marxista é a
submissão dos meios de comunicação aos interesses de mercado e, também, o
fato de se tornar o reflexo do próprio mercado competitivo que busca
clientes. “O índice de audiência é a sanção do mercado, da economia, isto é,
de uma legalidade externa e puramente comercial, e a submissão às exigências
desse instrumento de marketing é o equivalente exato em matéria de
cultura do que é a demagogia orientada pelas pesquisas de opinião em matéria
de política. A televisão regida pelo índice de audiência contribui para
exercer sobre o consumidor supostamente livre e esclarecido as pressões do
mercado, que não têm nada da expressão democrática de uma opinião coletiva
esclarecida, racional, de uma razão pública, como querem fazer crer os
demagogos cínicos” (Bourdieu, 1997, pp. 96-7). Para este autor, a luta
contra o índice de audiência é uma luta pela democracia.
Sartori concorda em grande medida
com as afirmações de Bourdieu em seu discurso contra a televisão transmitido
pela própria televisão. Aquilo que Bourdieu nomeia, Sartori explica; aquilo
que Sartori nomeia, Bourdieu explica. Porém, tais aproximações serão
expostas adiante.
O passo que Sartori buscou dar em
seu livro foi justificar uma teoria antropológica contra a televisão e
mostrar como a sua existência inviabiliza o homem político. Para o autor, o
homem passa de homo-sapiens para homo-videns quando começa a
pensar por imagens. Com a era televisiva, o pensamento, que tem as suas
bases na palavra e na possibilidade de abstração (pré-requisito para o homem
político que tem de lidar o tempo todo com conteúdos abstratos), se vê
substituído por uma forma de raciocínio que se dá pela imagem. Para Sartori,
os meios de comunicação que surgiram antes da era televisiva não haviam
atingido a natureza simbólica do homem. A televisão, sim, atingiu. E junto
com isso vêm alguns outros detalhes importantes (e mal vistos na ótica do
autor) que serão aqui expostos.
O animal que deixou de ser
simbólico
O que define o homo sapiens
é a sua capacidade simbólica. A grande novidade que a razão traz aos
primatas é a possibilidade de raciocinarem acerca de si próprios. O
pathos surge como a possibilidade para o homem de passar do sensível
para o inteligível, e este “inteligível” pode dispensar os estímulos
externos. O pensamento dispensa a visão.
Da mesma forma, a política é
pensamento. Materializa-se em Estado, violência e acordos, mas, antes disso,
é palavra, símbolo. Fazer política é antes de tudo conseguir
lidar com conceitos e com abstrações sem a necessidade de vê-los.
Afinal, se fosse necessário ver idéias como Estado, regra,
acordo, a política não seria possível. Portanto, as idéias que giram em
torno da política são abstrações, entidades não necessariamente visíveis.
Para Sartori, o problema com a
entrada de cena da televisão transformando o homem simbólico em
homo-videns é que a imagem passa a ter primazia sobre a palavra. O homem
passa a ver mais e ter a necessidade de ver. Tendo a necessidade de
ver, o homem acaba por perder a sua capacidade cognitiva que dispensa a
visão. O predomínio da visão, segundo nosso autor italiano, é um passo
atrás, deixa o homem mais próximo dos seus ancestrais, o homem retrocede do
inteligível para o sensível. Sendo assim, a televisão apaga os conceitos, a
possibilidade do homem de raciocinar e produz imagens. A tele-visão
acaba com a possibilidade de abstração e de enfrentamento dos problemas de
forma racional.
A palavra é o símbolo que necessita
capacidade de abstração. A imagem não necessita; a imagem se basta em si
própria. Enquanto a palavra constitui um universo simbólico, a imagem não
tem nenhuma função senão produzir um estímulo visual. E, para a televisão, o
que é visível tem papel principal, enquanto a narração possui um caráter
secundário.
Para Bourdieu, o problema mais
grave na relação imagem – palavra não é que a palavra esteja ausente
como diz Sartori, mas o estrago que as palavras causam por não serem
cuidadas, afinal, preocupa-se muito mais em fazer algo em busca de audiência
do que com a veracidade dos fatos e preocupação com a realidade: “com
palavras comuns, não se ‘faz cair o queixo do burguês’, nem do ‘povo’. É
preciso palavras extraordinárias. De fato, paradoxalmente, o mundo da imagem
é dominado pelas palavras. A foto não é nada sem a legenda que diz o que é
preciso ler – legendum –, isto é, com muita freqüência, lendas, que
fazem ver qualquer coisa. Nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar
à existência. E as palavras podem causar estragos: islã, islâmico, islamita
– o véu é islâmico ou islamita? E se por ventura se tratasse simplesmente de
um xale, sem mais? Acontece-me ter vontade de retomar cada palavra
dos apresentadores que falam muitas vezes levianamente, sem ter a menor
idéia da dificuldade e da gravidade do que evocam e das responsabilidades em
que incorrem ao evocá-las diante de milhares de telespectadores, sem as
compreender e sem compreender que não as compreendem. Porque essas palavras
fazem coisas, criam fantasias, medos, fobias ou, simplesmente representações
falsas” (Bourdieu, op.cit., pp. 25-6).
Porém, ambos estão de acordo que a
televisão requisita a imagem e concordam que tal fator faz com que apenas
uma parte do mundo seja noticiada, e que a outra parte, não visível,
cuja reflexão é puramente simbólica ou que está protegida pela ditadura de
governos autoritários, seja totalmente negligenciada. Sendo assim, a palavra
não passa de uma legenda, uma breve explicação sobre a imagem apresentada.
Sartori diz textualmente que
pretende deixar pais mais preocupados ao deixarem seus filhos horas e horas
na frente de uma televisão. A seguir, o autor diz que o primeiro imprint
da criança é a televisão, instrumento que é a “negação” simbólica através da
imagem. A afirmação da imagem como mecanismo de “pensamento” é a negação do
símbolo. Cria-se, então, uma geração que desaprende como raciocinar, além do
decréscimo dos saberes transmitidos pela cultura escrita. Essa é a crítica
periférica que Sartori faz à televisão: a primeira é a antropológica
apresentada aqui, a periférica é a substituição das leituras pelo simples e
fácil hábito de ver. A televisão se apresenta como única influência
educativa prazerosa, porém, a televisão não tem como ser um educador total:
oferece apenas noções; os aprofundamentos que são atingidos pela leitura são
deixados de lado. Logo, o conhecimento televisivo que se baseia em noções se
torna o conhecimento total, fator que cria indivíduos néscios.
Adorno complementaria: “Não é por
nada que na América podemos ouvir da boca dos produtores cínicos que seus
filmes devem dar conta do nível intelectual de uma criança de onze anos.
Fazendo isso, eles se sentem sempre mais incitados a fazer de um adulto uma
criança de onze anos” (Adorno, op. cit., p. 98).
Não querendo subestimar a
capacidade de uma criança, o fato é que um adulto teoricamente deveria dar
conta de conteúdos mais profundos, especialmente no campo da política e
economia. Porém, “os problemas não são ‘visíveis’” (Sartori, 2001, p. 70). E
se há o aprisionamento no visível, em uma determinada gama de conhecimento
do que é aquilo que se pode ver e considerando aquilo que não se vê como não
existente, estamos diante de uma situação em que o homem além de perder a
sua capacidade de abstração, perde a possibilidade de distinguir a verdade
da mentira, ou mesmo compreender quais são as circunstâncias que imprimem o
formato do seu arredor.
Sartori e Marcuse contra o
“fascismo”
Sartori, como já apontado, foi o
primeiro a apontar para o problema antropológico-cognitivo da simples
existência da televisão. Para além disso, no livro em questão, o autor
aponta problemas secundários que já foram apontados por outros autores.
Citando Ionescu, Sartori diz que “o fato de a informação e a educação
política estarem em mãos da televisão [...] apresenta problemas sérios para
a democracia. Ao invés de usufruir de uma democracia direta, o
demos é dirigido por manipuladores da mídia” (Ionescu Apud Idem,
p. 117).
O autor citado nos chama a atenção
para o fato de que, para governar, é necessário que haja autonomia. Porém, a
realidade se mostra um tanto diferente disso: “a busca do interesse próprio
agora aparece estar condicionada pela heteronomia: a autonomia aparece como
um obstáculo, em vez de estímulo à ação racional” (Marcuse, op. cit., p.
84). Um ambiente no qual toda a opinião é heterônoma, não é possível que uma
boa política seja realizada e a televisão, que poderia ser um instrumento
que poderia trazer novamente a democracia direta, cujas decisões e rumos da
polis poderiam ser decididas e comunicadas em tempo real, se tornou o
meio pelo qual os donos do poder legitimam a sua força. Tal questão é a
abertura do livro de Bourdieu. Este autor, em Sobre a televisão,
escreve que pretende que as suas reflexões sejam instrumentos para aqueles
os quais “lutam para que o que poderia ter se tornado um extraordinário
instrumento de democracia direta não se converta em instrumento de opressão
simbólica” (Bourdieu, op. cit., p. 13).
Bourdieu não usa esta expressão,
mas tanto a preocupação desse autor como a de Sartori, neste aspecto, diz
respeito a uma forma de sociedade na qual alguns poucos pensam, agem e
imprimem de forma fluente e sem obstáculos na consciência de cada indivíduo
aquilo que esta elite de classe possa tirar maior usufruto. Tal pensamento
foi traduzido em romance por George Orwell na primeira metade do século
passado em seu romance 1984. Sartori cita o livro em questão, porém,
com uma salvaguarda: estamos em 1984, entretanto, temos um Grande Irmão
plural. No romance de Orwell, cada uma das três partes da Terra possui o seu
grupo de influência que não sofre concorrências. No decorrer real das
telecomunicações, esse monopólio absoluto sobre a palavra só existe em
algumas partes do globo, mas os grupos de controle disputam não só a
audiência, mas aquilo que a audiência pensa, como agirá, e porque pensa e
age de determinada forma.
Este é o primeiro ponto da
submissão que a televisão impõe ao homem: este “inflar” de determinado tipo
de opinião que acaba por se tornar a própria verdade e determina o rumo da
coletividade. Porém, além dessa maneira, que eu poderia chamar de
dominação pelo conteúdo, existe uma segunda forma que chamarei de
dominação pela forma. Os autores mais críticos da dominação pela
forma foram Adorno e Marcuse. Mas Marcuse será o foco principal neste
ponto, pois as suas reflexões neste aspecto são as mais refinadas. Em
Tecnologia, guerra e fascismo, livro escrito em 1955 não se referia à
televisão que começava a caminhar ainda, mas suas reflexões se adequam à
realidade televisiva e às preocupações dos críticos da televisão muito bem.
Marcuse trata do homem movido pela máquina e pela técnica. Não está mais à
mercê da sua própria vontade: tem de seguir os movimentos mecânicos, tem de
seguir as placas, ir pelo rumo indicado. O homem da era da máquina é “alguém
que aprendeu a transferir toda espontaneidade subjetiva à maquinaria que
serve, a subordinar sua vida à ‘factualidade’ (‘matter-of-factness’) de um
mundo em que a máquina é o fator e ele o instrumento” (Marcuse, op. cit., p.
78).
Sartori escreve com outras
palavras: “Não temos mais um homem que ‘reina’ graças à tecnologia inventada
por ele, mas, ao contrário, temos um homem submisso à tecnologia, dominado
pelas próprias máquinas. O inventor é esmagado pelos seus inventos” (Sartori,
op. cit., p. 119). Mais curioso é não citar essa fonte frankfurtiana.
Para Marcuse, a racionalidade, que
poderia tirar o homem do jugo, passa do “campo da força crítica para se
tornar uma forma de ajuste e submissão” (Marcuse, op. cit., p. 84).
Curiosamente, o homem da razão é aquele que carece da capacidade de pensar e
precisa crer mais do que refletir. Para Sartori, o homem moderno é mais
crédulo do que o homem da idade média. Afinal, na idade média ainda havia
uma Weltanschauung, ou seja, uma visão da realidade que alimentava a
concepção de mundo coerente. Hoje, não há referências estáveis e o homem
necessita crer mais ainda naquilo que vê do que o homem da idade média. São
os chamados pelo autor de “doentes de vazio”, tão numerosos nos Estados
Unidos.
A reflexão sobre os temas
relevantes tanto à polis quanto às questões individuais é substituída
pela imagem fixa, que, por ser imagem, substitui a necessidade de elaboração
simbólica. A técnica para o aperfeiçoamento do trabalho assim como de
aperfeiçoamento da forma de comunicação faz do homem um escravo das
indicações e das imagens. Ambas tornam-se a única forma do homem moderno
para conseguir chegar a alguma conclusão válida.
As análises técnicas da
televisão (Sartori e Bourdieu)
Sartori e Bourdieu fizeram estudos
que se conectam em algumas reflexões. Em boa parte delas, aquilo que
Bourdieu explica, Sartori nomeia; e aquilo que Sartori explica, é Bourdieu
quem dá o nome. Sendo assim, esta parte pretende mostrar os pontos de
confluência e de complementação nas análises dos dois autores.
*
Qual é o critério para a seleção de
informações? Aquilo que pode ser filmado. Sartori escreve que os primórdios
do noticiário eram gravados em estúdio. Nesta época, a palavra seguia acima
da imagem. O declínio da televisão começa quando “alguém descobriu que a
missão e o dever da televisão são ‘mostrar’ as coisas de que fala” (Sartori,
op. cit., p. 67).
O tempo dedicado aos fatos
filmáveis é enorme, enquanto que os fatores de relevância pública ganham
poucos segundos. O que se mostram nos noticiários são fatos de importância
nula como catástrofes naturais, acidentes e violência. Além, é claro, dos
pseudo-eventos (termo de Bourdieu), ou seja, eventos que só ocorreram por
causa da televisão. Se não houvesse uma filmadora, não teriam ocorrido.
Mas os fatores de importância nula
de que nos fala Sartori é também explicado por Bourdieu. Ele os chama de
fatos-ônibus: “Os fatos-ônibus são fatos que, como se diz, não devem chocar
ninguém, que não envolvem disputa, que não dividem, que formam consenso, que
interessam a todo mundo, mas de um modo tal que não tocam em nada de
importante [...] Ora, o tempo é algo extremamente raro na televisão. E se
minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis, é que
essas coisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida em que
ocultam coisas preciosas” (Bourdieu, op. cit., p. 23). Tal comportamento
jornalístico produz o vazio político e reduz a vida pública a acontecimentos
sem importância dos quais é necessário tirar lições de moral e
transformá-los em “problemas de sociedade” (Idem, p. 73).
Sartori também aponta o oposto
desse comportamento jornalístico: é quando ele assume a “função crítica”:
tal função consiste no combate ao que quer que seja. Um combate é sempre
bombástico e o interesse é justamente ser bombástico. A acusação se tornou
quase uma necessidade da ética jornalística: o ataque e a agressividade
chamam a atenção. O noticiário privilegia o ataque e cala a defesa. Afinal,
segundo Sartori, o ataque está na ordem das imagens, enquanto que a defesa é
discurso.
Todos se entretêm muito bem
enquanto assistem televisão e o homo-ludens agradece. O problema que
o autor vê neste ponto é que a diversão se espalha para o campo da
informação. A informação também necessita de uma pitada publicitária para
chamar a atenção do grande público.
Por outro lado, essa busca pela
notícia ideal que causará todo o furor necessário para o sucesso do jornal
faz com que os jornalistas direcionem a atenção para uma parte bem definida
do mundo e transformem-na em o mundo em sua totalidade, além de
fazerem um grande jogo de espelhos, como nos diz Bourdieu: “Os jornalistas
têm ‘óculos’ especiais a partir dos quais vêem certas coisas e não outras; e
vêem de certa maneira as coisas que vêem. Eles operam uma seleção e uma
construção do que é selecionado. O princípio de seleção é a busca do
sensacional, do espetacular. A televisão convida à dramatização, no
duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a
importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico” (Idem, p. 25).
“Essa espécie de jogo de espelhos refletindo-se mutuamente produz um
formidável efeito de barreira, de fechamento mental” (Idem, p. 33).
Sartori percebe que este fato é o
que causa a inflação das mesmas imagens e notícias. Há uma grande
homogeneização da informação pelo medo do risco da concorrência, portanto,
os concorrentes se modelam uns aos outros. Neste ponto, Sartori reflete
sobre o livre-mercado ou a estatização da televisão. Não dá
uma resposta; ao contrário, mostra como a estatização foi uma lástima na
Itália e como o livre-mercado televisivo não criou uma televisão
melhor nos Estados Unidos. Ambos produziram uma televisão e um noticiário
medíocres.
Porém, quando os jornalistas não se
ancoram um nos outros, outro comportamento pernicioso entra em cena: a
perseguição do furo. Quem fala sobre isso é Bourdieu: “Para ser o
primeiro a ver e a fazer ver alguma coisa, está-se disposto a quase tudo, e
como se copia mutuamente visando a deixar os outros para trás, a fazer antes
dos outros, ou a fazer diferente dos outros, acaba-se por fazerem todos a
mesma coisa, e a busca da exclusividade, que, em outros aspectos, produz a
originalidade, resulta aqui na uniformização e na banalização. [...]
Flaubert gostava de dizer: ‘é preciso pintar bem o medíocre’” (Idem, p. 27).
Há, segundo Bourdieu, uma busca desenfreado pelo “sempre assim” e o “nunca
visto” (Idem, p. 61).
O resultado disso é a confirmação
daquilo que todos já sabem e a manutenção das estruturas mentais (Idem, p.
64). A televisão passa do campo do simples registro da realidade para o
papel de criadora do mundo “descrito-prescrito” por ela (Idem, p. 29).
Sartori concorda com Bourdieu e vê um problema extra nesta criação do mundo
pela televisão: ela é descrita por pessoas cujo conhecimento acerca dos
assuntos de que tratam não dá conta da complexidade daquilo de que falam.
Qualquer néscio pode falar sobre qualquer assunto, pois a sua palavra será
legitimada pela força da imagem. As verdadeiras autoridades nos assuntos em
questão são caladas para que celebridades democratizem a sua estupidez.
Sartori faz, então, uma divisão nos
tipos de informação. O primeiro tipo oferecido pela televisão é a
subinformação: informação insuficiente, com eliminação de dados
importantes sobre o fato. Por outro lado, existe a desinformação, o
que se caracteriza pela distorção dos dados. Porém, Sartori não cai na
teoria da conspiração e adverte que muitas vezes, a desinformação não
é fruto da manipulação, mas sim, da falta de competência jornalística.
Com relação à subinformação,
pode-se associar a ela a idéia de Bourdieu de fast thinking:
exigência de pensamentos rápidos, de fácil assimilação e prontos. Chomsky
também fala a esse respeito em Manufactured consent, talvez devido ao
fato de que o fast thinking assume proporções ainda maiores na mídia
norte-americana, a mídia à qual Chomsky faz a crítica. Para Chomsky, como
controlar o que se pensa? Com “qualquer coisa que os mantenha ocupados,
distraia-os das coisas importantes. Para isso é preciso reduzir a capacidade
deles de pensar. (...) A mídia não estaria cumprindo seu papel se permitisse
que as verdades fossem questionadas. (...) Você precisa dizer coisas entre
dois intervalos comerciais ou em seiscentas palavras. Isso é muito
importante porque o valor dessa concisão, um par de frases entre dois
comerciais está em que só permite pensamentos convencionais” (Chomsky,
Manufactured consent [documentário]).
Já a desinformação se
caracteriza, como já foi dito, pela má formação dos profissionais de
jornalismo. Além disso, os erros de informações também podem se caracterizar
por interpretações distorcidas da matemática nas estatísticas realizadas e
pelos diversos outros meios de tentar legitimar uma informação falsa. O meio
que Sartori mais critica de tentativa de legitimação de uma informação pela
voz do povo é a sondagem. As sondagens não funcionam. As
respostas variam de acordo com a forma com a qual a pergunta é feita. Além
de serem muito freqüentes as respostas improvisadas para não dar o infame “desconheço”.
As sondagens não revelam o vox populi, mas o poder das
telecomunicações sobre o povo.
O medo do governo dos néscios
A democracia é o governo de
opiniões, segundo Dicey, em 1914. E tais opiniões não podem ser convicções,
pois convicções se transformam em crenças. Apenas uma democracia direta
exigiria um povo que sabe, já a democracia representativa se
caracteriza pela existência de pessoas que acham e um governo de
opinião.
Porém, hoje, a opinião do povo é
guiada pelas criações televisivas. A nota de rodapé da página 109 a Toffler
é bastante enfática: Sartori ataca seu livro pelo fato de Toffler imaginar
que a sugestão que este autor dá à democracia é devolver o poder ao povo.
Sartori afirma que tal pensamento é similar à idéia de que, se em um
hospital há médicos ruins, os pacientes devem se auto-medicar. O que
perpassa a crítica sartoriana é a seguinte pergunta: “quem disse que o povo
sabe se governar?” Sartori concorda que o povo é o titular do poder. Porém,
desconfia da sua capacidade de exercê-lo.
Em A teoria da democracia
revisada, Sartori faz uma defesa das vantagens da democracia
representativa com relação à democracia direta. Mostra como não só a
democracia direta, além de inviável, é indesejável. A democracia direta
exige cidadãos totais e lembra que o homem é mais do que cidadão: merece a
sua liberdade negativa. No livro citado, o principal obstáculo que o autor
observa é o tamanho das comunidades e impossibilidade de organização
coletiva pela distância e pela necessidade dos cidadãos de dedicarem-se a
outros assuntos que não a política. Em Homo ludens: televisão e
pós-pensamento, o autor aponta outra questão: a população não
conseguiria ter a democracia direta porque não é capaz. Se em Atenas, um dos
grandes problemas da democracia era que a política era guiada pela paixão,
hoje, com uma opinião hétero-dirigida, a possibilidade de se auto-governar é
a realidade mais distante que se pode imaginar.
A democracia direta representativa
seria o melhor tipo de governo para o autor, porém, tal forma de organização
exige certo patamar de paidéia. O saber (dito como conhecimento)
é, invariavelmente, a condição sine qua non da democracia, seja ela
qual for. E o conhecimento e a participação caminham juntos, necessitam-se
reciprocamente. A população precisa se interessar, no mínimo, pela
política.
Curiosamente, o autor mostra uma
estatística um tanto duvidosa: a pesquisa distingue os “politizados”
daqueles “competentes a fazer política”. 10 a 25% dos indivíduos no ocidente
estariam interessados e informados sobre política, porém, os cognitivamente
competentes (?) seriam apenas 2 ou 3% (Sartori, op. cit., pp. 112-3).
O problema que a democracia
representativa enfrenta com as telecomunicações pode ser dividido em três
pilares: 1º - os homens perdem a sua capacidade cognitiva devido à
“tele-visão”; 2º - a opinião pública se torna hétero-dirigida, o que impede
que a discussão pública seja transparente e; 3º - os tolos têm voz muito
forte, podendo inclusive se associar.
O primeiro ponto é a grande
novidade do livro de Sartori com relação à bibliografia acerca deste
assunto. O segundo é o aviltamento da discussão pública por ser guiada por
interesses de grupos que comandam as telecomunicações, criam um fluxo de
informação que torna o público fechado e surdo aos assuntos políticos. O
terceiro ponto é a possibilidade de enterramento da mesma discussão pública
pela possibilidade de os néscios falarem mais alto do que as autoridades em
assuntos técnicos. “Nossos apresentadores de jornais televisivos, nossos
animadores de debates, nossos comentaristas esportivos tornam-se pequenos
diretores de consciência que se fazem, sem ter de forçar muito, os
porta-vozes de uma moral tipicamente pequeno-burguesa, que dizem ‘o que se
deve pensar’ sobre o que chamam de ‘os problemas da sociedade’, as agressões
nos subúrbios ou a violência na escola” (Bourdieu, 1997, p. 65). Uma camada
de homens, que permite que ídolos opinem sobre assuntos que não deveriam
opinar, se assimila a dirigistas que “distribuem carteiras de habilitação
sem se perguntar se os seus habilitados sabem dirigir” (Sartori, op. cit.,
p. 115).
O autor sabe que néscios sempre
houve na história, mas as telecomunicações significam a potencialização de
tudo, inclusive, da estupidez. Isso o assusta. As telecomunicações e a
Internet têm mostrado que desviantes e levianos podem reunir-se. Ou seja, ao
fim, o que o autor faz é uma defesa da democracia através de um pensar que
se assemelha muito a Platão: alguém apto a governar precisa assumir o posto
para que os sofistas (que, para nós, modernos, assumem a figura do desviante
e do leviano) não destruam o espaço público. É preciso elevar o grau de
saber do povo, porém, ele não tem capacidade para governar-se. A
sofisticação do grau intelectual da população seria uma forma de refinar o
governo dos dirigentes.
Porém, a democracia não tem
apresentado as condições necessárias para a sua boa performance, o que
acarreta um discurso de “mais democracia” que consiste em um pedido de “mais
dirigismo”. Para Sartori, a população se tornou o eco da opinião televisiva,
porém, recrimina aqueles que se justificam pelo argumento de que apresentam
ao povo aquilo que ele requisita: não; se o povo não se interessa por
política, é porque a televisão criou uma população apática com tais
assuntos.
A tele-direção da opinião
pública fomenta dois problemas para a democracia: o localismo +
mentalidade ampliada e a “emotivação” da política.
Para compreender o primeiro ponto,
é preciso falar sobre a idéia de aldeia global de McLuhan. A
televisão não penetra em todos os cantos do mundo, logo, é global se o globo
for considerado a parte em que ela pode chegar. A aldeia global faz os
indivíduos se sentirem responsáveis por tudo. Porém, responsabilizar-se “por
tudo o que acontece em toda parte” cria imobilismo, pois este engajamento é
extravagante e distante: na realidade, uma forma de matar o tempo. Quando é
necessário assumir uma postura mundialista para se fugir do assunto,
assume-se. Quando é necessário ter uma postura localista, idem. Não há
contradição entre “localismo” e “mentalidade ampliada”, sob determinadas
circunstâncias se pensa “globalmente”, em geral quando não se tem efeito
algum, mas em geral, o localismo com o seu narrow mindedness
prevalece (Idem, p. 107).
Por sua vez, a emotização da
política talvez seja o aspecto mais visível da tele-direção. A
televisão personaliza as eleições. Não se vota em programas de partido, mas
em personalidades fortes. O grande problema, para Sartori, é que, como já
foi dito, a política não está (ou não deveria estar) no campo do pathos,
da paixão, mas sim, do logos, da razão. Mas agora a ignorância se
torna virtude e o conhecimento dos aspectos mais triviais sobre a
personalidade dos partidários se torna o grande definidor do voto.
Segundo Sartori, o peso da
videopolítica depende do peso do partido. Onde o partido é forte e bem
estruturado, como na Inglaterra, o peso da viodeopolítica cai; enquanto que
nos Estados Unidos, onde o partido é fraco, a força da videopolítica é
grande. Em um país como a Inglaterra, o espetáculo político não é tão forte;
já nos Estados Unidos, a informação é residual: o importante é pintar bem o
medíocre.
Os personagens políticos se tornam
mais independentes dos partidos. A independência do colégio eleitoral acaba
deixando a questão do parlamento de lado para atender o “agregado de
‘pequenos grupos étnicos’” (Idem, p. 98) e transforma a política em uma
questão unicamente local. Ou seja, a emotização da política resulta em um
grande localismo, com forte expressão corporativa, o que significa menor
preocupação com as questões coletivas: ou seja, menos república para a
democracia.
Conclusão
Este trabalho teve como objetivo
mostrar a teoria antropológico-cognitiva de Sartori em seu livro
Homo-videns: televisão e pós-pensamento, no qual o autor defende que o
homo sapiens passou para outra fase de “evolução” (ou, como
defenderia o autor, de “retrocesso”). Tal teoria justifica que o homem
moderno tem perdido a sua capacidade cognitiva através da tele-visão,
afinal, a reflexão exige um bom manejo de questões abstratas, manejo este
prejudicado pela necessidade de “ver” tudo aquilo a respeito do qual se
fala. A necessidade de “ver” faria com que o homem, que passou do sensível
para o inteligível, volte para a etapa do sensível.
Procurou-se comparar as reflexões
do autor com alguns autores que escreveram sobre a televisão e a sua relação
com a dominação e com a política. Primeiramente, com Marcuse em suas
análises sobre como a técnica sobrepuja a vontade do indivíduo e a
ferramenta se torna senhor. Em seguida, este trabalho procurou mostrar as
semelhanças e complementos do livro em relação a Sobre a televisão de
Bourdieu. Nesta parte, se pensa sobre conceitos chamados por ambos os
autores de “fatos-ônibus”, a “função crítica” a qual os jornalistas se
arrogaram, a busca do furo, o jogo de espelho entre os jornais, os conceitos
de subinformação, desinformação e fast thinking.
A última parte é a que buscou
mostrar como a opinião tele-dirigida afeta a democracia pela potencialização
da ignorância, do localismo e mentalidade ampliada, e pela emotização da
política.
por RAFAEL MANTOVANI