A permanência de Trotsky
      
      
      
      
      
       
      
      
      
        
        
          
            | 
               Resumo
              
               
              Tendo
              como ponto de partida a experiência da revolução de 1905, este
              artigo descreve e analisa algumas das teorias elaboradas sobre a
              Revolução Russa, destacando as dos mencheviques, de Lenin e de
              Trotsky, traçando semelhanças e diferenças nas dos dois últimos.
              Também se analisa a concepção de partido defendida por Lenin,
              corroborada por Trotsky em 1917. Por fim, à luz da compreensão
              da organização de partido de Lenin e da "revolução
              permanente" de Trotsky, faz-se um balanço dos processos de
              revolução e mudança social ocorridos após 1917.
              
               
              Palavras-chave:
              Revolução Russa; Revolução Permanente; Leon Trotsky.
              
               
              Abstract
              
               
              Having
              as starting point 1905 revolution experience, this article
              describes and analyzes some of elaborated theories about Russian
              Revolution, pointing out the ones of mensheviks, of Lenin and of
              Trotsky, drawing up similarities and differences on lasts two
              theories. The
              conception
              of party defended by
              Lenin and corroborated by
              Trotsky in 1917 is
              also analyzed.
              Finally, at light of understanding Lenin’s party organization
              and of Trotsky’s “permanent revolution”, it takes stock of
              revolution and social change processes occurred after 1917.
              
               
              Key-words:
              Russian Revolution; Permanent Revolution; Leon Trotsky.  | 
          
        
        
       
       
      
      
      
O
      ano em que lembramos os sessenta e cinco anos do assassinato de Trotsky
      deve ser também para lembrar os cem anos da revolução de 1905. O
      revolucionário russo chamava de “prólogo” à Revolução Russa esse
      primeiro levante dos trabalhadores russos, contendo “todos os elementos
      do drama que, entretanto, ainda não estava terminado” (Trotsky, 1978,
      p. 31). Em obras de balanço a esta revolução (principalmente Resultados
      e Perspectivas, de 1906), cuja eclosão está ligada à situação
      precária do país diante da guerra contra o Japão, Trotsky apresentou as
      primeiras notas sobre a teoria da revolução permanente, que
      consideramos sua maior contribuição para o marxismo e destacamos como a
      melhor ferramenta para entender os processos revolucionários do século
      XX.
      
      
      O
      partido do proletariado
      
      
      A
      revolução de 1905 ocorreu dois anos após uma cisão, em seu segundo
      congresso, dentro do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR),
      dando origem a suas duas principais frações (bolcheviques e mencheviques).
      Tal cisão foi motivada pela divergência sobre a forma como deveria se
      dar a organização partidária. Era posição defendida por alguns que a
      mera colaboração em qualquer órgão do partido fazia da pessoa um
      militante. Lenin, no entanto, propunha um partido onde a militância não
      estava associado à simples simpatia ou à colaboração eventual.
      “Considera-se membro do partido todo aquele que aceita o programa e apóia
      o partido tanto materialmente como pela sua participação pessoal numa
      das organizações do partido” (Lenin, 1984a, p. 43), foi a formulação
      defendida por Lenin, que entendia, segundo Coggiola (1997, p. 61), o
      partido como “uma organização de revolucionários profissionais,
      conspirativa e centralizada, que fosse ao mesmo tempo uma organização
      operária, com ampla margem para o debate interno (mas com plena unidade
      de ação)”. Pode-se resumir assim as duas propostas então
      apresentadas:
      
      
      1)
      um partido que seja uma ampla frente de setores da esquerda, com programa
      superficial, cuja função é aglutinar os mais variados setores da
      esquerda; 
      
      
      2)
      um partido operário de vanguarda, centralizado na política e na ação,
      com um programa claramente revolucionário.
      
      
      Para
      Lenin, o que importava era a participação efetiva e cotidiana na construção
      do partido; este não deveria ser apenas um amontoado de pessoas engajadas
      em alguma causa comum que considerassem “justa” ou “importante”. A
      organização partidária deveria se dar como um exército de pessoas
      treinadas e armadas politicamente para dirigir uma revolução contra a
      ordem estabelecida, precisando nesse sentido possuir uma profunda unidade
      programática, que nunca seria possível em uma frente ampla e heterogênea
      de esquerda. Em oposição a Lenin, se propunha uma organização de
      estrutura frouxa, que priorizasse a luta institucional e a disputa de espaços
      eleitorais e buscasse na burguesia liberal uma aliada permanente e estratégica
      na revolução. É o próprio Lenin, no prefácio a Um passo em frente,
      dois passos atrás, quem esclarece essa questão:
      
      
      Em
      essência toda a posição dos oportunistas em matéria de organização
      começou a revelar-se já na discussão do parágrafo primeiro [sobre a
      forma de organização do partido]: na sua defesa de uma organização do
      partido difusa e não fortemente cimentada; na sua hostilidade à idéia (à
      idéia “burocrática”) de edificação do partido de cima para baixo,
      a partir do congresso do partido e dos organismos por ele criados; na sua
      tendência para atuar de baixo para cima, permitindo a qualquer professor,
      a  qualquer estudante de liceu
      e a “qualquer grevista” declarar-se membro do partido; na sua
      hostilidade ao “formalismo”, que exige a um membro do partido que
      pertença a uma organização reconhecida pelo partido; na sua tendência
      para uma mentalidade de intelectual burguês, pronto apenas a
      “reconhecer platonicamente as relações 
      de organização”; na sua inclinação para essa sutileza de espírito
      oportunista e as frases anarquistas; na sua tendência para o autonomismo
      contra o centralismo. (Lenin,
      1984a, p. 6-7)
      
      
      No
      debate sobre a forma de organização, Trotsky esteve alinhado à posição
      dos mencheviques, ou seja, do partido amplo e sem definição clara de
      militância. Esta posição acabou saindo vitoriosa no congresso, embora
      em outra votação importante, para a direção do partido, Lenin tivesse
      conseguido maioria (daí vir os nomes “bolchevique” e “menchevique”,
      respectivamente maioria e minoria). Trotsky, mesmo tendo nesse ponto se
      alinhado aos mencheviques – e tendo inclusive se organizado por algum
      tempo nessa fração do partido – tinha uma perspectiva política
      diferente desses eventuais aliados. No balanço desta polêmica o próprio
      Lenin afirmava que o “caráter de divergência apenas começava a
      desenhar-se e muitos na realidade não conseguiam ainda orientar-se”
      (1984a, p. 74).
      
      
      As
      divergências entre Trotsky e os mencheviques ficaram expressas inclusive
      no próprio congresso de 1903, na medida que Trotsky, em outras votações,
      cujo caráter era mais claramente político, votou e defendeu propostas em
      conjunto com Lenin. Tanto nas atas quanto no jornal do congresso – este
      último preparado pelo próprio Lenin – fica claro “que Trotsky não
      se contrapôs a nenhuma das teses do programa do partido preparado por
      Lenin” (Coggiola, 1997, p. 72). Enquanto uma divergência de conteúdo
      político, estratégica para a revolução, cindia o partido em maioria e
      minoria, a crítica que fez Trotsky defender um ponto junto aos
      mencheviques se dava unicamente por sua incompreensão das tarefas da
      organização revolucionária no país.
      
      
      Para
      Trotsky, o tipo de organização proposta por Lenin poderia dar origem a
      uma organização burocrática, autoritária, concentrando o controle do
      partido nas mãos de um pequeno núcleo dirigente. Mesmo tendo clareza da
      política proposta pelos setores reformistas, e combatendo estas posições,
      Trotsky via a necessidade de construir um partido único com os
      mencheviques, vendo como negativa a divisão no POSDR, que Lenin e sua fração
      tinham provocado. Com isso, Trotsky chegou, nos anos posteriores ao
      congresso, a escrever vários textos criticando os bolcheviques e sua
      forma de organização.
      
      
      Teorias
      da revolução
      
      
      Frente
      à revolução de 1905, foram muitos os marxistas que passaram a teorizar
      sobre o processo revolucionário russo. Os mencheviques, Plekhanov à
      frente, defendiam que a russa seria uma revolução burguesa clássica,
      fazendo a transição de um modo de produção atrasado para o
      capitalismo, trazendo conquistas do ponto de vista democrático (reforma
      agrária, legalização dos partidos de oposição, voto republicano
      etc.).
      
      
      Este
      pseudo-marxismo consistia essencialmente em transformar o pensamento
      condicional e limitado de Marx: Os países adiantados mostram aos países
      atrasados a imagem do seu desenvolvimento futuro, numa lei absoluta,
      supra-histórica, na qual aquele se esforçaria por basear a tática do
      Partido da classe operária. (Trotsky, 1979, p. 15)
      
      
      O
      papel dos marxistas, nesse sentido, seria o de organizar os trabalhadores
      em uma ala esquerda do movimento revolucionário dirigido pela burguesia,
      pressionando esta para que as conquistas do proletariado fossem as mais
      profundas possíveis. Como comenta Kochan (1966, p. 152), “pareceu aos
      mencheviques por si mesmo evidente que, em um uma revolução burguesa, a
      burguesia deveria tomar a dianteira. Como conseqüência, o proletariado e
      os sociais-democratas, o partido do proletariado, deviam desempenhar papel
      subordinado”.
      
      
      Lenin
      e Trotsky divergiam dessa visão, particularmente no que se refere à direção
      burguesa, descartando qualquer possibilidade de unidade estratégica com
      estes setores na revolução. Também viam nos sovietes, surgidos na
      revolução de 1905, o embrião do poder revolucionário. Lenin,
      refletindo sobre os sovietes, chamava-os de “núcleos potenciais de
      revolução” e “órgãos de autoridade revolucionária”. Segundo
      Kochan (1966, p. 152), Lenin via os sovietes “como o embrião de um
      governo revolucionário sob controle independente do partido”, enquanto
      os mencheviques viam neles “um papel algo passivo de um congresso de
      trabalhadores”.
      
      
      Lenin
      afirmava que na revolução de 1905 o soviete de Petrogrado, presidido por
      Trotsky, havia cumprido um papel decisivo, de um governo revolucionário
      ao qual coube tarefas fundamentais durante todo o processo. Contudo, Lenin
      compartilhava com os mencheviques a visão de que “dada a natureza
      semifeudal e retardada da sociedade russa, não se podia pensar de modo
      algum em uma transição imediata para o socialismo” (Kochan, 1966, p.
      152). Para Lenin,
      
      
      a
      revolução seria burguesa no quanto ficasse limitada a uma ordem social
      baseada na instituição da propriedade privada. Mas seria proletária no
      quanto o proletariado, em razão da fraqueza da burguesia russa, assumisse
      o papel da liderança na revolução. Mais ainda, a classe camponesa,
      conquanto de modo algum socialista ou deixando de ser pequeno-burguesa,
      “não estava tão interessada na preservação absoluta da propriedade
      privada quanto no confisco das propriedades agrárias”. Isso a tornava
      aliada do proletariado, uma adepta entusiástica e assaz radical da revolução
      democrática. (Kochan, 1966, p. 154)
      
      
      As
      tarefas da revolução não seriam aquelas da revolução proletária, mas
      sim o que pudesse haver de acordo entre operários e camponeses, dentro
      dos marcos de uma  revolução
      democrática e burguesa. 
      
      
      Objetivamente,
      a marcha histórica das coisas colocou agora ao proletariado russo
      exatamente a tarefa da revolução democrático burguesa (todo o conteúdo
      da qual nós designamos, por uma questão de brevidade, pela república);
      esta mesma tarefa se coloca a todo o povo, isto é, a toda massa da
      pequena burguesia e do campesinato; sem esta revolução é inconcebível
      qualquer desenvolvimento minimamente amplo da organização de classe
      independente para a revolução. (Lenin,
      1984b, p. 164)
      
      
      Caminhava-se,
      portanto, a uma ditadura democrática de operários e camponeses,
      produto de uma revolução burguesa sui generis, em que a burguesia
      não assumiria a direção do processo, mas na qual as classes dirigentes
      não superariam o programa da própria burguesia nem atacariam de forma
      radical a propriedade privada. Lenin assim definia esse processo:
      
      
      Quanto
      mais nós conquistarmos agora, quanto mais energicamente defendermos o que
      conquistamos, tanto menos poderá ser retirado em conseqüência da inevitável
      reação futura, tanto mais breve serão estes intervalos de reação,
      tanto mais fácil será a tarefa para os lutadores proletários que nos
      seguem. (1984b, p. 165)
      
      
      Mesmo
      tendo pontos comuns com Lenin, a perspectiva de Trotsky era outra. Para
      este, a revolução não iria se limitar meramente a formar uma república
      burguesa, com um governo democrático de coalizão de classes, que
      garantisse ao capitalista russo o tempo necessário para se desenvolver,
      como defendiam os mencheviques. Também não tinha acordo com Lenin quando
      este limitava o desenvolvimento da revolução aos marcos de uma república
      burguesa (ainda que sobre outras bases, revolucionárias). Para Trotsky, a
      realização das tarefas da revolução (democráticas ou socialistas) só
      poderiam ser realizadas pela ditadura revolucionária do proletariado.
      
      
      A
      revolução permanente
      
      
      Diante
      da falência da burguesia enquanto direção revolucionária, na medida
      que esta era pilar de sustentação do czarismo e estava ligada de forma
      íntima ao Imperialismo, o proletariado, com apoio dos camponeses, deveria
      transformar a revolução burguesa em uma revolução de conteúdo
      socialista, tomando para si o controle dos meios de produção e
      construindo seu próprio poder, através dos sovietes. Afirma Coggiola que
      
      
      a
      burguesia, chegando tarde ao cenário histórico, é incapaz de dar
      verdadeira solução aos problemas da constituição da nação
      (democracia e libertação nacional): eles só podem ser resolvidos pela
      ditadura do proletariado, tomando o comando da nação oprimida, em
      especial de suas massas camponesas. Sob a direção operária, a revolução
      não se detém na etapa democrática, passando a atacar a propriedade
      privada e a construção da ordem socialista. (1984, p. 14)
      
      
      As
      tarefas da revolução democrática seriam incorporadas em um processo
      maior, de derrocada capitalista, de revolução permanente. O
      proletariado russo não precisaria esperar a revolução socialista na
      Europa: tinha possibilidade de acelerar o processo histórico, dar um
      salto, assumindo em sua revolução tarefas que a burguesia havia
      abandonado. Não era mais de interesse da burguesia a defesa da nação e
      de um desenvolvimento capitalista autônomo. Ela passara à submissão às
      burguesias dos países mais avançados economicamente. Com isso fica
      expressa a lei do desenvolvimento desigual e combinado, “que
      significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases
      diferenciadas, amálgama das formas mais arcaicas com as mais modernas”
      (Trotsky, 1978, p. 25).
      
      
      Trotsky
      salienta que os países atrasados, além de terem processos diferentes
      entre si, não repetem de forma mecânica o caminho dos países
      adiantados. Na Rússia conviviam concentrações industriais, bastante
      desenvolvidas, com formas extremamente atrasadas no campo. Além disso, a
      Rússia, apesar de ser um país de grande retardamento econômico, buscava
      manter uma relação imperial com outros países, ao mesmo tempo que tinha
      um relação de submissão em relação ao capital financeiro europeu.
      “Quanto mais mundial fosse o caráter revestido pela economia
      capitalista, tanto mais especial seria o caráter adquirido pela evolução
      dos países atrasados, onde os elementos retardatários se combinavam com
      os mais modernos elementos do capitalismo (Trotsky, 1979, p. 15-16)”.
      
      
      Lenin
      e a revolução permanente
      
      
      Em
      1917, após a experiência da revolução de fevereiro, Lenin se aproximou
      dos princípios básicos da teoria da revolução permanente partindo de
      sua própria teoria de revolução. Um exemplo está na primeira das Cartas
      de longe, em que Lenin trata de caracterizar a revolução de
      fevereiro e o governo provisório que dela foi produto:
      
      
      São
      os representantes da nova classe que subiu ao poder político na Rússia,
      a classe dos latifundiários capitalistas e da burguesia, que já há
      muito dirige economicamente o nosso país e que, tanto no tempo da
      revolução de 1905-1907 como no tempo da contra-revolução de 1907-1914
      e finalmente – e com particular rapidez – no tempo da guerra
      1914-1917, se organizou politicamente de maneira extremamente rápida,
      tomando nas suas mãos tanto as administrações locais como a educação
      pública, congressos de todo o Gênero, a Duma, os comitês industriais de
      guerra, etc. Esta nova classe estava já “quase totalmente” no poder
      em 1917; por isso, bastaram os primeiros golpes contra o czarismo para que
      ele se desmoronasse, deixando o lugar à burguesia. A guerra imperialista,
      exigindo uma incrível tensão de forças, acelerou de tal forma o
      processo de desenvolvimento da atrasada Rússia que nós, de um só golpe
      (de fato aparentemente de um só golpe), alcançamos a Itália,
      a Inglaterra, quase a França, obtivemos um governo “de coligação”,
      “nacional” (isto é, adaptado para realizar o massacre imperialista e
      para enganar o povo) e “parlamentar”. (1985a, p. 84)
      
      
      Segundo
      Lenin, a primeira etapa da revolução (ou a primeira revolução), em
      fevereiro de 1917, não trouxe mudanças profundas na realidade da Rússia.
      No entender de Lenin, houve apenas uma mudança no arranjo político entre
      as classes, na medida que a burguesia deixava de ser apenas uma classe de
      grande peso no controle da sociedade para se tornar a classe dirigente da
      política no país. Não cabia realizar uma revolução burguesa, em seu
      sentido clássico, que garantiria à Rússia um período para desenvolver
      seu capitalismo, na medida que o país havia alcançado outros
      importantes países europeus. Isso posto, as tarefas da revolução
      burguesa passavam a se inserir no contexto da revolução socialista (um
      princípio fundamental da teoria desenvolvida por Trotsky). Isso fica mais
      claro nas Cartas sobre a tática, onde Lenin afirma:
      
      
      Antes
      da revolução de Fevereiro-Março de 1917 o poder de Estado na Rússia
      estava nas mãos de uma velha classe, a saber: a classe da nobreza feudal
      latifundiária (...). Depois desta revolução o poder está nas mãos de outra
      classe, de uma classe nova: a burguesia. (...) Nesse sentido, a
      revolução burguesa ou democrático burguesa na Rússia está terminada.
      (1985b, p. 122)
      
      
      A
      revolução burguesa colocou como única novidade, como antes o havia
      feito nos países ocidentais, a ascensão de um novo regime (e conseqüentemente
      um novo governo). A situação específica do país, no contexto da lei do
      desenvolvimento desigual e combinado, fez com que o desenvolvimento
      capitalista não viesse a partir de uma mudança na classe dominante, mas
      sim na própria relação com o imperialismo. 
      
      
      Considerada
      à parte, a Revolução de fevereiro era uma revolução burguesa. Mas
      como revolução burguesa, era demasiadamente tardia, não encerrando em
      si  nenhum elemento de
      estabilidade. Dilacerada por contradições que imediatamente se
      manifestaram pela dualidade de poder, deveria transformar-se em introdução
      direta à Revolução proletária. (Trotsky, 1979, p. 17)
      
      
      O
      ciclo da revolução burguesa teve como desfecho na Rússia o que na
      Europa havia sido seu começo, abrindo uma nova perspectiva para o
      proletariado russo – ao qual não caberia apenas ser uma fração de
      esquerda em uma Assembléia Constituinte, mas organizar seu próprio
      poder. De forma inteiramente nova, a “revolução democrática” deu
      origem ao poder (os sovietes) que viria a destruí-la.
      
      
      A
      “ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato”
      já se realizou (em certa forma e em certa medida) na revolução
      russa, porque esta “fórmula” prevê apenas a correlação de
      classe e não uma instituição política concreta que realize
      esta correlação, esta cooperação. O “soviete de deputados operários
      e soldados” – eis a “ditadura democrática revolucionária do
      proletariado e do campesinato” já realizada pela vida. (Lenin,
      1985b, p. 122-123) 
      
      
      Como
      dissemos acima, Lenin passava a corroborar nos princípios básicos com
      Trotsky, ao entender a revolução de fevereiro como um processo político
      (e não de transformação estrutural da sociedade) e ao definir que esta
      mesmo revolução não iniciava um ciclo de desenvolvimento capitalista
      mas sim colocava, de imediato, a necessidade da passagem do poder para o
      proletariado, apoiado pelos camponeses. Não se tratavam pois, de
      processos isolados entre si, mas de um grande drama, de mais de uma década
      de duração, com reveses e momentos de suspense, que teve seu prólogo em
      1905. Conclui Coggiola (1997, p. 89): 
      
      
      Se
      o que impediu a tomada do poder pelo proletariado em fevereiro foi só sua
      insuficiente consciência e organização (um fator político), isso
      significa que não existe uma “revolução nacional” separada por uma
      etapa histórica da revolução proletária (o que significa admitir o
      princípio básico da “revolução permanente”). 
      
      
      Essa
      convergência de Lenin à teoria da revolução permanente e a convergência
      de Trotsky ao partido bolchevique foram os dois fatores fundamentais para
      a tomada do poder pelos sovietes em outubro de 1917.
      
      
      Trotsky
      e o bolchevismo
      
      
      A
      elaboração da teoria da revolução permanente, a qual dava conta da dinâmica
      do processo revolucionário russo, não deve servir para esquecer que
      Trotsky também cometeu erros em sua vida política. Da ruptura com Lenin
      em 1903, até a fusão de seu grupo ao Partido Bolchevique em 1917, foram
      anos de duras divergências, inclusive com troca de insultos, as quais
      Trotsky creditou a sua própria imaturidade e ao calor da luta política.
      As quase duas décadas defendendo a teoria da revolução permanente, no
      entanto, faziam Trotsky ter clareza de que ela seria apenas mais uma entre
      muitas se não houvesse um fator fundamental na revolução: o partido
      operário revolucionário.
      
      
      Há
      muito estavam superadas as ilusões na ala direita da social-democracia,
      os mencheviques; não havia mais perspectivas de um partido único da
      classe operário. Principalmente, estava claro que a divergência sobre a
      forma de organização do partido não era apenas um problema de um
      suposto sectarismo de Lenin, mas sim um problema da estratégia política
      e de perspectiva revolucionária. Ainda que não se pudesse fazer uma
      transposição exata, de alguma forma estavam confirmadas as palavras de
      Lenin quando fez o balanço do congresso de 1903: “A divisão em maioria
      e minoria é a continuação direta e inevitável da divisão da
      social-democracia em revolucionária e oportunista” (1984a, p. 138).
      
      
      Mesmo
      tendo errado em sua apreciação da dinâmica da revolução, Lenin
      percebeu desde o início, não importasse qual revolução acontecesse,
      que era fundamental construir um partido operário independente, coeso política
      e organicamente, e que servisse como ferramenta e direção do
      proletariado. Corretamente afirma Coggiola:
      
      
      O
      papel da vanguarda revolucionária não consiste em inventar uma revolução,
      mas em dar resposta às alternativas criadas pela situação concreta,
      reconhecendo a ocasião propícia para tornar consciente o movimento
      inconsciente da história, tomando a sua direção. (1997, p. 91)
      
      
      Nesse
      sentido, ainda que tivesse fundamental importância no debate político e
      teórico em 1917, as formulações de Trotsky nenhum impacto prático
      teriam se Lenin não tivesse sido “sectário” nos anos anteriores.
      
      
      O
      mundo após 1917
      
      
      Da
      convergência das idéias e da prática de dois dos maiores marxistas do
      início século passado, apontando diante das situações concretas uma
      caminho político revolucionário ao proletariado, é produto um fato que
      ficou quase inédito na História: uma revolução proletária. Embora o século
      tenha sido marcado por inúmeras rebeliões e revoluções, em nenhum
      desses momentos esteve presente os dois elementos fundamentais a uma
      revolução socialista: o organismo do poder proletário (os sovietes, no
      caso da Rússia) e o partido operário revolucionário, deixando a Revolução
      Russa quase que como um fato histórico inédito.
      
      
      Destacamos
      isso pois Trotsky e Lenin, diante do atraso do país, tinham claro que o
      proletariado russo teria dificuldades de se manter no poder, ainda que com
      apoio dos camponeses. A permanência da revolução não se daria apenas
      no ponto de vista das tarefas internas a serem realizadas, mas também no
      sentido de impulsionar a revolução socialista nos demais países.
      Somente a vitória do proletariado dos países ocidentais, “avançados”,
      poderia proteger a Rússia de uma possível restauração capitalista.
      
      
      Em
      um primeiro momento, logo após a Revolução Russa, países como Hungria
      e Alemanha viram levantes operários de imensa magnitude, chegando a tomar
      o poder (no caso da Hungria) e organizando organismos semelhantes aos
      sovietes russos. Contudo, a derrota sofrida pelos trabalhadores nesses
      processos, somado à tentativa dos países imperialista no sentido de
      derrotar o poder soviético na Rússia, fez com que o mundo entrasse em um
      período de grave crise, da qual são produto alternativas burguesas
      conservadoras e autoritárias, como o fascismo e o nazismo. No entanto,
      cabe dizer que o otimismo de Trotsky e Lenin em relação à revolução
      mundial não foi equivocado. É preciso identificar que os trabalhadores
      dos demais países, principalmente na Europa, seja nos processos
      revolucionários, seja em greves e outras lutas, mostrou que o otimismo
      dos revolucionários russos tinha uma base concreta, não sendo pois um
      mero delírio.
      
      
      Isso
      é uma coisa, outra é a ausência de uma direção revolucionária,
      experiente e coesa, nesses países, como havia na Rússia. A crise na II
      Internacional, durante a Primeira Guerra, havia fraturado o movimento
      revolucionário mundial de tal forma que os partidos revolucionários ou
      eram muito pequenos ou não tinham uma coluna de quadros dirigentes mais
      experientes. Com isso, a vontade de luta dos trabalhadores em todo o
      mundo, entusiasmados pela vitória dos seus companheiros russos, acabou não
      os levando ao poder, na medida que não havia uma direção política.
      
      
      Outro
      aspecto importante a ser destacado é o dos processos revolucionários (ou
      de mudança social) que tiveram à sua frente direções burguesas, com
      destaque para a América Latina. Tais processos poderiam servir como
      argumento para derrubar a teoria de Trotsky, na medida que estaria provado
      que a burguesia tem condições de ser uma aliada estratégica em
      processos revolucionários. Tal raciocínio, no entanto, carece de
      qualquer fundamentação, na medida que um rápido olhar por esses países
      mostra que as burguesias nativas não eram de fato aliadas nos processos
      revolucionários, ainda que fossem a direção, mas lutavam no sentido de
      conquistar interesses particulares seus.
      
      
      Não
      estava em jogo a independência nacional rumo a um desenvolvimento
      capitalista autônomo, mas sim a sustentação dos interesses de certos
      grupos burgueses. Apesar dos discursos que inflamavam massas, de tímidas
      medidas anti-imperialista, os governos burgueses nacionalistas em nenhum
      momento afetaram de forma contundente a propriedade privada, muito menos
      apresentaram qualquer alternativa radical de mudança para o país. Estava
      em jogo para os governos nacionalistas desenvolver os setores da burguesia
      que lhe davam sustentação política, às vezes inclusive vendendo
      interesses a uma potência imperialista para prejudicar outra.
      
      
      Havia,
      portanto, uma contradição profunda, na medida que o proletariado
      organizado não conseguia ir além de sua direção burguesa. Os
      trabalhadores a cada luta deixavam suas burguesias atordoadas,
      obrigando-as a dar concessões, às vezes derrotando golpes militares e
      governos ditatoriais, demonstrando que o principal fator dos movimentos
      nacionalistas não era a débil burguesia que tentava dirigir o processo,
      mas sim os trabalhadores organizados e em luta. Fica assim claro que, à
      exemplo da Rússia, os trabalhadores poderiam ter tomado o poder, criando
      seu próprio estado e cumprindo as tarefas que a revolução burguesa não
      havia cumprido.
      
      
      Os
      movimentos nacionalistas têm sua vigência na medida em que as tarefas
      democráticas e de emancipação nacional não foram cumpridas; mas esses
      movimentos, que são capazes de formular essas tarefas, são incapazes de
      resolvê-las, o que exige a mobilização revolucionária da nação
      inteira, que só a classe operária pode encabeçar. Lutando contra o
      inimigo fundamental, o imperialismo, os operários devem proclamar desde o
      início sua independência política em relação ao nacionalismo burguês,
      pequeno-burguês e militar, e organizar a luta pelo governo operário-camponês.
      (Coggiola, 1984, p. 75)
      
      
      Apenas
      uma questão política mantinha os trabalhadores ligados à direção
      burguesa, na medida que os partidos e demais organizações com hegemonia
      nos meios proletários tinham como estratégia o desenvolvimento
      capitalista junto à burguesia, reeditando de forma muitas vezes vil e
      traiçoeira as formulações teóricas mencheviques, antes enterradas pela
      revolução de 1917. A estagnação, portanto, das revoluções na América
      Latina não se deu por falta de condições objetivas, mas sim por conta
      da traição sistemática das várias direções ou pela ausência de um
      partido operário revolucionário.
      
      
      A
      crise de direção revolucionária
      
      
      Nesse
      ponto, coloca-se mais uma das questões caras a Trotsky: a crise de direção
      revolucionária do proletariado. Escreveu Trotsky que “a condição econômica
      necessária para a revolução proletária já alcançou, no geral, o mais
      alto grau de maturação possível sob o capitalismo”, mas “o
      principal obstáculo no caminho da transformação da situação pré-revolucionária
      em situação revolucionária, é o caráter oportunista da direção do
      proletariado, sua covardia pequeno-burguesa frente à grande burguesia e
      os laços traidores que mantém com esta, mesmo em sua agonia” (1989, p.
      11, 12).
      
      
      Nesse
      contexto surgem as chamadas frentes populares, governos em que as
      direções proletárias assumem o poder do Estado em aliança com setores
      da burguesia (ou representantes destas), para governar a ordem da
      propriedade privada, estagnando o movimento de massas e desmoralizando a
      esquerda, abrindo assim caminho para a volta de alternativas conservadoras
      aos governos. Desvia-se, pois, de seu caminho a luta dos trabalhadores,
      tirando de sua perspectiva as mudanças radicais na sociedade (a revolução
      socialista) para colocá-la no sentido de governar a ordem capitalista.
      
      
      Hoje
      mesmo, no Brasil e na Venezuela, é possível ver exemplos dessa crise de
      direção. No primeiro, o principal partido de esquerda da América
      Latino, assumindo compromissos com organismos do imperialismo e sua
      principal potência, chegou ao governo central, tentando garantir à
      burguesia a solução de uma crise institucional e pôr fim às lutas que
      haviam quase derrubado o governo anterior. Na Venezuela, a força do
      proletariado acaba se concentrando no sentido de defender o presidente
      eleito pelo voto democrático, ajudando-o a levar a cabo seu limitado
      projeto de avanços sociais, nos marcos da democracia burguesa e da
      propriedade privada.
      
      
      Em
      ambos os casos, não há uma direção operária conseqüente, que consiga
      armar politicamente os trabalhadores brasileiros e venezuelanos, no
      sentido de superar os limites da luta meramente institucional. Na
      Venezuela, principalmente, ao derrotar um golpe bancado pela burguesia
      local e apoiado pelos Estados Unidos, a força dos trabalhadores, seja a
      população mais pobre, sejam os operários do estratégico setor petrolífero,
      demonstrou que a teoria da revolução permanente, em sua essência, está
      na ordem do dia – falta apenas superar a crise da direção política.
      As condições para que os trabalhadores venezuelanos tomem em suas mãos
      as rédeas do país estão maduras, bastante para isso superar, a partir
      do processo limitado de mudanças sociais hoje existentes, a direção
      burguesa encabeçada Chávez. 
      
      
      A
      vitória de Lula no Brasil demonstra a falência de esperar uma fase
      “democrática” e de “desenvolvimento nacional” – infantis ilusões
      de reviver, de forma nostálgica, o nacionalismo de décadas atrás. A força
      econômica do Brasil, seu desenvolvimento industrial e científico
      demonstram o quanto não precisamos disso. A opção da própria burguesia
      pelo governo do PT, que não é um representante direto seu, o demonstra.
      Lula, eleito pelo voto “democrático”, 
      era uma última alternativa no sentido de evitar uma revolução
      que colocasse o país no caminho do socialismo. Mais do que isso, da mesma
      forma que Lula serviu de bombeiro nas rebeliões populares em toda a América
      Latina, um governo socialista no Brasil teria posto fogo no caldeirão que
      virou o continente nos últimos anos.
      
      
      A
      permanência de Trotsky
      
      
      Com
      isso, está demonstrado que quando Trotsky afirmava que “as condições
      objetivas necessárias para a revolução proletária não estão somente
      maduras, mas começam a apodrecer” (1989, p. 12) novamente estava certo.
      O mundo está lançado à barbárie, à pobreza, à degradação do homem
      e do meio ambiente. Nem mesmo as grandes potências imperialistas
      conseguem manter sua imagem de estabilidade, se perdendo em crises
      institucionais ou sendo derrotadas por tragédias naturais. Fica claro que
      o proletariado, tomando o poder em suas mãos através de um organismo próprio
      de poder, distribuindo a economia de um ponto de vista socialista, está
      mais do que maduro para construir um estado seu.
      
      
      As
      alternativas políticas que hoje se colocam como novas são a reedição
      caricata de teorizações oportunistas do passado, vistas já na Revolução
      Russa, que tentam parecer sempre diferentes. O discurso de que é preciso
      encontrar outro caminho, sem nunca dizer qual caminho é esse, desnuda a
      falência da ideologia burguesa de fim da história (e do socialismo). A
      falência do PT brasileiro e a queda catastrófica da esquerda mais
      tradicional em todo o mundo mostram, de um lado, o ponto em que chegou a
      degeneração do capitalismo e, do outro, o quanto é ilusório pensar que
      é possível ainda apostar em estratégias de colaboração de classe.
      
      
      A
      síntese da teoria da revolução permanente com a do partido bolchevique,
      vitoriosa na Revolução Russa de 1917, está ainda hoje vigente. A permanência
      de Trotsky é fato concreto, na medida que ainda não foi superada,
      enquanto alternativa de direção revolucionária, a IV Internacional
      (1938) – tentativa de manter viva a herança política e teórica da
      Revolução Russa e da III Internacional. A permanência de Trotsky é a
      garantia de vitórias futuras dos trabalhadores de todo o mundo, superando
      as direções traidoras e as ilusões nas burguesias “nacionais”.