Introdução
Para salientar a importância e caracterização do lazer para a
atual sociedade, utilizou-se um paradigma histórico-cultural. Esta linha de
investigação estabelece compreensões da evolução natural dos aspectos
sociais, bem como os problemas pertinentes e as soluções aceitáveis.
É o paradigma que enquadra a atividade da ciência dentro da
normalidade, impedindo-a de dispersão (Abreu, 2004, p.33).
Assim busca-se compreender não apenas a esfera do lazer, mas
o próprio desenvolvimento da sociedade e o questionamento se com o advento
das máquinas e inovações tecnológicas (Sociedade Pós-industrial) se
disponibilizou maior tempo livre ao lazer.
Desenvolvimento
A periodização em sociedade pré-industrial, industrial e
pós-industrial, defendida por Heloisa Turini (1993) quando caracteriza as
atividades lúdicas, é considerada uma referência na compreensão e distinção
da sociedade do ponto de vista cultural, político, econômico e
antropológico.
Sendo assim, na sociedade pré-industrial, trabalho e lazer
não eram excludentes e ambos estavam impregnados de ludicidade, as
atividades de produção e trabalho misturavam-se com os jogos, rituais e
competições (Bruhns, 1993, p.68).
Nesta sociedade compreendem-se as antigas civilizações
Greco-Romanas, Tribais e Feudais. O trabalho, a produção e o consumo eram
realizados em beneficio ao coletivo e não individual. Eles produziam o
necessário para a sobrevivência comunitária e não buscavam mais-valia,
acúmulo e o capital.
A relação entre lazer e trabalho era pouco diferenciada. O
trabalho consistia nas atividades de plantio e colheita de alimentos para a
sobrevivência, assim se colhia o necessário para cada um e quando as leis
naturais não permitiam essa atividade, eles se realizavam com outras
práticas cotidianas prazerosas e desprovidas de obrigações sociais e
familiares.
É a sociedade que regula a produção geral e me possibilita
fazer hoje uma coisa, amanha outra, caçar de manhã, pescar à tarde,
pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu
bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou
crítico ( Marx,1976, p. 41).
Neste marco histórico a natureza regulamentava o modo de
produção e trabalho, todos estavam sensíveis às condições naturais, sendo
assim a lei natural disponibilizava à população a segmentação do seu dia e a
divisão entre tempo de trabalho, tempo de não trabalho e tempo livre. Porém
essa ordenação de tempos se confundia e não impedia que as pessoas se
recreassem no momento da colheita.
A religiosidade e os jogos (meados do séc XVI) eram
atividades de lazer com significativa influência no cotidiano das pessoas,
sendo assim, nota-se a disputa de moral entre essas duas atividades. A
igreja medieval, muitas vezes condenava as imoralidades dos jogos de azar, a
indecência dos jogos de salão e a brutalidade dos jogos competitivos.
A ludicidade cotidiana era inevitável, ate mesmo nas
civilizações onde havia estratificação entre nobres e plebeus, o processo de
emulação, riqueza e poder dos nobres era registrado na isenção de qualquer
trabalho útil e produtivo, assim a classe dos criados domésticos e até mesmo
das esposas dos nobres não detinha o ócio para seu próprio conforto, mas sim
um ócio conseqüente ao servir a nobreza (classe ociosa), denominado de ócio
vicário.
Assim, o criado bem treinado não somente é útil a seu senhor,
por satisfazer o seu gosto instintivo... como também por demonstrar a sua
capacidade de usar serviço humano muito mais custoso do que o representado
pelo ócio conspícuo e real de um indivíduo sem treino (Veblen, 1889, p.44).
Na Sociedade Industrial, inicia-se a diferenciação entre o
tempo de trabalho, tempo de não trabalho e tempo livre devido às mudanças no
seu modo de produção (Bruhns, 1993, p.76). O aspecto coletivo e necessário
para a sobrevivência que marca as civilizações pré-industriais, começa a ser
substituído pelo individualismo, trabalho e capital. Esse advento
capitalista condena as atividades mais espontâneas e descompromissadas com o
sistema, é neste momento que a sociedade inicia o processo de isenção de
tempo disponível ao lazer.
As corporações de oficio que disponibilizavam os produtos
comercializados com utensílios ainda rudimentares e de forma artesanal,
passaram por um processo de retenções. A burguesia deteve suas corporações e
utensílios, consolidando as fábricas e tornando os artesões seus operários.
As modificações nas atividades de lazer iniciam na sociedade
industrial a consolidação das características essenciais da atual sociedade
contemporânea. Neste sentido, as primeiras iniciativas exigiam que o
trabalhador industrial torna-se livre, subordinável e alienado por trabalho.
Assim o homem deixa de ser subordinável às leis naturais e inicia o processo
de destruição da natureza a fim de impor suas próprias leis e seus
interesses econômicos. As alterações de valores também ocorreram, tais como:
a imposição da pontualidade, honestidade e responsabilidade profissional.
Com supressão das leis naturais como reguladores do modo de
produção, temos o trabalho funcionalizado como ordenador do modo da produção
e da divisão dos tempos sociais. O trabalho retém as importâncias da
sociedade dessa época. O dia quase que totalmente era dividido em tempo de
trabalho e tempo de não trabalho, onde o tempo de não trabalho está
completamente relacionado à busca de condições básicas para o trabalhador
retornar ao trabalho, já que a carga horária do trabalhador industrial
chegava às vezes a 16 horas por dia. Sendo assim é durante o tempo de não
trabalho que os operários alimentavam-se e dormiam, tornando impossível
conceituar a existência de tempo livre na sociedade industrial.
Muitos estudiosos e pensadores se preocuparam com esta
problemática atual, desde os primórdios da Revolução Industrial, assim
podemos citar Paul Lafargue com o seu panfleto “O Direito á preguiça”, que
buscou criticar a sociedade do século XIX, por meio de linguagem direta aos
operários que se marginalizavam por trabalho temendo o desemprego diante do
excedente de mão-de-obra. Ele considera os trabalhadores tão culpados quanto
os burgueses pela consolidação dessa nova sociedade, salienta as reações
ingênuas dos operários diante as maquinas que não souberam utilizá-las como
instrumentos auxiliares à produção e compreende inclusive a ignorância dos
trabalhadores em se sentir vitoriosos diante as conquistas do século XX por
não terem enxergado que a burguesia necessitava do proletariado como mercado
consumidor e por isso disponibilizou á eles tempo para o descanso,
refazimento físico e para o consumo de seus produtos.
O consumo coletivo e apenas se necessário se fundamentou nas
leis do modo de produção e se tornou ostensivo, supérfluo e individualista,
denominado consumo conspícuo (Veblen, 1889).
As atividades lúdicas, diversões e entretenimentos
constituem-se em atos de rompimentos com a realidade dessa sociedade que se
torna cada vez mais áspera pela valorização do trabalho e menos ociosa e
prazerosa. O homem busca compensação cotidiana através do trabalho e consumo
desnecessário.
Esse desenvolvimento histórico culmina na atual sociedade,
denominada sociedade pós-industrial. Neste contexto histórico ocorre a
separação radical do tempo destinado ao trabalho e do tempo de não trabalho
e diferencia o lazer das obrigações profissionais (Santos Filho, 2005, p.
37). Formaram-se trabalhadores alienados por trabalho, dependentes das
inovações tecnológicas, supervalorizadores do capital e insensível quanto ao
valor humano e social do lazer.
As atividades nos quais as pessoas se ocupam fora das
obrigações profissionais são tão sérias que sentiríamos chocados com a idéia
de que se tratasse de “hobbies” (Adorno, 2002, p. 127). No
questionamento da existência do tempo livre no cotidiano das pessoas,
entramos em uma problemática de caráter cultural e diferenciador do passado,
demarcar algumas horas ao lazer e ao tempo livre, carrega um contexto
pejorativo, assim nos sentimos desconfortáveis em assumir qualquer momento
de descompromisso com o dever diário (trabalho).
Lazer é o conjunto de ocupações as quais o indivíduo pode
entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se,
recrear-se e entreter-se, ou ainda, para desenvolver sua informação ou
formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre
capacidade criadora, após livrar-se das obrigações profissionais, familiares
e sociais (Dumazedier, 1979)
Sob este conceito de lazer torna-se complicado enxergar
tamanha gratuidade nas atividades cotidianas da sociedade pós-industrial. O
lazer, como muitos dos segmentos da economia, tornou-se uma mercadoria de
grande importância financeira e caminha por uma estrada onde até mesmo
atividades que deveriam estar cobertas de satisfação, prazer e gratuidade
têm se transformado em um produto comercial.
Adotando a concepção de Pierre Bourdieu, segundo as diversas
acepções de cultura no seu sentido antropológico formaria as maneiras de
fazer, sentir e pensar, próprias de uma coletividade universal sendo através
desta a formação de uma identidade coletiva. O consumo dos bens culturais se
inscreve numa vontade de distinção social (Bonnewitz, 2003). Entende-se que
para a estabilidade do sistema capitalista é necessário que se mantenha essa
desigualdade e as diferenças culturais para que se produza de forma
diversificada e que todos os dominantes dessa economia tenham seu mercado
consumidor. Portanto, segundo Theodor Adorno (2002), o argumento mais
exigente na defesa da indústria cultural é aquele que glorifica seu espírito
e que se pode chamar tranqüilamente de ideológico, como fator de ordem.
A ostentação e processo de emulação social valorizam os
aspectos explorados pela mídia, internet e publicidade, que culminam na
ausência da livre decisão de escolhas. Os esforços do marketing em turismo
podem ser decisivos para que o consumidor se incline por uma ou outra opção,
já que o consumo turístico ocorre muitas vezes por sugestões ou emulação (Beni,
2005, p. 247).
Tem-se radio, televisão, cinema, jornal diário disponível á
população, mas em vez de se buscar o que há de melhor na literatura, arte e
música a atual sociedade permite que esses meios de comunicação explorem-nas
com aspectos medíocres, carentes de senso da realidade e cultura mediana,
segmentando seu mercado consumidor e dominando á população em seu tempo de
não trabalho em prol da ideologia capitalista.
Relativamente acredita-se que assistir TV e utilizar a
Internet é uma construtiva atividade de lazer, porem é mais umas maneiras da
indústria cultural impor a cultura de massa e formular o novo Homem:
trabalhador, consumidor e com ausência de tempo livre em prol ao lazer.
O instantâneo acesso à informação também contribuiu como um
desestimulante inconsciente da população ás atividades de lazer que não
consegue mais exercitar sua fantasia e curiosidade com o desconhecido, pois
ele não existe. No século XV sobre o auge do misticismo e desejo de
descoberta de um mundo ao longo do oceano, realizaram as chamadas Grandes
Navegações. Houve contrario à ciência e ao conhecimento empírico da época
consolidou sua necessidade de viajar e chegar ao destino desconhecido, em
contraposição na atual sociedade pós-moderna pode-se viajar a qualquer lugar
do planeta via satélite em programas da Internet (Google Earth).
A conseqüência de o trabalho estar regulamentando o modo de
produção e a divisão do tempo no cotidiano das pessoas, é a isenção de tempo
livre. E considerando as conseqüências que a ausência de tempo livre pode
acarretar para a sociedade temos como a mais importante a consolidação de
uma sociedade sem capacidade criadora e isenta de fundamentos para
formulações criticas sobre a realidade.
O essencial seria conseguir resgatar as sensibilidades diante
as simples atividades de lazer, assistir seu filho jogar bola, apreciar
belas paisagens, fazer piquenique... Práticas de lazer que por não requerer
expressivos gastos de dinheiro são inexploradas pelo sistema capitalista,
porém nem por isso menos compensatórias.
Definiu-se a nova sociedade com a ausência de tempo livre e a
supervalorização do trabalho que faz as pessoas acreditarem na supremacia do
dinheiro como maneira de conquistar a felicidade e a sanidade individual.
Considerações finais
Buscar, no passado, as raízes para a explicação dos fatos não
está errado, sua fragilidade pode aparecer quando não contextualizamos
historicamente os mesmos, isto é, quando desprezamos, na maioria das vezes,
a contradição (Santos Filho, 2005).
Respondendo à questão sobre tempo livre disponível ao lazer
na sociedade contemporânea, pode-se considerá-lo praticamente inexistente
diante a hipertrofia do aspecto econômico como motor social se sobrepondo á
qualquer desejo e gratuidade.
Consolida-se assim o Homem contemporâneo que não consegue
alcançar ao refazimento individual, familiar ou social, nem mesmo formular
opiniões críticas da sociedade moderna que culminem na luta diária em busca
de tempo livre e conseqüentemente busca de lazer.
por FERNANDA DIAS ÂNGELO