Por AKEMI KAMIMURA

Advogada, graduada na USP e pós-graduada latu sensu em Especialização em Direitos Humanos, pela Universidade de São Paulo.

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Linguagem e efetivação dos direitos humanos: o desafio do Direito no atendimento interdisciplinar a vítimas de violência

Akemi Kamimura

 

Resumo

O presente trabalho analisa a linguagem dos direitos humanos e o desafio do direito no atendimento interdisciplinar a vítimas de violência. Para tanto, foram abordadas algumas questões relativas ao atendimento a vítimas de violência, a linguagem dos direitos humanos e, por fim, a contribuição do direito no atendimento interdisciplinar a vítimas de violência.

Palavras-chaves: direitos humanos; violência; atendimento interdisciplinar; vitimização.

Abstract

This article analyzes the language of human rights and challenge about law and interdisciplinary service for victims of violence. In order to this, we discuss some issues about service for victims of violence, language of human rights and law contribution for interdisciplinary service for victims of violence.

Keywords: human rights; violence; interdisciplinary service; victimization.

 

1. Introdução

Este artigo tem como foco o tratamento de vítimas de violência, especialmente a violência fatal (homicídio e latrocínio). Embora necessária uma discussão sobre o conceito de violência como uma construção social[1], para os efeitos deste texto tal discussão se revela secundária. O homicídio e o latrocínio apresentam-se como grandes formas de violência em diversas pesquisas junto à população. Se é discutível que “fome”, “miséria” ou “corrupção” sejam formas de violência, tal discussão não se coloca em relação ao homicídio e ao latrocínio.

O debate em torno do tema da violência, em especial dos homicídios, tende a uma polaridade entre repressão e prevenção. De um lado, o recrudescimento punitivo com o aumento de penas e maior rigor em seu cumprimento; do lado oposto, a promoção de justiça social, através de políticas para redução de desigualdades. Adiciona-se a esse quadro forte influência emocional diante da violência, reações aparentemente individuais e privadas (blindagem de carros, condomínios fechados, segurança privada, sistema de câmeras e filmagens, etc) e uma ampla sensação de insegurança.

Essas respostas “aparentemente individuais” sustentam um sistema de “in-segurança pública”, que movimenta uma indústria de proteção e venda de serviços de segurança, em crescente e franca expansão. RANCIÈRE (2003) aponta um cenário em que o Estado é reduzido a um Estado policial, sustentado por uma comunidade do medo, onde a insegurança é um modo de gestão da vida coletiva. Ressalta o autor: “O sentimento de insegurança não é uma crispação arcaica devida a circunstâncias transitórias. É um modo de gestão dos Estados e do planeta para reproduzir e renovar em círculo as próprias circunstâncias que o mantém.” (RANCIÈRE, 2003)

Por isso a necessidade de políticas de segurança que, de forma transversal, multidisciplinar e multisetorial, enfrentem esse panorama numa cultura de direitos humanos e com a participação de diversos atores sociais, tendo em vista o caráter coletivo e complexo do tema da violência. Nesse cenário, ressalta-se o olhar e a questão da vítima como uma das formas de enfrentamento do problema.

Através do atendimento a vítimas de violência possibilita-se a defesa e promoção de direitos humanos e o resgate da cidadania de grupos vulneráveis, muitas vezes intimidados com a sensação de medo e insegurança e distantes do exercício de seus direitos. Entretanto, a realidade dos atendimentos a vítimas de violência mostra-se bastante desafiadora. O Direito, tradicionalmente visto como conservador e instrumento para manutenção do status quo, tem importante papel na prática interdisciplinar.

Nesse sentido, o presente estudo mostra-se como uma tentativa de identificar alguns obstáculos e desafios diante do tema e, ao final, apresentar algumas propostas para a atuação do operador do direito no trabalho interdisciplinar a vítimas de violência.

2. O atendimento integrado e interdisciplinar a vítimas de violência como meta

A violência, entendida como causa e conseqüência de violações de direitos humanos, é bastante debatida em diversos setores, mas pouco em relação aos vitimados. Embora o elevado índice de homicídio em termos mundiais[2] e em São Paulo[3], o debate é pouco centrado no conceito de vítimas indiretas ou de vitimização difusa ocasionada pela violação de direito.

Os familiares de vítimas de crimes fatais muitas vezes não se reconhecem como vítimas e portadores de direito, tendendo a “esquecer”, “deixar de lado” ou “apagar da memória”, como uma reação de defesa imediata ao sofrimento, medo, impotência, isolamento ou descrença nas instituições públicas de repressão e distribuição de justiça. Ademais, dissemina-se a sensação de impunidade e insegurança na comunidade e o ciclo de violência pode se perpetuar pela própria vítima, potencial agressor.

Daí a necessidade de política de assistência às vítimas de violência. A previsão constitucional do artigo 245[4] sinaliza uma preocupação do constituinte com a assistência a vítimas de crime doloso, sem especificações. A Constituição Estadual de São Paulo, em seu artigo 278, VI, dispõe sobre o tema de forma mais específica, mencionando a “criação de serviços jurídicos de apoio às vítimas, integrados a atendimento psicológico e social”.

No plano internacional, ressalta-se a Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, adotada em 29 de novembro de 1985, pela Assembléia Geral do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Resolução 40/34). Embora não seja um tratado internacional e portanto sem força vinculante entre os Estados parte, essa Declaração revela a importância do tema na esfera internacional.

Vítimas de violência

Analisando-se o papel e participação da vítima na apuração e punição dos crimes, verifica-se um período atual de “redescobrimento” da vítima no processo penal – em oposição a períodos anteriores em que a vítima ocupava uma posição de destaque numa época em que a lei disciplinava o exercício da vingança; ou em que a vítima era totalmente esquecida e ignorada pelo direito. (OLIVEIRA, 1999)

A fase atual aponta uma tímida participação da vítima no processo penal e aproximação do tema nos estudos acadêmicos, assim como um novo enfoque na atuação estatal além da esfera repressiva-punitiva, ampliando-se na prática com a criação de programas de proteção e assistência às vítimas, que passam a ser observadas como alvo de políticas públicas.

O termo “vítima” nos remete a diferentes noções, mas ressalta-se a idéia trazida na Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder – a qual define, em seu artigo 1o, vítimas como “as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como conseqüência de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder”. Considera-se vítima aquele(a) que sofreu dano ou lesão, independentemente de laços de parentesco com o autor, seja ou não identificado, preso, processado ou declarado culpado.

Nos termos do artigo 2o da Declaração, “o termo vítima inclui também, conforme o caso, a família próxima ou as pessoas a cargo da vítima direta e as pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar assistência às vítimas em situação de carência ou para impedir a vitimização”. Tal definição inclui o conceito de vítima indireta, ampliando-se a compreensão da vitimização provocada pela violação além da pessoa da vítima direta, a qual suportou o ato violento, pois a violência pode atingir indiretamente e de forma difusa outras pessoas ou um grupo.

A vítima, às vezes, passa a isolar-se do convívio social e passivamente aceitar ou se conformar com a perda, sem se reconhecer como sujeito de direitos e responsável por mudanças. Ou ainda, pode caminhar para uma atuação excessiva, sem ponderar riscos ou ameaças, em atitudes suicidas ou vingativas. Ambos, a passividade ou a atividade excessiva, demonstram riscos ao próprio sujeito e ameaçam efetivação dos direitos.

A passividade da vítima tende a conduzir a pessoa a uma posição de “recebedora de favores”, ou seja, os direitos são assimilados como favores ou benesses, sem uma postura de reivindicação de direitos: o sofrimento experimentado a eximiria de qualquer atividade.

A atividade excessiva pode confundir-se com uma defesa, para não lidar com a dor e o sofrimento provocados, ou caminhar para atitudes baseadas em noções vingativas (buscar a “Justiça” “custe o que custar” ou “com as próprias mãos”), afastando-se dos direitos declarados. O sofrimento justificaria qualquer atitude praticada, desumaniza-se o infrator, negando-lhe seus direitos.

Nesse sentido, as respostas às violações de direitos humanos devem considerar também as vítimas dessas violações, direta e indiretamente atingidas. A vingança e a passividade precisam ser ponderadas para o pleno exercício dos direitos humanos, por todos e com autonomia necessária.

Há que se evitar ainda os riscos de processos de vitimização. A vitimização primária é normalmente entendida como aquela provocada pelo cometimento do crime, pela conduta violadora dos direitos da vítima – pode causar danos variados, materiais, físicos, psicológicos, de acordo com a natureza da infração, personalidade da vítima, relação com o agente violador, extensão do dano, dentre outros.

Por vitimização secundária, entende-se aquela causada pelas instâncias formais de controle social, no decorrer do processo de registro e apuração do crime. Ocorrido o crime, deve-se registrar a ocorrência, em alguns casos é preciso realizar um exame de corpo de delito, dentre outras providências. O sistema de justiça pode violar outros direitos nesse processo, vitimizando novamente o cidadão: condutas ou comentários discriminatórios, demoras excessivas na finalização do processo, ausência de orientação sobre providências necessárias, dentre outros exemplos. A pessoa que já sofreu uma violação de seu direito experimenta novamente outra violação, desta vez, praticada por algum agente estatal do sistema de justiça, o que pode agravar as conseqüências da vitimização primária.

A vitimização secundária pode dificultar o processo de superação ou elaboração do fato, pode ainda provocar uma sensação de impotência, desamparo e frustração com o sistema de controle social, provocando descrédito e desconfiança dessas instâncias.

Por outro lado, a violência pode atingir outras pessoas, além da vítima direta que tenha suportado o ato violento. A vitimização indireta ou difusa amplia a compreensão do sofrimento gerado em decorrência da violação (crime), tendo em vista que a violência perpetrada contra a vítima reverbera em outros contextos, atingindo, de forma diferenciada e difusa, outras pessoas que podem pertencer ao círculo de convivência da vítima direta e também sofrer os efeitos da violência perpetrada.

Esse conceito de vitimização indireta ou difusa é recente e desafiador. A ampliação da compreensão da vitimização provocada pela violência pode ser observada, por exemplo, no impacto do “11 de Setembro de 2001”, em que os efeitos da violência difundida em tempo real foram sentidos e suportados pela população mundial generalizada, de forma indiscriminada e difusa. Não apenas os atingidos diretamente pelos atentados, mas uma coletividade (até mundial) sofreu o impacto do terrorismo. E a reação no Pós-11 de Setembro, com restrições a direitos historicamente conquistados, confirma a necessidade de atenção às vítimas para romper o ciclo de violência.

Assim, faz-se necessário uma política de atendimento a vítimas de violação de direitos a fim de se promover efetivação dos direitos humanos e evitar que tais vítimas, descrentes do sistema de justiça e revoltadas com a violência sofrida, violem direitos de terceiros, perpetuando e reproduzindo um ciclo de violência e violação de direitos.

A prática do atendimento integrado e interdisciplinar

O atendimento prestado em centros de apoio a vítimas é, em tese, realizado por equipe multidisciplinar formada por profissionais das áreas jurídica, psicológica e social, numa “abordagem teórica, técnica e prática do problema da violência com enfoque na promoção da cidadania e da cultura dos direitos humanos (...) de modo a que possam realizar a avaliação dos fatos vividos à luz de parâmetros legais e éticos e definir e formular suas prioridades e estratégias de ação, evitando, assim o processo de vitimização que pode conduzir ao fatalismo e imobilismo”. (BRASIL, 2002)

As famílias de vítimas de violência fatal, em geral, buscam uma justiça que restaure a ordem, e muitas vezes, o intenso sofrimento e desamparo vivido frente à situação de homicídio ou latrocínio ficam disfarçados sob a busca por uma solução jurídica. Uma resposta formal das instâncias judiciais e/ou de segurança, por si só,  não é suficiente para dar conta do trabalho de luto e da instabilidade sócio-econômica que a família vive por conseqüência da perda, nem para rompimento do ciclo de violência.

Diante desse quadro, vale analisar o serviço prestado[5] a vítimas indiretas de violência fatal e apontar algumas dificuldades no cumprimento de tais metas e propostas. Num primeiro contato com tais vítimas, a partir da escuta dos fatos, realiza-se uma identificação inicial das questões e demandas trazidas para possibilitar um diálogo baseado em sigilo, confiança e respeito. A identificação das demandas, através de um acolhimento interdisciplinar, permite distinguir as reais necessidades de cuidado que esta família requer. Muitas vezes, o relato da história da violência letal é bastante emocionado e intenso, rico em detalhes e lembranças – destaca-se que essa carga emocional independe do tempo transcorrido: em alguns casos, fatos passados há anos são revividos com intensidade, pois não foram elaborados.

A partir desse diagnóstico preliminar, cada área (psicológica, social e jurídica) propõe seu trabalho de acordo com sua especificidade, mas tendo em vista a atuação interdisciplinar. No decorrer do atendimento proposto, a troca de informações entre os profissionais é bastante rica e necessária para o melhor atendimento ao sujeito vítima de violência. Há espaço de supervisão clínica e institucional para o distanciamento, reflexão e discussão de caso, fundamental para a qualidade do serviço prestado.

A fim de promover um atendimento integrado e interdisciplinar é necessário um esforço conjunto, vontade individual e coletiva, apoio político para manter e aperfeiçoar a política pública de atendimento a vítimas e um intenso trabalho de descobertas e construções conjuntas.

Discutindo apenas o âmbito interno, a integração do olhar e da intervenção viabiliza um atendimento a um sujeito visto de forma integral. Para isso, a troca entre os técnicos é de extrema importância e riqueza ao se compartilhar intervenções e reações. O mais conhecido é o “advogado” e o ressarcimento pelo dano através da justiça. Pouco ainda se sabe das possibilidades de um atendimento que lide com a perda, com a morte violenta, com ciclos de violência, com o luto.

A abordagem múltipla e diferenciada do usuário possibilita a visão do sujeito atendido além do evento violento: uma pessoa dotada de personalidade, de história de vida, dificuldades e condição atual. Isso se opõe a uma tradição que privilegia olhares fragmentados e justapostos que tendem a considerar o usuário como um objeto de intervenções (e não como um sujeito dotado de personalidade e história, projetos e planos), em que é usual o encaminhamento do atendido de um setor para outro, o que o faz assemelhar-se a um objeto, uma “batata quente” que vai de um setor para outro, de uma instituição para outra.

Alguns desafios à prática

O tema da violência e da morte exige que se tenha um cuidado especial com a equipe de atendimento. Há necessidade de distanciamento e reflexão, bem como discussão do atendimento realizado e proposto. Assim, a supervisão e outras formas de reflexão (capacitação, seminários ou cursos) são de extrema importância para a qualidade do atendimento oferecido. O distanciamento – que não se confunde com indiferença – do caso atendido e a construção de um  cotidiano da instituição que seja acolhedor e seguro são fundamentais para a saúde dos técnicos, para ampliar o horizonte de sua visão e aperfeiçoar o atendimento realizado.

O atendimento direto pode ser extremamente estimulante e motivador, representando novos desafios e constantes transformações; por outro lado, pode ser frustrante e opressor, com diversas angústias e decepções, e por vezes violento, reproduzindo o objeto de intervenção.

O público alvo de intervenção exige determinadas competências e disponibilidade do corpo técnico – para trabalhar com vítimas de violência, é necessário ter habilidade para lidar com pessoas vítimas (com todas as implicações acarretadas por essa posição de vítima) e capacidade e competência para intervir na situação de violência tratada.

O técnico, no atendimento direto à população,  está sujeito a  “contaminar-se” de aspectos da situação violenta. O profissional em atendimento direto é uma pessoa dotada de personalidade própria e seus valores podem ser constantemente questionados diante de relatos e atendimentos realizados, em especial sobre a violência retratada e abordada. Além do auto-conhecimento, é fundamental que o profissional consiga distanciar-se do caso sob intervenção e procurar agir de forma neutra[6].

O profissional deve vencer suas próprias dificuldades para lidar com a questão objeto de intervenção e com o sujeito em atendimento (o usuário com sua personalidade e identidade que carrega), assim como deve enfrentar os desafios que o próprio trabalho proporciona – por exemplo, sentimento de frustração e impotência, limitações institucionais, buscar motivação no trabalho, abandonar a onipotência, etc.

Num atendimento integrado e interdisciplinar, pautado na perspectiva de direitos humanos, a visão integral do sujeito é privilegiada em oposição a uma visão fracionada de um objeto de intervenção. Não se atende demandas isoladas, mas um sujeito em transformação, um indivíduo com uma história de vida e que pode demandar determinadas intervenções psicológicas, sociais ou jurídicas. É necessário um diálogo entre as diferentes disciplinas e técnicos, com base no respeito e promoção dos direitos humanos, para um atendimento capaz de promover a autonomia e emancipação da vítima de violência para uma situação de exercício de direitos e cidadania democrática.

Outras dificuldades de ordem institucional também são enfrentadas pela equipe de atendimento. Destacam-se, em especial, as interrupções dos convênios celebrados entre as diferentes instâncias do Estado e a sociedade civil organizada – o que pode provocar a fragmentação da equipe, com a saída de parte contratada pelo convênio e o comprometimento do trabalho realizado junto aos usuários.

O financiamento dos projetos segue uma lógica e um tempo que nem sempre contribui para a necessária continuidade do serviço prestado. Os convênios celebrados terminam e as renovações ou aditamentos podem demorar um período incerto; ainda que celebrados e formalmente assinados, os convênios se viabilizam quando o financiamento é concretizado com o depósito dos valores. Esse modo de funcionamento da instituição, que se opera através de convênios com a sociedade civil, gera uma profunda instabilidade em seus projetos, o que compromete o serviço prestado e os atendimentos realizados.

Esta situação - comum em projetos sociais e comum aos demais centros de referência e apoio a vítimas do país - revela uma certa ambigüidade do Estado ao não vincular orçamento adequado ao programa por ele criado, o que compromete não apenas a continuidade do serviço, mas em especial a qualidade do atendimento realizado. Daí a necessidade de promover e concretizar políticas públicas não sujeitas às flutuações das políticas governamentais, como se espera de uma política de direitos humanos.

3. A linguagem dos direitos humanos

Conceito e Fundamento dos Direitos Humanos

Os direitos humanos pautam-se no reconhecimento da condição de humanidade a todo e qualquer ser humano, bastando-se a condição de pessoa, independentemente de qualquer distinção de raça, etnia, religião, nacionalidade, condição social, ou “bondade” ou “maldade” do cidadão.

Os direitos humanos não são dados, não nascem de uma única vez, nem de uma vez por todas; são conquistados e dependem de lutas sociais. Conforme salienta BOBBIO (1992, p.6), “os direitos humanos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer.” Tais direitos são fruto de um processo histórico, uma invenção humana que depende do passado e do presente, em constante processo de construção e reconstrução. (PIOVESAN, 2004)

Numa perspectiva histórica, “os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares[7], para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais”. (BOBBIO, 1992, p. 30)

A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 lançou uma concepção contemporânea de direitos humanos, a qual consagra sua universalidade: toda e qualquer pessoa tem direitos, visto que a dignidade é um valor intrínseco à condição humana. Em outras palavras, para a titularidade de tais direitos basta a condição de pessoa, de ser humano.

Por direitos humanos entendem-se todos requisitos necessários para a plena realização e desenvolvimento da condição de dignidade da pessoa humana. Compõem o rol dos direitos humanos, os direitos civis e políticos (relacionados à idéia de liberdade)[8], os direitos sociais, econômicos e culturais (noção de igualdade)[9] e os direitos difusos (solidariedade)[10] – os quais são indivisíveis e inter-relacionados, bem como dependem uns dos outros para condição de dignidade humana. O princípio da proibição de retrocesso social estabelece a progressividade dos direitos humanos, numa lógica evolutiva.

A Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada pela Conferência Mundial de Direitos Humanos, em 1993, endossou a indivisibilidade, interdependência e inter-relação entre os direitos humanos e ressaltou a relação indissociável entre direitos humanos, democracia e desenvolvimento. No entanto, a visão integral dos direitos humanos ainda é um desafio.

A concepção contemporânea de direitos humanos traz diferentes desafios, além da integralidade. Inicialmente, há que se ressaltar a necessidade de uma visão mais ampla que a normativa, que o raciocínio jurídico a partir de normas. Os direitos humanos são processos que inauguram conquistas de dignidade humana, o que impõe trabalhar com a realidade a partir de uma hermenêutica de valores que reflita escolhas morais em jogo, numa ótica de transformação social, rompendo-se com a lógica formal tão difundida entre os operadores do direito.

Dentre os desafios contemporâneos, destaca-se a tensão entre o universalismo e o relativismo cultural. O primeiro tem a dignidade como fonte dos direitos humanos; ao passo que para o segundo, a fonte é a cultura. Esse é um debate aberto no campo dos direitos humanos: há uma ética universal, ou não? Os direitos humanos valem para toda e qualquer sociedade, independentemente da cultura local?

DONNELLY (2003) refere-se a gradações entre universalismo radical e relativismo radical nos extremos. Para o universalista radical, há um mínimo ético irredutível de grande alcance e sem espaço para diálogo com outras culturas. Ao relativista radical, cada cultura determina seu rol de direitos humanos, independentemente de um patamar mínimo.

Intermediariamente aos pólos mencionados, há o universalismo forte e universalismo fraco. O primeiro, embora com o pressuposto de um mínimo ético irredutível de grande alcance, abre espaço para influência da cultura; o universalista fraco permite maior diálogo com a diversidade cultural e apresenta um mínimo ético com menor alcance (IKAWA, 2004). As posições intermediárias tendem a permitir o diálogo entre as culturas e maior alcance dos direitos humanos, conciliando-se diferenças e igualdades.

Diante da diversidade de culturas e do reconhecimento da incompletude dessas culturas, há que se fortalecer e investir num diálogo intercultural, que possibilita a definição de um mínimo ético dos direitos humanos, numa concepção multicultural dos direitos humanos de caráter emancipatório. (SANTOS, 2003)

Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de composição entre o princípio da igualdade e o da diferença: a defesa da igualdade deve ser evocada sempre que a diferença gerar inferioridade; há que se defender a diferença quando a igualdade implicar em descaracterização. O multiculturalismo pode ser um recurso estratégico para políticas emancipatórias, com a exigência do reconhecimento da diferença e afirmação do imperativo do diálogo.

Direito como instrumento de emancipação e promoção de cidadania e autonomia do sujeito

Os direitos humanos têm potencial emancipatório se transformados em discurso e prática para um projeto cosmopolita, numa luta contra exclusão e discriminação sociais e destruição ambiental produzidas pela globalização hegemônica, numa iniciativa ou movimento do subalterno em luta contra sua subalternização. (SANTOS, 2003)

Tal desafio tem como premissa a superação do debate entre universalismo e relativismo cultural, com a proposta de um diálogo intercultural sobre questões convergentes e definição de critérios para distinguir entre política emancipatória de política regulatória, assim como entre política progressista e de outra conservadora.

Outra premissa da transformação cosmopolita dos direitos humanos é que, embora nem sempre concebidas como direitos humanos, todas as culturas têm concepções de dignidade humana, em versões diferentes e de acordo com cada cultura. No entanto, todas as culturas são incompletas e problemáticas em suas concepções – a incompletude decorre da ausência de uma única visão e, portanto, da própria existência de uma pluralidade delas.

Todas as culturas tendem a distribuir pessoas ou grupos sociais entre princípio de igualdade e princípio da diferença. Uma política emancipatória de direitos humanos deve saber distinguir entre a luta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário da diferença. A mobilização pessoal e social para as possibilidades e exigências emancipatórias dos direitos humanos e da dignidade humana só será concretizável na medida em que tais possibilidades e exigências forem apropriadas e absorvidas pelo contexto cultural local. A luta pelos direitos humanos e pela dignidade humana jamais será eficaz se baseada em imposição cultural ou “canibalismo cultural”. (SANTOS, 2003)

Num diálogo intercultural, a troca não é apenas entre diferentes saberes, mas também entre diferentes culturas, entre universos de sentido diferentes – o que muitas vezes faz necessário explicar ou justificar idéias e ações que em determinada cultura são evidentes e do senso-comum.

A hermenêutica diatópica (SANTOS, 2003; PANIKKAR, 1983) baseia-se na interpretação e diálogo a partir da noção de que os topoi[11] de uma determinada cultura, por mais fortes que sejam, são incompletos como a própria cultura a que pertencem. Não se tem como objetivo atingir a completude (que é inatingível), mas ampliar ao máximo a consciência da incompletude mútua por meio do diálogo que se desenrola com um pé em cada cultura.

O reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine qua non para um diálogo intercultural. A hermenêutica diatópica é um trabalho de colaboração intercultural e não pode ser levado a cabo a partir de uma única cultura ou por uma só pessoa; exige diferentes processos de criação de conhecimento. A produção de conhecimento deve ser coletiva, participativa, interativa, intersubjetiva e reticular, baseada em trocas cognitivas e afetivas que avançam por intermédio do aprofundamento de reciprocidade entre as culturas; de forma a favorecer o conhecimento-emancipação em detrimento do conhecimento-regulação (SANTOS, 2002).

Os diálogos interculturais devem ser baseados em condições estabelecidas por mútuo acordo, tomando-se cuidado com o risco de fechamento cultural ou de conquista cultural. Para um multiculturalismo progressista é preciso que o princípio da igualdade seja utilizado conjugado com o princípio da diferença, de forma que seja respeitado o direito a ser igual quando a diferença inferioriza e o direito a ser diferente quando a igualdade descaracteriza.

Vale apontar que as possibilidades ora levantadas levam em consideração o direito como instrumento de direção e promoção social, em contraposição ao direito como técnica de controle e organização social (FARIA, 1998).

O direito como técnica implica um conhecimento jurídico meramente informativo e despolitizado partindo-se de um sistema legal tido como completo, lógico e formalmente coerente. Nesse sistema normativo, ao direito positivo importa apenas estabelecer sanções como conseqüência do descumprimento de prescrições normativas. Nessa ótica, o direito é tido como um sistema de normas para tratar de conflitos sociais de maneira exclusivamente formal, fragmentando-os, individualizando-os e trivializando-os para melhor equacioná-los funcionalmente por meio de decisões judiciais.

Por outro lado, o direito como instrumento de direção e promoção social pressupõe um conhecimento jurídico multidisciplinar a partir de uma dúvida sobre a dimensão política, as implicações sócio-econômicas e a natureza ideológica da ordem legal, numa perspectiva de um projeto político-normativo. Tem por objetivo a consecução de um equilíbrio material entre os diferentes setores, grupos e classes sociais, o que implica em normas com propósitos compensatórios, redistributivos e protetores, as quais devem ser interpretadas à luz da realidade material[12]. Assim, o ordenamento jurídico aparece não como uma estrutura logicamente coerente e harmoniosa, mas como um construído histórico refletindo múltiplos valores e interesses de diferentes setores, grupos e classes sociais em confronto.

Tal concepção do direito como instrumento de direção e promoção social exige a conciliação do saber jurídico especializado com um saber mais amplo e profundo sobre a produção, função e condições de aplicação do direito positivo; o que exige uma “reflexão multidisciplinar capaz de propiciar desvendamento das relações sociais subjacentes às normas e às relações jurídicas e de fornecer aos magistrados não apenas métodos mais originais de trabalho mas, igualmente, informações novas, de natureza econômica, política e sociológica.” (FARIA, 1998, p. 26)

Por fim, partindo-se da concepção de direito como instrumento de direção e promoção social, há que se promover o conhecimento-emancipação, de maneira a promover um atendimento à vítima de violência estimulador de cidadania e da autonomia do sujeito. Para isso, há que se praticar relações emancipatórias, baseadas na igualdade e diferença, incentivando-se o diálogo, o caráter coletivo e a criação conjunta.

A gramática dos direitos humanos

Se alguém tem um direito, pressupõe-se que outros tenham deveres num sentido amplo, vez que para cada direito há distintas formas de deveres. Os direitos valem para todos e devem proteger a todos sem distinção, estabelecendo-se relações horizontais e de reciprocidade – o que os distingue de caridade ou favor, assim como diferencia direito e privilégio.

Direitos são trunfos, em outras palavras, ter um direito favorece o titular como uma boa cartada num jogo de baralho (DWORKIN, 1984). Permite maior garantia e possibilidade de reivindicar o interesse ou valor protegido pela norma em relação aos outros valores ou interesses não protegidos. Vale acrescentar que os direitos não são absolutos e pode haver conflito entre diferentes direitos.

A relação entre um direito e uma obrigação não é automática. Ter um direito pode ser uma boa justificativa, uma razão suficiente para que outros estejam obrigados e, portanto, tenham deveres e respeitem os direitos. O direito só existe em sociedade e pressupõe a decisão de preservar certos valores ou interesses por meio legal para todos. Por conseqüência, o direito deve ser capaz de conciliar com outros interesses e compatibilizar-se com causas coletivas, para assim ser entendido como uma justificativa suficientemente importante para que os outros respeitem ou tenham o dever de respeitá-lo.

Num conflito entre diferentes valores ou interesses, aquele protegido pelo direito prevalece sobre os demais, ou tem uma boa razão para prevalecer. Essa gramática dos direitos aponta a prioridade daquele valor ou interesse protegido em relação aos demais não protegidos. Ainda que um direito possa ceder espaço para outro considerado mais importante na situação, o valor ou interesse protegido pelo direito é prioritário diante dos demais não protegidos, estabelecendo-se uma razão a ser considerada antes de agir.

Ao associar a idéia de humano à noção de direito abordada, a proteção e prioridade é ainda maior. Para a condição de humanidade alguns valores, interesses ou necessidades precisam ser protegidos e preservados; tal elenco é historicamente construído como indispensável ao pleno desenvolvimento da condição de humanidade e se sobrepõe aos demais direitos não classificados como tal. Nesse contexto, a força do direito é empregada para proteger valores e interesses indispensáveis à realização da condição de humanidade de toda e qualquer pessoa.

Essa gramática também indica a distinção entre direito, privilégio, favor e mercadoria. O direito visto como privilégio, como favor ou como mercadoria dificilmente será um instrumento de emancipação social, de autonomia. Embora aparentemente óbvia, tal distinção muitas vezes é de difícil apropriação pelos próprios titulares. No discurso e na abordagem prática essas noções podem se confundir, por exemplo, no caso de atendimento em serviço público vivenciado pelo usuário como um favor e não como um direito.

A linguagem e a efetivação dos direitos humanos: um lugar fundamental no atendimento a vítimas de violência

A linguagem dos direitos humanos inspira-se em considerações de ordem pública em defesa de interesses superiores e comuns, contra todas as formas de discriminação, repressão e exclusão, buscando-se a realização da justiça. O Direito dos Direitos Humanos opera na defesa dos mais fracos e na proteção do pólo mais frágil nas relações entre desiguais, a fim de remediar os efeitos do desequilíbrio e da disparidade; interpreta e aplica a norma tendo em vista as necessidades prementes de proteção das supostas vítimas – o que requer maior elaboração e articulação dos operadores do direito com base na realidade social e identificação das necessidades de proteção.

Daí a importância do diálogo e troca entre diferentes saberes para analisar a realidade social, identificar as necessidades de proteção e aplicar mecanismos corretos para a promoção dos direitos humanos.

No atendimento a vítimas de violência, a equipe técnica composta por diferentes profissionais tem necessidade de integração e de uma linguagem comum para unificar a intervenção. Para tanto, a equipe deve ser composta baseada na cooperação (e não na competição) entre as diferentes áreas, a fim de que as diferenças sejam vistas como potencialidades e enriquecimento conjunto (e não como exclusão e/ou disputa).

Para uma linguagem capaz de colaborar com a efetivação dos direitos humanos é preciso também que a teoria dialogue com a prática. Os profissionais em atendimento direto devem se apropriar da linguagem dos direitos humanos a fim de que os usuários sejam atendidos de acordo com esse conceito. Os diferentes olhares e diferentes intervenções podem compor um atendimento integral e interdisciplinar pautado na lógica dos direitos humanos.

O psicólogo, quando viável nas intervenções, pode fortalecer o sujeito internamente e reforçar a noção de autonomia e alteridade, de respeito ao outro e tolerância. Ao problematizar a dignidade do outro, seja agressor ou vítima, pode auxiliar na formação da identidade do sujeito (no momento vivida como vítima), para uma construção de cidadania e emancipação, com base no respeito aos direitos humanos e colaborar para o possível rompimento do ciclo de violência.

O assistente social também pode intervir com a linguagem dos direitos humanos ao trabalhar a inserção do sujeito no meio em que vive, assim como abordar noções de direito e respeito à dignidade humana. Ao auxiliar na elaboração de estratégias para solução dos problemas, buscando apoio na rede social da vítima e mobilizando-a para sua utilização como cidadã, pode reforçar uma noção de direito e de autonomia, em oposição ao favor ou benesse, cuja tendência é tutelar o sujeito.

O advogado, por sua vez, em sua atuação na defesa do direito do usuário pode promover sua autonomia. Porém, a ação do operador do direito ao responder imediatamente uma demanda corre o risco de (ou colabora para) a vítima manter-se numa posição passiva e receptora de favores, sem trabalhar questões mais complexas do sujeito, que podem e devem ser abordadas de forma interdisciplinar. Ao estimular a vítima a exercer seus direitos, pode-se favorecer a visibilidade de suas questões (dar voz às vítimas). A divulgação dos direitos da vítima e dos direitos do réu pode contribuir para a compreensão do caráter universal do direito, que se aplica para todos. Essas são alguns exemplos de diferentes formas de intervenção que podem contribuir de alguma forma para a mudança da posição de vítima para a de cidadão e para o rompimento do ciclo de violência e de vitimização.

4. Contribuições do Direito e atendimento interdisciplinar a vítimas de violência

A demanda trazida pela vítima de violência apresenta-se em sua grande maioria como uma demanda jurídica, uma demanda por “Justiça”, quando pode na realidade estar ocultando uma questão mais complexa, como o sofrimento vivido com a perda do familiar de forma violenta ou o ciclo de violência reproduzido entre gerações.

Não de questiona a importância do papel da Justiça para a elaboração da morte violenta, mas esse aspecto é apenas uma das faces da questão. Para algumas vítimas, o pedido por “justiça” deve ser atendido somente pela figura do advogado, que é representado de forma onipotente. Entretanto, a condenação do autor do crime não é suficiente. O termo “justiça” muitas vezes empregado no discurso das vítimas tem múltiplos significados e tende a oscilar entre noções de justiça divina (diante da impotência e impunidade frente à “justiça dos homens”, representada pelo sistema de justiça) e vingança. O fator externo como causador do problema ou da solução, numa polaridade onipotência e impotência, é uma característica da vítima, que geralmente não se coloca como responsável ou protagonista.

Ter informações sobre o resultado das investigações e do processo judicial é um dado relevante para a elaboração do luto e para confiança nos mecanismos institucionais de solução de conflito. A orientação jurídica é um importante instrumento para informar a família sobre os direitos existentes e suas formas de exercício, como uma forma de acesso à Justiça.

O discurso de vingança é bastante presente nos relatos dos familiares de vítimas de violência letal e muitas vezes condicionado à ineficiência do sistema de Justiça formal. As garantias processuais são muitas vezes vistas como “injustiças” porque confundidas com privilégios, acrescentando-se a emoção e o desejo de reparação. É importante orientar os familiares sobre a necessidade de provas suficientes de autoria e materialidade para condenação do réu.

Seja como for, o advogado pode contribuir para a apropriação de direitos e a desconstrução do discurso restritivo e violador presente nas falas de algumas vítimas (por exemplo, ao mencionar que o assassino deveria ser morto, ou estar preso ainda que não haja provas de sua autoria). O profissional pode atuar também como uma “ponte”, um canal de comunicação entre vítimas e o Judiciário, a fim de levar a voz das vitimas ao processo e dar visibilidade à questão.

Numa perspectiva de direitos humanos, o operador do direito deve atuar com base na dignidade da pessoa humana e na indivisibilidade, interdependência, inter-relação e progressividade dos direitos humanos; deve ainda buscar a aplicação do Direito como instrumento de emancipação e autonomia do sujeito para o pleno exercício de direitos. Para tanto, é fundamental ter em mente os atores envolvidos e o contexto social inserido (a realidade material)[13].

O advogado tem importante papel no atendimento a vítimas de violência, mas sozinho dificilmente soluciona a questão. A integração e a interdisciplinaridade parecem responder melhor a esse desafio.

A linguagem dos direitos humanos deve ser difundida e apropriada pela equipe de atendimento (não deve ser monopólio dos juristas), a fim de que nas intervenções a noção de dignidade humana possa ser trabalhada sob diferentes aspectos no decorrer do atendimento. Os direitos humanos são também interdisciplinares. Cada área contribui, ao seu modo, com seu olhar e intervenção, na realização desses direitos. Nesse viés, a educação em direitos humanos parece estar presente no trabalho de cada um dos técnicos, seja qual setor.

Nesses termos, o Direito é apenas parte desse processo, fazendo-se necessária a contribuição de outros olhares e intervenções para a efetiva autonomia do sujeito. Numa perspectiva de direitos humanos, a interdisciplinaridade e a construção coletiva são fundamentais para uma política emancipatória.

5. Conclusões

O atendimento a vítimas de violência pautado em direitos humanos pode fortalecer a perspectiva de emancipação e promoção social, a partir do reconhecimento de sujeitos de direitos e da dignidade humana, tanto em relação à vítima quanto ao agressor. Para romper o ciclo de violência, há que se reforçar o caráter de universalidade, interdependência e inter-relação dos direitos humanos.

Para tanto, os profissionais que realizam atendimento direto à população devem ter conhecimentos básicos sobre direitos humanos e principalmente a prática de reconhecimento e respeito à dignidade humana, o que pode estimular a apropriação dos direitos, de acordo com a especificidade de cada área de atuação, no âmbito da subjetividade, do convívio social e/ou comunitário e sua relação com o Estado e normas formais.

Somente o Direito não responde à complexidade diante do atendimento a vítimas de violência. Há necessidade de compor olhares e intervenções de outros profissionais, considerando-se o caráter multidisciplinar e multifatorial da violência e a importância da visão integral do sujeito, indicando-se uma abordagem interdisciplinar. Assim, todos devem conhecer minimamente a linguagem dos direitos humanos, de forma a possibilitar melhor intervenção técnica pautada na dignidade humana.

A fim de promover a mudança do papel de vítima para um papel de cidadania e exercício de direitos, pautado no respeito à dignidade humana e na autonomia do sujeito, o diálogo é fundamental – em destaque, o diálogo entre o Direito e demais disciplinas, como psicologia e serviço social. Para essa troca, a linguagem dos direitos humanos deve ser universalizada para uma intervenção mais precisa no indivíduo vítima para alcançar uma posição mais coletiva e atuante. É fundamental também que, com respeito mútuo, as partes envolvidas reconheçam sua incompletude e tenham voz e visibilidade.

Por fim, o atendimento a vítimas de violência para ser realmente pautado em direitos humanos, deve fortalecer o indivíduo de forma a emancipar o sujeito-vítima para uma posição de autonomia e exercício de direitos, respeitando-se a dignidade humana do outro. Só assim o rompimento do ciclo de violência parece ser efetivo.

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[1] Para um aprofundamento sobre esse tema, sugere-se a leitura de Wacquant e Young.

[2] Segundo Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, publicado pela Organização Mundial de Saúde, em 2002, num universo de 1,6 milhão de mortes violentas no mundo, cerca de metade é ocasionada por suicídios; as guerras representam cerca de 18% do total; os homicídios representam 31,3% das mortes violentas no mundo, totalizando de 520 mil mortes. Brasil representa cerca de 14% dos homicídios em termos mundiais.

[3] Em 2002, mais de seis mil pessoas foram mortas em São Paulo, numa proporção de58 mortes por 100 mil habitantes – média que posiciona São Paulo como a quarta capital mais violenta do país. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a capital paulista concentra mais de 1% dos 520 mil homicídios ocorridos no mundo em 2002.

[4] Constituição Federal, artigo 245, dispõe: “A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito”.

[5] A análise tem como base o serviço prestado no Centro de Referência e Apoio à Vítima (CRAVI) – programa da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, em parceria com órgãos governamentais e não governamentais, que presta atendimento psicológico, social e jurídico a familiares de vítimas diretas de violência fatal (homicídio e latrocínio).

[6] Embora de certa forma idealizada, tal proposta deve ser considerada a fim de se evitar juízos de valor e atitudes discriminatórias ou preconceituosas por parte dos profissionais envolvidos no trabalho com as vítimas.

[7] Com as Constituições de cada Estado incorporando Declarações de Direitos.

[8] Direitos civis e políticos foram elencados nos artigos 3o a 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; no sistema interamericano, nos artigos 3o a 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica). Abrange, dentre outros, o direito à vida, à liberdade, à integridade pessoal, direito a não ser submetido à escravidão ou à tortura, direito a ser reconhecido como pessoa perante a lei, igualdade perante a lei sem qualquer distinção ou discriminação, direito de acesso à Justiça, garantias judiciais, liberdade de reunião e associação, direitos políticos.

[9] Direitos econômicos, sociais e culturais foram previstos nos artigos 22 a 27 da Declaração Universal, no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e, no sistema regional, na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica), artigo 26. Abrange direito à saúde, à educação, direito ao trabalho, direito de participar da vida cultural e desfrutar do progresso científico, direito à moradia, direito à alimentação, dentre outros.

[10] Vale ressaltar que a Declaração Universal de Direitos Humanos, fruto de seu tempo, não previu tais direitos, que foram se constituindo como tais numa construção histórica. São exemplos desse grupo: direito ao desenvolvimento, direito ao meio ambiente, paz, dentre outros.

[11] Topoi são lugares comuns retóricos mais abrangentes de uma dada cultura, funcionam como premissas de argumentação, visto que, por não se discutirem, em razão de sua evidência, possibilitam a produção e a troca de argumentos.

[12] A análise da realidade material deve levar em consideração os condicionamentos inexoráveis da sociedade capitalista, que se nutre essencialmente da desigualdade e do desequilíbrio material entre classes.

[13] Aqui, destaca-se os limites da ação numa sociedade mantida sob a ordem do capital; mas também a possibilidade de interferir no resultado desse jogo, em contraposição ao papel de mero expectador passivo diante dos desafios.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 22 agosto, 2005.