Considerações
iniciais
Este
artigo nasceu da elaboração e análise de um trabalho realizado com
alunos da 4ª série de um CIEP da cidade de São Gonçalo, RJ. O objetivo
deste e de outros trabalhos realizados por nós, grupo de universitários
da Faculdade de Formação de Professores – FFP – da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – UERJ, é aprimorar/facilitar o processo de
aprendizagem dos alunos, a fim de torná-lo mais prazeroso, tanto para o
professor quanto para o estudante.
Neste
texto, conheceremos a escola
na qual o projeto está inserido, o objetivo e a estrutura deste e daremos
foco à elaboração e correção de um jornal, produzido com a descrição/narração
dos alunos sobre o tema Você é
professor. Conte como foi seu dia.
A
análise da atividade considerará duas perspectivas principais: a pedagógica,
na qual apresentaremos a necessidade e a importância do ensino de língua
portuguesa baseado na tríade ação > à
reflexão > à
ação, explicitado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); e a
discursiva, na qual verificaremos como discursos produzidos através dos
textos explicitam vivências, necessidades e desejos destes estudantes.
Ambas as perspectivas são fundamentais para conhecermos melhor nossos
alunos e podermos refletir e transformar nossa sala de aula.
Apresentação
da escola
A
escola, localizada às margens de uma rodovia, tem a mesma arquitetura que
os outros CIEPs. Possui uma piscina que não é utilizada, uma quadra de
esportes coberta, um refeitório, um grande gramado por onde as crianças
costumam rolar na hora da saída e uma biblioteca em reforma.
Os
alunos da 4ª série estudam no terceiro andar da escola. As paredes do
corredor são azuis, ao contrário das paredes do segundo andar, onde
ficam as salas dos menores. No segundo andar, os corredores possuem
desenhos de animais e flores.
Em
cada andar, há um inspetor responsável por abrir e fechar o portão do
corredor. Houve casos em que o inspetor foi à sala verificar com a
professora se realmente ela teria deixado o aluno ir ao banheiro. O
inspetor também vai à sala quando percebe que há muito barulho e
pergunta à professora A se ela quer que ele leve o(s) aluno(s)
barulhento(s) até a sala do diretor.
Na
sala, os alunos sentam-se em carteiras, dispostas umas atrás das outras.
No fundo, há um mural com as atividades realizadas.
Quase
sempre, a professora A pede para os alunos varrerem o chão e, às vezes,
ela limpa junto com eles. Ela diz que como não há faxineiros na escola,
não custa nada ajudar. Alguns encaram a tarefa da limpeza como
brincadeira, outros reclamam, mas fazem.
A
turma é composta por aproximadamente vinte e cinco alunos, com idade
entre dez e dezesseis anos de idade. Apesar de todos estarem em um nível
abaixo do esperado para a quarta série, há uma considerável diferença
de conhecimento entre eles. Identificamos pelo menos dois alunos que não
sabem escrever e decodificar nada além do nome.
Entre
os outros, a capacidade de interpretação de textos, sejam eles pequenos
enunciados ou parágrafos, é muito limitada. Nos conhecimentos de matemática,
abstrair é tarefa árdua.
A
maioria dos meninos já tem mais de doze anos e está envolvida com questões
de adolescentes. Pensam em namorar, em músicas de hip-hop, em tênis e
camisas de marca, ainda que suas condições financeiras sejam muito precárias.
As
meninas transitam entre o mundo infantil e o adolescente. Gostam de
colecionar álbum de figurinhas, mas falam sobre namorados.
De
um modo geral, não há cuidado com o material didático. As páginas do
livro são feitas de recorte e quase diariamente eles usam o material didático
(livros e cadernos) como se fosse uma bola de basquete, rodando na ponta
dos dedos.
Os
estudantes têm por hábito brincar de brigar, o que por vezes torna a
brincadeira uma verdadeira confusão. Conhecemos um caso de uma professora
que tentou separar dois brigões e acabou machucando-se seriamente.
Além
disso, não há respeito com o material do próximo. Foram poucas as vezes
em que presenciamos algum aluno pedir material emprestado ao colega. Quase
sempre, uma pessoa pega algo emprestado com um amigo, que empresta a um
outro e no final da aula, ninguém sabe de quem é o lápis, a borracha
etc.
Apresentação
do projeto
O
projeto de iniciação à docência é realizado sob a orientação da
professora Helena Amaral da Fontoura com universitários dos cursos de
Letras, História e Geografia, da Faculdade de Formação de Professores
– FFP -, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Nosso
enfoque é realizar atividades na escola com dois objetivos principais:
preparar os licenciandos para a realidade escolar e aperfeiçoar a
aprendizagem através do apoio às professoras e da elaboração e execução
de atividades pedagógicas.
Os
planos de aula são elaborados a partir das necessidades dos alunos e
professores por nós observadas. São, em geral, atividades que pretendem
não só apresentar/relembrar conhecimentos específicos, mas também
tornar os estudantes conscientes dos conhecimentos de mundo que eles
possuem e valorizar tais conhecimentos, fazendo sempre a relação entre
estes dois tipos de saber.
A
produção do jornal, à qual me ative neste trabalho, teve como elemento
norteador estes dois vieses. No primeiro momento, pedimos para que os
alunos escrevessem uma matéria de jornal cujo tema era: Você
é professor. Conte como foi seu dia. Para tanto, os alunos precisaram
utilizar elementos que observavam no próprio cotidiano. No segundo
momento, a correção do jornal possibilitou a indicação de erros e
acertos de grafia e de coerência; a apresentação de algumas regras
gramaticais, como o uso de plural; e aprimoramento da memória fotográfica
dos alunos, visto que foi produzido um quadro comparativo sobre o qual
falaremos melhor posteriormente.
O
dia como professor
O
título do jornal, O dia como
professor, faz alusão a uma popular publicação fluminense. Todo
processo de produção do periódico pode ser analisado a partir de duas
perspectivas: uma pedagógica e outra discursiva.
A
perspectiva pedagógica explicita a necessidade e a importância do ensino
produtivo nas aulas de língua portuguesa, apontadas pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN), enquanto a discursiva revela como os
discursos produzidos pelos alunos refletem o lugar que ocupam na
sociedade.
Análise
I – Perspectiva pedagógica
O
plano de aula da atividade foi elaborado com base na tríade açãoàreflexãoàação
indicada pelos PCN. Nesta concepção, os alunos iniciam a atividade com
situações menos artificiais da língua, fazendo uso real dela, por meio
de textos. Em seguida, o professor de português propicia momentos de
reflexão, apresentando conceitos, tirando dúvidas, demonstrando as razões
para que os alunos, agora conscientes do que praticaram no primeiro
momento, voltem ao texto. Este conjunto de ações forma a metodologia do
ensino produtivo de português.
No
nosso caso, tentamos tornar a descrição/ narração do dia como
professor menos artificial produzindo um jornal e colocando os alunos no
papel de colunistas. Quando os alunos souberam que haveria um jornal,
demonstraram bastante interesse pelo trabalho.
Os
textos foram recolhidos, digitados, corrigidos (somente foram corrigidos
erros de grafia e de coerência). A partir disso, elaboramos o jornal O
dia como professor, no qual cada matéria vinha acompanhada da foto e
nome do aluno-colunista.
Depois
de diagramado e impresso, levamos os exemplares do jornal e os textos
originais para a escola a fim de efetuarmos a reflexão sobre o uso da língua.
Iniciamos
a aula da correção da atividade entregando os jornais já alterados e os
textos originais produzidos pelos alunos. Explicamos que deveriam observar
o jornal e os originais na tentativa de encontrar diferenças entre eles.
Houve
reclamação. Uma das alunas perguntou por que deveriam fazer isto.
Respondemos evidenciando a importância de saber adequar a linguagem às
diversas situações, falamos sobre a necessidade de escrever textos
coesos, coerentes e sem erros de grafia no nosso cotidiano, como, por
exemplo, nas redações solicitadas em entrevistas de empregos, nos
bilhetes deixados a um namorado, a um colega de trabalho ou a um chefe.
Afirmamos que, além da aparência, as pessoas reparam no modo como
falamos, como evidencia Platão Savioli: “Falar é criar uma imagem
social de si mesmo” (PEREIRA, 2006, p. 23).
Depois
de explicarmos a necessidade real de aprendizagem para a vida profissional
e social, os estudantes ficaram muito atentos e participativos, o que
demonstra a importância de deixar claro o objetivo da atividade.
Pedimos
para que fizessem um quadro comparativo que deveria seguir o modelo:
PALAVRA
NO ORIGINAL
(ANTES)
|
PALAVRA
NO JORNAL
(DEPOIS)
|
Os alunos sábiu |
Os alunos sábios |
xamá |
chamar |
Acompanhamos,
individualmente, a elaboração dos quadros e explicamos a cada aluno o
motivo de seus erros, quando estes não eram convenções ortográficas
arbitrárias.
Tínhamos
uma preocupação inicial dos erros serem encarados como problemas e, por
isso mesmo, criar barreiras para a confecção do quadro comparativo.
Entretanto, ao contrário do que pensamos, os alunos ficaram curiosos,
desejosos por saber o motivo de seus erros. Acreditamos que tal atitude
tenha sido reflexo da forma como abordamos os erros, não discriminando,
tampouco ridicularizando os alunos que os cometeram. Da mesma forma,
evitamos usar a palavra erro durante a correção, preferindo falar em diferenças.
Terminada
a elaboração individual dos quadros, coletamos os erros mais freqüentes
e os expusemos em cartolinas coloridas. Dois dos problemas mais comuns
foram os relacionados à concordância verbal e nominal – Maressa e Flávia é a melhor aluna (no lugar de são as melhores) e os aluno
(no lugar de os alunos) – e à marcação da desinência verbal – Renan
fico (no lugar de ficou); tive que xama (no lugar de chamar)
–, além, é claro, de problemas de grafia devido à interferência
da oralidade sem explicação gramatical, como o substantivo dever,
escrito pela maioria deve e o
advérbio muito, escrito por alguns muinto.
Para
elaborarmos o quadro junto com os alunos, escrevemos primeiro a coluna
PALAVRA NO ORIGINAL (ANTES) e pedíamos para que eles nos falassem como
deveria ficar a palavra na coluna PALAVRA NO JORNAL (DEPOIS). Todos os
alunos participaram. Terminamos a atividade colando as cartolinas no mural
da sala.
A
relevância do ensino produtivo de português consiste no fato de
aproximar a língua - um instrumento de interação - de seu papel,
fazendo com que os alunos sintam-se autores de seus próprios textos. Para
elaboração da coluna do jornal, o aluno precisou utilizar as competências
lingüísticas necessárias a um bom falante de língua portuguesa: a
gramatical, a discursiva, a estratégica e a sociolingüística.
Além
disso, a atividade extrapola o espaço escolar, visto que cada aluno levou
um exemplar para casa para mostrar aos seus pais e amigos. Isto é um estímulo
enorme à produção de textos e ao estudo da gramática.
Cabe
salientar que o papel do professor de português não é somente fazer com
que os alunos escrevam e os acompanhe, mas também propiciar momentos de
reflexão para que seus alunos usem a língua de forma mais consciente.
Análise
II – Perspectiva discursiva
A
escolha do tema foi definida com o objetivo de colocar os alunos no papel
de professores, na tentativa de conscientizá-los de que a profissão pode
ser muito cansativa caso não haja a cooperação deles.
Foi
interessante notar que a mudança de papel de estudante para professor
revelou uma mudança de postura. Como professores, os alunos relataram
comportamentos diferentes dos que costumam ter como estudantes. Um deles,
por exemplo, que falta aulas constantemente e não faz os exercícios
propostos deu ênfase na presença e nas atividades: “Eu iria dar aula
todos os dias e não iria deixar sair sem fazer atividade. Iria ‘pegar
pesado’ nas atividades. Não iria perder nenhuma aula, iria todos os
dias da semana.”. (Aluno A, do CIEP).
Percebe-se
também nos textos a repetição do discurso de professores: “Fiz o meu
trabalho! Pois eles são burros” (Aluno B, do CIEP). É comum ouvirmos a
professora nos dizer, na frente dos alunos, que eles não se interessam e
que têm muitas dificuldades de aprender. Insiste em dizer para os
estudantes que deveriam ficar em casa, já que não querem estudar. Certa
vez, o aluno A perguntou à professora se ela daria presença caso ele
fizesse o que ela falava. Como a professora calou-se, o aluno começou a
chamá-la de mentirosa.
Os
fragmentos produzidos pelos alunos levantam também problemas educacionais
com os quais convivem, como a indisciplina. Na maioria dos textos, os
professores hipotéticos tinham alunos que faziam muita bagunça e os
desrespeitavam:
Hoje
meu dia foi um horror. Todos ficavam brincando e não faziam o dever, mas
tinha uns que obedeciam e faziam o dever, eram poucos, mas tinha. Quando
eu passava Matemática, eu tentava fazer
eles entenderem conta de dividir, eu não conseguia. Eu passava
Geografia, eles não queriam fazer e ficavam brigando, correndo na sala,
ficavam xingando uns aos outros. Quando bateu o sinal do recreio para
subir, ninguém formou, ficaram correndo, até que Jordão desceu e falou
para formarem. Aí, todos formaram e subiram. Eu passei Português, uns
copiaram. Quando eu falei que já estava na hora da saída, todos copiaram
o dever. Quando acabaram de copiar, guardaram o material e formaram,
desceram para ir embora. Esse foi meu dia como professor.
(Aluno C, do CIEP).
Da
mesma forma, os alunos revelam vontade de ter uma aula diferenciada:
Se
eu fosse professora: eu daria uma aula diferente. Eu daria Ciências, mas
uma ciência que falasse sobre as plantas, ou melhor, sobre o meio
ambiente, como cuidar delas e como multiplicar. E também ensinaria a
dizer não a violência e ensinaria que se alguém tacar pedras pelas
costas não liguem, porque isso é sinal de que vocês estão sempre na
frente. (Aluna D, do CIEP).
Assim,
é notável que o discurso produzido pelos alunos, através de uma simples
atividade, traz à tona seus comportamentos, desejos e vivência
cotidiana.
Conseqüências
da atividade
A
atividade do jornal foi uma excelente experiência para nós, futuros
professores. Em primeiro lugar porque conseguimos pôr em prática
conceitos teóricos, como o ensino produtivo de português. Em segundo
porque nos encheu de esperança por dias melhores em nossa profissão.
O
comportamento dos alunos nos levou à seguinte conclusão: o desinteresse
deles é aparente. Com atividades que se aproximam da realidade dos
alunos, que fazem sentido além dos muros da escola, os estudantes
mostram-se participativos. No caso do ensino de português, por exemplo,
qual a necessidade que um aluno que ainda não é capaz de interpretar
textos simples tem de aprender o coletivo de cão? Como mostrar interesse
por isso?
Algumas
conseqüências da aula foram imediatas. Durante a atividade, não houve
brigas, como de costume. Os alunos mantiveram-se sentados. Apenas no final
da aula, houve uma dispersão natural de alguns estudantes. Entretanto,
este é um saldo muito positivo, já que, na maioria das vezes, os alunos
nem copiam os exercícios no caderno.
Em
médio prazo, notamos algumas mudanças, principalmente no que cerne à
postura da professora. Nas aulas posteriores ao jornal, ela levou encartes
de supermercados para resolver as questões de matemática, fato nunca
antes acontecido durante os quase cinco meses de observação e participação
de aulas.
Os
alunos apresentaram maior interesse também nas atividades posteriores,
questionando-nos quando haveria outra.
A
análise das atividades realizadas pelo nosso projeto de Iniciação à
Docência, lembrou-me uma frase escrita por Wanderley Geraldi, em seu
livro Portos de Passagem: “Estas crianças passarão alguns anos na
escola sem saber que elas poderão acertar o sujeito da oração mas nunca
serão o sujeito das suas próprias histórias. A menos que...” (GERALDI,
1984). A menos que, como educadores, comecemos a entender a realidade, os
desejos e as necessidades dos alunos com os quais convivemos e
efetivamente pratiquemos um ensino que se aproxime das situações que serão
por eles enfrentadas na vida.
__________
Referências bibliográficas
BECHARA,
Evanildo. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? São Paulo: Ática,
2005.
FIORIN,
José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2005.
GERALDI,
João W. (org.). O texto na sala de aula.
São Paulo: Ática, 1997.
PARÂMETROS
curriculares nacionais – terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:
língua portuguesa.
Brasília: Secretaria de Educação Fundamental MEC, 1998.
PERINI,
Mario A. Para uma nova gramática do
português. São Paulo: Ática, 1985.
TRAVAGLIA,
Luiz Carlos. Gramática e interação: uma
proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São
Paulo: Cortez, 1996.
Artigo
de revista
PEREIRA,
Luiz Costa Jr. Caso de polícia. Quando um problema de português extrapola a zona de
lesa-língua e chega à porta da cadeia. Revista Língua Portuguesa, São
Paulo, ano I, n. 10, p. 20-24.