O discurso-arte
de Chico Buarque:
poder sobre o
sujeito brasileiro
RESUMO
Neste
artigo, propomos uma análise do discurso da canção Construção,
de Chico Buarque. Com ele, visamos a uma possível leitura sobre a
importância histórica da canção - enquanto prática discursiva
(no período ditatorial) - como denunciadora de um poder que
exclui determinado tipo de sujeito. Nesse sentido, acreditamos ser
possível, por meio da arte, formar parte da consciência crítica
de uma nação e fazer com que essa nação pense sua estrutura sócio-política.Para
isso, utilizaremos os conceitos de sujeito, poder, história e
discurso, baseados na teoria da Análise do Discurso de linha
francesa (AD), sob a ótica de Mikhail Bakhtin – teórico russo
que elaborou conceitos incorporados pela AD –, e Michel
Foucault.
PALAVRAS-CHAVE:
Sujeito;
Poder; História; Discurso; Canção
ABSTRACT
In
this paper, we propose the discursive analysis of “Construção”
song’s, by Chico Buarque. We intend, with this essay, a reading
of the historical importance of the song - while discursive
pratical (in the dictatorial period) - as power’s denouncer that
excluded one type of subject. In that meaning, we think that is
possible, through of the art, to form part of the critical
conscience of the one nation and to make with that nation thinks
about your social-political structure human being. For this, we’ll
use, while teoric embasament, the Discursive Analysis of French
line. While theorizers, we’ll work with Mikhail Bakhtin –Russian
theorizer that elaborated concepts incorporated by Discursive
Analysis – and Michel Foucault’s concepts, for example:
subject, power’s system, history and discourse.
KEYWORDS:
Subject;
Power; History; Discourse; Song
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Este
artigo foi construído a partir de nosso projeto de iniciação científica,
denominado: Chico Buarque: Sobretudo Compositor, Contudo Denunciador.
No referido projeto, analisamos algumas canções de Chico Buarque por
meio da Análise do Discurso de linha francesa (AD), com o objetivo de
destacar as características político-críticas presentes nos
discursos-canções buarqueanos. Intentamos, portanto, neste artigo,
analisar discursivamente a canção “Construção”, composta
por Chico em 1971. Mais que isso, refletir a respeito do comportamento do
sujeito projetado nessa canção e a maneira como o poder o cerceia, no
sentido de anular qualquer tipo de atitude não programada. Pretendemos
compreender, a partir da análise subjetiva, um tipo identitário-cultural
brasileiro daquela época: o excluído pelo poder. Além disso,
relacionaremos alguns acontecimentos históricos que, possivelmente,
corroboraram com a composição literário-discursiva desse sujeito ou,
pelo menos, caracterizaram parte das condições de produção dos anos
70. Ressaltamos que o período de produção dessa
canção foi a ditadura
militar. Nesse momento histórico, canções como “Construção” eram
proibidas de serem tocadas e ouvidas no Brasil.
Para
realizar a análise, tomaremos alguns conceitos elaborados por Michel
Foucault e Mikhail Bakhtin - teóricos que constroem conceitos importantes
para a AD. Dentre os conceitos, destacamos: a conceituação de sujeito
– feita a partir das teorias de Foucault e Bakhtin; o conceito de
discurso – pois nossa análise terá como princípio, a concepção de
que o sujeito constrói-se e é construído a partir do discurso; o
conceito de poder – nesse sentido, entenderemos que o sujeito, re-criado
a partir do discurso, está inserido em uma rede de poderes da qual não
pode se desprender; e o conceito de história – entendido sob a égide
das conceituações dos teóricos da nova história.
A
partir das delimitações acima, gostaríamos de entender a concepção de
sujeito bakhtiniana e foucaultiana. Para Bakhtin, o sujeito deve ser
entendido como um eu que se constitui a partir e por meio de um outro.
Sob essa ótica, a construção subjetiva dar-se-ia por meio da interação
discursiva entre dois sujeitos. A linguagem, sob esse prisma, seria o elo
entre as duas personagens do discurso. Bakhtin, ao propor uma filosofia
marxista da linguagem, afirma que, somente no âmbito da interação
verbal - portanto, relação eu-outro – é que se pode obter uma
filosofia materialista da linguagem. O diálogo é, portanto, a maneira
mais concreta de manifestação discursiva.
Em
Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN, 2004), o teórico
propõe a dialética por meio da qual um estudo (do sujeito, do discurso,
do signo) possa ser considerado “materialista”. O teórico russo
critica duas posições teóricas, ambas reducionistas e mecanicistas: o
“subjetivismo-individualista” e o “objetivismo-abstrato”.
Por
um lado, o “subjetivismo-individualista” pensa a produção do sentido
como algo que deriva da consciência do sujeito. Sob esse prisma, o
sujeito seria a instância fundadora do sentido. A linguagem representaria
a expressão da mentalidade subjetiva. A identidade do sujeito forma-se a
partir da negação de tudo o que não é idêntico a si mesmo, ou seja, a
negação da diferença, do coletivo e a afirmação do individual.
Por
outro lado, o “objetivismo-abstrato” pensa de maneira contrária ao
“subjetivismo-individualista”. Essa concepção nega a subjetividade
em prol da afirmação de que tudo o que o sujeito pensa/faz resulta das
determinações sociais e apenas o outro se afirma como constituinte da
formação do sujeito.
Bakhtin
utiliza o materialismo-dialético do pensamento marxista para elucidar a
questão. Sob essa perspectiva, o teórico afirma que ambas as formas de
pensamento estão equivocadas. O sujeito nem é o total responsável pela
produção do sentido, nem é totalmente reprodutor de discursos
cristalizados e impassíveis de nova significação. O sujeito estaria no
interstício dessas duas concepções. Sob esse ponto de vista, o
individual é fruto da interação social e coletiva. Para se constituir
como sujeito é necessário que o indivíduo interaja com outros sujeitos.
Essa idéia está proposta em Estética da Criação Verbal (BAKHTIN,
2003):
Essa
distância concreta só de mim e de todos os outros indivíduos - sem exceção
- para mim, e o excedente de minha visão por ele condicionado em relação
a cada um deles (desse excedente é correlativa uma certa carência,
porque o que vejo predominantemente do outro em mim mesmo só o outro vê,
mas neste caso isso não nos importa, uma vez que na vida a inter-relação
“eu-outro” não pode ser concretamente reversível para mim) são
superados pelo conhecimento, que constrói um universo único e de
significado geral, em todos os sentidos totalmente independente daquela
posição única e concreta ocupada por esse ou aquele indivíduo;(2003,
pg. 21-22).
O
diálogo – entendido como interação
verbal (realizado, portanto, por meio de signos ideológicos) entre um eu
e um outro – , ocupa um lugar
fundamental nas pesquisas bakhtinianas. Ele é a base para a concepção
de sujeito (formado a partir do diálogo com outro sujeito e com o meio sócio-cultural
em que está inserido), de discurso (formado a partir do diálogo com
outros discursos e da(s) sociedade(s) em que esses discursos são
veiculados), de signo (entendido a partir da relação com outros signos
sociais), entre outras concepções que norteiam o pensamento
bakhtininiano a respeito das ciências humanas modernas. Sob essa ótica,
entendemos que os estudos de Bakhtin visam a um relacionamento entre o
individual e o coletivo, pois, os discursos – formados por signos e
utilizados subjetivamente –, co-existem dialogicamente em uma estrutura
social.
Para
Foucault, o sujeito deve ser entendido como dispersão. Sob essa
perspectiva, a análise subjetiva deve centrar-se nas posições em que os
sujeitos estão inseridos. Tal dispersão pode ser entendida pelas
diferentes modalidades enunciativas nas quais os sujeitos podem se inserir
e ser inseridos. Como está
enunciado em A Arqueologia do Saber(FOUCAULT, 2004):
(...)
as diversas modalidades de enunciação, em lugar de remeterem à síntese
ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua
dispersão: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas
posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na
descontinuidade dos planos de onde fala. Se esses planos estão ligados
por um sistema de relações, este não é estabelecido pela atividade
sintética de uma consciência idêntica a si, muda e anterior a qualquer
palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva (2004, pg.
61).
Ao
manifestar-se – ou ser manifestado – em um discurso, o sujeito pode
ser entendido socialmente. Por meio do discurso, entendido como prática,
é que o sujeito será percebido como mais ou menos privilegiado na
organização do poder. A distribuição do poder é re-velada a partir do
discurso praticado por um sujeito. Sob essa ótica, a prática discursiva
é cercada por uma série de regras sociais que determinam, em maior ou
menor grau, a idiossincrasia de uma época. Diversas técnicas são
utilizadas para que a ordem sistêmica não seja perturbada. Podemos citar
os suplícios e torturas, ocorridos na ditadura militar – período de
produção de “Construção”. O poder cria diversos mecanismos e
estratégias punitivas para que não se quebre a “ordem natural das
coisas”.
Foucault,
assim como Bakhtin, renega o “sujeito fundante”. Ele associa tal noção
a uma dupla “banalização” teórica: uma “antropologização de
Marx” e uma “transcendentalização de Nietzsche”. Isso quer dizer
que, por um lado, a ingenuidade teórica anterior ocultava as diferenças
de classes e as lutas em nome da consciência fundadora, ou seja,
pensava-se a história a partir da consciência fundante e não da luta de
classes – interpretação reducionista da teoria marxista; por outro, a
idéia de consciência fundadora desconsidera a materialidade dos
acontecimentos históricos – não os entende como resultantes de fatores
subjetivo-sociais – pois busca neles a origem a partir da qual a história
se desencadearia numa causalidade lógica – idéia que se contrapõe a
Nietzsche e às concepções da nova História. No texto A Arqueologia
do Saber, encontramos o seguinte trecho, a respeito dessa dupla
banalização:
Somos,
então, levados a antropologizar Marx, a fazer dele um historiador das
totalidades e a reencontrar nele o propósito do humanismo; somos levados
a interpretar Nietzsche nos termos da filosofia transcendental e a
rebaixar sua genealogia no plano de uma pesquisa do originário;
finalmente, somos levados a deixar de lado, como se jamais tivesse
aflorado, todo esse campo de problemas metodológicos que a história nova
propõe hoje (2004, pg. 15).
Sob
a ótica do pensamento marxista, que propõe a luta de classes como
“combustível” para a movimentação histórica, Foucault aponta para
uma análise que relaciona saber e poder na sociedade contemporânea. Diríamos
que a diferença de classes pode ser percebida pela posição ocupada
pelos sujeitos de determinada classe na hierarquia do poder. Ressaltamos a
nova concepção de poder elaborada por Foucault. Ela se contrapõe à
corrente althusseriana, que entende o poder como algo que se direciona à
classe dominante – dos aparelhos ideológicos e repressivos de Estado
– para a classe dominada. Foucault, por sua vez, propõe que se entenda
o poder como micro-poder. Nessa perspectiva, o poder deve ser entendido
como uma estratégia. Como algo que se exerce mais do que se possui. O
poder age por meio de técnicas e funcionamentos, o que significa dizer
que ele se estende por todas as camadas da sociedade. Embrenha-se pelas
mais ínfimas relações sociais. É isso que entendemos como poder em
escala micro, em Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2003):
Ora,
o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja
concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos
de dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a
disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos;(...)
O que significa que essas relações aprofundam-se dentro da sociedade,
que não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na
fronteira das classes e que não se contentam em reproduzir ao nível dos
indivíduos, dos corpos, dos gestos e comportamentos, a forma geral da lei
ou do governo (2003, pg. 26).
Foucault
estabelece uma relação importante entre saber e poder. As posições
sociais mais privilegiadas com relação à divisão do poder, geralmente,
são aquelas que exigem dos sujeitos, um maior grau de especialização do
saber. Nesse sentido, ficam excluídos dessas posições os sujeitos que não
possuem um grau de saber legitimamente reconhecido sócio-institucionalmente.
Historicamente,
o poder cria mecanismos novos para se manter. Percebemos, a partir da análise
dos estudos foucaultianos, que, a uma nova configuração do poder, há
uma nova configuração do saber. È o caso, por exemplo, da instituição
dos órgãos de informação, em grande escala, no período ditatorial.
Para garantir a manutenção do poder militar, o sujeito que ousasse
criticar era submetido a uma série de interrogatórios a respeito de suas
posições político-sociais. Caso as convicções do interrogado não
condissessem com as prerrogativas do poder militar, o sujeito era preso,
torturado ou morto. Para tal, existiam o CIE (Centro de Informações do
Exército), o CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), o CISA (Centro
de Informações e Segurança da Aeronáutica) o CODI (Centro de Operações
de Defesa Interna), entre outros, que visavam à adequação dos sujeitos
nos moldes ditados pelo poder. A partir do laudo obtido pela avaliação
dos censores, o sujeito era libertado ou não. Notamos, então, a profunda
relação entre saber e poder. A subversão é o saber que permite a
exclusão de determinado tipo de sujeito das altas posições de poder.
Falamos
em evolução histórica do poder. Mas, o que vem a ser a história sob a
ótica foucaultiana? Para Foucault, a história deve ser entendida sob a
perspectiva da descontinuidade. O conceito de acontecimento torna-se nodal
para a compreensão da nova história. O acontecimento é aquilo que não
se pode prever ou explicar. É o fator que modifica as estruturas sociais
e, nem sempre, se pode chegar a uma causa específica. A análise deve
centrar-se, portanto, nos acontecimentos, e não nas origens.
Muitas
vezes, pensa-se a história como uma série de acontecimentos que se
desencadeiam uns após os outros, numa causalidade lógica. A visão histórica
fica limitada à visão do saber dominante a respeito dos acontecimentos
passados. O que Foucault teoriza é uma nova história. Sob esse ponto de
vista, considera o caráter sincrônico da “evolução”, ou seja, a
história caminha por rupturas e, para que se possa entender determinadas
conjunturas sócio-político-lingüístico-culturais, é necessário
recortar um determinado momento para que se possa realizar uma análise
rigorosa.
Há
quem diga que pensar os acontecimentos sincronicamente é realizar uma análise
não-histórica, pois se atribui a esse tipo de análise, a idéia de que
ela não considera a evolução. Sob essa ótica, afirma-se que o estudo
estrutural fundamenta-se em fatos estáticos. Entretanto, concordamos com
a seguinte passagem do texto Foucault e Pêcheux na análise do
discurso - diálogos e duelos (GREGOLIN, 2004):
(...)
o ponto de vista sincrônico não é a-histórico e muito menos anti-histórico,
não é escolher o imóvel contra o evolutivo por algumas razões: 1) não
se deve identificar a História com o sucessivo pois é preciso admitir
que ela é tanto simultaneidade quanto sucessividade; 2) a perspectiva
sincrônica procura entender as condições da mudança, isto é, quais são
as transformações que toda língua deveria sofrer para que um só dos
elementos seja modificado. (...) A concepção de “história” da Lingüística
estrutural está ligada à renovação das disciplinas históricas, que
introduziram as noções de descontínuo e de transformação; (2004,
pg. 29).
O
trecho supracitado vai ao encontro das teses foucaultianas a respeito da
história, a partir de então, considerada como descontínuo, como
ruptura. Trata-se não mais de história, mas de histórias (FOUCAULT,
2004):
Da
mobilidade política às lentidões próprias da “civilização
material”, os níveis de análises se multiplicaram: cada um tem suas
rupturas específicas, cada um permite um recorte que só a ele pertence;
e, à medida que se desce para bases mais profundas, as escansões se
tornam cada vez maiores. Por trás da história desordenada dos governos,
das guerras e da fome, desenham-se histórias, quase imóveis ao olhar -
histórias com um suave declive: história dos caminhos marítimos, história
do trigo ou das minas de ouro, história da seca e da irrigação, história
da rotação das culturas, história do equilíbrio obtido pela espécie
humana entre a fome e a proliferação (2004, pg. 3).
Acreditamos
que essas noções teóricas são importantes para a realização da análise
discursiva proposta por nós. Trata-se, sob esse prisma teórico, de
entender o sujeito discursivo de “Construção” – posicionado
socialmente e interativo com o outro – como inserido numa conjuntura
histórica dada - a ditadura militar; numa dada organização de poder -
repressivo, exclusivo, ditador.
Atentemos
para a canção:
Construção
Amou
daquela vez como se fosse a última
Beijou
sua mulher como se fosse a última
E
cada filho seu como se fosse o único
E
atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu
a construção como se fosse máquina
Ergueu
no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo
com tijolo num desenho mágico
Seus
olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou
pra descansar como se fosse sábado
Comeu
feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu
e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou
e gargalhou como se ouvisse música
E
tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E
flutuou no ar como se fosse um pássaro
E
se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou
no meio do passeio público
Morreu
na contramão atrapalhando o tráfego
Amou
daquela vez como se fosse o último
Beijou
sua mulher como se fosse a única
E
cada filho seu como se fosse o pródigo
E
atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu
a construção como se fosse sólido
Ergueu
no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo
como tijolo num desenho lógico
Seus
olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou
pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu
feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu
e soluçou como se fosse máquina
Dançou
e gargalhou como se fosse o próximo
E
tropeçou no céu como se ouvisse música
E
flutuou no ar como se fosse sábado
E
se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou
no meio do passeio público
Morreu
na contramão atrapalhando o público
Amou
daquela vez como se fosse máquina
Beijou
sua mulher como se fosse lógico
Ergueu
no patamar quatro paredes flácidas
Sentou
pra descansar como se fosse um pássaro
E
flutuou no ar como se fosse um príncipe
E
se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu
na contramão atrapalhando o sábado.
Percebemos
que se trata de um gênero textual, com marcas narrativas (típicas da
obra buarqueana), enunciado em terceira
pessoa. Afirmamos isso porque percebemos que a canção narra o percurso
de um sujeito ou, a ação de um sujeito num espaço e num tempo.
Comprovamos isso ao atentarmos para ações – realizadas pelo sujeito
– como: “Subiu a construção
como se fosse sólido/Ergueu no patamar quatro paredes mágicas”.
Entendemos
que o sujeito que sobe a construção, ergue quatro paredes e senta pra
descansar é um outro no discurso. É alguém a respeito do qual se contará
algo. Como trabalhamos com o conceito foucaultiano e bakhtiniano de
sujeito, não há necessidade de sabermos qual é o nome dele –
inclusive não encontramos marcas no texto que nos permitam saber o nome
dele. Sob essa ótica, consideramos a indeterminação desse sujeito –
no sentido de que não sabemos seu nome –, como uma maneira de nos fazer
pensar a respeito de uma função social. Mais que isso, trata-se, em
nossa leitura, de um operário da construção civil. O trecho: “Subiu
a construção como se fosse máquina/Ergueu no patamar quatro paredes sólidas/Tijolo
com tijolo num desenho num desenho mágico”; nos transmite essa idéia
e nos permite pensar no sujeito de “Construção” como um operário.
Os elementos “construção”, “quatro paredes” e
“tijolo” convergem para a formação discursiva do campo da construção
civil. Inclusive são esses elementos que justificam o título da canção.
Além disso, o momento histórico de produção da canção foi marcado
por acidentes de trabalho, baixos salários e longas jornadas de trabalho
na sociedade brasileira. Não descartamos que esses versos podem adquirir,
numa outra leitura, um caráter metafórico. Contudo, a título de
delineamento de nossa análise, não nos ateremos a esse aspecto.
Mas,
esse sujeito, a nosso ver, não pode ser entendido apenas por sua função
social, mas também pelas interações que ele realiza. Sob essa
perspectiva, incluímos, na rede de relações que o sujeito faz, a figura
dos filhos e da mulher, marcadas no texto por “Beijou sua mulher como
se fosse a última”; “E cada filho seu como se fosse o pródigo”. Ressaltamos
que existe mais de um filho. Isso fica patente pela expressão “E cada
filho”, que inicia o verso. Percebemos, a partir dessa marca lingüística,
um apontamento para uma possível “realidade” brasileira daquela época
e da atual: “a do trabalhador com mulher e filhos para cuidar”.
Além dessas interações subjetivas, marcadas no texto, existem outras
pressupostas. Citamos, por exemplo, a figura do encarregado de obras, que,
provavelmente, fiscalizava o trabalho do operário, do dono da construção,
que certamente pagava o salário do sujeito operário, entre outros. O
sujeito dessa canção identifica-se com vários outros que, por sua vez,
conferem sentido - ou não - à sua existência, ou seja, permitem que ele
se constitua como sujeito.
Sob
esse duplo aspecto - posicional e interativo - podemos entender as regras
que o poder impõe ao sujeito operário. Atentemos para o seguinte trecho:
“Subiu a construção como se fosse máquina/Ergueu no patamar quatro
paredes sólidas”. Ao ser comparado à máquina, o sujeito recebe
uma definição que nos permite pensar o operário da construção. Nesse
sentido, ele deve realizar suas funções mecanicamente, sem pensar ou
questionar. Os passos devem ser seguidos metodicamente para que não se
perca tempo nem dinheiro. Notamos aqui, a profunda disciplinarização
existente para que o operário produza de maneira eficaz. Essa é uma das
marcas da sociedade capitalista contemporânea. Em Vigiar e Punir (FOUCAULT,
2003: 184), há a seguinte passagem:
As
disciplinas ínfimas, os panoptismos de todos os dias podem muito bem
estar abaixo do nível de emergência dos grandes aparelhos e das grandes
lutas políticas. Elas foram, na genealogia da sociedade moderna, com a
dominação de classe que a atravessa, a contrapartida política das
normas jurídicas segundo as quais era redistribuído o poder. Daí sem dúvida
a importância que se dá há tanto tempo aos pequenos processos da
disciplina, a essas espertezas à toa que ela inventou, ou ainda aos
saberes que lhe emprestam uma face confessável; daí o receio de se
desfazer delas se não lhes encontramos substituto; daí a afirmação de
que estão no próprio fundamento da sociedade, e de seu equilíbrio,
enquanto são uma série de mecanismos para desequilibrar definitivamente
e em toda a parte as relações de poder; daí o fato de nos obstinarmos a
faze-las passar pela forma humilde mas concreta de qualquer moral,
enquanto elas são um fixe de técnicas físico-políticas.
É
isso que percebemos no sujeito de “Construção”. Ele
internalizou de tal forma os mecanismos disciplinares impostos pelo poder,
que a realização de suas atitudes, suas ações, tornaram-se
mecanizadas. Entretanto, abriremos um parêntese: no sistema ditatorial, a
não internalização das regras implica a tortura física. O
questionamento aciona o dispositivo punitivo que age diretamente sobre os
corpos in-dóceis.
No
trecho citado, percebemos que Foucault enuncia sua concepção de
micro-poder. Nesse sentido, o sujeito de “Construção”, ao interagir
com os demais, está inserido numa rede de poderes da qual não pode se
desprender. Com relação aos membros da família, ele é o chefe. Com
relação aos superiores no trabalho – pressupostos pela função social
ocupada – ele é chefiado.
Sob
a ótica foucaultiana, entendemos que a análise do sujeito re-criado nos
discursos-canções de Chico permite a compreensão de uma das marcas do
discurso buarqueano: a crítica a um poder. Mais que isso, a crítica a um
poder que impede que o sujeito constitua-se como tal. Nesse sentido,
compreendemos que o poder ditatorial, “refletido e refratado” pelo
sujeito operário de “Construção”, torna os sujeitos objetos.
Ao
representar esse sujeito em seu discurso, Chico confere voz a esse
marginal. Se, no cotidiano, o sujeito-operário da construção civil tem
que ir automaticamente de casa para o trabalho e vive-versa. No
discurso-canção há uma crítica sutil a esse comportamento-típico de
um período de repressão política. Aparentemente, “Construção” reproduz
uma situação corriqueira de trabalho. Essencialmente, o percurso
realizado pelo operário é algo a não ser seguido. Percebemos o tom crítico
pela sanção dada ao sujeito e pela indiferença do sistema quanto à
morte dele, como fica explícito no seguinte trecho: “Morreu na
contramão atrapalhando o público”.
A
morte do sujeito é a sanção negativa que atrapalha o trânsito, ou
seja, que impede o funcionamento da engrenagem. É importante ressaltar
que essa era a “realidade” de muitos brasileiros naquela época.
Muitos cidadãos mantinham-se por meio do trabalho na construção civil.
Se efetuarmos uma reflexão sócio-histórica do período em que
“Construção” foi composta, entenderemos as possíveis influências
das condições de produção. O setor industrial no Brasil tomava grandes
proporções. Diríamos que o setor industrial inchava. O crescimento das
indústrias e o incentivo dado às multinacionais traziam benefícios
“reais” apenas às classes média e alta. A classe trabalhadora era
explorada e submetida a longas jornadas de trabalho devido aos baixos salários.
Trabalhava-se mais para compensar a baixa salarial.
Dentre
as indústrias, uma das que mais crescia era a de construção civil,
devido aos incentivos do BNH (Banco Nacional de Habitação) (HABERT,
2003). Os empréstimos feitos pelo BNH eram destinados àqueles que
desejassem construir sua casa própria. Entretanto, as classes que mais se
beneficiaram com os empréstimos foram a média e a alta. De acordo com
Nadine Habert, “A indústria da
construção foi alimentada pelos imensos recursos do BNH provenientes do
FGTS. Em tese, o BNH destinaria os recursos para a construção de casas
populares, mas, na prática, a maior parte serviu para financiar imóveis
para os setores de renda alta e média” (2003, pg.16).
Além
disso, o número de acidentes de trabalho era muito elevado. Essa é outra
marca contextual que nos permite realizar uma leitura crítica de
“Construção”. O sujeito da canção cai do andaime – fator
que o leva à morte. Para o cidadão que vivia e sabia dos acontecimentos,
a crítica era patente. Ainda de acordo com Habert:
Em
meados da década, o Brasil foi considerado campeão mundial em acidentes
de trabalho. Os números são sempre imprecisos, pois boa parte dos
acidentes de trabalho não é registrada pelas empresas. Estima-se que dos
36 milhões de pessoas que compunham a PEA (População Economicamente
Ativa), dois milhões foram vítimas de acidentes de trabalho. Só no ano
de 1974, no Estado de São Paulo, região mais industrializada do País,
um quarto da força de trabalho registrada foi atingida, considerando-se
apenas os números dos acidentes de trabalho que foram registrados (780
mil casos) (2003, pg.12-13).
Ao
analisarmos “Construção”, notamos uma marca do discurso de
Chico, com relação à criação de seus sujeitos excluídos: por meio de
um processo de identificação, o discurso pode causar, nos cidadãos
“reais”, um sentimento de inquietação; a canção, enquanto gênero
artístico, tem o poder de despertar nos cidadãos, a consciência crítica
e a sensação de revolta.
Nesse sentido, entendemos o discurso buarqueano como uma prática que, por
uma espécie de empatia, gera, nos cidadãos “reais” que ouvem a canção,
uma revolta. O sujeito de “Construção”
representa uma classe de sujeitos “reais” que compõem a sociedade
brasileira. Assim, entendemos que o sujeito da canção passa a ser o
outro, com quem os sujeitos excluídos brasileiros podem se identificar e
re-pensar sua condição social. Como observamos em Estética da criação
verbal: “(...) porque de dentro de mim mesmo existe apenas a minha auto-afirmação
interna, que eu não posso projetar sobre minha expressividade externa
separada da minha auto-sensação interna, porque ela se contrapõe a mim
no vazio axiológico, na impossibilidade de afirmação” (2003,
p. 29).
Sob
esse prisma, entendemos o poder do discurso para excluir os sujeitos do
poder ou dar voz àqueles que são excluídos. Por meio do discurso, a
ordem pode ser mantida ou “destruída”. Percebemos que o discurso não
se resume a uma série de enunciados que representam uma expressão
verbal, mas que ele se constitui como uma prática de poder. Por um lado,
pode ser considerada a grande arma reacionária utilizada pelo poder. Por
outro, é a possibilidade de se propor uma mudança na organização do
poder. O discurso é aquilo de que queremos nos apoderar para que tenhamos
poder. Nesse sentido é que Foucault relaciona saber e poder. O saber
institucionalizado, enquanto discurso reconhecido socialmente, é que
confere poder aos sujeitos. Os excluídos, nessa perspectiva, não possuem
saber legitimado e ficam desprestigiados na rede de poder, como enunciado
em A ordem do discurso (FOUCAULT, 1996):
(...)
o discurso (...) não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o
desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que - isto
a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é apenas aquilo
que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que,
pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (1996, pg.10).
Entendemos,
dessa forma, que a canção de Chico Buarque representa a voz daqueles que
estão marginalizados pelo poder. Por meio da obra artística, a canção
mais especificamente, realiza-se a construção de um sujeito que, por
meio de suas ações, mostra-nos um modelo a não ser seguido. A crítica
a esse tipo de posicionamento social – a posição que apenas reproduz
as regras do sistema – fica patente se atentarmos para o seguinte
trecho: “Morreu na contramão atrapalhando o público”. Ao
observarmos a morte do sujeito e a indiferença com que o sistema trata
esse fato, notamos que o agir do sujeito não é valorizado como tal, mas
como a ação de um objeto. O sujeito, nesse sentido, torna-se apenas uma
peça na engrenagem da estrutura.
Ao
refletirmos a respeito da construção de seus sujeitos excluídos,
notamos uma marca importante do discurso de Chico Buarque: a inversão dos
valores e papéis sociais. O sujeito excluído socialmente ganha voz no
discurso de Chico. A valoração dada a esse sujeito permite-nos pensar a
organização da estrutura social brasileira - naquele momento, cerceada
por disparidades econômicas, sociais e políticas. Percebemos que, ao
construir uma canção que coloca no centro da cena um operário de
construção civil, o discurso buarqueano propõe uma reflexão àqueles
que se mostram alienados às condições sociais em que vivem.
Conforme
já observamos, o Brasil, passava por um processo de expansão industrial
– em termos numéricos. Destacamos o impulso que ganhou a construção
civil. Sob essa ótica, podemos entender que o número de operários nesse
setor da economia era grande. Sob esse aspecto, compreendemos que o
discurso de Chico Buarque tomou grandes proporções, pois, de certa
forma, os cidadãos “reais”, podiam identificar-se com os sujeitos das
canções. Não podemos esquecer que essa canção foi censurada.
Há
quem diga que o fim da ditadura ocorreu devido à decisão dos próprios
políticos. Não descartamos isso. Contudo, propomos o seguinte
questionamento: Por que os ditadores optaram pelo fim da ditadura? Será
que a impopularidade não foi um dos fatores que pôs fim ao regime? O que
teria levado a população a perceber que estava inserida em um ferrenho
esquema de repressão física, política, entre outras?
A
isso, podemos responder que, naquele momento histórico, canções como as
de Chico Buarque desempenharam um papel fundamental para a reflexão crítica
da nação. Os sujeitos re-criados pelo discurso buarqueano,
representaram, de alguma forma, os outros – no sentido bakhtiniano –
com os quais a população identificava-se e repensava sua condição de
vida. Não fosse assim, por qual motivo a censura proibiria a divulgação
das canções? Sem dúvida a arte – de Chico especificamente –
representou um papel importante na formação da consciência crítica da
população.
Não
queremos afirmar que o final da ditadura deve-se às canções de Chico
Buarque ou que todos os cidadãos brasileiros ouviram e se identificaram
com as canções. Não descartamos que muitas pessoas sequer tomaram
conhecimento da obra de Chico. O que propomos é que, dentro da série de
fatores que contribuíram para o fim do regime, a arte de Chico não pode
passar desapercebida. A arte brasileira não pode ser ignorada. Sabemos
que o Brasil não é um país de tradição intelectual como a Grécia, a
Alemanha ou a França. Mas isso não quer dizer que aqui não se produz
conhecimento ou que em nosso país não há consciência crítica. O
Brasil é mais que o país do futebol ou do carnaval - no sentido
pejorativo que esses epítetos adquiriram. A obra de Chico Buarque é um
dos acontecimentos que “refletem e refratam” a história brasileira. O
fim da ditadura pode ser entendido como resultado de uma série de
manifestações populares, provocadas pela tomada de consciência proposta
pela arte. Segundo Pound: “Os artistas são as antenas da raça”
(POUND, 1970, pg. 13).
Marshal McLuhan (apud POUND, 1970) define a afirmação do poeta da
seguinte maneira:
O
poder das artes de antecipar, de uma ou mais gerações, os futuros
desenvolvimentos sociais e técnicos foi reconhecido há muito tempo. A
arte, como radar, atua como se fosse um verdadeiro ‘sistema de alarme
premonitório’, capacitando-nos a descobrir e a enfrentar objetivos
sociais e psíquicos, com grande antecedência. (1970, pg. 13)
Com
isso, concluímos que a arte de Chico propõe a mudança de um sistema - o
sistema ditatorial - por meio da criação de sujeitos que “refletem e
refratam” a “realidade” social brasileira com o propósito de invertê-la.
Sob essa ótica, ao abordarmos os conceitos de “sujeito”, “poder”,
“história” e “discurso”, sob a ótica da AD, pudemos entender a
organização de um aspecto do discurso de Chico: o aspecto crítico.
Relacionamos, neste artigo, teoria lingüística e discurso literário-musical
(canção) para realizarmos uma possível análise do discurso da canção
“Construção”. Todavia, longe de querermos esgotar os vários
sentidos e as várias leituras que podem ser apreendidos dessa canção,
propusemos uma das leituras possíveis.