A permanência de Trotsky
Resumo
Tendo
como ponto de partida a experiência da revolução de 1905, este
artigo descreve e analisa algumas das teorias elaboradas sobre a
Revolução Russa, destacando as dos mencheviques, de Lenin e de
Trotsky, traçando semelhanças e diferenças nas dos dois últimos.
Também se analisa a concepção de partido defendida por Lenin,
corroborada por Trotsky em 1917. Por fim, à luz da compreensão
da organização de partido de Lenin e da "revolução
permanente" de Trotsky, faz-se um balanço dos processos de
revolução e mudança social ocorridos após 1917.
Palavras-chave:
Revolução Russa; Revolução Permanente; Leon Trotsky.
Abstract
Having
as starting point 1905 revolution experience, this article
describes and analyzes some of elaborated theories about Russian
Revolution, pointing out the ones of mensheviks, of Lenin and of
Trotsky, drawing up similarities and differences on lasts two
theories. The
conception
of party defended by
Lenin and corroborated by
Trotsky in 1917 is
also analyzed.
Finally, at light of understanding Lenin’s party organization
and of Trotsky’s “permanent revolution”, it takes stock of
revolution and social change processes occurred after 1917.
Key-words:
Russian Revolution; Permanent Revolution; Leon Trotsky. |
O
ano em que lembramos os sessenta e cinco anos do assassinato de Trotsky
deve ser também para lembrar os cem anos da revolução de 1905. O
revolucionário russo chamava de “prólogo” à Revolução Russa esse
primeiro levante dos trabalhadores russos, contendo “todos os elementos
do drama que, entretanto, ainda não estava terminado” (Trotsky, 1978,
p. 31). Em obras de balanço a esta revolução (principalmente Resultados
e Perspectivas, de 1906), cuja eclosão está ligada à situação
precária do país diante da guerra contra o Japão, Trotsky apresentou as
primeiras notas sobre a teoria da revolução permanente, que
consideramos sua maior contribuição para o marxismo e destacamos como a
melhor ferramenta para entender os processos revolucionários do século
XX.
O
partido do proletariado
A
revolução de 1905 ocorreu dois anos após uma cisão, em seu segundo
congresso, dentro do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR),
dando origem a suas duas principais frações (bolcheviques e mencheviques).
Tal cisão foi motivada pela divergência sobre a forma como deveria se
dar a organização partidária. Era posição defendida por alguns que a
mera colaboração em qualquer órgão do partido fazia da pessoa um
militante. Lenin, no entanto, propunha um partido onde a militância não
estava associado à simples simpatia ou à colaboração eventual.
“Considera-se membro do partido todo aquele que aceita o programa e apóia
o partido tanto materialmente como pela sua participação pessoal numa
das organizações do partido” (Lenin, 1984a, p. 43), foi a formulação
defendida por Lenin, que entendia, segundo Coggiola (1997, p. 61), o
partido como “uma organização de revolucionários profissionais,
conspirativa e centralizada, que fosse ao mesmo tempo uma organização
operária, com ampla margem para o debate interno (mas com plena unidade
de ação)”. Pode-se resumir assim as duas propostas então
apresentadas:
1)
um partido que seja uma ampla frente de setores da esquerda, com programa
superficial, cuja função é aglutinar os mais variados setores da
esquerda;
2)
um partido operário de vanguarda, centralizado na política e na ação,
com um programa claramente revolucionário.
Para
Lenin, o que importava era a participação efetiva e cotidiana na construção
do partido; este não deveria ser apenas um amontoado de pessoas engajadas
em alguma causa comum que considerassem “justa” ou “importante”. A
organização partidária deveria se dar como um exército de pessoas
treinadas e armadas politicamente para dirigir uma revolução contra a
ordem estabelecida, precisando nesse sentido possuir uma profunda unidade
programática, que nunca seria possível em uma frente ampla e heterogênea
de esquerda. Em oposição a Lenin, se propunha uma organização de
estrutura frouxa, que priorizasse a luta institucional e a disputa de espaços
eleitorais e buscasse na burguesia liberal uma aliada permanente e estratégica
na revolução. É o próprio Lenin, no prefácio a Um passo em frente,
dois passos atrás, quem esclarece essa questão:
Em
essência toda a posição dos oportunistas em matéria de organização
começou a revelar-se já na discussão do parágrafo primeiro [sobre a
forma de organização do partido]: na sua defesa de uma organização do
partido difusa e não fortemente cimentada; na sua hostilidade à idéia (à
idéia “burocrática”) de edificação do partido de cima para baixo,
a partir do congresso do partido e dos organismos por ele criados; na sua
tendência para atuar de baixo para cima, permitindo a qualquer professor,
a qualquer estudante de liceu
e a “qualquer grevista” declarar-se membro do partido; na sua
hostilidade ao “formalismo”, que exige a um membro do partido que
pertença a uma organização reconhecida pelo partido; na sua tendência
para uma mentalidade de intelectual burguês, pronto apenas a
“reconhecer platonicamente as relações
de organização”; na sua inclinação para essa sutileza de espírito
oportunista e as frases anarquistas; na sua tendência para o autonomismo
contra o centralismo. (Lenin,
1984a, p. 6-7)
No
debate sobre a forma de organização, Trotsky esteve alinhado à posição
dos mencheviques, ou seja, do partido amplo e sem definição clara de
militância. Esta posição acabou saindo vitoriosa no congresso, embora
em outra votação importante, para a direção do partido, Lenin tivesse
conseguido maioria (daí vir os nomes “bolchevique” e “menchevique”,
respectivamente maioria e minoria). Trotsky, mesmo tendo nesse ponto se
alinhado aos mencheviques – e tendo inclusive se organizado por algum
tempo nessa fração do partido – tinha uma perspectiva política
diferente desses eventuais aliados. No balanço desta polêmica o próprio
Lenin afirmava que o “caráter de divergência apenas começava a
desenhar-se e muitos na realidade não conseguiam ainda orientar-se”
(1984a, p. 74).
As
divergências entre Trotsky e os mencheviques ficaram expressas inclusive
no próprio congresso de 1903, na medida que Trotsky, em outras votações,
cujo caráter era mais claramente político, votou e defendeu propostas em
conjunto com Lenin. Tanto nas atas quanto no jornal do congresso – este
último preparado pelo próprio Lenin – fica claro “que Trotsky não
se contrapôs a nenhuma das teses do programa do partido preparado por
Lenin” (Coggiola, 1997, p. 72). Enquanto uma divergência de conteúdo
político, estratégica para a revolução, cindia o partido em maioria e
minoria, a crítica que fez Trotsky defender um ponto junto aos
mencheviques se dava unicamente por sua incompreensão das tarefas da
organização revolucionária no país.
Para
Trotsky, o tipo de organização proposta por Lenin poderia dar origem a
uma organização burocrática, autoritária, concentrando o controle do
partido nas mãos de um pequeno núcleo dirigente. Mesmo tendo clareza da
política proposta pelos setores reformistas, e combatendo estas posições,
Trotsky via a necessidade de construir um partido único com os
mencheviques, vendo como negativa a divisão no POSDR, que Lenin e sua fração
tinham provocado. Com isso, Trotsky chegou, nos anos posteriores ao
congresso, a escrever vários textos criticando os bolcheviques e sua
forma de organização.
Teorias
da revolução
Frente
à revolução de 1905, foram muitos os marxistas que passaram a teorizar
sobre o processo revolucionário russo. Os mencheviques, Plekhanov à
frente, defendiam que a russa seria uma revolução burguesa clássica,
fazendo a transição de um modo de produção atrasado para o
capitalismo, trazendo conquistas do ponto de vista democrático (reforma
agrária, legalização dos partidos de oposição, voto republicano
etc.).
Este
pseudo-marxismo consistia essencialmente em transformar o pensamento
condicional e limitado de Marx: Os países adiantados mostram aos países
atrasados a imagem do seu desenvolvimento futuro, numa lei absoluta,
supra-histórica, na qual aquele se esforçaria por basear a tática do
Partido da classe operária. (Trotsky, 1979, p. 15)
O
papel dos marxistas, nesse sentido, seria o de organizar os trabalhadores
em uma ala esquerda do movimento revolucionário dirigido pela burguesia,
pressionando esta para que as conquistas do proletariado fossem as mais
profundas possíveis. Como comenta Kochan (1966, p. 152), “pareceu aos
mencheviques por si mesmo evidente que, em um uma revolução burguesa, a
burguesia deveria tomar a dianteira. Como conseqüência, o proletariado e
os sociais-democratas, o partido do proletariado, deviam desempenhar papel
subordinado”.
Lenin
e Trotsky divergiam dessa visão, particularmente no que se refere à direção
burguesa, descartando qualquer possibilidade de unidade estratégica com
estes setores na revolução. Também viam nos sovietes, surgidos na
revolução de 1905, o embrião do poder revolucionário. Lenin,
refletindo sobre os sovietes, chamava-os de “núcleos potenciais de
revolução” e “órgãos de autoridade revolucionária”. Segundo
Kochan (1966, p. 152), Lenin via os sovietes “como o embrião de um
governo revolucionário sob controle independente do partido”, enquanto
os mencheviques viam neles “um papel algo passivo de um congresso de
trabalhadores”.
Lenin
afirmava que na revolução de 1905 o soviete de Petrogrado, presidido por
Trotsky, havia cumprido um papel decisivo, de um governo revolucionário
ao qual coube tarefas fundamentais durante todo o processo. Contudo, Lenin
compartilhava com os mencheviques a visão de que “dada a natureza
semifeudal e retardada da sociedade russa, não se podia pensar de modo
algum em uma transição imediata para o socialismo” (Kochan, 1966, p.
152). Para Lenin,
a
revolução seria burguesa no quanto ficasse limitada a uma ordem social
baseada na instituição da propriedade privada. Mas seria proletária no
quanto o proletariado, em razão da fraqueza da burguesia russa, assumisse
o papel da liderança na revolução. Mais ainda, a classe camponesa,
conquanto de modo algum socialista ou deixando de ser pequeno-burguesa,
“não estava tão interessada na preservação absoluta da propriedade
privada quanto no confisco das propriedades agrárias”. Isso a tornava
aliada do proletariado, uma adepta entusiástica e assaz radical da revolução
democrática. (Kochan, 1966, p. 154)
As
tarefas da revolução não seriam aquelas da revolução proletária, mas
sim o que pudesse haver de acordo entre operários e camponeses, dentro
dos marcos de uma revolução
democrática e burguesa.
Objetivamente,
a marcha histórica das coisas colocou agora ao proletariado russo
exatamente a tarefa da revolução democrático burguesa (todo o conteúdo
da qual nós designamos, por uma questão de brevidade, pela república);
esta mesma tarefa se coloca a todo o povo, isto é, a toda massa da
pequena burguesia e do campesinato; sem esta revolução é inconcebível
qualquer desenvolvimento minimamente amplo da organização de classe
independente para a revolução. (Lenin,
1984b, p. 164)
Caminhava-se,
portanto, a uma ditadura democrática de operários e camponeses,
produto de uma revolução burguesa sui generis, em que a burguesia
não assumiria a direção do processo, mas na qual as classes dirigentes
não superariam o programa da própria burguesia nem atacariam de forma
radical a propriedade privada. Lenin assim definia esse processo:
Quanto
mais nós conquistarmos agora, quanto mais energicamente defendermos o que
conquistamos, tanto menos poderá ser retirado em conseqüência da inevitável
reação futura, tanto mais breve serão estes intervalos de reação,
tanto mais fácil será a tarefa para os lutadores proletários que nos
seguem. (1984b, p. 165)
Mesmo
tendo pontos comuns com Lenin, a perspectiva de Trotsky era outra. Para
este, a revolução não iria se limitar meramente a formar uma república
burguesa, com um governo democrático de coalizão de classes, que
garantisse ao capitalista russo o tempo necessário para se desenvolver,
como defendiam os mencheviques. Também não tinha acordo com Lenin quando
este limitava o desenvolvimento da revolução aos marcos de uma república
burguesa (ainda que sobre outras bases, revolucionárias). Para Trotsky, a
realização das tarefas da revolução (democráticas ou socialistas) só
poderiam ser realizadas pela ditadura revolucionária do proletariado.
A
revolução permanente
Diante
da falência da burguesia enquanto direção revolucionária, na medida
que esta era pilar de sustentação do czarismo e estava ligada de forma
íntima ao Imperialismo, o proletariado, com apoio dos camponeses, deveria
transformar a revolução burguesa em uma revolução de conteúdo
socialista, tomando para si o controle dos meios de produção e
construindo seu próprio poder, através dos sovietes. Afirma Coggiola que
a
burguesia, chegando tarde ao cenário histórico, é incapaz de dar
verdadeira solução aos problemas da constituição da nação
(democracia e libertação nacional): eles só podem ser resolvidos pela
ditadura do proletariado, tomando o comando da nação oprimida, em
especial de suas massas camponesas. Sob a direção operária, a revolução
não se detém na etapa democrática, passando a atacar a propriedade
privada e a construção da ordem socialista. (1984, p. 14)
As
tarefas da revolução democrática seriam incorporadas em um processo
maior, de derrocada capitalista, de revolução permanente. O
proletariado russo não precisaria esperar a revolução socialista na
Europa: tinha possibilidade de acelerar o processo histórico, dar um
salto, assumindo em sua revolução tarefas que a burguesia havia
abandonado. Não era mais de interesse da burguesia a defesa da nação e
de um desenvolvimento capitalista autônomo. Ela passara à submissão às
burguesias dos países mais avançados economicamente. Com isso fica
expressa a lei do desenvolvimento desigual e combinado, “que
significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases
diferenciadas, amálgama das formas mais arcaicas com as mais modernas”
(Trotsky, 1978, p. 25).
Trotsky
salienta que os países atrasados, além de terem processos diferentes
entre si, não repetem de forma mecânica o caminho dos países
adiantados. Na Rússia conviviam concentrações industriais, bastante
desenvolvidas, com formas extremamente atrasadas no campo. Além disso, a
Rússia, apesar de ser um país de grande retardamento econômico, buscava
manter uma relação imperial com outros países, ao mesmo tempo que tinha
um relação de submissão em relação ao capital financeiro europeu.
“Quanto mais mundial fosse o caráter revestido pela economia
capitalista, tanto mais especial seria o caráter adquirido pela evolução
dos países atrasados, onde os elementos retardatários se combinavam com
os mais modernos elementos do capitalismo (Trotsky, 1979, p. 15-16)”.
Lenin
e a revolução permanente
Em
1917, após a experiência da revolução de fevereiro, Lenin se aproximou
dos princípios básicos da teoria da revolução permanente partindo de
sua própria teoria de revolução. Um exemplo está na primeira das Cartas
de longe, em que Lenin trata de caracterizar a revolução de
fevereiro e o governo provisório que dela foi produto:
São
os representantes da nova classe que subiu ao poder político na Rússia,
a classe dos latifundiários capitalistas e da burguesia, que já há
muito dirige economicamente o nosso país e que, tanto no tempo da
revolução de 1905-1907 como no tempo da contra-revolução de 1907-1914
e finalmente – e com particular rapidez – no tempo da guerra
1914-1917, se organizou politicamente de maneira extremamente rápida,
tomando nas suas mãos tanto as administrações locais como a educação
pública, congressos de todo o Gênero, a Duma, os comitês industriais de
guerra, etc. Esta nova classe estava já “quase totalmente” no poder
em 1917; por isso, bastaram os primeiros golpes contra o czarismo para que
ele se desmoronasse, deixando o lugar à burguesia. A guerra imperialista,
exigindo uma incrível tensão de forças, acelerou de tal forma o
processo de desenvolvimento da atrasada Rússia que nós, de um só golpe
(de fato aparentemente de um só golpe), alcançamos a Itália,
a Inglaterra, quase a França, obtivemos um governo “de coligação”,
“nacional” (isto é, adaptado para realizar o massacre imperialista e
para enganar o povo) e “parlamentar”. (1985a, p. 84)
Segundo
Lenin, a primeira etapa da revolução (ou a primeira revolução), em
fevereiro de 1917, não trouxe mudanças profundas na realidade da Rússia.
No entender de Lenin, houve apenas uma mudança no arranjo político entre
as classes, na medida que a burguesia deixava de ser apenas uma classe de
grande peso no controle da sociedade para se tornar a classe dirigente da
política no país. Não cabia realizar uma revolução burguesa, em seu
sentido clássico, que garantiria à Rússia um período para desenvolver
seu capitalismo, na medida que o país havia alcançado outros
importantes países europeus. Isso posto, as tarefas da revolução
burguesa passavam a se inserir no contexto da revolução socialista (um
princípio fundamental da teoria desenvolvida por Trotsky). Isso fica mais
claro nas Cartas sobre a tática, onde Lenin afirma:
Antes
da revolução de Fevereiro-Março de 1917 o poder de Estado na Rússia
estava nas mãos de uma velha classe, a saber: a classe da nobreza feudal
latifundiária (...). Depois desta revolução o poder está nas mãos de outra
classe, de uma classe nova: a burguesia. (...) Nesse sentido, a
revolução burguesa ou democrático burguesa na Rússia está terminada.
(1985b, p. 122)
A
revolução burguesa colocou como única novidade, como antes o havia
feito nos países ocidentais, a ascensão de um novo regime (e conseqüentemente
um novo governo). A situação específica do país, no contexto da lei do
desenvolvimento desigual e combinado, fez com que o desenvolvimento
capitalista não viesse a partir de uma mudança na classe dominante, mas
sim na própria relação com o imperialismo.
Considerada
à parte, a Revolução de fevereiro era uma revolução burguesa. Mas
como revolução burguesa, era demasiadamente tardia, não encerrando em
si nenhum elemento de
estabilidade. Dilacerada por contradições que imediatamente se
manifestaram pela dualidade de poder, deveria transformar-se em introdução
direta à Revolução proletária. (Trotsky, 1979, p. 17)
O
ciclo da revolução burguesa teve como desfecho na Rússia o que na
Europa havia sido seu começo, abrindo uma nova perspectiva para o
proletariado russo – ao qual não caberia apenas ser uma fração de
esquerda em uma Assembléia Constituinte, mas organizar seu próprio
poder. De forma inteiramente nova, a “revolução democrática” deu
origem ao poder (os sovietes) que viria a destruí-la.
A
“ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato”
já se realizou (em certa forma e em certa medida) na revolução
russa, porque esta “fórmula” prevê apenas a correlação de
classe e não uma instituição política concreta que realize
esta correlação, esta cooperação. O “soviete de deputados operários
e soldados” – eis a “ditadura democrática revolucionária do
proletariado e do campesinato” já realizada pela vida. (Lenin,
1985b, p. 122-123)
Como
dissemos acima, Lenin passava a corroborar nos princípios básicos com
Trotsky, ao entender a revolução de fevereiro como um processo político
(e não de transformação estrutural da sociedade) e ao definir que esta
mesmo revolução não iniciava um ciclo de desenvolvimento capitalista
mas sim colocava, de imediato, a necessidade da passagem do poder para o
proletariado, apoiado pelos camponeses. Não se tratavam pois, de
processos isolados entre si, mas de um grande drama, de mais de uma década
de duração, com reveses e momentos de suspense, que teve seu prólogo em
1905. Conclui Coggiola (1997, p. 89):
Se
o que impediu a tomada do poder pelo proletariado em fevereiro foi só sua
insuficiente consciência e organização (um fator político), isso
significa que não existe uma “revolução nacional” separada por uma
etapa histórica da revolução proletária (o que significa admitir o
princípio básico da “revolução permanente”).
Essa
convergência de Lenin à teoria da revolução permanente e a convergência
de Trotsky ao partido bolchevique foram os dois fatores fundamentais para
a tomada do poder pelos sovietes em outubro de 1917.
Trotsky
e o bolchevismo
A
elaboração da teoria da revolução permanente, a qual dava conta da dinâmica
do processo revolucionário russo, não deve servir para esquecer que
Trotsky também cometeu erros em sua vida política. Da ruptura com Lenin
em 1903, até a fusão de seu grupo ao Partido Bolchevique em 1917, foram
anos de duras divergências, inclusive com troca de insultos, as quais
Trotsky creditou a sua própria imaturidade e ao calor da luta política.
As quase duas décadas defendendo a teoria da revolução permanente, no
entanto, faziam Trotsky ter clareza de que ela seria apenas mais uma entre
muitas se não houvesse um fator fundamental na revolução: o partido
operário revolucionário.
Há
muito estavam superadas as ilusões na ala direita da social-democracia,
os mencheviques; não havia mais perspectivas de um partido único da
classe operário. Principalmente, estava claro que a divergência sobre a
forma de organização do partido não era apenas um problema de um
suposto sectarismo de Lenin, mas sim um problema da estratégia política
e de perspectiva revolucionária. Ainda que não se pudesse fazer uma
transposição exata, de alguma forma estavam confirmadas as palavras de
Lenin quando fez o balanço do congresso de 1903: “A divisão em maioria
e minoria é a continuação direta e inevitável da divisão da
social-democracia em revolucionária e oportunista” (1984a, p. 138).
Mesmo
tendo errado em sua apreciação da dinâmica da revolução, Lenin
percebeu desde o início, não importasse qual revolução acontecesse,
que era fundamental construir um partido operário independente, coeso política
e organicamente, e que servisse como ferramenta e direção do
proletariado. Corretamente afirma Coggiola:
O
papel da vanguarda revolucionária não consiste em inventar uma revolução,
mas em dar resposta às alternativas criadas pela situação concreta,
reconhecendo a ocasião propícia para tornar consciente o movimento
inconsciente da história, tomando a sua direção. (1997, p. 91)
Nesse
sentido, ainda que tivesse fundamental importância no debate político e
teórico em 1917, as formulações de Trotsky nenhum impacto prático
teriam se Lenin não tivesse sido “sectário” nos anos anteriores.
O
mundo após 1917
Da
convergência das idéias e da prática de dois dos maiores marxistas do
início século passado, apontando diante das situações concretas uma
caminho político revolucionário ao proletariado, é produto um fato que
ficou quase inédito na História: uma revolução proletária. Embora o século
tenha sido marcado por inúmeras rebeliões e revoluções, em nenhum
desses momentos esteve presente os dois elementos fundamentais a uma
revolução socialista: o organismo do poder proletário (os sovietes, no
caso da Rússia) e o partido operário revolucionário, deixando a Revolução
Russa quase que como um fato histórico inédito.
Destacamos
isso pois Trotsky e Lenin, diante do atraso do país, tinham claro que o
proletariado russo teria dificuldades de se manter no poder, ainda que com
apoio dos camponeses. A permanência da revolução não se daria apenas
no ponto de vista das tarefas internas a serem realizadas, mas também no
sentido de impulsionar a revolução socialista nos demais países.
Somente a vitória do proletariado dos países ocidentais, “avançados”,
poderia proteger a Rússia de uma possível restauração capitalista.
Em
um primeiro momento, logo após a Revolução Russa, países como Hungria
e Alemanha viram levantes operários de imensa magnitude, chegando a tomar
o poder (no caso da Hungria) e organizando organismos semelhantes aos
sovietes russos. Contudo, a derrota sofrida pelos trabalhadores nesses
processos, somado à tentativa dos países imperialista no sentido de
derrotar o poder soviético na Rússia, fez com que o mundo entrasse em um
período de grave crise, da qual são produto alternativas burguesas
conservadoras e autoritárias, como o fascismo e o nazismo. No entanto,
cabe dizer que o otimismo de Trotsky e Lenin em relação à revolução
mundial não foi equivocado. É preciso identificar que os trabalhadores
dos demais países, principalmente na Europa, seja nos processos
revolucionários, seja em greves e outras lutas, mostrou que o otimismo
dos revolucionários russos tinha uma base concreta, não sendo pois um
mero delírio.
Isso
é uma coisa, outra é a ausência de uma direção revolucionária,
experiente e coesa, nesses países, como havia na Rússia. A crise na II
Internacional, durante a Primeira Guerra, havia fraturado o movimento
revolucionário mundial de tal forma que os partidos revolucionários ou
eram muito pequenos ou não tinham uma coluna de quadros dirigentes mais
experientes. Com isso, a vontade de luta dos trabalhadores em todo o
mundo, entusiasmados pela vitória dos seus companheiros russos, acabou não
os levando ao poder, na medida que não havia uma direção política.
Outro
aspecto importante a ser destacado é o dos processos revolucionários (ou
de mudança social) que tiveram à sua frente direções burguesas, com
destaque para a América Latina. Tais processos poderiam servir como
argumento para derrubar a teoria de Trotsky, na medida que estaria provado
que a burguesia tem condições de ser uma aliada estratégica em
processos revolucionários. Tal raciocínio, no entanto, carece de
qualquer fundamentação, na medida que um rápido olhar por esses países
mostra que as burguesias nativas não eram de fato aliadas nos processos
revolucionários, ainda que fossem a direção, mas lutavam no sentido de
conquistar interesses particulares seus.
Não
estava em jogo a independência nacional rumo a um desenvolvimento
capitalista autônomo, mas sim a sustentação dos interesses de certos
grupos burgueses. Apesar dos discursos que inflamavam massas, de tímidas
medidas anti-imperialista, os governos burgueses nacionalistas em nenhum
momento afetaram de forma contundente a propriedade privada, muito menos
apresentaram qualquer alternativa radical de mudança para o país. Estava
em jogo para os governos nacionalistas desenvolver os setores da burguesia
que lhe davam sustentação política, às vezes inclusive vendendo
interesses a uma potência imperialista para prejudicar outra.
Havia,
portanto, uma contradição profunda, na medida que o proletariado
organizado não conseguia ir além de sua direção burguesa. Os
trabalhadores a cada luta deixavam suas burguesias atordoadas,
obrigando-as a dar concessões, às vezes derrotando golpes militares e
governos ditatoriais, demonstrando que o principal fator dos movimentos
nacionalistas não era a débil burguesia que tentava dirigir o processo,
mas sim os trabalhadores organizados e em luta. Fica assim claro que, à
exemplo da Rússia, os trabalhadores poderiam ter tomado o poder, criando
seu próprio estado e cumprindo as tarefas que a revolução burguesa não
havia cumprido.
Os
movimentos nacionalistas têm sua vigência na medida em que as tarefas
democráticas e de emancipação nacional não foram cumpridas; mas esses
movimentos, que são capazes de formular essas tarefas, são incapazes de
resolvê-las, o que exige a mobilização revolucionária da nação
inteira, que só a classe operária pode encabeçar. Lutando contra o
inimigo fundamental, o imperialismo, os operários devem proclamar desde o
início sua independência política em relação ao nacionalismo burguês,
pequeno-burguês e militar, e organizar a luta pelo governo operário-camponês.
(Coggiola, 1984, p. 75)
Apenas
uma questão política mantinha os trabalhadores ligados à direção
burguesa, na medida que os partidos e demais organizações com hegemonia
nos meios proletários tinham como estratégia o desenvolvimento
capitalista junto à burguesia, reeditando de forma muitas vezes vil e
traiçoeira as formulações teóricas mencheviques, antes enterradas pela
revolução de 1917. A estagnação, portanto, das revoluções na América
Latina não se deu por falta de condições objetivas, mas sim por conta
da traição sistemática das várias direções ou pela ausência de um
partido operário revolucionário.
A
crise de direção revolucionária
Nesse
ponto, coloca-se mais uma das questões caras a Trotsky: a crise de direção
revolucionária do proletariado. Escreveu Trotsky que “a condição econômica
necessária para a revolução proletária já alcançou, no geral, o mais
alto grau de maturação possível sob o capitalismo”, mas “o
principal obstáculo no caminho da transformação da situação pré-revolucionária
em situação revolucionária, é o caráter oportunista da direção do
proletariado, sua covardia pequeno-burguesa frente à grande burguesia e
os laços traidores que mantém com esta, mesmo em sua agonia” (1989, p.
11, 12).
Nesse
contexto surgem as chamadas frentes populares, governos em que as
direções proletárias assumem o poder do Estado em aliança com setores
da burguesia (ou representantes destas), para governar a ordem da
propriedade privada, estagnando o movimento de massas e desmoralizando a
esquerda, abrindo assim caminho para a volta de alternativas conservadoras
aos governos. Desvia-se, pois, de seu caminho a luta dos trabalhadores,
tirando de sua perspectiva as mudanças radicais na sociedade (a revolução
socialista) para colocá-la no sentido de governar a ordem capitalista.
Hoje
mesmo, no Brasil e na Venezuela, é possível ver exemplos dessa crise de
direção. No primeiro, o principal partido de esquerda da América
Latino, assumindo compromissos com organismos do imperialismo e sua
principal potência, chegou ao governo central, tentando garantir à
burguesia a solução de uma crise institucional e pôr fim às lutas que
haviam quase derrubado o governo anterior. Na Venezuela, a força do
proletariado acaba se concentrando no sentido de defender o presidente
eleito pelo voto democrático, ajudando-o a levar a cabo seu limitado
projeto de avanços sociais, nos marcos da democracia burguesa e da
propriedade privada.
Em
ambos os casos, não há uma direção operária conseqüente, que consiga
armar politicamente os trabalhadores brasileiros e venezuelanos, no
sentido de superar os limites da luta meramente institucional. Na
Venezuela, principalmente, ao derrotar um golpe bancado pela burguesia
local e apoiado pelos Estados Unidos, a força dos trabalhadores, seja a
população mais pobre, sejam os operários do estratégico setor petrolífero,
demonstrou que a teoria da revolução permanente, em sua essência, está
na ordem do dia – falta apenas superar a crise da direção política.
As condições para que os trabalhadores venezuelanos tomem em suas mãos
as rédeas do país estão maduras, bastante para isso superar, a partir
do processo limitado de mudanças sociais hoje existentes, a direção
burguesa encabeçada Chávez.
A
vitória de Lula no Brasil demonstra a falência de esperar uma fase
“democrática” e de “desenvolvimento nacional” – infantis ilusões
de reviver, de forma nostálgica, o nacionalismo de décadas atrás. A força
econômica do Brasil, seu desenvolvimento industrial e científico
demonstram o quanto não precisamos disso. A opção da própria burguesia
pelo governo do PT, que não é um representante direto seu, o demonstra.
Lula, eleito pelo voto “democrático”,
era uma última alternativa no sentido de evitar uma revolução
que colocasse o país no caminho do socialismo. Mais do que isso, da mesma
forma que Lula serviu de bombeiro nas rebeliões populares em toda a América
Latina, um governo socialista no Brasil teria posto fogo no caldeirão que
virou o continente nos últimos anos.
A
permanência de Trotsky
Com
isso, está demonstrado que quando Trotsky afirmava que “as condições
objetivas necessárias para a revolução proletária não estão somente
maduras, mas começam a apodrecer” (1989, p. 12) novamente estava certo.
O mundo está lançado à barbárie, à pobreza, à degradação do homem
e do meio ambiente. Nem mesmo as grandes potências imperialistas
conseguem manter sua imagem de estabilidade, se perdendo em crises
institucionais ou sendo derrotadas por tragédias naturais. Fica claro que
o proletariado, tomando o poder em suas mãos através de um organismo próprio
de poder, distribuindo a economia de um ponto de vista socialista, está
mais do que maduro para construir um estado seu.
As
alternativas políticas que hoje se colocam como novas são a reedição
caricata de teorizações oportunistas do passado, vistas já na Revolução
Russa, que tentam parecer sempre diferentes. O discurso de que é preciso
encontrar outro caminho, sem nunca dizer qual caminho é esse, desnuda a
falência da ideologia burguesa de fim da história (e do socialismo). A
falência do PT brasileiro e a queda catastrófica da esquerda mais
tradicional em todo o mundo mostram, de um lado, o ponto em que chegou a
degeneração do capitalismo e, do outro, o quanto é ilusório pensar que
é possível ainda apostar em estratégias de colaboração de classe.
A
síntese da teoria da revolução permanente com a do partido bolchevique,
vitoriosa na Revolução Russa de 1917, está ainda hoje vigente. A permanência
de Trotsky é fato concreto, na medida que ainda não foi superada,
enquanto alternativa de direção revolucionária, a IV Internacional
(1938) – tentativa de manter viva a herança política e teórica da
Revolução Russa e da III Internacional. A permanência de Trotsky é a
garantia de vitórias futuras dos trabalhadores de todo o mundo, superando
as direções traidoras e as ilusões nas burguesias “nacionais”.