por RAFAEL MANTOVANI

Sociólogo pela PUC-SP e mestrando em Sociologia da cultura e poder pela mesma instituição.

 

 

 

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Política e Televisão: debate entre Sartori, Bourdieu, Adorno e Marcuse

Rafael Mantovani

 

Resumo: O presente artigo pretende apresentar a teoria antropológica e política apresentada por Giovanni Sartori em Homo videns: televisão e pós-pensamento, livro no qual o autor alerta sobre os perigos políticos que a televisão pode proporcionar. Para uma compreensão da problemática com a qual o autor dialoga, são trazidos autores frankfurtianos e Pierre Bourdieu para que confluências e divergências de pensamentos possam ser refletidas.

Palavras-Chave: Televisão – democracia – comunicação de massa

Abstract: This essay attempts to illustrate the anthropological and political theory presented by Giovanni Sartori in Homo Videns: televisione e post-pensiero, which warns of television's potential political harm. Understanding Satori’s argument requires the ability to recognize how his theories converse with those of other theorists, such as Pierre Bourdieu and those from the Frankfurt School, which this paper examines through comparison.

Key Words: Television – democracy – mass media

 

Fonte: http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.campusred.net/telos/admin/imagenrevista/Niimura4_ilustra.jpg&imgrefurl=http://www.blogger.com/feeds/4744950003328237532/posts/default&h=457&w=400&sz=47&hl=pt-BR&start=23&um=1&tbnid=RdDFfZyOMfktWM:&tbnh=128&tbnw=112&prev=/images%3Fq%3Dtelevis%25C3%25A3o%26start%3D20%26ndsp%3D20%26svnum%3D10%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DNIntrodução

Segundo Karl Marx e Friedrich Engels, “em apenas um século de sua dominação de classe, a burguesia criou formas de produção mais importantes e mais colossais que todas as gerações precedentes reunidas” (Marx & Engels, 2002, pp. 31-2.). E com essa frase, ambos se referiam ao século XIX. O século XX assistiu a uma multiplicação de poderes desenvolvidos pela inovação tecnológica que não teve precedentes na história.

No campo das comunicações, o termo produção deve ser modificado por inovação. As técnicas de produção e inovação no período capitalista se multiplicaram em uma progressão geométrica e o campo das telecomunicações foi, sem dúvida, um dos campos mais afetados devido a este progresso.

Com relação tanto às inovações como quanto às telecomunicações em si as opiniões mudam bastante. Há tanto aqueles que vêem nas inovações tecnológicas das telecomunicações a brutalidade da dominação, assim como há aqueles que vêem a técnica como um elemento neutro, que pode servir tanto ao capitalismo, ao socialismo ou à liberdade. Talvez Walter Benjamin seja o único que, textualmente, diz que a técnica da reprodutibilidade democratiza a arte e a emancipa da sua necessidade ritualesca para democratizá-la (Benjamin, 1987, p. 171). Porém, esta é a visão que mais destoa com a de Sartori, portanto, o interesse aqui é simplesmente mencioná-la. Convém pensar mais sobre outros três autores que podem debater com o autor italiano de forma mais confluente.

O primeiro é Marcuse, autor para o qual a técnica em si é neutra. “A técnica por si pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade” (Marcuse, 1999, p. 74). A grande questão é como esta técnica tem sido utilizada para a disseminação da ideologia burguesa e aviltamento dos indivíduos como massa.

O segundo é Adorno: é, de fato, o autor com a opinião menos lisonjeira com relação aos meios de comunicação: sobre a indústria cultural, diz que são “produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse consumo” (Adorno, 1986, p. 91) e que “ela [a indústria cultural] impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente. Mas estes constituem, contudo, a condição prévia de uma sociedade democrática, que não se poderia salvaguardar e desabrochar senão através de homens não tutelados” (Idem, p. 99). Para o autor, as mudanças que são vistas na moda e na música não passam de ramos que se erguem em um esqueleto sempre fixo, no qual a cultura ganha alguma importância pela necessidade do lucro. Historicamente é falso dizer que o texto que Adorno escreveu com Horkheimer seria uma resposta ao pensamento de Benjamin, porém, pode-se observar uma opinião absolutamente antagônica: se a indústria cultural promove a democracia para Benjamin, o que ela promove é a democratização da ignorância segundo Adorno. Sartori concorda com a segunda sugestão.

O terceiro autor que convém ser lembrado por agora é Bourdieu. A questão para este teórico marxista é a submissão dos meios de comunicação aos interesses de mercado e, também, o fato de se tornar o reflexo do próprio mercado competitivo que busca clientes. “O índice de audiência é a sanção do mercado, da economia, isto é, de uma legalidade externa e puramente comercial, e a submissão às exigências desse instrumento de marketing é o equivalente exato em matéria de cultura do que é a demagogia orientada pelas pesquisas de opinião em matéria de política. A televisão regida pelo índice de audiência contribui para exercer sobre o consumidor supostamente livre e esclarecido as pressões do mercado, que não têm nada da expressão democrática de uma opinião coletiva esclarecida, racional, de uma razão pública, como querem fazer crer os demagogos cínicos” (Bourdieu, 1997, pp. 96-7). Para este autor, a luta contra o índice de audiência é uma luta pela democracia.

Sartori concorda em grande medida com as afirmações de Bourdieu em seu discurso contra a televisão transmitido pela própria televisão. Aquilo que Bourdieu nomeia, Sartori explica; aquilo que Sartori nomeia, Bourdieu explica. Porém, tais aproximações serão expostas adiante.

O passo que Sartori buscou dar em seu livro foi justificar uma teoria antropológica contra a televisão e mostrar como a sua existência inviabiliza o homem político. Para o autor, o homem passa de homo-sapiens para homo-videns quando começa a pensar por imagens. Com a era televisiva, o pensamento, que tem as suas bases na palavra e na possibilidade de abstração (pré-requisito para o homem político que tem de lidar o tempo todo com conteúdos abstratos), se vê substituído por uma forma de raciocínio que se dá pela imagem. Para Sartori, os meios de comunicação que surgiram antes da era televisiva não haviam atingido a natureza simbólica do homem. A televisão, sim, atingiu. E junto com isso vêm alguns outros detalhes importantes (e mal vistos na ótica do autor) que serão aqui expostos.

O animal que deixou de ser simbólico

O que define o homo sapiens é a sua capacidade simbólica. A grande novidade que a razão traz aos primatas é a possibilidade de raciocinarem acerca de si próprios. O pathos surge como a possibilidade para o homem de passar do sensível para o inteligível, e este “inteligível” pode dispensar os estímulos externos. O pensamento dispensa a visão.

Da mesma forma, a política é pensamento. Materializa-se em Estado, violência e acordos, mas, antes disso, é palavra, símbolo. Fazer política é antes de tudo conseguir lidar com conceitos e com abstrações sem a necessidade de vê-los. Afinal, se fosse necessário ver idéias como Estado, regra, acordo, a política não seria possível. Portanto, as idéias que giram em torno da política são abstrações, entidades não necessariamente visíveis.

Para Sartori, o problema com a entrada de cena da televisão transformando o homem simbólico em homo-videns é que a imagem passa a ter primazia sobre a palavra. O homem passa a ver mais e ter a necessidade de ver. Tendo a necessidade de ver, o homem acaba por perder a sua capacidade cognitiva que dispensa a visão. O predomínio da visão, segundo nosso autor italiano, é um passo atrás, deixa o homem mais próximo dos seus ancestrais, o homem retrocede do inteligível para o sensível. Sendo assim, a televisão apaga os conceitos, a possibilidade do homem de raciocinar e produz imagens. A tele-visão acaba com a possibilidade de abstração e de enfrentamento dos problemas de forma racional.

A palavra é o símbolo que necessita capacidade de abstração. A imagem não necessita; a imagem se basta em si própria. Enquanto a palavra constitui um universo simbólico, a imagem não tem nenhuma função senão produzir um estímulo visual. E, para a televisão, o que é visível tem papel principal, enquanto a narração possui um caráter secundário.

Para Bourdieu, o problema mais grave na relação imagem – palavra não é que a palavra esteja ausente como diz Sartori, mas o estrago que as palavras causam por não serem cuidadas, afinal, preocupa-se muito mais em fazer algo em busca de audiência do que com a veracidade dos fatos e preocupação com a realidade: “com palavras comuns, não se ‘faz cair o queixo do burguês’, nem do ‘povo’. É preciso palavras extraordinárias. De fato, paradoxalmente, o mundo da imagem é dominado pelas palavras. A foto não é nada sem a legenda que diz o que é preciso ler – legendum –, isto é, com muita freqüência, lendas, que fazem ver qualquer coisa. Nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar à existência. E as palavras podem causar estragos: islã, islâmico, islamita – o véu é islâmico ou islamita? E se por ventura se tratasse simplesmente de um xale, sem mais? Acontece-me ter vontade de retomar cada palavra dos apresentadores que falam muitas vezes levianamente, sem ter a menor idéia da dificuldade e da gravidade do que evocam e das responsabilidades em que incorrem ao evocá-las diante de milhares de telespectadores, sem as compreender e sem compreender que não as compreendem. Porque essas palavras fazem coisas, criam fantasias, medos, fobias ou, simplesmente representações falsas” (Bourdieu, op.cit., pp. 25-6).

Porém, ambos estão de acordo que a televisão requisita a imagem e concordam que tal fator faz com que apenas uma parte do mundo seja noticiada, e que a outra parte, não visível, cuja reflexão é puramente simbólica ou que está protegida pela ditadura de governos autoritários, seja totalmente negligenciada. Sendo assim, a palavra não passa de uma legenda, uma breve explicação sobre a imagem apresentada.

Sartori diz textualmente que pretende deixar pais mais preocupados ao deixarem seus filhos horas e horas na frente de uma televisão. A seguir, o autor diz que o primeiro imprint da criança é a televisão, instrumento que é a “negação” simbólica através da imagem. A afirmação da imagem como mecanismo de “pensamento” é a negação do símbolo. Cria-se, então, uma geração que desaprende como raciocinar, além do decréscimo dos saberes transmitidos pela cultura escrita. Essa é a crítica periférica que Sartori faz à televisão: a primeira é a antropológica apresentada aqui, a periférica é a substituição das leituras pelo simples e fácil hábito de ver. A televisão se apresenta como única influência educativa prazerosa, porém, a televisão não tem como ser um educador total: oferece apenas noções; os aprofundamentos que são atingidos pela leitura são deixados de lado. Logo, o conhecimento televisivo que se baseia em noções se torna o conhecimento total, fator que cria indivíduos néscios.

Adorno complementaria: “Não é por nada que na América podemos ouvir da boca dos produtores cínicos que seus filmes devem dar conta do nível intelectual de uma criança de onze anos. Fazendo isso, eles se sentem sempre mais incitados a fazer de um adulto uma criança de onze anos” (Adorno, op. cit., p. 98).

Não querendo subestimar a capacidade de uma criança, o fato é que um adulto teoricamente deveria dar conta de conteúdos mais profundos, especialmente no campo da política e economia. Porém, “os problemas não são ‘visíveis’” (Sartori, 2001, p. 70). E se há o aprisionamento no visível, em uma determinada gama de conhecimento do que é aquilo que se pode ver e considerando aquilo que não se vê como não existente, estamos diante de uma situação em que o homem além de perder a sua capacidade de abstração, perde a possibilidade de distinguir a verdade da mentira, ou mesmo compreender quais são as circunstâncias que imprimem o formato do seu arredor.

Sartori e Marcuse contra o “fascismo”

Sartori, como já apontado, foi o primeiro a apontar para o problema antropológico-cognitivo da simples existência da televisão. Para além disso, no livro em questão, o autor aponta problemas secundários que já foram apontados por outros autores. Citando Ionescu, Sartori diz que “o fato de a informação e a educação política estarem em mãos da televisão [...] apresenta problemas sérios para a democracia. Ao invés de usufruir de uma democracia direta, o demos é dirigido por manipuladores da mídia” (Ionescu Apud Idem, p. 117).

O autor citado nos chama a atenção para o fato de que, para governar, é necessário que haja autonomia. Porém, a realidade se mostra um tanto diferente disso: “a busca do interesse próprio agora aparece estar condicionada pela heteronomia: a autonomia aparece como um obstáculo, em vez de estímulo à ação racional” (Marcuse, op. cit., p. 84). Um ambiente no qual toda a opinião é heterônoma, não é possível que uma boa política seja realizada e a televisão, que poderia ser um instrumento que poderia trazer novamente a democracia direta, cujas decisões e rumos da polis poderiam ser decididas e comunicadas em tempo real, se tornou o meio pelo qual os donos do poder legitimam a sua força. Tal questão é a abertura do livro de Bourdieu. Este autor, em Sobre a televisão, escreve que pretende que as suas reflexões sejam instrumentos para aqueles os quais “lutam para que o que poderia ter se tornado um extraordinário instrumento de democracia direta não se converta em instrumento de opressão simbólica” (Bourdieu, op. cit., p. 13).

Bourdieu não usa esta expressão, mas tanto a preocupação desse autor como a de Sartori, neste aspecto, diz respeito a uma forma de sociedade na qual alguns poucos pensam, agem e imprimem de forma fluente e sem obstáculos na consciência de cada indivíduo aquilo que esta elite de classe possa tirar maior usufruto. Tal pensamento foi traduzido em romance por George Orwell na primeira metade do século passado em seu romance 1984. Sartori cita o livro em questão, porém, com uma salvaguarda: estamos em 1984, entretanto, temos um Grande Irmão plural. No romance de Orwell, cada uma das três partes da Terra possui o seu grupo de influência que não sofre concorrências. No decorrer real das telecomunicações, esse monopólio absoluto sobre a palavra só existe em algumas partes do globo, mas os grupos de controle disputam não só a audiência, mas aquilo que a audiência pensa, como agirá, e porque pensa e age de determinada forma.

Este é o primeiro ponto da submissão que a televisão impõe ao homem: este “inflar” de determinado tipo de opinião que acaba por se tornar a própria verdade e determina o rumo da coletividade. Porém, além dessa maneira, que eu poderia chamar de dominação pelo conteúdo, existe uma segunda forma que chamarei de dominação pela forma. Os autores mais críticos da dominação pela forma foram Adorno e Marcuse. Mas Marcuse será o foco principal neste ponto, pois as suas reflexões neste aspecto são as mais refinadas. Em Tecnologia, guerra e fascismo, livro escrito em 1955 não se referia à televisão que começava a caminhar ainda, mas suas reflexões se adequam à realidade televisiva e às preocupações dos críticos da televisão muito bem. Marcuse trata do homem movido pela máquina e pela técnica. Não está mais à mercê da sua própria vontade: tem de seguir os movimentos mecânicos, tem de seguir as placas, ir pelo rumo indicado. O homem da era da máquina é “alguém que aprendeu a transferir toda espontaneidade subjetiva à maquinaria que serve, a subordinar sua vida à ‘factualidade’ (‘matter-of-factness’) de um mundo em que a máquina é o fator e ele o instrumento” (Marcuse, op. cit., p. 78).

Sartori escreve com outras palavras: “Não temos mais um homem que ‘reina’ graças à tecnologia inventada por ele, mas, ao contrário, temos um homem submisso à tecnologia, dominado pelas próprias máquinas. O inventor é esmagado pelos seus inventos” (Sartori, op. cit., p. 119). Mais curioso é não citar essa fonte frankfurtiana.

Para Marcuse, a racionalidade, que poderia tirar o homem do jugo, passa do “campo da força crítica para se tornar uma forma de ajuste e submissão” (Marcuse, op. cit., p. 84). Curiosamente, o homem da razão é aquele que carece da capacidade de pensar e precisa crer mais do que refletir. Para Sartori, o homem moderno é mais crédulo do que o homem da idade média. Afinal, na idade média ainda havia uma Weltanschauung, ou seja, uma visão da realidade que alimentava a concepção de mundo coerente. Hoje, não há referências estáveis e o homem necessita crer mais ainda naquilo que vê do que o homem da idade média. São os chamados pelo autor de “doentes de vazio”, tão numerosos nos Estados Unidos.

A reflexão sobre os temas relevantes tanto à polis quanto às questões individuais é substituída pela imagem fixa, que, por ser imagem, substitui a necessidade de elaboração simbólica. A técnica para o aperfeiçoamento do trabalho assim como de aperfeiçoamento da forma de comunicação faz do homem um escravo das indicações e das imagens. Ambas tornam-se a única forma do homem moderno para conseguir chegar a alguma conclusão válida.

As análises técnicas da televisão (Sartori e Bourdieu)

Sartori e Bourdieu fizeram estudos que se conectam em algumas reflexões. Em boa parte delas, aquilo que Bourdieu explica, Sartori nomeia; e aquilo que Sartori explica, é Bourdieu quem dá o nome. Sendo assim, esta parte pretende mostrar os pontos de confluência e de complementação nas análises dos dois autores.

*

Qual é o critério para a seleção de informações? Aquilo que pode ser filmado. Sartori escreve que os primórdios do noticiário eram gravados em estúdio. Nesta época, a palavra seguia acima da imagem. O declínio da televisão começa quando “alguém descobriu que a missão e o dever da televisão são ‘mostrar’ as coisas de que fala” (Sartori, op. cit., p. 67).

O tempo dedicado aos fatos filmáveis é enorme, enquanto que os fatores de relevância pública ganham poucos segundos. O que se mostram nos noticiários são fatos de importância nula como catástrofes naturais, acidentes e violência. Além, é claro, dos pseudo-eventos (termo de Bourdieu), ou seja, eventos que só ocorreram por causa da televisão. Se não houvesse uma filmadora, não teriam ocorrido.

Mas os fatores de importância nula de que nos fala Sartori é também explicado por Bourdieu. Ele os chama de fatos-ônibus: “Os fatos-ônibus são fatos que, como se diz, não devem chocar ninguém, que não envolvem disputa, que não dividem, que formam consenso, que interessam a todo mundo, mas de um modo tal que não tocam em nada de importante [...] Ora, o tempo é algo extremamente raro na televisão. E se minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis, é que essas coisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida em que ocultam coisas preciosas” (Bourdieu, op. cit., p. 23). Tal comportamento jornalístico produz o vazio político e reduz a vida pública a acontecimentos sem importância dos quais é necessário tirar lições de moral e transformá-los em “problemas de sociedade” (Idem, p. 73).

Sartori também aponta o oposto desse comportamento jornalístico: é quando ele assume a “função crítica”: tal função consiste no combate ao que quer que seja. Um combate é sempre bombástico e o interesse é justamente ser bombástico. A acusação se tornou quase uma necessidade da ética jornalística: o ataque e a agressividade chamam a atenção. O noticiário privilegia o ataque e cala a defesa. Afinal, segundo Sartori, o ataque está na ordem das imagens, enquanto que a defesa é discurso.

Todos se entretêm muito bem enquanto assistem televisão e o homo-ludens agradece. O problema que o autor vê neste ponto é que a diversão se espalha para o campo da informação. A informação também necessita de uma pitada publicitária para chamar a atenção do grande público.

Por outro lado, essa busca pela notícia ideal que causará todo o furor necessário para o sucesso do jornal faz com que os jornalistas direcionem a atenção para uma parte bem definida do mundo e transformem-na em o mundo em sua totalidade, além de fazerem um grande jogo de espelhos, como nos diz Bourdieu: “Os jornalistas têm ‘óculos’ especiais a partir dos quais vêem certas coisas e não outras; e vêem de certa maneira as coisas que vêem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado. O princípio de seleção é a busca do sensacional, do espetacular. A televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico” (Idem, p. 25). “Essa espécie de jogo de espelhos refletindo-se mutuamente produz um formidável efeito de barreira, de fechamento mental” (Idem, p. 33).

Sartori percebe que este fato é o que causa a inflação das mesmas imagens e notícias. Há uma grande homogeneização da informação pelo medo do risco da concorrência, portanto, os concorrentes se modelam uns aos outros. Neste ponto, Sartori reflete sobre o livre-mercado ou a estatização da televisão. Não dá uma resposta; ao contrário, mostra como a estatização foi uma lástima na Itália e como o livre-mercado televisivo não criou uma televisão melhor nos Estados Unidos. Ambos produziram uma televisão e um noticiário medíocres.

Porém, quando os jornalistas não se ancoram um nos outros, outro comportamento pernicioso entra em cena: a perseguição do furo. Quem fala sobre isso é Bourdieu: “Para ser o primeiro a ver e a fazer ver alguma coisa, está-se disposto a quase tudo, e como se copia mutuamente visando a deixar os outros para trás, a fazer antes dos outros, ou a fazer diferente dos outros, acaba-se por fazerem todos a mesma coisa, e a busca da exclusividade, que, em outros aspectos, produz a originalidade, resulta aqui na uniformização e na banalização. [...] Flaubert gostava de dizer: ‘é preciso pintar bem o medíocre’” (Idem, p. 27). Há, segundo Bourdieu, uma busca desenfreado pelo “sempre assim” e o “nunca visto” (Idem, p. 61).

O resultado disso é a confirmação daquilo que todos já sabem e a manutenção das estruturas mentais (Idem, p. 64). A televisão passa do campo do simples registro da realidade para o papel de criadora do mundo “descrito-prescrito” por ela (Idem, p. 29). Sartori concorda com Bourdieu e vê um problema extra nesta criação do mundo pela televisão: ela é descrita por pessoas cujo conhecimento acerca dos assuntos de que tratam não dá conta da complexidade daquilo de que falam. Qualquer néscio pode falar sobre qualquer assunto, pois a sua palavra será legitimada pela força da imagem. As verdadeiras autoridades nos assuntos em questão são caladas para que celebridades democratizem a sua estupidez.

Sartori faz, então, uma divisão nos tipos de informação. O primeiro tipo oferecido pela televisão é a subinformação: informação insuficiente, com eliminação de dados importantes sobre o fato. Por outro lado, existe a desinformação, o que se caracteriza pela distorção dos dados. Porém, Sartori não cai na teoria da conspiração e adverte que muitas vezes, a desinformação não é fruto da manipulação, mas sim, da falta de competência jornalística.

Com relação à subinformação, pode-se associar a ela a idéia de Bourdieu de fast thinking: exigência de pensamentos rápidos, de fácil assimilação e prontos. Chomsky também fala a esse respeito em Manufactured consent, talvez devido ao fato de que o fast thinking assume proporções ainda maiores na mídia norte-americana, a mídia à qual Chomsky faz a crítica. Para Chomsky, como controlar o que se pensa? Com “qualquer coisa que os mantenha ocupados, distraia-os das coisas importantes. Para isso é preciso reduzir a capacidade deles de pensar. (...) A mídia não estaria cumprindo seu papel se permitisse que as verdades fossem questionadas. (...) Você precisa dizer coisas entre dois intervalos comerciais ou em seiscentas palavras. Isso é muito importante porque o valor dessa concisão, um par de frases entre dois comerciais está em que só permite pensamentos convencionais” (Chomsky, Manufactured consent [documentário]).

Já a desinformação se caracteriza, como já foi dito, pela má formação dos profissionais de jornalismo. Além disso, os erros de informações também podem se caracterizar por interpretações distorcidas da matemática nas estatísticas realizadas e pelos diversos outros meios de tentar legitimar uma informação falsa. O meio que Sartori mais critica de tentativa de legitimação de uma informação pela voz do povo é a sondagem. As sondagens não funcionam. As respostas variam de acordo com a forma com a qual a pergunta é feita. Além de serem muito freqüentes as respostas improvisadas para não dar o infame “desconheço”. As sondagens não revelam o vox populi, mas o poder das telecomunicações sobre o povo.

O medo do governo dos néscios

A democracia é o governo de opiniões, segundo Dicey, em 1914. E tais opiniões não podem ser convicções, pois convicções se transformam em crenças. Apenas uma democracia direta exigiria um povo que sabe, já a democracia representativa se caracteriza pela existência de pessoas que acham e um governo de opinião.

Porém, hoje, a opinião do povo é guiada pelas criações televisivas. A nota de rodapé da página 109 a Toffler é bastante enfática: Sartori ataca seu livro pelo fato de Toffler imaginar que a sugestão que este autor dá à democracia é devolver o poder ao povo. Sartori afirma que tal pensamento é similar à idéia de que, se em um hospital há médicos ruins, os pacientes devem se auto-medicar. O que perpassa a crítica sartoriana é a seguinte pergunta: “quem disse que o povo sabe se governar?” Sartori concorda que o povo é o titular do poder. Porém, desconfia da sua capacidade de exercê-lo.

Em A teoria da democracia revisada, Sartori faz uma defesa das vantagens da democracia representativa com relação à democracia direta. Mostra como não só a democracia direta, além de inviável, é indesejável. A democracia direta exige cidadãos totais e lembra que o homem é mais do que cidadão: merece a sua liberdade negativa. No livro citado, o principal obstáculo que o autor observa é o tamanho das comunidades e impossibilidade de organização coletiva pela distância e pela necessidade dos cidadãos de dedicarem-se a outros assuntos que não a política. Em Homo ludens: televisão e pós-pensamento, o autor aponta outra questão: a população não conseguiria ter a democracia direta porque não é capaz. Se em Atenas, um dos grandes problemas da democracia era que a política era guiada pela paixão, hoje, com uma opinião hétero-dirigida, a possibilidade de se auto-governar é a realidade mais distante que se pode imaginar.

A democracia direta representativa seria o melhor tipo de governo para o autor, porém, tal forma de organização exige certo patamar de paidéia. O saber (dito como conhecimento) é, invariavelmente, a condição sine qua non da democracia, seja ela qual for. E o conhecimento e a participação caminham juntos, necessitam-se reciprocamente. A população precisa se interessar, no mínimo, pela política.

Curiosamente, o autor mostra uma estatística um tanto duvidosa: a pesquisa distingue os “politizados” daqueles “competentes a fazer política”. 10 a 25% dos indivíduos no ocidente estariam interessados e informados sobre política, porém, os cognitivamente competentes (?) seriam apenas 2 ou 3% (Sartori, op. cit., pp. 112-3).

O problema que a democracia representativa enfrenta com as telecomunicações pode ser dividido em três pilares: 1º - os homens perdem a sua capacidade cognitiva devido à “tele-visão”; 2º - a opinião pública se torna hétero-dirigida, o que impede que a discussão pública seja transparente e; 3º - os tolos têm voz muito forte, podendo inclusive se associar.

O primeiro ponto é a grande novidade do livro de Sartori com relação à bibliografia acerca deste assunto. O segundo é o aviltamento da discussão pública por ser guiada por interesses de grupos que comandam as telecomunicações, criam um fluxo de informação que torna o público fechado e surdo aos assuntos políticos. O terceiro ponto é a possibilidade de enterramento da mesma discussão pública pela possibilidade de os néscios falarem mais alto do que as autoridades em assuntos técnicos. “Nossos apresentadores de jornais televisivos, nossos animadores de debates, nossos comentaristas esportivos tornam-se pequenos diretores de consciência que se fazem, sem ter de forçar muito, os porta-vozes de uma moral tipicamente pequeno-burguesa, que dizem ‘o que se deve pensar’ sobre o que chamam de ‘os problemas da sociedade’, as agressões nos subúrbios ou a violência na escola” (Bourdieu, 1997, p. 65). Uma camada de homens, que permite que ídolos opinem sobre assuntos que não deveriam opinar, se assimila a dirigistas que “distribuem carteiras de habilitação sem se perguntar se os seus habilitados sabem dirigir” (Sartori, op. cit., p. 115).

O autor sabe que néscios sempre houve na história, mas as telecomunicações significam a potencialização de tudo, inclusive, da estupidez. Isso o assusta. As telecomunicações e a Internet têm mostrado que desviantes e levianos podem reunir-se. Ou seja, ao fim, o que o autor faz é uma defesa da democracia através de um pensar que se assemelha muito a Platão: alguém apto a governar precisa assumir o posto para que os sofistas (que, para nós, modernos, assumem a figura do desviante e do leviano) não destruam o espaço público. É preciso elevar o grau de saber do povo, porém, ele não tem capacidade para governar-se. A sofisticação do grau intelectual da população seria uma forma de refinar o governo dos dirigentes.

Porém, a democracia não tem apresentado as condições necessárias para a sua boa performance, o que acarreta um discurso de “mais democracia” que consiste em um pedido de “mais dirigismo”. Para Sartori, a população se tornou o eco da opinião televisiva, porém, recrimina aqueles que se justificam pelo argumento de que apresentam ao povo aquilo que ele requisita: não; se o povo não se interessa por política, é porque a televisão criou uma população apática com tais assuntos.

A tele-direção da opinião pública fomenta dois problemas para a democracia: o localismo + mentalidade ampliada e a “emotivação” da política.

Para compreender o primeiro ponto, é preciso falar sobre a idéia de aldeia global de McLuhan. A televisão não penetra em todos os cantos do mundo, logo, é global se o globo for considerado a parte em que ela pode chegar. A aldeia global faz os indivíduos se sentirem responsáveis por tudo. Porém, responsabilizar-se “por tudo o que acontece em toda parte” cria imobilismo, pois este engajamento é extravagante e distante: na realidade, uma forma de matar o tempo. Quando é necessário assumir uma postura mundialista para se fugir do assunto, assume-se. Quando é necessário ter uma postura localista, idem. Não há contradição entre “localismo” e “mentalidade ampliada”, sob determinadas circunstâncias se pensa “globalmente”, em geral quando não se tem efeito algum, mas em geral, o localismo com o seu narrow mindedness prevalece (Idem, p. 107).

Por sua vez, a emotização da política talvez seja o aspecto mais visível da tele-direção. A televisão personaliza as eleições. Não se vota em programas de partido, mas em personalidades fortes. O grande problema, para Sartori, é que, como já foi dito, a política não está (ou não deveria estar) no campo do pathos, da paixão, mas sim, do logos, da razão. Mas agora a ignorância se torna virtude e o conhecimento dos aspectos mais triviais sobre a personalidade dos partidários se torna o grande definidor do voto.

Segundo Sartori, o peso da videopolítica depende do peso do partido. Onde o partido é forte e bem estruturado, como na Inglaterra, o peso da viodeopolítica cai; enquanto que nos Estados Unidos, onde o partido é fraco, a força da videopolítica é grande. Em um país como a Inglaterra, o espetáculo político não é tão forte; já nos Estados Unidos, a informação é residual: o importante é pintar bem o medíocre.

Os personagens políticos se tornam mais independentes dos partidos. A independência do colégio eleitoral acaba deixando a questão do parlamento de lado para atender o “agregado de ‘pequenos grupos étnicos’” (Idem, p. 98) e transforma a política em uma questão unicamente local. Ou seja, a emotização da política resulta em um grande localismo, com forte expressão corporativa, o que significa menor preocupação com as questões coletivas: ou seja, menos república para a democracia.

Conclusão

Este trabalho teve como objetivo mostrar a teoria antropológico-cognitiva de Sartori em seu livro Homo-videns: televisão e pós-pensamento, no qual o autor defende que o homo sapiens passou para outra fase de “evolução” (ou, como defenderia o autor, de “retrocesso”). Tal teoria justifica que o homem moderno tem perdido a sua capacidade cognitiva através da tele-visão, afinal, a reflexão exige um bom manejo de questões abstratas, manejo este prejudicado pela necessidade de “ver” tudo aquilo a respeito do qual se fala. A necessidade de “ver” faria com que o homem, que passou do sensível para o inteligível, volte para a etapa do sensível.

Procurou-se comparar as reflexões do autor com alguns autores que escreveram sobre a televisão e a sua relação com a dominação e com a política. Primeiramente, com Marcuse em suas análises sobre como a técnica sobrepuja a vontade do indivíduo e a ferramenta se torna senhor. Em seguida, este trabalho procurou mostrar as semelhanças e complementos do livro em relação a Sobre a televisão de Bourdieu. Nesta parte, se pensa sobre conceitos chamados por ambos os autores de “fatos-ônibus”, a “função crítica” a qual os jornalistas se arrogaram, a busca do furo, o jogo de espelho entre os jornais, os conceitos de subinformação, desinformação e fast thinking.

A última parte é a que buscou mostrar como a opinião tele-dirigida afeta a democracia pela potencialização da ignorância, do localismo e mentalidade ampliada, e pela emotização da política.

 

por RAFAEL MANTOVANI

Bibliografia

ADORNO, Theodor. Theodor W. Adorno: sociologia. (Org.) Gabriel Cohn. São Paulo, Ática, 1986.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987 (Obras escolhidas; vol. 1).

DAHL, Robert. Sobre a democracia. Brasília, Universidade de Brasília, 2001.

MARCUSE, Herbert. Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo, UNESP, 1999.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. Porto Alegre, L&PM, 2002.

PLATÃO. A república. São Paulo, Martin Claret, 2000.

SARTORI, Giovanni. Homo videns: televisão e pós-pensamento. Bauru, Edusc, 2001.

___________. A teoria da democracia revisada. São Paulo, Ática, 1994

 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 20 agosto, 2007.