Apresentação
Susan
Hekman em "Hermenêutica e Sociologia do Conhecimento" (1990)
nota a relevância contemporânea da posição de Mannheim a justificar a
análise de sua obra em seus paradoxos e desafios hoje. Observa que a
sociologia do conhecimento de Mannheim tem uma afinidade notável com os
princípios do antifundacionalismo, no que se aproxima de Gadamer
(1900-2002) .
Por isso, assim como Gadamer, Mannheim concentra-se em atacar a concepção
de verdade iluminista, aderindo a uma perspectiva que, apesar de não ser
por ele, em momento algum, chamada de "hermenêutica", é uma
teoria da interpretação que tem mais em comum do que se diz à primeira
vista com a hermenêutica contemporânea.
Certamente,
o contributo de Mannheim não é equivalente ao de Gadamer, o qual é
muito mais sofisticado filosoficamente. Não apenas porque Mannheim evita
as questões filosóficas e epistemológicas, mas porque está
comprometido com elementos de um historicismo, bem como não opta por uma
ruptura radical com um certo positivismo, sendo ambas as escolas antitéticas ao pensamento
antifundacional. Ainda assim, Mannheim adere ao programa básico da hermenêutica
de Gadamer quando contraria o conceito de verdade utilizado nas ciências
naturais e, também, ao reconhecer a inevitabilidade dos
"preconceitos" tanto por parte do intérprete como por parte do
interpretado de modo a insistir na importância de se examinar - eis o
desiderato da sociologia do conhecimento - as formas nas/pelas quais o
conhecimento é produzido.
Para
Mannheim, todo o significado está historicamente relacionado às condições
de sua produção. Descrê na "Razão Intemporal" iluminista
assim como apóia a legitimidade do que chama conhecimento subjetivo que,
para o Iluminismo, não é conhecimento.
Mas, não está tão à vontade com o conceito de relativismo e,
também, busca encontrar uma alternativa à "teoria relativa
historicista da verdade" (HEKMAN, 1990, p. 94). Suas ambigüidades
neste aspecto revelam a honestidade de sua tensa busca de uma equação a
definir caminhos de superação de uma velha
epistemologia em que a objetividade há de ser buscada a-historicamente
ou, numa proposta radicalmente contrária, inexiste a possibilidade do
conhecimento mesmo. Mannheim, crivado de críticas, chega a se justificar
por suas ditas inconsistências, atribuindo-as efetivamente a sua posição
metodológica a buscar uma "síntese".
Não
por outro motivo, Miglievich Ribeiro (1998) chamou atenção para o fato
de que em sua famosa "Ideologia e Utopia"
(1986), Karl Mannheim dá especial relevo ao não-formalismo e à
incompletude de uma abordagem que não se pretende exaustiva e a chama de ensaio.
Mannheim compreendia tal forma estilística de exposição do pensamento
como notoriamente reconhecida nos séculos XVI ao XVIII,
"caracterizando o trabalho dos intelectuais em sua perplexidade
diante de um mundo em profundas transformações que os levava a propor
questões inéditas cujas respostas eram, se não impossíveis,
especialmente difíceis" (MIGLIEVICH RIBEIRO, 1998, p.2).
Observando
que o ensaio surgia como um modo
de apresentar temas imediatos e urgentes, ainda não percebidos ou
meditados totalmente numa época, para os quais ainda não se têm construídos
sistemas mais completos e consistentes de compreensão, Miglievich Ribeiro
ressalta a opção de Mannheim em se reconhecer no sentimento mesmo de se
estar no início de um movimento, e não no fim, relatando problemas que,
de imediato, lhe apareciam à consciência, observando-os por tanto tempo
e sob tantos ângulos que, finalmente, por meio de um caso individual
acidental, iluminava-se alguma questão maior do pensamento e da existência
que, até então, não ocupava o centro dos debates de uma época (MIGLIEVICH
RIBEIRO, 1998.). “Ideologia e Utopia”
é, na parte em que proponho concentrar-me, um ensaio
em oposição ao que se entende por tratamento sistemático de um
objeto do conhecimento, confirmando a opção metodológica mannheimiana
de se deixar perceber em suas dúvidas, apostas, ambigüidades:
(...)
o pensador sistemático oculta cuidadosamente suas contradições, tanto
para si mesmo como para seus leitores. Enquanto para o sistematizador as
contradições constituem uma fonte de desconcerto, o pensador
experimental nelas percebe pontos de partida, em que o caráter
fundamentalmente polêmico de nossa situação atual torna-se, pela
primeira vez, realmente aberto ao diagnóstico e à investigação (MANNHEIM,
1986, p.78).
Gláucia
Villas Boas (2002), ao estudar a recepção das idéias de Mannheim entre
sociólogos alemães, norte-americanos e brasileiros, corrobora o fato dos
escritos do teórico terem sido marcados por oscilações que permitiram
até que seus intérpretes identificassem "dois" Mannheim.
A
autora recusa a idéia de "dois" Mannheim - o da tradição alemã
e o da tradição anglo-saxã - optando por estudar as recepções de
Mannheim em distintos contextos nacionais, onde inclui o Brasil, onde sua
leitura é ainda bastante diversa das anteriores. Partilha, sim, a percepção
de que as propostas mannheimianas sobre a relação entre
"pensamento" e "ser", da qual pretendo tratar apenas
sumariamente, bem como seu indefinido conceito de "esferas do
pensamento" e, não por acaso, seu exame dos intelectuais, causaram
mal-estar e provocaram discórdia, a princípio, entre os próprios críticos
alemães, incomodados por não reconhecer no autor de "Ideologia e
Utopia" filiação a
alguma vertente de pensamento (VILLAS BOAS, 2002, p.126-8).
Villas
Boas atenta para o "mundo em crise" que Mannheim propunha pensar
bem como suas conseqüências morais. A autora indica que, em um só
tempo, Mannheim argumentava contra o historicismo conservador, o
pensamento burocrático conservador, o liberalismo burguês, o socialismo
e o comunismo, o fascismo. Suas teses implicavam na legitimação de um
grupo específico a fazer a "síntese" das mais diversas tendências
que agitavam o mundo político, a saber, os intelectuais.
Suas
proposições sobre a origem e validade das idéias agitaram os meios
intelectuais europeus e americanos, antes e depois da II Guerra Mundial. A
morte em Londres, em 1947, aos 54 anos de idade, não interrompeu o
impacto de suas idéias. Mannheim continuou sendo lido por gerações de
intelectuais e sociólogos, estimulando um debate intenso sobre a verdade,
a neutralidade, a objetividade, o papel dos intelectuais e o controle das
diferentes esferas da vida social (VILLAS BOAS, 2002, p.125).
As
armadilhas intelectuais em que Mannheim teria supostamente caído, segundo
um de seus alunos, Norbert Elias (2001, p.114-121), nesta análise, são o
método mesmo de Karl Mannheim de examinar um mundo em crise, concebendo o
conhecimento como intimamente vinculado à crise que pretende compreender.
Uma breve abordagem de "Ideologia e Utopia"
Em
“Ideologia e Utopia” (1986),
Mannheim atentou para a relação-chave de sua proposta, a saber, aquela
entre conhecimento e existência. O conhecimento tem sua base precisamente
em condicionantes sociais e históricos; é, portanto, um elemento que não
se pode tomar de modo desvinculado da esfera social na qual emerge e de
seus produtores.
Aí
está a idéia de "perspectiva", que se baseia na situação
histórico-social em que se encontra este ou aquele produtor de
determinado conhecimento, porém sempre coletivamente substanciado. É
necessário ressaltar que, em Mannheim, a análise de uma idéia
individual sociologicamente relevante tem de passar pela observação de
sua origem social. Este é um ponto fundamental aqui.
Os
aspectos relacional e perspectivista são dois pilares da sociologia do
conhecimento mannheimiana; são, como o próprio procurou demonstrar,
precondições para a feitura da sociologia do conhecimento. O retorno
analítico à base das idéias, originariamente do lugar e/ou posição
social que dão sentido às mesmas, é tarefa daquele que procura a análise
do conhecimento válido sociologicamente.
A
base de todo conhecimento produzido tem como ponto de partida, e sendo
assim, fator explicativo, o grupo social específico daquele que produz o
conhecimento. Desta forma, Mannheim procura romper com o método de análise
da história das idéias descolado do processo social (Hegel), o qual
fornece sentido e substância. Em última instância, os processos sociais
exercem influência sobre o processo de produção de conhecimento.
Em
nossos dias, já parece estar perfeitamente claro o fato que o antigo método
da história intelectual, orientado para a concepção a priori de que as
mudanças de devessem ser entendidas ao nível das idéias (história
intelectual imanente), bloqueava o reconhecimento da penetração do
processo social na esfera intelectual (MANNHEIM, 1986, p. 289).
Chegamos,
assim, ao ponto do pensamento mannheimiano que nos interessa aqui, na
medida em que o processo histórico social exerce influência fundamental
sobre a produção de conhecimento. Como as transformações histórico-sociais
podem ter indicado novos rumos e caminhos do conhecimento?
A
relação entre pensamento e realidade histórico-social ganha, em
Mannheim, duas configurações psicossociais, que se contornam de acordo
com o grau de tensão da referida relação: estamos falando de ideologia
e utopia. Ambas as noções vão de encontro à existência historicamente
determinada, ou no mínimo, tem-na como parâmetro configurador, na medida
em que são transcendentes à própria existência social. Ideologias e
utopias são, antes de tudo, para Mannheim, estados de espírito, sejam
individualmente ou coletivamente determinados (principalmente no caso de
ideologias), porém a transcendência destes estados de espírito têm
fins de realização distintos.
As
ideologias são idéias situacionalmente transcendentes que jamais
conseguem de facto a realização de seus conteúdos pretendidos. Embora
se tornem com freqüência motivos bem intencionados para a conduta
subjetiva do indivíduo, seus significados, quando incorporados
efetivamente à prática, são, na maior parte dos casos, deformados (MANNHEIM,
1986, p.218).
O
escopo ideológico enquanto mentalidade constituída pode ser encontrado,
segundo Mannheim, de forma parcial (ou individual) e coletiva (ou de
grupo). A primeira diz respeito a ideologias individuais, que por assim
serem, acabam tendo interferência em intensidade na realidade histórico-social,
é a chamada concepção parcial de ideologia, realizada no nível psicológico.
A concepção parcial de ideologia que possui efeito coletivo (e
justamente por isso tem importância sociológica) refere-se, em Mannheim,
a grupos sociais historicamente conformados, como a “classe”, por
exemplo.
A
última e a mais importante etapa de criação da concepção total de
ideologia surgiu igualmente do processo histórico-social. Quando a
“classe” tomou o lugar do “folk” ou da nação, como portadora da
consciência historicamente em evolução, aquela mesma tradição teórica,
o que já nos referimos, absorveu a noção de que
a estrutura da sociedade e suas formas intelectuais correspondentes
variam com as relações entre as classes sociais (MANNHEIM, 1986, p.94).
Quer
o conceito de ideologia particular, quer o total, como relevantes na
construção do conhecimento, já traduziam um ataque frontal ao
iluminismo. Francis Bacon (1561-1626), num dos mais claros enunciados da
atitude iluminista em relação à razão humana, afirma: "A formação
de noções e axiomas com base na verdade indução é o único remédio
adequado à prevenção e expulsão desses ídolos" (Apud.
HEKMAN, 1999, p.19). Kant, em
nítida oposição ao método indutivo, defendia, não menos, o ambicioso
programa iluminista de emergência dos seres humanos da tutela
auto-imposta da irrazão, isto é, da superstição, do preconceito, da
ilusão.
O
Iluminismo vinha propor as verdades eternas da natureza humana contra os
preconceitos históricos e culturais. Mas, nisto, defendiam o conhecimento
"puro” , como o objetivo da investigação quer nas ciências
sociais, quer nas ciências naturais. Contra isto, a sociologia do
conhecimento mannheimiana insurgia-se e propunha como tarefa inadiável
explorar o modo como os fatores históricos e culturais moldavam o
pensamento dos seres humanos.
O
colapso da "visão unitária do mundo", com a destruição do
monopólio da interpretação eclesiástica do mundo, não caberia ser
substituído por um novo "ponto de Arquimedes de objetividade"
que negasse as circunstâncias históricas particulares. Tratava-se de
defender uma "forma desmascarada do pensamento" pautada na
reflexividade do conhecimento, ou seja, na análise das condições de sua
própria emergência propiciada pela sociologia do conhecimento.
Mais
especificamente, ele (Mannheim) defende que quatro fatores foram
instrumentais (para o "desmascaramento" do pensamento): o
primeiro, a auto-relativização do pensamento e do conhecimento; o
segundo, o surgimento da forma 'desmascarada' da mente; o terceiro, o
aparecimento de um sistema de referência, a esfera social, no qual o
pensamento se pode conceber como relativo; e o quarto, a aspiração a
tornar esta relativização social total (HEKMAN, 1990, p. 99. Os parênteses
são nossos).
Nada
mais coerente do que tais ambições nascerem na época moderna, ou
modernidade, um período de mudanças na forma e conteúdo do pensamento e
conhecimento humanos justamente por ter como moldura tempos de efervescência
histórica. A modernidade inaugura, sem precedentes, um tempo de consciência
social, consciência esta que será base do pensamento e ação,
coletivamente determinados e historicamente direcionados. "Nossa época
caracteriza-se não só por uma crescente autoconsciência como também
por nossa capacidade de determinar a natureza concreta dessa consciência:
vivemos um tempo de existência social consciente" (MANNHEIM, 1974,
p.73).
A
percepção do novo e fundamental papel a ser exercido pela autoconsciência
faz com que Mannheim veja que, no conhecimento social e político, a
perspectiva do observador é, necessariamente, dotada de um elemento
valorativo inextirpável, o qual não pode remover-se. A ciência da política
incorpora assim a inevitabilidade da ideologia. A posição do
investigador é tão determinada historicamente quanto à do investigado.
Villas
Boas (2002, p.126) ratifica que a relação entre pensamento e ser
traduziu-se de várias maneiras, dentre elas, como a relação entre modos
de pensar e grupos de interesse, posição social, classes sociais, existência
social, partidos, seitas e gerações de maneira que não é equivocado
acusar Mannheim de uma indefinição do que chamou Seinsgebundenheit
des Denkens ou Seinsverbundenheit
des Denkens ou ainda Standortgebundenheit
des Denkens, todas traduzidas como "ligação do pensamento com o
ser".
Aceitando,
em parte, a crítica dos seguidores de Robert Merton (1919-2003) a
Mannheim, a autora admite o caráter polissêmico da relação entre
conhecimento e existência que teria permitido interpretar a idéia de
"existência" como posição social, interesses, perspectiva a
partir de dada posição social, pré-condições sócio-estruturais, por
exemplo. Também constata a dúvida persistente em torno do caráter de
determinação ou não do pensamento pelo ser. Entretanto, enfatiza que
tais debates eram mais comuns do que seus receptadores parecem atentar.
Marx (1818-1883) já revolucionara o mundo das idéias afirmando a
determinação da consciência pelo ser; Lukács (1885-1970), do círculo
de Mannheim em Budapeste, tratara do tema sob os ecos de Dilthey
(1833-1911).
Mannheim,
não ingenuamente, advertira para o equívoco de qualquer leitura
mecanicista de sua sociologia do conhecimento, descrevia os processos
sociais em suas contradições e indefinições, alertara para a
necessidade de pesquisas empíricas a demonstrar as correlações entre
pensamento e ser. Mas, aos críticos, pareceu mais confortável apontar
apenas suas incoerências.
Não
à toa, podemos afirmar: a concepção total da ideologia, segundo
Mannheim, refletia um espírito de época (Zeitgeist),
que tornava possível a passagem da concepção parcial à total,
sobretudo por meio da evolução da consciência, de uma consciência
individual para uma (auto) consciência de grupo. Mas, num tempo de crise
moral e política, Mannheim se negava a creditar o conhecimento verdadeiro
a uma única corrente de pensamento, tanto que criticou e foi criticado
por todas de seu tempo.
Mas
seu ponto fundamental aqui é o da análise de uma concepção total de
ideologia (teoria da ideologia) pela sociologia do conhecimento a ponto de
por causa disso, se constituir a síntese.
Com
a emergência da formulação genérica da concepção total de ideologia,
a teoria simples da ideologia evolui para a Sociologia do Conhecimento. O
que anteriormente constituía o arsenal intelectual de uma das partes se
transformou em um método de pesquisa da história intelectual e social em
geral. A princípio, um dado grupo social descobre a “determinação
situacional ” (Seinsgebundenheit) das
idéias de seus opositores. A seguir, elabora-se o reconhecimento deste
fato em um princípio inclusivo, de acordo com o qual o pensamento de cada
grupo é visto como surgindo de suas condições de vida. Assim, torna-se
a tarefa da história sociológica do pensamento analisar, sem considerar
tendências partidárias, todos os fatores da situação da situação
social efetivamente existente que passam influenciar o pensamento (MANNHEIM,
1986, p. 104).
Eis
sua proposta de síntese: reconhecer a relatividade dos pontos de vista e
transcendê-la. Nada garantiria para ele, contudo, a validade da síntese,
apenas sua exeqüibilidade. Afirmava que o máximo que poderíamos
antecipar era que a sociologia do conhecimento viesse a ultrapassar a
'conversa mútua' dos vários grupos revelando as fontes da discordância
parcial entre eles, mas atingisse o exame das bases sociais do
conhecimento a fim de justapor os vários pontos de vista diferentes que
prevalecem na atualidade. Influenciado por distintas correntes de
pensamento da tradição alemã, Hekman chama atenção para o fato de
que:
O
resultado (síntese) é um 'novo tipo de objetividade' atingível apenas
através 'da consciência crítica e do controle' das avaliações. Isto
equivale a um ponto de vista muito weberiano. Mannheim afirma que, ao
assimilar perspectivas particulares, emerge um conjunto compreensivo, o
qual se edifica a partir dos pontos de vista particulares e não a partir
da 'objetividade' de qualquer um deles (HEKMAN, 1990, p. 102. Os parênteses
são nossos).
Curiosamente,
o conceito de utopia é bem menos importante do que o de ideologia na obra
de Mannheim. Sobre a mentalidade utópica, o teórico afirma que:
As
utopias também transcendem a situação social, pois também orientam a
conduta para elementos que a situação, tanto quanto se apresente em dada
época, não contém. Mas não são ideologias, isto é, não são
ideologias na medida e até o ponto em que conseguem, através da
contra-atividade transformar a realidade histórica existente em outra
atividade, mas de acordo com suas próprias concepções (MANNHEIM, 1986,
p. 219).
Utopia
conforma-se como um parâmetro de análise e de intervenção da realidade
histórico-social concreta, de maneira paralela à própria realidade.
Realiza-se de forma integral no plano do pensamento, jamais na realidade
determinada. As utopias apresentam fins que não podem se realizar em
situações sociais existentes, logo, falham na transformação da
realidade de acordo com os seus objetivos.
Não
há "dois" Mannheim como em algum momento se entendeu. O
propositor da sociologia do conhecimento como instrumento de realização
da "síntese de perspectivas" mediante o exame das ideologias
particulares e de suas bases de constituição é o mesmo que propõe o
planejamento democrático. Aqui se pode entender melhor a recepção pela
perspectiva pragmática da filosofia norte-americana bem como as severas
críticas de Horkheimer e Adorno, também antes destas, de Lukács, à
"inadequada" interpretação mannheimiana do instrumental
marxista onde a luta de classes, a esfera econômica da vida na determinação
das ideologias desaparecem em seu intento de conciliar tendências
diversas (VILLAS BOAS, 2002, p.137).
O
que é importante nestas definições é que Mannheim especifica que ambos
os conceitos - ideologia e utopia - contêm "o teste imperativo com a
realidade" (...). Contrariando alguns de seus críticos, o teste com
"uma realidade concreta histórica e socialmente determinada, que está
num constante processo de mudança" (HEKMAN, 1999).
Desejar
transcender as ideologias sem recair na utopia, realizar, pois a síntese
exigia que Mannheim desse um passo à frente, ou seja, definisse e atribuísse
autoridade ao sujeito capacitado a fazer a síntese das mais diversas tendências
que agitavam o mundo político. Conclama, para isso, os intelectuais;
dedica-se, pois, a defini-los sociologicamente.
A
Intelligentsia mannheimiana em
"Sociologia da Cultura": algumas notas
Em
“Sociologia da Cultura” (1974), Mannheim busca traçar uma tipologia
da Intelligentsia no devir histórico
e para tanto situa na época moderna o salto qualitativo da forma
organizacional da Intelligentsia como
grupo social específico. Apóia-se em dois pontos básicos na fundamentação
do argumento sobre o "novo sentido" da Intelligentsia
ou de seu "sentido moderno". O primeiro refere-se à consolidação
e êxito do mercado livre como instituição a direcionar a conduta
social, sendo a ação no mercado aquela estritamente consciente referida
por mudanças intensas, suplantando modos de agir, tradicionais e mitológicos.
O segundo ponto, ao qual o autor fornece maior atenção, é a relevância
da educação moderna como suporte formativo do indivíduo moderno e
pressuposto social para a noção de grupo e para o alcance de sua
autoconsciência. "O segundo fator que favorece a consciência de
grupo é a moderna prática de educar uma pessoa numa atmosfera
socialmente neutra cuja inexistência no tipo tradicional de educação
inibia o surgimento de uma orientação grupal nova e independente."
(MANNHEIM, 1974, p.76).
A educação moderna surge para Mannheim como
condicionante social para novas conformações sociais. A Intelligentsia
desfruta dessa base moderna de acesso ao conhecimento amplo porque
percebido sob todos os ângulos e matizes, isto é, perpassando
ideologias.
A
base mannheimiana de explicação da Intelligentsia
como grupo social específico remete-nos à concepção de Alfred Weber
(1868-1958) de "Intelligentsia socialmente desvinculada" ou
"Intelligentsia livremente flutuante" (Freischwebende
Intelligenz). Com esta noção, Alfred Weber "(...) partia do princípio
segundo o qual a cultura é certamente criada pelo homem, e, por
conseguinte, deve ser sempre interpretada em função da situação dos
homens na sociedade”.(Apud.
ELIAS, 2001, p.114). Neste caso, os intelectuais são tomados como um
estrato social aberto não constituindo desta forma uma classe social
determinada.
Há de se esclarecer que a idéia do intelectual
"desenraizado" não indica a ausência de interesses de classe.
A classe e o estatuto não se tornam completamente irrelevantes para este
grupo, mas, o fato de que os modernos intelectuais, ao invés dos seus
correspondentes eclesiásticos, não serem mais recrutados numa classe única
com interesses definidos já os coloca historicamente numa posição ímpar.
Trata-se, pois, do surgimento de uma classe relativamente desligada do
processo econômico. A Intelligentsia reúne em si diversas origens sócio-econômicas, o
que demonstraria sua heterogeneidade enquanto grupo social.
Sem
dúvida, ocorre que em grande parte de nossos intelectuais provém dos
estratos rentistas, cujos rendimentos derivam direta ou indiretamente de
aluguéis e juros sobre investimentos. Mas, nesse caso, certos grupos de
funcionários e das chamadas profissões liberais seriam igualmente
membros da Intelligentsia. Entretanto, um exame mais próximo da base
social destes estratos mostrará que são menos claramente identificados
no processo econômico (MANNHEIM, 1974, p. 76).
O
critério sociológico relevante para a análise da conformação de uma Intelligentsia é, para Mannheim, a presença da educação na formação
do indivíduo, sendo princípio norteador da autoconsciência de grupo. A
educação está ligada ao rompimento do monopólio do saber que na
modernidade emerge e, assim sendo, abre a "caixa preta" do
conhecimento àqueles que estariam situados socialmente distantes do seu
acesso.
Nísia
Trindade Lima (1999) chama atenção para o fato de que a socialização
nas instituições especializadas de conhecimento passa a desempenhar
papel central no processo de construção da identidade dos intelectuais
na sociedade moderna e no que o autor denominou como uma produção artística
singular e estilos de pensamento próprios. Adverte-nos ainda para o
significado, segundo Mannheim, da atividade intelectual num mundo em que
se rompera o monopólio do saber e se democratizava o acesso ao
conhecimento.
Dito
de outro modo, o que está posto de modo mais fluido na modernidade para
Mannheim é o antigo monopólio da interpretação do mundo outrora nas mãos
do clero, e, agora, passando para uma dimensão laica e pública onde os
interesses de classe e outros podem ser explicitados e confrontados. “A
evolução do saber e da educação ultrapassa um marco de incomparável
significação quando os leigos rompem e usurpam o monopólio sacerdotal
da interpretação pública.” (MANNHEIM, 1974, p.97).
Assim
sendo, a produção de conhecimento e sua base social ganha o sentido que
é típico da modernidade: a laicização do saber e a emergência da
relevância da coisa pública como critérios da configuração social
moderna. Em que medida, então, surge na modernidade um novo tipo de
intelectual, voltado para questões mais gerais? Como definir o
“intelectual mannheimiano”?
Mannheim
afirma que o sentido peculiar do intelectual contemporâneo ou moderno
relaciona-se às condições histórico-sociais, também, singulares na
história da humanidade, nas quais tal identidade nasce. Os critérios do
individualismo moderno e da autonomia são a base para se entender a
viabilidade de um projeto individual de adesão ao conhecimento científico
como princípio de conduta e diretriz de sociabilidade que tende a
superar, em certa medida e em alguns casos, as limitações dos grupos,
estratos ou classes de origem.
Também
na modernidade, onde nasce a Intelligentsia,
nasce a sociologia do conhecimento. O papel da sociologia como "saber
total e universal" está para Mannheim no centro da cena intelectual
moderna, e por assim ser, baliza as preocupações intelectuais de
realizar a síntese das múltiplas perspectivas mediante um exame rigoroso
das ideologias em embate e, como se disse, de constante auto-reflexão
acerca das próprias. “O intelectual moderno que sucedeu ao escolástico
não pretende reconciliar ou ignorar as visões na ordem de coisas ao seu
redor, mas procura identificar as tensões e participar das polaridades de
sua sociedade.” (MANNHEIM, 1974, p.92).
A
configuração da Intelligentsia
é, antes, para Mannheim, uma ação politicamente direcionada, não
isenta valorativamente; é, portanto, "lugar social" onde seus
participantes expõem seus engajamentos de classe ainda que em outro
patamar - o da vontade - sem lograr transformá-lo em estrato socialmente
superior.
Ainda que Mannheim afirme a posição única nas interações
sociais que fornece aos intelectuais a oportunidade de formular a síntese
dos diversos pontos de vista representados no mundo moderno, nem por isso
afirma que a síntese produzida será necessariamente válida. Supõe
intelectuais conscientes da sua situação única e da missão nela implícita:
o empenho na síntese, mas não ignora, na relação entre conhecimento e
existência, sua tensão mais aguda: ainda que no ideal do posicionamento
"neutro" frente a um mundo de interesses e ideologias
necessariamente parciais, não é o lugar do intelectual igualmente
parcial? Mais fidedignamente às palavras de Mannheim: “Como atingir e
levar a cabo decisões incondicionais em face de uma existência
condicionada?” (1974, p.70).
O
retorno às origens, isto é, aos engajamentos de classe não é a saída
para a crise do intelectual moderno segundo Mannheim. Este opta por
reafirmar a "identidade missionária" do novo intelectual,
potencialmente capacitado, nas atuais condições sociais, a se voltar
para objetivos universais, transclassistas (não supra-classistas).
Devemos
a possibilidade de interpretação mútua e compreensão das correntes de
pensamento existentes à presença desse estrato médio relativamente
desvinculado que se encontra aberto ao ingresso constante de indivíduos
das mais diversas classes e grupos sociais, com todos os pontos de vista
possíveis. Só nessas condições pode surgir a síntese incessantemente
nova e ampla a que nos referimos (MANNHEIM, 1986, p. 186).
A
proposta mannheimiana é marcadamente moderna e somente nesta época
poderia ser levada a cabo. Vincula-se às descrições da hegemonia da ciência
e da técnica que, para Mannheim não traz o significado negativo da
Escola de Frankfurt em sua denúncia da reificação da vida e dos
sentidos, mas é condição de sua desejada planificação democrática da
sociedade que entendia em processo de construção. Certamente, afasta-se
de Marx nas conseqüências dessa tomada de consciência total do momento
histórico. A aposta mannheimiana está na construção de um novo ethos
societário a partir da síntese do realmente existente.
Mannheim
rejeita o intelectual conservador que não se coloca como portador da síntese
e, assim, apenas corrobora o status
quo, mas, em igual medida, nega o utopista. Neste ponto, é
interessante pensar o intelectual mannheimiano em diálogo com os
casos-limite (extremos) que Norberto Bobbio cuida de construir.
Bobbio,
em “Intelectuais e o Poder” (1997), toca questões caras à temática do intelectual ao
apontar os dois casos-limite de intelectuais: o primeiro seria o "utopista"
(também chamado de "idealista") voltado para conformações de
ideologias e de sua eficácia, e o segundo seria o "puro",
aquele embrenhado no mundo técnico e perito do conhecimento moderno. Os
modelos ajudam Bobbio a refletir acerca de algumas questões.
O
utopista é aquele que, ficando inteiramente preso ao fim, descuida dos
meios, o puro técnico é aquele que, prendendo-se inteiramente aos meios
descuida do fim. Mas do mesmo modo que geralmente em uma disputa ideológica
o discurso sobre os fins não está separado do discurso sobre os meios em
uma discussão técnica, o problema dos meios geralmente não está
separado da discussão sobre os fins (BOBBIO, 1997, p.74).
Ao
rejeitar o intelectual utopista parece que Bobbio deseja referir-se ao
intelectual mannheimiano, o que seria um engano decisivo. Mannheim jamais
propôs que a intelligentsia
pudesse aparecer "pairando acima das classes contrapostas"
(BOBBIO, 1997, p.130), mas observou sua localização entre
as classes, num lugar social diferenciado, assumindo um papel específico
na época moderna.
Não
por acaso, em "Homem e sociedade numa era de reconstrução
social" (1935), Mannheim reafirmou sua percepção das mudanças históricas
e democratizantes que propiciou um novo princípio de seleção dos
integrantes do estrato intelectual, insistindo que a composição social
mais aberta e diferenciada facultava a estes assumir o papel de
"mediadores" entre os diversos grupos e camadas a fim de
"fazer o exame dos principia
media" e planejar a
reconstrução da sociedade mediante formas de controle racional (VILLAS
BOAS, 2002, p.128).
Bobbio
sustenta que a concepção de intelectual oposta a de Mannheim era a do
intelectual orgânico de Gramsci que, de maneira genérica, contrapõe-se
ao intelectual tradicional - que também é orgânico - e representa na
luta pela hegemonia os interesses de sua classe. Assim, o intelectual orgânico
gramsciano como "organizador da cultura" tem seu lugar
privilegiado no Partido Revolucionário onde realiza plenamente seu
engajamento intelectual na defesa da causa proletária. Para Bobbio,
Mannheim
se encontraria sobre a linha que parte da separação entre engajamento
intelectual e engajamento político, embora não excluísse o interesse
ativo dos intelectuais pelos problemas da cidade, que, ainda não fosse a
cidade de Deus, era, porém sempre uma cidade ideal, que devia ser
projetada sem ilusões de uma completa e rápida realização. Gramsci, ao
contrário, continuava, embora com espírito crítico, a linha de
identidade entre engajamento político e engajamento cultural que havia
caracterizado a história dos intelectuais revolucionários (BOBBIO, 1997,
p.130).
A
principal diferença para Bobbio entre as duas concepções reside num
ponto: enquanto o engajamento político constitui o intelectual gramsciano,
ligado diretamente ao partido (o "intelectual coletivo"), para
Mannheim, a associação de intelectuais a partidos restringe sua visão e
concepção de mundo mais amplas. A participação política do
intelectual mannheimiano está em sua capacidade de prover meios de
interpretação e explicação do mundo para o processo de mudança social
.
Considerações
finais
A
razão historicamente condicionada enquanto base de um pensamento
desmistificador, direcionado para questões efetivas da realidade social,
tende a ocupar um lugar fundamental no esquema do pensamento moderno,
notadamente, sociológico que justifica a figura do intelectual como
“missão”. Não sem razão, Bobbio pondera que, na busca da eficácia
da razão no uso público da mesma, os intelectuais modernos acabam se
descuidando dos “meios universais” para a realização de "suas
idéias", embrenhando-se na máquina estatal - Poder Público - e
desta fazendo um uso antiético para o sucesso de seus empreendimentos políticos
e particularistas. Em Bobbio, a tensão entre intelectuais e poder político
é digna de menção:
De
fato, o principal antagonista do intelectual revolucionário é aquele
que, por excesso de amor aos ideais abstratos de verdade e de justiça, não
deseja “sujar as mãos” (...) assim como o maior adversário do
intelectual puro é aquele que, por excessivo amor ao sucesso das próprias
idéias, termina por prostrar-se ao demônio do poder (BOBBIO, 1997,
p.125).
Horácio
Gonzalez (2001), procurando sistematizar tipologias de intelectuais,
recepciona o pensamento de Mannheim de modo a enfatizar a idéia do
"intelectual precursor" aquele que "(...), todavia, resulta
num cativante problema, que focaliza a relação do conhecimento com as
bases sociais que sustentam qualquer forma de compreensão da
realidade." (2001, p.86). Extrai, portanto, da obra mannheimiana, em
sua crítica à "objetividade" postulada pelo Iluminismo e em
sua defesa do conhecimento relacional,
a legitimação do "intelectual público" como intérprete
por excelência do mundo,
aquele que logra realizar o nexo explicativo entre a sua consciência (ou
autoconsciência) e a realidade social na qual está imerso. É o que
Gonzalez identifica como "portadores de percepção histórica" sui
generis, que na tradução mais fidedigna de Mannheim, são os
"portadores da síntese".
O
pensamento de Mannheim sobre os intelectuais nos direciona questões que são
de sobremaneira atuais. Primeiro, a observação de quais atores sociais
levam à cabo um processo de mudança social, no caso, os intelectuais.
Segundo, a reafirmação do papel destes na transformação histórica,
sobretudo no fomento de idéias para empreendimentos públicos e
universais. O esquecimento da contribuição de Mannheim, ou a simples
interpretação enviezada de sua obra como vimos, concorre para a afirmação
de um tipo intelectual desconectado do senso de mudança social, aquele
que se furta a fornecer a base epistemológica que a sua posição social
condiciona em um processo de mudança. A "missão" que ainda nos
cabe é a consciência (ou autoconsciência) de que o grau de acirramento
das transformações históricas pode ser percebido e potencializado se
levarmos a cabo o papel clássico de produção e difusão de um
conhecimento que tenha como meta a superação de condições sociais
desfavoráveis à própria democratização do conhecimento.
__________
Referências
Bibliográficas
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Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: UNESP, 1997.
ELIAS,
Norbert. Norbert Elias por ele mesmo.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
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Marialice Mencarini.(Org.). Mannheim.
Sociologia. São Paulo: Ática, 1982.
GONZALEZ,
Horácio. O que são intelectuais?
São Paulo: Brasiliense, 2001. HEKMAN, Susan J.
Hermenêutica e sociologia do conhecimento. Lisboa: Ed. 70, 1990.
LIMA,
Nísia Trindade. Um sertão chamado
Brasil. Intelectuais e representação geográfica da identidade
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MANNHEIM,
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Paulo: Perspectiva, 1974.
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Janeiro: Guanabara, 1986.
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cultura humanista e a cultura democrática. Considerações acerca do
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. "Georg Simmel: um convite à análise dos princípios masculino e
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1998. Ensaio de qualificação. Doutorado. 85 p.
VILLAS
BOAS, Gláucia. Os portadores da síntese: sobre a recepção de Karl Mannheim.
Cadernos CERU, série 2, n°13, 2002.