O
Brasil-Nação Como Drama Social
Resumo:
Minha
pretensão neste artigo é aplicar o conceito de drama social e
outros complementares, de Victor Turner, a uma tentativa de
explicação holista do processo de independência do Brasil,
buscando compreender sua íntima relação com o mito de nossa
brasilidade. Também desejo observar como os atores sociais das
arenas políticas e intelectuais incorporaram os papéis do drama
inaugural do Estado brasileiro, bem como suas conseqüências políticas
para a nação.
Palavras-chave:
Drama social, brasilidade, Estado nacional, nação, elites
políticas, elites intelectuais.
Abstract:
My
pretension in this article is to apply the concept of social drama
and others complementary, of the anthropologist Victor Turner, to
an attempt of holist explanation of the process of independence of
Brazil, searching to understand its close relation with the myth
of our “brasilidade”. Also desire to observe as the social
actors of the enclosures for bullfighting politics and
intellectuals had incorporated the roles of the inaugural drama of
the Brazilian State, as well as your consequences politics for the
nation.
Key-words:
Social
drama, “brasilidade”, National State, nation, politics elites,
intellectuals elites. |
Victor
Turner é um dos mais interessantes antropólogos do século XX. Sua maior
contribuição teórica para a antropologia social é seu conceito de
drama social. Em sua definição, essa categoria analítica aparece como
uma representação de papéis sociais pré-determinados em um campo específico
de ação, o que pode ser a reprodução ou a inauguração de alguns
mitos sócio-culturais, através de atores que incorporam determinados gêneros
de desempenho. O caráter simbólico de um drama, podendo ser cristalizado
em um ou mais ritos de passagem, remete-nos a sua propriedade de reprodução
inconsciente de ações e papéis num determinado palco (TURNER, 1975).[i]
Em
sua densa produção intelectual, Turner deixou claro que a categoria de
drama social pode ser aplicada tanto para a compreensão das sociedades
ditas tradicionais, como para sociedades tecnicamente mais complexas. O
primeiro caso é amplamente contemplado em seus estudos pelo interior do
continente africano. Quanto ao segundo, Turner realiza um belíssimo
trabalho sobre a independência política mexicana. Nessa obra, ele
analisa como o processo de insurreição pré-independência inaugura
alguns mitos nacionais no México, através da liderança carismática do
padre Hidalgo.
Exercício
intelectual semelhante é o que realizo aqui, tomando como objeto analítico
o processo da independência política brasileira. Procurarei aplicar, ao
longo do texto, alguns conceitos auxiliares desenvolvidos por Turner
acerca da noção de drama social. Deste modo, o ponto que pretendo
explorar é: a criação do Estado brasileiro, processo este diretamente
relacionado ao desenvolvimento da idéia de brasilidade, a partir da
independência, se constitui em um fenômeno político direcionado por
alguns círculos restritos de nossas elites, que exerceram em diversos
momentos históricos papéis específicos no campo político, que
considerarei como central, bem como em sua articulação com as arenas
intelectuais e administrativas, que considerarei como entorno.
Nosso
grande drama nacional, é preciso esclarecer, não se resume ao rito
inaugurador de nossa nação, o independência ou morte. O drama se
inicia um pouco antes, em 1808, quando o Brasil é elevado a sede do Império
português, com a vinda da Família Real para o Rio de Janeiro e a
abertura dos portos, quebrando assim o pacto colonial. Naquele momento,
iniciou-se a representação inconsciente de nossas elites acerca do
contexto econômico do mundo moderno: uma nação precisa de autonomia política
e de uma identidade cultural, composta por uma tradição, para sua afirmação
como tal.
Na
verdade, nossas elites representaram a mentalidade liberal, e o nosso paradigma
radical da cultura, conceito criado por Turner para explicar os
modelos apriorísticos que porventura influenciem a deflagração de um
drama, foi composto pelas revoluções liberais do fim do século
XVIII, principalmente a Revolução Americana, que inaugurou o mito de nação
jovem e independente das Américas, perseguido por nós até 1922. Não é
à toa que os Estados Unidos defenderam desde então a ideologia da América
para os americanos, e foi o primeiro país a reconhecer nossa independência.
Esta postura americana influenciou diretamente a nossa reprodução do
mito de nação independente. É claro que no plano econômico esse foi um
processo contextualizado e inevitável. No entanto, me interessa aqui o
caráter simbólico de reprodução do mito através de nosso drama
nacional.
Tal
drama não se resume ao rito heróico da independência. Ele se estende
por todo o Império e vai até a revolução de 1930. Assim me interessa
perceber qual foi o palco deste drama, quais foram alguns ritos
inaugurados ou reproduzidos dentro dele, quais foram os campos e arenas
relacionados, bem como seus grupos-astros, tipos simbólicos, fundo moral,
mártires e algozes, conceitos estes agregados por Turner à idéia de
drama social.
A
trajetória do drama
De
acordo com Turner, um drama possui início, meio e fim, podendo ser
expresso através de um modelo agonístico, em situações de crise ou
iminência de ruptura de um sistema. Nesse período de tensão, os
resultados podem ser diversos. Pode predominar o peso da tradição,
mantendo a continuidade da estrutura então abalada, adaptando-a, ou pode
predominar o peso das forças de ruptura, quando as forças de
continuidade não conseguem articular as armas que a estrutura vigente
lhes confere. Estas armas, no que dizem respeito a um campo político,
como o que aqui analiso, podem ser instituições como o Estado, o exército,
a igreja ou a mídia.
Dito
isto, podemos interpretar nosso drama nacional como uma série de períodos
agonísticos, onde as elites políticas sempre se precipitaram em inventar
nossas revoluções, através de golpes de Estado articulados em seus círculos
mais restritos, constituindo assim uma história de continuidades e não
de rupturas. Em 1822 o mito da independência, cristalizado simbolicamente
na figura de D. Pedro I, surgiu dos
interesses das elites brasileiras em busca de autonomia política. Naquele
momento, as correntes liberais, principalmente os ingleses, se constituíram
na principal arena relacionada ao campo político. Aqui cabe ressaltar o
significado atribuído por Turner aos conceitos de campo e arena. O campo
seria o palco principal de um determinado enfoque teórico, e as arenas
seriam campos relacionados onde as ações sociais efetuadas afetariam
diretamente o campo central, não sendo menos importantes para a compreensão
do evento metodologicamente selecionado.
Naquele
momento, a arena intelectual teve sua maior expressão e influência na
figura de José Bonifácio, um ideólogo liberal e político conservador
que ficou conhecido como o patriarca da independência e fundador da
nacionalidade brasileira. Bonifácio foi a maior figura simbólica daquele
primeiro momento do drama por ter conciliado os interesses das forças
econômicas com a necessidade de independência em relação às cortes
portuguesas. Isto aparece com vigor em seus escritos políticos (BONIFÁCIO,
1964).
A
necessidade política de criação de um mito nacional, na intenção de
estabelecer uma unidade nacional através de uma identidade sedimentada no
imaginário social, fez com que o campo político se articulasse
intencionalmente com o intelectual, o que se cristaliza quando o Império,
na década de 1850, encomendou um projeto de escrita para a história
oficial do Brasil, elaborado então por Von Martius. Apesar de premiado
pelo Império, Martius não levou o projeto à frente. Este desafio foi
assumido pelo nosso primeiro historiador oficial, Varnhagem, em sua
paradigmática obra História Geral do Brasil. Ali estava inventado
o mito de nossa brasilidade: uma nação harmoniosa pautada na democracia
racial, que depois seria atualizado e sistematizado por Gilberto Freyre
(REIS, 2000).
Essa
primeira parte de nosso drama tem início em 1808, como já mencionado, e
termina em 1889, com alguns marcos e ritos importantes dentro deste período.
A segunda metade do século XIX, no Brasil, foi marcada como a fase de
maior estabilidade política e econômica, e como a época de maior fluxo
de idéias novas, diretamente importadas da Europa e dos Estados Unidos. O
contexto ocidental do progresso e da modernização, neste sentido,
proporcionou o pano de fundo moral e ideológico de nossa Abolição da
escravatura e de nossa República. A Abolição, em 1888, representou a
liberdade do mundo moderno. A República, em 1889, representou o patamar
último do progresso. Nossos símbolos nacionais, como a bandeira e o
hino, são ícones sacralizados destas representações. D. Pedro II foi,
nesse contexto, o maior símbolo da modernidade que chegava com a era dos
bacharéis, reproduzindo o modelo intelectual europeu.
As
arenas relacionadas, nesse contexto, foram as correntes e grupos
intelectuais que colaboraram diretamente na articulação molecular da
proclamação da República, como os positivistas e os maçons, com suas
propagandas republicanas. Os positivistas atuaram também diretamente na ação
política, misturando assim os campos de ação como no caso de Benjamin
Constant, considerado o pai da República, que recebeu a pasta do ministério
da guerra no governo Deodoro, bem como Júlio de Castilhos no Rio Grande
do Sul. Além do mais, a arena liberal cristalizou sua influência na
imagem de Rui Barbosa, eternizado então como o organizador da República.
Este
segundo momento, ou meio do drama, que é a República, foi marcado nem
tanto pela brasilidade, mas pela idéia de modernização. É neste
sentido que os principais campos de ação desta análise funcionam a
partir de então. A situação agonística da Proclamação da República
foi, assim, a necessidade de colocar o país nos trilhos do progresso e da
modernização. Este objetivo foi perseguido durante toda a República
Velha, nas mãos das oligarquias do café com leite, mas só atingido
depois da Revolução de 30, marcando a última fase e o fim do drama
nacional da independência.
Na
década de 30, este final do drama nacional foi caracterizado pelo
conflito entre duas arenas políticas: a crise do café com leite (São
Paulo e Minas, que revezaram a presidência da República Velha) diante da
rearticulação de antigas oligarquias do eixo Rio Grande do Sul - Rio de
Janeiro - Recife. Este cenário contém uma aparência de ruptura, e Getúlio
chega ao poder através do segundo eixo. A unidade nacional é posta em
questão diante do conflito entre oligarquias, o que gera a necessidade de
reafirmação da nacionalidade, ao mesmo tempo em que a modernização é
palavra de ordem do dia.
Sendo
assim, o paradigma radical da unidade nacional, como base ideológica do
Estado corporativo de Vargas, foi o totalitarismo europeu, e a reafirmação
de nossa identidade nacional foi articulada tanto no campo político
quanto no intelectual. Quanto ao primeiro, temos a criação da SPHAN,
secretaria de patrimônio histórico e artístico nacional, com o objetivo
de selecionar um acervo que compusesse nossa tradição e a imagem de
nosso passado no imaginário da nação. Quanto ao segundo, intelectuais
que eram interlocutores diretos do SPHAN, principalmente Gilberto Freyre e
Sérgio Buarque de Holanda, estiveram reafirmando o caráter positivo de
nossa nacionalidade através dos mitos da democracia racial e social e do
brasileiro cordial. Neste sentido, Casa Grande & Senzala e Raízes
do Brasil são livros emblemáticos, fundadores de mitos nacionais que
se eternizaram em nosso senso comum a ponto de dominar nossa mentalidade
política e até científica. Casa Grande & Senzala, na
verdade, retoma, sistematiza e sofistica a democracia racial inventada por
Varnhagem, revitalizando o fundo ideológico de nosso drama.
Além
disso, a figura de Oliveira Vianna, como consultor jurídico do governo
Vargas, foi fundamental na composição da ideologia tutelar do Estado,
contendo a influência de idéias darwinistas, spencerianas e
positivistas. Este fundo ideológico sustentado por Viana era pautado na
concepção de que o povo era naturalmente inferior e precisava ser
conduzido pelo Estado ao aperfeiçoamento coletivo.
É
importante perceber que este drama envolve todo o povo brasileiro, o que
significa que está bem vivo em nosso imaginário social. No entanto, seus
grupos-astros são nossa classe política e nossa elite intelectual, bem
como nosso estamento burocrático, que geralmente funciona de acordo com a
classe política. Estes grupos incorporam e reproduzem gêneros de
desempenho cultural, para usar mais uma vez os termos de Turner, o que
significa que seu padrão de comportamento e sua forma de pensar são a
representação de paradigmas radicais principalmente europeus e, em certa
medida, norte-americanos.
Além
do mais, podemos identificar dentro deste grande drama nacional a articulação
de arenas regionais de conflitos, que se constituem em dramas regionais
paralelos ao nacional. Este é o caso das revoltas e insurreições
regionais tanto no Império quanto na república, como por exemplo, a
inconfidência mineira e as revoltas de Canudos e do Contestado. Sejam
elas com apoio popular ou não, o importante é compreender que ali se
empreenderam forças sociais de independência ou de protesto diante da
unidade nacional, possuindo assim seus próprios grupos-astros, mitos, mártires
e gêneros de desempenho, ao mesmo tempo em que foram arenas relacionais
do campo nacional.
É
interessante notar também que os nossos mártires ou heróis nacionais,
sendo os principais deles D. Pedro I, D. Pedro II e Getúlio Vargas,
acabam se transformando em algozes, quando vistos do ponto de vista dos
dramas regionais. Não há mito mais marcante do que o chefe de um estado
tutelar findar sua vida com um tiro na cabeça. Desta forma, o imaginário
popular às vezes se confunde, podendo ser determinado pelo papel e pelas
ideologias a que cada indivíduo ou grupo esteja diretamente ligado,
dentro desse complexo contexto de articulação entre um drama regional e
outro nacional.
Dentro
deste cenário nacional, é muito curioso o papel historicamente
desempenhado pelos nossos militares. Seja ao lado de conservadores,
progressistas ou liberais, eles sempre foram cópias de si mesmos, ou
seja, sempre foram o seu próprio paradigma radical, reproduzindo em todos
os nossos golpes e repressões o papel de eternos guardiões da ordem em
nome do progresso. A base ideológica dessa autopercepção coletiva dos
militares remonta ao positivismo pré-republicano, a que devemos a idéia
de que qualquer tipo de anarquia seria extremamente incompatível com o
progresso.
Nossa
necessidade de inventar um mito nacional se deve a ausência, em nossa
jovem nação, do que Turner chama de consenso social sobre os valores.
Isto significa a ausência de uma tradição firmemente consolidada no
imaginário social, como foi, por exemplo, o caso das civilizações
orientais estudadas por Max Weber. Devido a isso, nosso drama é
caracterizado não só pela necessidade de se alinhar aos padrões políticos
e econômicos do mundo moderno, mas também pela busca desesperada de uma
identidade cultural.
Por
fim, gostaria de ponderar uma propriedade fundamental dos dramas sociais
identificada por Turner, que é o seu caráter elástico. Isto significa
que um drama pode compreender grupos antagônicos e dialéticos no
interior de sua estrutura. Sendo assim, a dinâmica social do campo
Brasil, ao contrário do que sutilmente sugere Gilberto Freyre em Casa
Grande & Senzala, seria casa grande versus senzala, senhor versus
escravo, elites versus povo, burguês versus proletário
(SOUZA, 2003). Mas este é outro drama brasileiro que não cabe explorar
neste trabalho.
Em
suma, o que procurei analisar aqui foi a necessidade de articulação de
nossas elites políticas e intelectuais em torno da necessidade de invenção
de um imaginário social que sedimentasse a unificação política do país.
É este processo, que procurei compreender como o nosso grande drama
inaugural, que explica a criação de nossa identidade nacional na forma
de uma brasilidade positiva, que omitiu e naturalizou nosso histórico
distanciamento entre Estado e nação. De modo que o resultado da
dramatização de nossas elites a partir do paradigma radical europeu de
Estado-nação não logrou nenhuma eficácia. Isto seria um caminho
inverso ao processo civilizatório europeu, onde a cidadania se constituiu
de baixo para cima. Como conseqüência, o estranho amálgama entre
brasilidade e Estado tutelar só serviu para agravar nosso principal drama
social, cristalizado em um naturalizado abismo entre um Estado virtual e a
vida cotidiana da nação.
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[i] Todas
as referências a Turner usadas aqui se remetem a mesma obra, não
sendo necessário assim repeti-las.