por DANTE GATTO

Docente da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT)

 

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O sacrifício estético e a tragédia pessoal de Mário de Andrade

Dante Gatto*

 

Resumo

O que se pretende com este trabalho é enfocar a tragédia pessoal de Mário de Andrade e o faremos por meio do enfoque ao sacrifício estético dentro da perspectiva maior de que arte e vida se completam e a separação entre vida e pensamento constitui o cerne das tragédias modernas. A preocupação em torno do nacionalismo foi alimentada pela utopia de brasilidade que empolgou o artista e intelectual Mário de Andrade. Sentimento que na prática levou-o a um verdadeiro apostolado, devotado à causa de acordar o Brasil da inconsciência de si próprio. Tal postura, por fim, implicou um certo caráter utilitário que ele próprio reconhece em sua obra.

Palavras-chave: Mário de Andrade, vocação sacrificial, tragédia pessoal, sacrifício estético, nacionalismo estético.

 

Abstract

What is intended with this work is to focus the personal tragedy of Mário de Andrade and we will make it through the focus to the aesthetic sacrifice inside of the largest perspective than art and life are completed and the separation between life and thought constitutes the duramen of the modern tragedies. Them concern around the nationalism was fed by the dream of Brazil that thrilled the artist and intellectual Mário de Andrade. Feeling that in practice it took him/it to a true apostolate, devoted to the cause of waking up Brazil of the unconsciousness of itself own. Such posture, finally, implicated a certain utilitarian character that him own it recognizes in his work.

Words-key: Mário de Andrade, vocation for the sacrifice, personal tragedy, aesthetic sacrifice, aesthetic nationalism.

 

Mário de Andrade (Fonte: http://www.bn.br/fbn/musica/segall.gif )As preocupações de Mário de Andrade com os problemas estéticos são levadas ao público já no começo dos anos 20. Um exemplo são as críticas Mestres do Passado,[1] os comentários sobre música feitos para Klaxon, A Escrava que não é Isaura, a Carta aberta a Alberto de Oliveira, publicada no terceiro volume de Estética, em 1925, o Ensaio sobre Música Brasileira de 1928, o Compêndio de História da Música, mais tarde publicado com o título de Pequena História da Música, o ensaio sobre o Aleijadinho, também de 1928, e Cultura Musical, oração de paraninfo, de 1935. Além disso toda sua correspondência e muitas das entrevistas são marcadas por preocupações dessa ordem.

“O Artista e o Artesão” foi preparado a partir das teorias que vieram sendo gestadas em todos estes textos e constitui o núcleo do pensamento de Mário de Andrade sobre arte. Foi publicado em 1943 em O baile das quatro artes. Trata-se da aula inaugural, de 1938, para o curso de História e Filosofia da Arte, da Universidade do Distrito Federal (UDF). Estão nele perfeitamente delineadas as idéias de técnica pessoal e atitude estética. Os textos teóricos de Mário de Andrade que se seguiram são sustentados pelas idéias nele desenvolvidas: os demais ensaios de O baile das quatro artes, as crônicas de O empalhador de passarinhos, os ensaios de Aspectos da literatura brasileira (1943) e as crônicas escritas para o Diário de Notícias (1939 e 1940). Além destes, temos também as duas importantes interpretações da história social das músicas norte-americana (1940) e brasileira (1941), a apresentação da obra de Lasar Segall, feita com base no texto do catálogo da exposição de 1943, incluída posteriormente em Aspectos das Artes Plásticas no Brasil.

No período que vai de 1938 até 1945, as reflexões mariodeandradianas sobre a arte ganharam amplitudes ainda não experimentadas. Foi o momento também marcado pela desilusão de projetos frustrados, pela tensão provocada pelo Estado Novo no meio intelectual, pela expectativa dos desdobramentos da Guerra, pelas confissões pessoais de desamparo e, por fim, pela doença que o levaria à morte.

Reconhece, Mário de Andrade (ANDRADE, 1975 p. 12), três manifestações diferentes, ou etapas, na técnica de fazer obras de arte: o artesanato, a virtuosidade e a solução pessoal do artista. Para ele, em arte, o que existe de principal é a obra de arte e considera isto uma verdade do artista que é consciente do seu destino e da sua missão no mundo. Para que a obra de arte se faça é necessário pôr em ação o elemento material: o som, em suas múltiplas maneiras de manifestação, a cor, o lápis, o papel etc. O ensinamento facilita muito este pôr em ação. Nesse processo, no entanto, se estabelece a confusão entre arte e artesanato.

É evidente que todo artista tem de ser artesão. “E desde que vá se tornando verdadeiramente artista, é porque concomitantemente está se tornando artesão.” (ANDRADE, 1975, p. 12). As exigências do material, o artesanato, isto é ensinável, “e de ensinamento por muitas partes dogmático, a que fugir será sempre prejudicial para a obra de arte”. (ANDRADE, 1975, p. 11). No entanto, está claro que o ser da obra de arte, a finalidade mesma da arte, não exclui os caracteres e exigências humanas, individuais e sociais, do “artefazer”. Abster-se do artesanato é prejudicial para a obra de arte, argumenta Mário, mas não o é para o artista. O artista, na opinião dele, prescinde das leis técnicas, não em benefício da obra de arte, mas de si mesmo. O romantismo mesmo significou esta expressão de si mesmo pelo artista, enquanto que a obra de arte, cada vez mais pessoal, tornou-se inatingível ao povo. O artesanato não é a técnica, mas uma parte dela que não deve ser nunca desprezada. É a parte que pode ser ensinada. A concretização de uma verdade interior do artista, por outro lado, não pode ser ensinada: “esta parte da técnica obedece a segredos, caprichos e imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele é, como indivíduo e como ser social.” (ANDRADE, 1975, p. 13).

A virtuosidade, para Mário de Andrade (1975, p. 14-15), do artista criador é o conhecimento e prática das diversas técnicas históricas da arte, enfim, o conhecimento da técnica tradicional. Também, a virtuosidade é ensinável. A organização moral do artista poderá evitar os perigos terríveis que esconde a virtuosidade: o artista pode se deixar levar a um tradicionalismo técnico meramente imitativo com perda das “virtudes sociais”, reduzindo-se assim a um “passadismo” (“academismo” será outro termo muito utilizado nestes casos por Mário de Andrade). Pode, o artista, tornar-se assim vítima de suas próprias habilidades, um virtuose que não chega ao princípio estético da arte pela arte (“sempre respeitável,” considera ele), satisfazendo-se com malabarismos de habilidades pessoais ao prazer do aplauso ignaro. O conhecimento abalizado de como épocas e artistas resolveram seus problemas de artefazer é de grande utilidade para o artista, se bem que não seja ela imprescindível.

A solução pessoal do artista, por sua vez, faz parte do talento, embora não seja todo ele: “É de todas as regiões da técnica a mais sutil, a mais trágica, porque ao mesmo tempo imprescindível e inensinável.” (ANDRADE, 1975, p. 15). Seria, pois, a afirmação da solução pessoal do artista, sem prescindir do artesanato e da virtuosidade, que consistiria na técnica pessoal.

O amadurecimento artístico de Mário de Andrade, até chegar ao conceito de técnica pessoal, no entanto, não se efetivou sem conflito. Aliás, diga-se de passagem, o conflito trágico prevaleceu na consciência do escritor modernista, bem como, revelou-se uma constante a tensão entre arte interessada e arte desinteressada. Mas vamos pensar aqui na superação, apesar da impossibilidade do equilíbrio.

Para Schwarz (1981, p. 18), a sensibilidade mariodeandradiana oscila do “psicologismo rousseaniano”, de inspiração individualista e subconsciente, ao “psicologismo freudiano”, sustentado pelas relações sociais que imprimem sua ação coercitiva. A co-existência de ambas as forças, no entanto, se realiza numa contradição insuperável. Schwarz defende a idéia de que não há uma síntese dialética entre os dois momentos da impulsão lírica: o individualista e o antiindividualista; a grafia do inconsciente, no primeiro caso, e a técnica organizadora que a tornaria socialmente significativa, no segundo. Nesse quadro de oposições maniqueístas e antitéticas, a poesia perde sua especificidade, confundindo-se com a verdade psicológica. Não há possibilidade de superação num plano estético, “a única possibilidade é mudar de lado: ser lírico ou técnico, obedecer ao subconsciente ou a consciência, ser individualista ou político”. Subjaz, portanto, a dilaceração, ou, como preferimos, um dilaceramento incontornável. Dilaceramento artístico e humano, como veremos. O conceito de técnica pessoal em que um lirismo específico (subconsciente individual) encontra uma técnica (nível consciente) capaz de realizá-lo no plano do significado geral, representa um terceiro momento na poética mariodeandradiana, presente nas suas últimas composições, configurando-se como superação.

Operada a síntese, entre os dois pólos da sensibilidade mariodeandradiana, no conceito de técnica pessoal, a postura sugerida por Mário de Andrade implica uma “consciência técnica profissional” moralizadora que deveria se ajustar à condição de fora-da-lei inerente ao artista. Tal condição era bastante polêmica nos anos 40, “quando parcela significativa dos escritores queria consagrar sua atividade intelectual a uma nobre missa redentora”. (RUSSEFF, 2001, p. 34). Lê-se, pois, a saída pela arte social (ideológica) que Mário não aprovava. Ele se opõe ao conceito de romance de tese,[2] redefinindo o significado do caráter social da arte. Para Mário de Andrade (1975, p. 30), a arte social, além de definir a concepção do assunto e a própria técnica, estaria apenas, mais uma vez, expressando a moderna hipervalorização da figura do indivíduo-artista em toda a sua desconsideração da objetividade da própria obra. A pregação doutrinária, em circunstância alguma, deveria prevalecer sobre o arte. Neste sentido, ele tenta recuperar a humanidade do artesão com seu olhar para a totalidade, apelando, para isso, à “verdade absoluta” (pré-capitalista) que aqui se refere a uma idéia saudável de superação combinada ao sopro iconoclasta da postura dionisíaca. Não se trata, pois, de pensamentos antitéticos como pode parecer em princípio.

Em “O movimento modernista” (ANDRADE, 1974, p. 234), há uma nota explicativa da nítida separação entre um estado de poesia e um estado de arte. No primeiro, o artista escreve sem qualquer tipo de coação tudo o que lhe chega à mão, como manifestação da “sinceridade do indivíduo”. Em seguida, vem o momento lento e penoso da arte: a “sinceridade da obra de arte”, coletiva, funcional, bem mais relevante que a do indivíduo. Aliás, desta sinceridade sempre se ocupou Mário, em suas diversas fases.

Enquanto crítico, Mário de Andrade fez sua “declaração de princípios” (SACHS, 1993, p. XII) no “Começo de Crítica” (1993, p. 11-16) ao estrear em “Vida literária”:[3] Crença em Deus, e nas artes, e, como não cansava de lembrar, “nem é propriamente na arte que acredito, e sim nas obras de arte ... na ciência não acredito muito não”; e uma tendência a ser infenso a quaisquer políticas. Definirá, por fim, a intenção de ser de alguma forma útil (“O princípio da utilidade regeu sempre a minha vida pública, e se me contemplo no passado, confesso guardar uma tal ou qual satisfação de mim”), por meio de uma diretiva “nem exclusivamente estética nem ostensivamente pragmática, mas exatamente aquela verdade transitória, aquela pesquisa das identidades ‘mais’ perfeitas, que ultrapassando as obras, busque revelar a cultura de uma fase e lhe desenhe a imagem”. Examinaremos, em tempo oportuno, como tal “princípio da utilidade” recebeu um olhar mais acabado do escritor modernista, configurando-se como condição da sua tragédia pessoal.

Acreditava, Mário de Andrade, por fim, haver uma convicção grande, um desprendimento principal regendo os seus pragmatismos. (ANDRADE, 1993, p. 13). Uma verdadeira vocação para o sacrifício.

A atitude estética, acreditava Mário de Andrade, define o critério que deve nortear o artista para alcançar a vocação social da arte e o aprimoramento como ser humano. No posfácio de A Escrava que não é Isaura, aquela indisposição ao “paisagismo sentimental”, que observava, “já vai aos poucos terminando porque a inteligência é orgulhosa de si e manda que cada coisa conheça o seu lugar”. (ANDRADE, 1998, p. 299). Era preciso, pois, reprimir o arlequim: “(...) E enroupei de acerba seda o arlequinal do meu dizer...” (ANDRADE, 1976, p. 297-298).

Dizendo do interior da dilaceração e da multiplicação, reconhecendo-se ‘trezentos e cinqüenta’, o poeta pede paciência. Não reconhecendo em seu canto um domínio de todo o espaço nacional (...) entrega ao esquecimento a tarefa de resumir, esquecimento de um passado-presente dilacerado, em favor de uma coesão futura. (KNOLL, 1983, p. 214).

A influência da música, por um lado, é reveladora de tal dilaceramento; por outro, mas necessariamente a preocupação com os efeitos psicofisiológicos da música, conforme Mário de Andrade (1980) desenvolveu na “Terapêutica musical”, ajusta-se, também, aoprocesso de realização do indivíduo”, outra de suas preocupações. A realização da poesia, sem a linguagem das palavras, implica um poder dinamogênico, rítmico, pulsional, sedutor, capaz de empolgar o corpo e a mente. A música é poder, e esse poder está batucando no fundo da poesia.[4] Mas vamos ao dilaceramento.

Observa Wisnik (1980, p. 80-81) que a música percorre a obra literária de Mário de Andrade, do começo ao fim, e não como mera referência ou inspiradora de formas a serem imitadas, “mas como mito interno, horizonte implícito, às vezes explícito, mas sempre incontornável da palavra literária”. Uma influência, pois, “num sentido forte e quase doentio: influenza”, a serviço do resgate da identidade cultural do brasileiro. De uma trama da poesia com a música resgatar-se-ia o “tecido da cultura popular”. Pode-se estabelecer uma trilogia poético-musical das três grandes inflexões programáticas da obra de Mário de Andrade: a vanguarda modernista (Paulicéia Desvairada), a pesquisa da cultura popular (Macunaíma) e o engajamento político (Lira paulistana, O café e O Banquete). “Em suma, é marcante o fato de que, na teoria como na prática, formalista ou politicamente empenhado, cosmopolita ou nacionalista, Mário modula as questões literárias segundo uma clave musical sempre presente.” Mesmo se considerando as mutações da sua poética, pode-se concluir que é um dos seus princípios centrais “o caráter ambivalente da palavra, limiar entre a escultura e a música, a forma e a força, a referência e o não-senso”. O poder da música é hipnótico e leva ao transe ritual (disposição dionisíaca) ou ao ânimo político (disposição prometéica). Em ambos os sentidos, a poesia de Mário parece não poder dispensar a música. Em O café, “parece que não consciente”, há a tentativa de ajuntar o dionisismo musical (a energia musical da sua poesia) com a revolução. O relacionamento de literatura e música, por fim, revelam o dilaceramento do autor:

agônica, dividida entre uma propensão digamos “nietzscheana”, que afirmaria a força irradiadora da música como originária e fundante da poesia, e uma propensão “socrática”, em que a música, como n’ A república deveria evitar o transe e servir à palavra, ao invés de dominá-la (é o que se vê Mário mais programático, pai severo e muitas vezes assumidamente castrador e auto-reprimido que organiza a cultura). Macunaíma e anti-Macunaíma, é como se Mário tivesse que afirmar a poesia-música em suas radicalidades formais e expressionais, e ao mesmo tempo expulsá-la da República. Mas é também como se, assim como no sonho de Sócrates, um demônio lhe dissesse sempre aquilo que se entreouve em surdina na sua poesia: “componha e faça música”. (WISNIK, 1980, p. 81)

Entre Nietzsche e Sócrates, instinto e razão, primitivismo e civilização, Macunaíma e não-Macunaíma, tragédia e nacionalismo, a estética de Mário de Andrade trava uma batalha dolorosa. Repousa, como já ficou claro, em tal postura um sacrifício. Confessado, aliás: “Nós, os modernistas de minha geração, sacrificamos conscientemente, pelo menos alguns, a possível beleza das nossas artes, em proveito de interesses utilitários. (...) tão mártires como os que se iam cristianizando chineses.” (ANDRADE, 1974, p. 191).

Em carta ao amigo Manu, ainda em 1931, Mário repete a obstinada prédica moral que acreditava devia submeter-se intelectuais e artistas que estivessem comprometidos com seu povo e sua realidade.

Quando falei que houve um sacrifício de mim, e há, no que faço, creio que não me referi ao sacrifício de linguagem (...) O sacrifício penoso é o das minhas liberdades morais cerceadas. O mais penoso ainda é o das minhas verdades intelectuais, independentes até de mim, e por mim mesmo rejeitadas no que escrevo e ajo, em proveito da normalização, da fixação, da permanência de outras verdades humanas, sociais que eu friamente sei que são mais importantes. (ANDRADE, s.d., p. 205). (grifo nosso)

Pois bem, a tensão se faz entre verdades sociais que ele considerava mais importantes a suas verdades intelectuais. Sacrifício estético e sacrifício pessoal se confundem e se tais sacrifícios não impediram uma vida artística ampla e fecunda, foi extremamente significativa para delinear a estética de sua ficção. A avaliação de Alceu Amoroso Lima, por fim, ratifica o que queremos dizer:

Sua obra, aparentemente confusa e desconexa, é o oposto da improvisação ou da criação sem rumo. Ela representa uma procura exaustiva pela expressão exata, pela palavra adequada, pela cena representativa, em suma pela precisão. Toda a sua arte está impregnada por essa obsessão da verdade, embora cônscio de que a verdade estética transcende em muito a verdade científica. (LIMA, 1971, p. 50).

Não será, no entanto, sua obra, o que mais nos interessa neste trabalho, mas o sacrifício. Vamos, pois, a ele.

A crise política de 1929, ao que parece, foi um momento bastante significativo no sacrifício mariodeandradiano, na medida que foi importante para firmar um posicionamento. Há de se considerar aqui os seus desdobramentos: a Revolução de 1930, que pôs fim à Primeira República e acabou com a “hegemonia da burguesia do café, desenlace inscrito na própria forma de inserção do Brasil, no sistema capitalista internacional”. (FAUSTO, 1972, p. 112). Representou

um momento muito importante da nacionalidade na medida do poder de despertar os vários conteúdos que engendram a Nação, como já havia sido a independência (1922) e a abolição seguida da Proclamação da República, principalmente pelas possibilidades de que ele tem de despertar no povo brasileiro uma consciência social de raça, coisa que ele nunca teve. (ANDRADE, 1976, p. 156).

Mário de Andrade, no entanto, manteve um certo distanciamento dos fortes embates políticos que caracterizaram o período, defendendo, como confessou ao amigo Carlos Drummond de Andrade (DRUMMOND DE ANDRADE, 1988, p. 224), que o artista, pela própria natureza “não conformista” da profissão, não deveria se duplicar na profissão de político.

O dilaceramento encontrou algum conforto na expressão de outra comoção artística e intelectual. Mário consagrou-se um “badalo nacional” (s.d., p. 32): era preciso viver o Brasil, bem como ensiná-lo ao povo brasileiro. Hegemonia das circunstâncias. Estava definitivamente inaugurada a marcha da utopia de brasilidade que empolgou o artista e intelectual Mário de Andrade, “um movimento irresistível, que se processa por assim dizer no subconsciente da nacionalidade”, concluiu Tristão de Ataíde (1927, s.p.). “Sentir e viver o Brasil não só na sua realidade física mas na sua emotividade histórica também.” (KOIFMAN, 1985, p. 148). Sentimento que na prática levou-o a um verdadeiro apostolado, aliás, um apostalodo de intelectual público, devotado à causa de acordar o Brasil da inconsciência de si próprio: “Eu tenho certeza de que estou num apostolado mesmo” (ANDRADE, s.d., p. 92), confessou a Manuel Bandeira. Este complexo, acreditamos, determinou a “inteligibilidade autocoerente” (WELLEK, R.; WARREN, s.d., p. 265) da épica mariodeandradiana.[5]

Em 1932, inquirido sobre a crise de espírito no mundo moderno pelo Diário de Notícias (1983, p. 30-36), demonstra-se perplexo diante de um problema complexo por demais. A crise, afinal, não importava tanto como “as causas particulares que em cada fase provocaram as inquietações”, coisa que exigia “um livrão”. Opta, pois, por trazer ao inquérito “um depoimento pessoal”: por um lado, a história de “um caso curioso de amor”; por outro, um fato real: um suicídio (um “rapaz na melhor flor da idade, 21 anos, flor de espírito também. Moço admirável, inteligência viril, tomando a vida ao sério, com um nojo instintivo de todos os diletantismo”) em que não consegue avaliar até que ponto ele próprio não foi o culpado. Diante da cruel realidade, “para que mais um romance de amor?”

Creio que este depoimento não é apenas pessoal. Ele implica o problema do “intelectual” e sua função de classe, problema que só se tornou evidente e generalizado com os nossos dias. Há crise contemporânea do espírito mas sempre esteve em crise o espírito. Há superprodução. E como em todas as épocas, hoje se publica muitas obras péssimas, bom número de obras boas, e algumas geniais. Mas são obras de arte desnecessárias, de pura ficção, elas não nos satisfazem mais, anêmicas, bombons. As únicas obras dos nossos dias que trazem saúde interior são as que de alguma forma se deram uma função pragmática, desde o nacionalismo das entidades sociais em atraso de constituição, à Gebrauchsmusik dos alemães e ao cinema comunista. (ANDRADE, 1983, p. 36).

O nacionalismo estético na consciência artística de Mário de Andrade, podemos constatar, reina absoluto.

Em 1934, indagado do “sentimento da literatura dos novos” (ANDRADE, 1983, 43-46), observa que estes se libertaram do esteticismo dos escritores de vanguarda de 1918 a 1928, mais ou menos. Se a pesquisa estética, por um lado, foi importante no sentido de contemporanizar o país e, principalmente, “converter o artista brasileiro a uma função imediatamente nacional”, por outro fez nascer obras desfiguradas por cacoetes e exageros. Os novos, também, apesar da ausência de pesquisa estética, padecem desse problema que, no entanto, não são mais estéticos, mas de ordem social o que, no caso, “é nobre e muito justo”, uma vez que, acreditava ele, “não é mais possível aos novíssimos permanecer sem uma atitude decisiva e bem delineada diante dos problemas sociais do nosso tempo”. Neste sentido, crítica a “atitude e posição dos novos de ontem”, inclusive ele próprio, e elogia os filhos de “após-guerra e das diversas ditaduras socialistas ou fingidamente socialistas de agora”. Para ele, uma exigência do tempo depois da falência da burguesia, “especialmente no seu conceito oitocentista, democrático e liberal” do qual os novos de ontem são filhos e não conseguem se desvencilhar. Caber-lhe-iam uma atitude de auxílio na fixação do utilitarismo contemporâneo, “embora não participem propriamente dele”. Seria “o abandono temporário de elementos do ser e da humanidade que só prejudicam e atrasam a fixação das formas novas da sociedade humana. Depois disso, então inteligência, cultura, individualismo retomarão de novo os seus direitos imortais” (grifo nosso). Este “abandono temporário” parece medido, tendo em vista o que estabelece para si mesmo, conforme confessa na mesma entrevista: terminar o livro Na pancada do ganzá, um estudo sobre a música do nordeste, “até o fim do ano que vêm” [sic]; submetê-lo aos intelectuais de lá; escrever o Dicionário musical brasileiro e só então escreveria “dois ou três romances” que tinha na cabeça.

O que nos parece muito significativo é a pouquíssima produção ficcional na década de 30. Nos contos de Primeiro andar, que na primeira edição comportava produções da segunda década do século passado e do começo dos anos 20,[6] teve incluído na segunda edição, conforme nota em novembro de 1943 (ANDRADE, 1980 p. 47-48), certos contos que vieram se compondo pela sua vida. Trata-se de “Caso em que entra bugre”, “Briga das Pastoras” e “Os Sírios”, escritos em 1929, 1939 e 1930, respectivamente (vamos acreditar nas datas que acompanham os contos). Contos de Belazarte, por sua vez, teve sua primeira edição publicada em 1934, mas só na sua segunda edição os contos aparecem reunidos em seu agrupamento legítimo. Conforme nota do autor, “‘O besouro e a Rosa’ foi incluído nesta segunda edição, e dela retirado o ‘Caso em que entra bugre’. Fica salvo desse jeito o espírito do livro, que agora, com as correções feitas no texto, o autor acredita estar em sua integridade livre e definitiva. (ANDRADE, 1992, p. 9). O que nos interessa aqui, precisamente, é a data de escritura dos contos. Conforme explicitado no próprio índice: em 1923, “O bezouro e a Rosa”; em 1924, “Jaburu malandro” e “Caim, Caim, e o resto”; em 1925, “Menina de olho no fundo” e “Nizia Figueira, sua criada” e em 1926, “Túmulo, túmulo, túmulo” e “Piá não sofre? Sofre”. Amar, verbo intransitivo só foi publicado em 1927 e Macunaíma em 1928.

Com Contos novos, obra publicada postumamente (1947), Mário de Andrade, segundo Paulillo (1996, p. 9), alcança a maturidade artística no campo da ficção literária: “o livro é fruto de um minucioso processo de elaboração artesanal que compreende várias versões de um mesmo texto e se estende por períodos de tempo que vão de quatro até dezoito anos de preparação” … Este é o caso de “Frederico Paciência”, cuja gestão criativa evolui de 1924 até 1942. Há anotações das datas no final de cada texto (ANDRADE, 1996): “Vestida de preto” está assim datado, entre parênteses: “(Rio, 1939 – S. Paulo, 17-II-43)”; “O ladrão”, “(1930-1941-1942); “Primeiro de Maio”, (1934-1942); “Atrás da catedral do Ruão”, “(Primeiros esboços, Amazonas, julho e agosto de 1927; primeira versão escrita, 9-1-43 a 17-1-43; segunda versão completa, 3-III-44 e 4-III-44); versão definitiva, junho de 15 de [sic] julho de 1944.)”; “O poço”, “S. Paulo, 26-XII-42 (Terceira versão)”; “O peru de Natal”, “(Versão definitiva, agosto, 1938-1942)”; “Nelson”, “(São Paulo, 12-IV-43 – 15-IV-43; versão nova do final, 21-IV-43.)” e “Tempo da camisolinha”, “(1939-1943)”.

Na “Advertência” com que abre Namoros com a medicina diz: “Jogado fora da escrita por paixões talvez mais humanas, aos poucos vou retornando ao vício velho da literatura.” (ANDRADE, 1980, p. 5). Esta “Advertência” traz a data de 22 de novembro de 1937. Conforme João Etienne Filho,[7] na página de rosto da primeira edição está a data de 1939 e numa relação das “Obras do autor”, na página anterior da primeira edição, consta a data de 1938. Aliás, 1938 foi o ano em que assumiu a direção do Instituto de Artes e o curso de Filosofia e História da Arte na Universidade do Distrito Federal, interrompendo sua breve participação na vida pública. Agora retornava à atividade intelectual de professor, confessa a Paulo Duarte, em carta de 19 de agosto de 1938: “fazia três anos que eu não estudava por estudar, não especulava por filosofar, não lia um livro inteiro, só consultava. Me atirei com uma volúpia indizível ao estudo e à literatura.” (DUARTE, 1977, p. 162).

De qualquer forma, como dizíamos, pouco, muito pouco, foi escrito por Mário de Andrade, em termos de ficção, na década de 30. Atribuímos isto, entre outras coisas, à intensificação do apostolado e marcamos um evento como ponto culminante, a crise de 29. “Ele se sentia artista e com força necessária para fazer uma obra importante que permanecesse”, afirma sua aluna, a musicóloga Oneyda Alvarenga, “mas sacrificou isso ... e isso deve seguramente ter sido uma amargura pra ele que era um criador”. (MARIO DE ANDRADE, 1980).

Referimo-nos já à vocação sacrificial de Mário de Andrade. Cabe ressaltar que ele abrigava um valor positivo ao sofrimento. Para ele, seria uma atitude castradora a separação entre vida e corpo, prazer e dor, morte e vida. O viver do artista moderno deveria ser uma mistura dionisíaca em que “as contradições e tensões inerentes à própria vida não devem ser um empecilho à felicidade”. (SANTOS, 1994, p. 100). No entanto, entre o grito do artista e o compromisso do intelectual, o sofrimento aparece consciente, operando uma separação entre vida e pensamento. Repousa, pois, neste aspecto sua tragédia pessoal. A confissão abaixo é de maio de 1935, em entrevista para O Jornal.

São apenas destinos que me dei conscientemente, voluntariamente, conformação pragmática de minha vida ao meu país pela vontade de ser útil. Mas puro pragmatismo que não deixa de pôr na minha vida uma certa sombra de melancolia, de dor mesmo. Mas, como disse num verso de Losango cáqui, e é minha maneira de encarar a vida – a própria dor é uma felicidade – e essa espécie de pedra do meu caminho não impede absolutamente que eu seja enormemente feliz. Individualmente, está claro. Todo esse pragmatismo a que me foi a maneira de extirpar da minha personalidade o individualismo diletante. Sou útil dentro da minha esfera intelectual. (ANDRADE, 1983, p. 49). (grifo nosso).

Enormemente feliz? Parece-nos que não foi bem assim.

Nietzsche (1977, p. 146) tenta recuperar a unidade de uma certa maneira perdida desde a origem, entre o pensamento e a vida: a vida ativando o pensamento e o pensamento afirmando a vida. O que nos resta, no entanto, são exemplos de que o pensamento contém e mutila a vida. A filosofia posterior a Sócrates degenera esta unidade de pensamento e vida. Tragédia do Ser. O pensamento, tornado negativo, toma a incômoda tarefa de, estabelecendo valores, julgar a vida. Sobre o ativo, por fim, vencem as forças reativas e interpõem-se ao pensamento afirmativo, a negação. A conseqüência é a degeneração da filosofia. O filósofo legislador é substituído pelo filósofo submisso  ou  operário  da  filosofia. Este  filósofo  do  futuro — filósofo médico — no entanto, diagnosticará, sob sintomas diferentes, a continuação do mesmo mal. Mudam os valores, mas o essencial não muda: as perspectivas ou as avaliações de que dependem esses valores. Somos sobrecarregados com o peso das formas reativas da vida, as formas acusatórias do pensamento e assim nos impomos sacrifícios. Diante da recusa de encarregarmo-nos dos valores superiores (o devir da cultura), vemo-nos em face de assumir o real como ele é, isto é, aquilo em que os valores superiores transformaram a realidade. A história da filosofia, dos socráticos aos hegelianos, até o existencialismo, manteve um gosto assombroso de natureza dialética — de assumir e carregar, que caracteriza a história da interminável submissão do homem e do seu processo de legitimação: “não um fato na história, mas o próprio princípio de que derivam a maior parte dos acontecimentos que determinam o nosso pensamento e a nossa vida, sintomas de uma decomposição.”·

Um outro aspecto, dentro do apostolado mariodeandradiano foi uma auto-avaliação que não seria de concordância de todos. Vale a pena apreciar a argumentação de Mário de Andrade, em 1939:

É certo que, como já acentuaram amigos meus e críticos, a parte ficção da minha obra se prejudicou bastante pelos utilitarismos em que voluntariamente a escravizei, as teses que pretendi provar, os problemas que repus na ordem do dia. Às vezes, nos momentos de fraqueza ou de vaidade, me umedece por causa disso um certo limo de melancolia, mas logo retomo a ordem que me enrija o espírito e o prejuízo não dói mais. Tenho muito consciente conhecimento das minhas forças para saber que não me condena à glória nenhuma espécie de fatalidade. Por mais livre que fosse a minha ficção, jamais ela alcançaria as alturas de um Murilo Mendes, de um Manuel Bandeira, de um Lins do Rego, Raquel de Queirós ou Amando Fontes. (...). Nem sequer uma longa paciência me faria alcançar as alturas desses e outros grandes. Mas em compensação tenho a forte alegria de reconhecer que meus livros tiveram sempre o efeito que lhes dei por destino. (ANDRADE, 1993, p. 12). (grifo nosso).

O descobrimento não é só conhecimento pelo que lhe aconteceu, mas reconhecimento da sua nova condição em relação à vida potencial aniquilada a que renunciou. Cabe citar Frye, referindo-se ao arquétipo de Adão:

Ingressa num mundo [Adão/Mário] no qual a existência é em si mesma trágica, não a existência modificada por um ato deliberado ou inconsciente. Existir meramente é perturbar o equilíbrio da natureza. Todo homem natural é uma tese hegeliana e implica uma reação: cada novo nascimento provoca a volta da vingadora morte. Esse fato, irônico em si mesmo e agora chamado Angst, torna-se trágico quando a sensação de um destino perdido e originalmente mais alto se acrescenta a ela. (FRYE, 1973, p. 209).

Um destino perdido e originalmente mais alto? “Ninguém o saberá jamais”?[8] De qualquer forma, a tragédia revela-se, por fim, como um componente na própria vida de Mário de Andrade de maneira muito mais significativa do que na maioria das pessoas, pela consciência do sacrifício e da perda. Aliás, um exemplo de como uma estrutura mítica contínua a ser realizável no plano da experiência existencialista e, particularmente neste caso, sem consciência ou influência do modelo mítico. Ora, o poder criador de um arquétipo nunca desaparece.

Mircea Eliade (s.d., p. 30) exemplifica, dentre tantos outros exemplos, com o caso do herói Aquiles e de Soeren Kirkegaard. Aquele, apesar de ter-lhe sido profetizada uma vida harmoniosa com o casamento, permanece sozinho, uma vez que implicaria, no seu caso, renúncia à heroicidade e, conseqüentemente, à imortalidade. Kirkegaard padece o mesmo drama existencial: ele não se casa com Regina Olsen para manter-se ‘único’, e espera o ‘Eterno’, relegando ao ‘geral’ a possibilidade de uma existência feliz. ‘Eu seria mais feliz num sentido finito’, conforme confessa num fragmento do seu journal íntimo, ‘se pudesse afastar de mim este espinho que sinto na minha carne, mas num sentido infinito, estaria perdido’. Esta argumentação toda parece meio paradoxal em se tratando de Mário de Andrade, uma vez que ele sacrificou a sua arte e estamos nós aqui envoltos nela. A perda afinal foi maior para nós do que para ele. Mas vamos em frente.

Na famosa palestra de 1942 (“O movimento modernista”), aquele “limo de melancolia”, de 1939, toma dimensão de um “paradoxo irrespirável”, dado às recordações pessoais e a impossibilidade de gratuidade, de isenção, penetrado pelos acontecimentos do mundo e perturbado pelo doloroso e trágico espetáculo da guerra. Buscando “complacência” para o que foi, exibindo explícita impotência de “memórias musculares”, na “rampa dos cincoenta anos”, confessa o seu engano trágico, pela sensação de um destino perdido do que pudera ter sido e que não foi (originalmente mais alto?):

Julgava sinceramente cuidar mais da vida que de mim. Deformei, ninguém não imagina quanto, a minha obra ... Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um homem-de-estudo que fundamentalmente não sou. Mas é que eu decidira impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer estético, a beleza divina. (ANDRADE, 1974, p. 254).

O herói, como era entendido no mundo antigo, perde, de uma certa forma, sua razão de ser (páthos) após o Romantismo. O herói moderno passou a aceitar o seu destino de derrota e a encará-lo como necessário e se é herói trágico, o é devido à grandeza de seu caráter, e não por causa de suas ações. Ao herói [Mário] não cabe ser poupado da consciência, no desdobramento do engano trágico revela-se a clara consciência de si mesmo:

[...] Tendo deformado toda a minha obra por um anti-individualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo implacável! E é melancólico chegar assim no crepúsculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo. Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado. (ANDRADE, 1974, P. 254).

Mário de Andrade, e aqui caberia encetar uma pesquisa, ao mencionar este “hiperindividualismo implacável” pode estar se referindo, também, como acreditamos, ao aristocratismo que sempre marcou sua posição em relação à arte. Em entrevista ao Diário da Noite, aliás, ele foi claro neste sentido, quando afirmou: “devíamos ter participado mais da vida pública do país, deveríamos ter nos interessado mais pelo Brasil, – por um Brasil que não fosse somente arte”. (ANDRADE, 1983, p. 86-87). Mas, como Janjão, personagem de O Banquete,[9] ele viveu a impossibilidade de conceber uma arte popular com prerrogativa de um inconformismo latente, inerente à atitude estética.

Resumindo e concluindo, Mário de Andrade, por vezes, enquanto crítico, tinha clara consciência que a arte deve ser desinteressada, dando a devida dimensão ao interesse, na linha do pensamento nietzscheano. No entanto, consciente e voluntariamente, impôs para si mesmo um sacrifício e pelo sentido utilitário que imprimiu a sua obra, conformou a estética à verdade psicológica, e o fez em favor do povo. A falta de resolução dialética entre o seu individualismo e suas intenções sociais não lhe permitiu, por mais que quisesse, de objetivar o próprio conselho, conforme explicitou em “o artista e o artesão” (ANDRADE, 1975, p. 13), que consiste em aproximar a arte literária do povo. Como o artista romântico, a expressão de si mesmo tornou sua obra cada vez mais pessoal e, portanto, inatingível ao povo. Por um lado, ele não era povo e não se conformava e, por outro, o povo, como ele esperava, não elevou a sensibilidade para alcançá-lo (ANDRADE, 1980, p. 209), e apreciar o “biscoito fino” de sua fabricação, utilizando-se de uma metáfora de Oswald de Andrade. Permaneceu, pois, hermético à consciência do grande público. Como aquele modelo de Amar, verbo intransitivo, Mário-Fräulein, homem-da-vida e homem-do-sonho, o primeiro, o da arte, objetivou o caminho da estética mariodeandradiana cheio de boas intenções, e o outro, o do sonho, do povo, só restou manifestações que pareceram meio incoerentes. Viveu, enfim, a utopia de uma consciência universal, em que o absoluto, aquela necessidade essencial de superação, seria acessível a todos os homens por meio da arte e lhes daria um sentido profundo do estar no mundo. Viveu, a utopia, na mais profunda acepção da palavra, do homem da arte do povo.

A consciência da antítese, por fim, não se reverteu em síntese. Extremamente significativo do seu conflito interior (ou vocação sacrificial, como preferimos anteriormente, ou, ainda, falta de resolução dialética, como também utilizamos) são as últimas linhas de “O movimento modernista” (ANDRADE, 1974, p. 254-255). Por um lado, sugere “discreção” [sic] (“a virarmos por aí cacoeteiros de atualidade, macaqueando as atuais aparências do mundo”); por outro, recusa-se a imaginar na inutilidade das tragédias contemporâneas. Por um lado, o “Homo Imbecilis acabará entregando os pontos à grandeza do seu destino”, mas, por outro, reconhece que atravessamos uma fase integralmente política da humanidade, em que os abstencionismos e os valores eternos “podem ficar pra depois”. Há uma nota neste ponto do texto:

Sei que é impossível ao homem, nem ele deve abandonar os valores eternos, amor, amizade, deus, a natureza. Quero exatamente dizer que numa idade humana como a que vivemos, cuidar desses valores apenas e se refugiar em livros de ficção e mesmo de técnica, é um abstencionismo desonesto e desonroso como qualquer outro. Uma covardia como qualquer outra. De resto, a forma política da sociedade é um valor eterno também. (ANDRADE, 1974, p. 255).

Afinal, a busca de conforto num sentimento de renúncia, na auto-tortura do dilaceramento, acreditando na superação e na felicidade: “... um dia afinal eu toparei comigo.” (ANDRADE, 1976, p. 189). Seria demais dizer que a morte encontrou-o nessa tensão?

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[1] Trata-se de uma série de sete crônicas reproduzidas por Mário da Silva Brito (1974, p. 254-309). Os “Mestres do Passado”, originalmente, foram apresentados ao público por Oswald de Andrade que cedeu a Mário o seu lugar no Jornal do Comercio, em 1921.

[2] Lukács (1968, p.37-8) lembra o problema da chamada arte de tendência ou de tese, que corresponde a uma tendência política ou social do artista que ele quer defender com sua própria obra de arte. Marx e Engels, retomados por Lukács, ironizam esses projetos, uma vez que o escritor, nessa demonstração, violenta a realidade objetiva. “Considero que a tese deva brotar da situação e da ação, sem que a ela se faça referência de maneira explícita, e o poeta não está obrigado a por nas mãos do leitor já pronta a solução histórica para os conflitos históricos por ele descritos.” A tese se concilia com a arte desde que brote organicamente da essência artística da obra, da representação artística, quer dizer, da realidade mesma, da qual a arte constitui o reflexo dialético. A arte de tese é uma evidência da sugestão de que todo escritor, em uma sociedade dividida em classes, para ser grande, deve ter um posicionamento de esquerda. No entanto, justamente os autores preferidos de Marx e Engels, demonstraram o contrário. Shakespeare, Goethe, Walter Scott, Balzac não tiveram um posicionamento de esquerda.

[3] De março de 1939 a setembro de 1940, o escritor assinou semanalmente a coluna “Vida Literária” do Diário de Notícias do Rio de Janeiro.

[4] Sabemos do profundo conhecimento de Mário de Andrade sobre música. Diplomou-se em piano no Conservatório dramático e musical de São Paulo e ali foi professor de estética e história da música prolongando suas aulas no Compêndio e na Pequena História da Música. Consta que teria desistido da carreira de concertista por causa de um tremor das mãos, decorrência de uma profunda crise emocional desencadeada pelo excesso de trabalho e pela morte do irmão Renato, em 1913, aos 14 anos, devido a complicações decorrentes de uma cabeçada num jogo de futebol.

[5] Todos os grandes romancistas possuem o seu mundo — reconhecível como justapostos ao mundo empírico, mas distintos na sua inteligibilidade autocoerente.

[6] Primeiro andar foi publicado em 1926. Conforme a terceira edição de Obra Imatura (1980), onde foram incluídos os contos de Primeiro andar, p.43-194, há datas acompanhando os contos, conforme segue: “Conto de Natal”, 1914; “Caçada de Macuco”, 1917; “Caso Pansudo”, 1918; “Galo que não cantou”, 1918; “Eva”, 1919; “Brasilia”, 1921; “História com data”, 1921 e “Moral cotidiana”, 1922.   

[7] ETTIENNE FILHO, J. Um “intermezzo” na obra de Mário de Andrade. In: ANDRADE, M. Namoros com a medicina. 

[8] A assertiva “ninguém o saberá jamais” virá a tona na voz do narrador de Amar, verbo intransitivo inumeráveis vezes e constitui-se em “uma sátira dolorosa para mim e para todos os filhos do tempo, a essa profundeza e agudeza de observação psicológica dos dias de agora” como confessa Mário de Andrade (1999, p. 154).

[9] O Banquete foi escrito entre 1944 e 1945 na forma de artigos publicados na Folha da manhã. Colhido pela morte, Mário de Andrade não teve tempo de terminar. Texto recheado de personagens descaradamente simbólicos, O banquete conta os preparativos e a consumação de um almoço na cidade de Mentira. Por causa do DIP, Mário não podia dizer que a história se passava no Brasil. O banquete é promovido por uma mecenas judia chamada Sarah Light, que nada entende de música, para tentar fazer o encontro do compositor brasileiro Janjão, por quem estava apaixonada, e o subprefeito de Mentira, Félix de Cima, fascista e representante de um governo totalitário (como o de Getúlio) que poderia produzir a obra do músico. Do banquete também participam uma cantora lírica de origem espanhola, Siomara Ponga, e o jornalista e vendedor de apólices de seguros Pastor Fido. Cada um dos personagens representa uma posição definida em torno da meditação estética mariodeandradiana.

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 13 abril, 2006.