Imagens
do corpo: reflexões sobre as acepções corporais construídas pelas
sociedades ocidentais
Resumo
O
estereótipo do corpo perfeito vem acarretando distúrbios psicofísicos
nas populações contemporâneas. Tais sintomas têm sido
detectados por especialistas a partir do computo do número de
cirurgias plásticas realizadas com fins estéticos e do
crescimento de enfermidades ligadas à auto-imagem como a anorexia
e o narcisismo. Assim, este artigo propõe uma reflexão crítica
acerca da necessidade de modificação da acepção de corpo
contemporânea que tem sido massificada entre os segmentos
sociais. Para tanto, procede à revisão bibliográfica acerca das
concepções de corpo edificadas historicamente pela civilização
ocidental que parecem corroborar os modelos estéticos atuais.
Ante o exposto constata-se a necessidade de desvelar os mecanismos
de construção dos modelos estéticos referidos e os interesses
mercadológicos envolvidos na sua determinação e propagação.
Palavras-chave:
educação do corpo; ética; estereótipos corporais.
Abstract
The
stereotype of the perfect body is carting disturbances in the
contemporary populations. Such symptoms have been detected by
specialists starting from the compute of the number of plastic
surgeries accomplished with aesthetic ends and of the growth of
linked illnesses to the self image as the anorexia and the
narcissism. Like this, this article proposes a critical reflection
concerning the need of modification of the contemporary body
meaning that has been influenced among the social segments. For so
much, it proceeds to the bibliographical revision concerning the
body conceptions built historically by the western civilization
that
seem to corroborate the current aesthetic models. After the
exposed the need is verified of revealing the mechanisms of
construction of the referred aesthetic models and the interests of
market involved in her determination and propagation.
Keywords:
education of the body; ethical; corporal stereotypes. |
A
valorização contemporânea da imagem de corpo, formatada por padrões de
beleza que idealizam estereótipos de corpos excessivamente magros ou
musculosos, responsável pelo aumento da incidência de distúrbios
relacionados à auto-imagem. Sintomas visíveis no contexto atual podem
ser descritos pelo aumento exagerado do número de cirurgias plásticas
com fins estéticos e pelo acréscimo do número de casos de anorexia e
bulimia. Nesse sentido, o
presente artigo busca discutir algumas acepções de corpo concebidas pela
civilização ocidental ao longo da história, pois elas parecem informar
a construção dos referidos modelos estéticos contemporâneos.
Do
corpo primitivo à cultura corporal clássica
Desde
os primórdios da humanidade, a presença física foi fundamental e
requerida como atributo necessário à sobrevivência da raça. O homem
primitivo precisava de uma intensa participação corporal, essencialmente
pelo predomínio da linguagem gestual como principal meio de expressão e
por sua interação com a natureza. Os fenômenos naturais determinaram as
relações sociais do homem primitivo. Nesse contexto o domínio da
natureza se inseriu como base da organização social.
Não
obstante, vale ressaltar que a importância corporal não era somente
concebida como instrumento de sobrevivência.
O esteticamente belo, a perfeição e a simetria eram considerados
atributos essenciais ao corpo. Até mesmo “as
relações sociais eram construídas e consolidadas pelo corpo” (Gonçalves,
1994, p. 18). Nesse sentido, o povo grego como expoente civilizador de sua
época instituiu as competições esportivas como meio da celebração das
qualidades corporais. A presença corporal doutrinava o exercício do
poder: o êxito nos torneios esportivos exercia um enorme fascínio
social, chegando a determinar o resultado de guerras e disputas
territoriais. A esse respeito Gonçalves comenta:
Nessas
sociedades eram valorizadas as qualidades corporais como força, destreza
e agilidade, não somente em torneios e competições, também eram
importantes para a vida militar e política. Vencer uma competição
significava não somente a compreensão de uma superioridade física, mas
muito mais: o reconhecimento do vencedor como um elemento superior daquela
sociedade (1994, p.18).
As
transformações que a estrutura social sofreu nessa fase da história
humana assinalaram a alternância do enaltecimento da guerra e dos valores
coletivos para a valorização do trabalho e do pensamento individual. A
nova ordem social provocou a desintegração dos laços familiares e a
desvalorização das qualidades físicas guerreiras, inutilizadas pela
condição de existência já estabelecida: o trabalho individual. Carlos
Herold Junior seguindo a mesma linha de raciocínio complementa a
consideração acima, afirmando:
(...)
o coletivismo, coragem, amizade, respeito aos familiares e a terra,
tornaram-se sentimentos que não mais respondiam a nova forma de ser
social, corporalmente, a força, destreza, habilidade com as armas e
cavalos, tornaram-se adjetivos que não eram mais concretizados pelas
novas sociedades (1997, p. 8).
Assim,
no contexto de profundas transformações sobre as formas de conceber o
corpo surgiu o pensamento dicotômico. Este, hipoteticamente, dividiu o
homem em duas subunidades: corpo e mente. De acordo com Silvio Gallo, Sócrates
inaugurou essa atividade sugerindo um repensar sobre a “unidade
do ser”, terminando por percebê-lo como “corpo perecível e alma
imortal” (2000). Nesses termos, o autor assinalou que também
Platão intensificou essa relação, negligenciando ainda mais o valor do
corpo. Surgiria desse entendimento a afirmação de que a
alma seria eterna, pura, sábia, ao passo que o corpo seria
imortal, impuro, degradante. Nessa linha de pensamento, o
corpo era encarado como “uma
verdadeira prisão capaz de obstruir a ascensão
da alma ao plano ideal perfeito” (2000, p. 62).
No
início do século III a.C. as percepções sobre o corpo reveladas através
da escultura demonstraram a preocupação com a mobilidade corporal. As
representações artísticas adquiriram maior dramaticidade, buscando o
contraste entre o nu e o vestido, a vida e a morte, a força e a
debilidade física. Todavia, no momento em que a dominação política do
Império Romano se impôs, a construção do pensamento filosófico, e por
conseqüência, as acepções corporais instituídas por ele foram
alteradas. Embora tenha sido atribuído ao culto do corpo um valor pagão,
sendo até mesmo abolidas as Olimpíadas (pelo imperador Teodósio - séc.
IV), a arte romana manteve-se orientada pela expressão do ideal de beleza
grego-helenísitica, adotando também referenciais etruscos (registros de
manifestações do cotidiano). Nos períodos posteriores, as representações
do corpo adquiriram outras dimensões, subjugando-o a temas que
potencializaram as questões místicas e religiosas (Gombrich,
1999).
O
corpo coberto na Idade Média e a padronização dos movimentos da
modernidade
Na
Idade Média o corpo serviu, mais uma vez, como instrumento de consolidação
das relações sociais. A característica essencialmente agrária da
sociedade feudal, justificava o poder da presença corporal sobre a vida
cotidiana, características físicas como altura, cor de pele e peso
corporal, associadas ao vínculo que o indivíduo mantinha com a terra
eram determinantes na distribuição das funções sociais. Os homens eram
submetidos a ordens rígidas e ao sistema de castas que impossibilitava
qualquer tipo de ascensão social. O homem medieval era extremamente
contido, seus impulsos individuais eram proibidos. A presença da instituição
religiosa restringia qualquer manifestação mais criativa. A moral cristã
tolhia qualquer tipo de prática corporal que visasse o culto do corpo. A
concepção dualística do homem foi retomada e reacendeu a visão do
corpo corrupto e pecaminoso, considerada empecilho ao desenvolvimento da
alma. Nas artes plásticas, como destacou Gombrich (1999), ficava evidente
a projeção do “corpo coberto”, aparentemente exaurido de preocupações
estéticas.
No
entanto, o crescimento e aperfeiçoamento da produção agrícola e dos
meios de transporte da sociedade feudal e o conseguinte acúmulo do
excedente produzido geraram a necessidade de ampliação do comércio
entre os feudos, dando origem a importantes feiras ou centros comerciais
que mais tarde originaram as cidades medievais. Essas modificações
provocadas pelo acréscimo da produtividade agrícola aliado à expansão
comercial, promoveram algumas das condições necessárias para o
desenvolvimento e instalação da indústria moderna. Esse fenômeno
somado a outras modificações sociais, segundo o historiador Georges Duby
(1992), marcou uma série de transformações que desembocaram no
surgimento do sistema capitalista, os costumes e tradições foram
substituídos pelo mercado e pela busca de lucros monetários, sobretudo
no que tange a determinação da divisão e execução das tarefas
produtivas e da disponibilização das oportunidades de trabalho.
Na
Renascença, as ações humanas passaram a ser guiadas pelo método científico.
O avanço técnico - cientifico produziu nos indivíduos do período
moderno um apreço sobre o uso da razão científica como única forma de
conhecimento. O corpo, agora sob um olhar “cientificista”, serviu de
objeto de estudos e experiências. A disciplina e o controle corporais
eram preceitos básicos. Todas
as atividades físicas eram prescritas por um sistema de regras rígidas,
visando à saúde corpórea.
A
obtenção do corpo sadio circundava a dominação do indivíduo: a prática
física domava a vontade, contribuindo para tornar o praticante
subserviente ao Estado. O dualismo corpo - alma norteava a concepção
corporal do período, demonstrando a influência das concepções da
antiguidade clássica. Gallo explicita que segundo o filósofo moderno Descartes
o homem constituía-se de duas substâncias: “uma pensante, a alma, razão
de sua existência e a outra material o corpo”, visto como algo
completamente distinto da alma (2000, p. 64).
A
forma de produção do sistema capitalista, a partir do século XVII,
causou uma mudança drástica nas relações trabalhistas. O trabalho
assumiu o valor de mercadoria, perdendo a importância qualitativa, se
preconizava a quantidade. Essa relação se mostrou ainda mais óbvia, com
o início da revolução industrial: a divisão técnica do trabalho
acabou por cancelar o vínculo afetivo entre operário e produto. A “força muscular do trabalhador sua energia e resistência passaram
a ser objeto de exploração capitalista”, reduzindo o trabalho a
simples ação fisiológica, desprovida de criatividade (Gonçalves, 1994).
Na
lógica de produção capitalista o corpo mostrou-se tanto oprimido,
quanto manipulável. Era percebido como uma “máquina” de acúmulo de
capital. Deste modo, os movimentos corporais passaram a ser regidos por
uma nova forma de poder: o poder disciplinar. Esta manifestação de poder
se instalou nas principais instituições sociais. Como bem o lembra Gonçalves,
M. Foucault, em sua obra, Microfísica
do Poder, apontou o seu mecanismo de atuação:
Foucault
mostrou como essa forma específica de poder, que surgiu a partir do século
XVII, agia nas mais diversas instituições sociais – escolas,
hospitais, prisões, fábricas, quartéis..., com o objetivo de submeter o
corpo, de exercer um controle sobre ele, atuando de forma coercitiva sobre
o espaço, o tempo, e a articulação dos movimentos corporais (GONÇALVES,
1994, p.24).
Os
homens e seus corpos eram vistos apenas na perspectiva do ganho econômico.
O poder disciplinar, ao mesmo tempo em que promovia a utilização máxima
da força de trabalho, domesticava e impossibilitava a resistência político-social
do trabalhador.
Cabe
lembrar que os ideais iluministas (século XVIII) acabaram por acentuar a
depreciação do corpo, dissociando-o da alma, retomando a dicotomia
corpo-alma, arquitetada na antiguidade clássica. O pensamento iluminista
negou a vivência sensorial corpórea, atribuindo ao corpo um plano
inferior. As necessidades de manipulação e domínio do corpo,
paralelamente, concorreram para a delimitação do homem como ser moldável
e passível de exploração.
A
expansão do capitalismo, no século XIX, propagou a forma de produção
industrial em que a instrumentalização do corpo fazia-se necessária. A
padronização dos gestos e movimentos instaurou-se nas manifestações
corporais. As novas tecnologias de produção em massa desencadearam um
processo de homogeneização de gestos e hábitos que se estendeu a outras
esferas sociais, entre elas a educação do corpo, que passou a
identificar-se não só com as técnicas, mas também com os interesses da
produção (HOBSBAWM, 1996).
A
evolução da sociedade industrial propiciou um elevado desenvolvimento técnico-científico.
As novas possibilidades tecnológicas propiciaram a elite burguesa
moderna, um incremento de técnicas e práticas sobre o corpo. O aumento
da expectativa de vida, as novas formas de locomoção e comunicação
expandiram as formas de interação e realização de atividades
corporais. O fácil acesso à informação trouxe infinitas possibilidades
ao conhecimento. Contudo, a padronização dos conceitos de beleza, fundados
no corpo magro ou musculoso ancorada pela necessidade de consumo criada
pelas novas tecnologias e homogeneizada pela lógica da produção, foi
responsável por uma diminuição significativa na quantidade e na
qualidade das vivências corporais do homem contemporâneo.
Mídia
e o mercado de corpos
No
final do século XX e início do século XXI, a superexposição de
modelos corporais nos meios de comunicação contribuiu, fundamentalmente,
para a divulgação de uma ótica corpórea estereotipada e determinada
pelas relações de mercado. A mídia contemporânea vincula somente
corpos que se encaixam em um padrão estético “aceitável”, mediado
pelos interesses da indústria de consumo. Modelos corporais são
evidenciados como indicativo de beleza, em todos os formatos de mídia,
num jogo de sedução e imagens. Trata-se de vincular à representação
da beleza estética ideais de saúde, magreza e “atitude”.
Configurando-se como objeto de desejo um corpo bonito, jovem,
“malhado”, com idéias de vencedor e rodeado pelo consumo. Esse
conjunto de fatores acabou por criar no imaginário social uma associação
entre “corpo ideal” e sucesso.
Nos
meios publicitários, as considerações supracitadas se revelam
explicitamente. Visivelmente, trabalha-se com o desejo alheio, não um
desejo inerente, mas um desejo construído segundo os moldes do consumo.
Essa manifestação da produção procura despertar de forma sinestésica
um afloramento emocional ligado com a essência, com a
feminilidade/masculinidade e, sobretudo, com o ideal estético vigente.
Desse modo, a propaganda apodera-se da subjetividade de cada indivíduo,
incitando-o a recriar-se, segundo o modo ou estilo de vida que ela
propaga. Patrícia Lessa dos Santos, citando Guatari (1992, p.14)
assinala esse modo de ação publicitária por meio das seguintes
palavras:
(...)
as máquinas tecnológicas de informação e de comunicação operam no
núcleo da subjetividade humana, não apenas no seio da suas memórias, de
sua inteligência, mas também de sua sensibilidade, dos seus afetos, de
seus fantasmas inconscientes (2005, p. 123).
A
criação de estereótipos publicitários é também precursora do ideário
de corpo como objeto de desejo e de consumo, procura-se criar uma associação
entre o produto consumido e um estilo de vida idealizado. Desta forma, a
diversidade de produtos e seus respectivos padrões estéticos agregados,
sempre seguem uma fórmula semelhante: a
transformação ou a modificação da vida pela compra de alguma coisa, ou
seja, a criação de uma nova identidade atrelada ao produto (MERENGUÉ,
2002).
Essa
lógica mercadológica atua com mecanismos semelhantes em “nossas” carências
mais profundas, o horror à morte, o medo da velhice e da impotência
aparentemente sempre podem ser combatidos ou amenizados com novos produtos
ou técnicas estéticas que são infinitamente renováveis em sua aparência,
mas que permanecem as mesmas em seu conteúdo.
A
repercussão social desse simulacro ideal desencadeia vários distúrbios
psicosociais que giram em torno de anseios mercadológicos. A necessidade
humana de encaixar-se nesse padrão ou identidade estética ocasiona um
aumento crescente do número de cirurgias plásticas, do uso de substâncias
químicas relacionadas a “boa” forma física e da quantidade de
pessoas afligidas por comportamentos compulsivos, destacando-se a bulimia,
a anorexia e o narcisismo.
Segundo
Ana Márcia Silva (2001), a obsessão narcisista pelo aumento de massa
muscular apresenta um diferencial, em relação às demais formas de
dependência. Por ser considerada pelo indivíduo dependente e pela
sociedade uma prática positiva, acaba levando ao reforço cíclico do vício.
A
insatisfação com o próprio corpo implicou a incorporação da prática
do exercício físico com fins estéticos no cotidiano do indivíduo.
Criou-se a “malhação”, expressão que assume dois sentidos: “a
ação de dar pancada com malho ou martelo e o ato de zombar ou fazer escárnio,
a ambos o ser humano se subjuga, malha para não ser malhado”
(SILVA, 2001, p. 101).
As
academias contemporâneas, adaptadas às novas exigências do mercado,
apresentam-se cada vez mais sofisticadas.
Foram incorporados a sua estrutura física, além do espaço
destinado à prática do exercício físico, lojas, bares e clínicas estéticas,
formando verdadeiros centros de
culto a estética. O trabalho corporal desenvolvido pela academia
obedece à lógica da máquina: a cronometrização e mecanicidade são os
princípios orientadores das práticas corporais. Mais uma vez, vale
lembrar Silva, quando a autora afirma que a lógica da máquina “impõe
a obediência dos seres humanos à organização mecânica, ignorando o
indivíduo e sua condição de sujeito” (2001, p. 102). Desse
modo, cria-se mais um mecanismo de fuga da realidade, de compensação
diante da frustração e impotência cotidiana de não reação à barbárie
provocada pelas diferenças sociais e econômicas.
Considerações
Finais
Embora
se saiba que a análise sugerida não possa ser esgotada nesse texto, a
reflexão proposta evidencia a necessidade da criação de formas de reação
e contestação aos novos modos de controle estabelecidos na
contemporaneidade. A concepção de novos espaços para as práticas
corporais que procurem à emancipação do ser humano, intermediados, pela
consciência crítica da realidade entende-se como ponto vital para a
mudança efetiva dos atuais paradigmas que norteiam a educação do corpo.
A
constatação da incidência dos problemas acima esboçados evidencia a
necessidade dessa temática ser assimilada pelos conteúdos programáticos
dos cursos de Educação Física, almejando a formação de profissionais
conscientes que possam intervir nessa realidade com a intenção de
transformá-la.
Por
fim, reafirma-se o imperativo da construção de um projeto de transformação
social que possa desvelar e combater os mecanismos de reprodução dos
modelos estéticos mercadológicos referidos, evitando a apropriação e a
mercantilização das práticas corporais e sugerindo novas formas
conscientes de interação entre o homem e seu corpo.