Linguagem e efetivação dos direitos humanos: o desafio do Direito no
atendimento interdisciplinar a vítimas de violência
Resumo
O
presente trabalho analisa a linguagem dos direitos humanos e o
desafio do direito no atendimento interdisciplinar a vítimas de
violência. Para tanto, foram abordadas algumas questões
relativas ao atendimento a vítimas de violência, a linguagem dos
direitos humanos e, por fim, a contribuição do direito no
atendimento interdisciplinar a vítimas de violência.
Palavras-chaves:
direitos humanos; violência; atendimento interdisciplinar;
vitimização.
Abstract
This
article analyzes the language of human rights and challenge about
law and interdisciplinary service for victims of violence. In
order to this, we discuss some issues about service for victims of
violence, language of human rights and law contribution for
interdisciplinary service for victims of violence.
Keywords: human rights; violence; interdisciplinary service;
victimization.
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1.
Introdução
Este
artigo tem como foco o tratamento de vítimas de violência, especialmente
a violência fatal (homicídio e latrocínio). Embora necessária
uma discussão sobre o conceito de violência como uma construção social,
para os efeitos deste texto tal discussão se revela secundária. O homicídio
e o latrocínio apresentam-se como grandes formas de violência em
diversas pesquisas junto à população. Se é discutível que “fome”,
“miséria” ou “corrupção” sejam formas de violência, tal
discussão não se coloca em relação ao homicídio e ao latrocínio.
O
debate em torno do tema da violência, em especial dos homicídios, tende
a uma polaridade entre repressão e prevenção. De um lado, o
recrudescimento punitivo com o aumento de penas e maior rigor em seu
cumprimento; do lado oposto, a promoção de justiça social, através de
políticas para redução de desigualdades. Adiciona-se a esse quadro
forte influência emocional diante da violência, reações aparentemente
individuais e privadas (blindagem de carros, condomínios fechados,
segurança privada, sistema de câmeras e filmagens, etc) e uma ampla
sensação de insegurança.
Essas
respostas “aparentemente individuais” sustentam um sistema de
“in-segurança pública”, que movimenta uma indústria de proteção e
venda de serviços de segurança, em crescente e franca expansão. RANCIÈRE
(2003) aponta um cenário em que o Estado é reduzido a um Estado
policial, sustentado por uma comunidade do medo, onde a insegurança é um
modo de gestão da vida coletiva. Ressalta o autor: “O sentimento de
insegurança não é uma crispação arcaica devida a circunstâncias
transitórias. É um modo de gestão dos Estados e do planeta para
reproduzir e renovar em círculo as próprias circunstâncias que o mantém.”
(RANCIÈRE, 2003)
Por
isso a necessidade de políticas de segurança que, de forma transversal,
multidisciplinar e multisetorial, enfrentem esse panorama numa cultura de
direitos humanos e com a participação de diversos atores sociais, tendo
em vista o caráter coletivo e complexo do tema da violência. Nesse cenário,
ressalta-se o olhar e a questão da vítima como uma das formas de
enfrentamento do problema.
Através
do atendimento a vítimas de violência possibilita-se a defesa e promoção
de direitos humanos e o resgate da cidadania de grupos vulneráveis,
muitas vezes intimidados com a sensação de medo e insegurança e
distantes do exercício de seus direitos. Entretanto, a realidade dos
atendimentos a vítimas de violência mostra-se bastante desafiadora. O
Direito, tradicionalmente visto como conservador e instrumento para
manutenção do status quo, tem
importante papel na prática interdisciplinar.
Nesse
sentido, o presente estudo mostra-se como uma tentativa de identificar
alguns obstáculos e desafios diante do tema e, ao final, apresentar
algumas propostas para a atuação do operador do direito no trabalho
interdisciplinar a vítimas de violência.
2.
O atendimento integrado e interdisciplinar a vítimas de violência como
meta
A
violência, entendida como causa e conseqüência de violações de
direitos humanos, é bastante debatida em diversos setores, mas pouco em
relação aos vitimados. Embora o elevado índice de homicídio em termos
mundiais
e em São Paulo, o debate é pouco
centrado no conceito de vítimas indiretas ou de vitimização difusa
ocasionada pela violação de direito.
Os
familiares de vítimas de crimes fatais muitas vezes não se reconhecem
como vítimas e portadores de direito, tendendo a “esquecer”,
“deixar de lado” ou “apagar da memória”, como uma reação de
defesa imediata ao sofrimento, medo, impotência, isolamento ou descrença
nas instituições públicas de repressão e distribuição de justiça.
Ademais, dissemina-se a sensação de impunidade e insegurança na
comunidade e o ciclo de violência pode se perpetuar pela própria vítima,
potencial agressor.
Daí
a necessidade de política de assistência às vítimas de violência. A
previsão constitucional do artigo 245
sinaliza uma preocupação do constituinte com a assistência a vítimas
de crime doloso, sem especificações. A Constituição Estadual de São
Paulo, em seu artigo 278, VI, dispõe sobre o tema de forma mais específica,
mencionando a “criação de serviços jurídicos de apoio às vítimas,
integrados a atendimento psicológico e social”.
No
plano internacional, ressalta-se a Declaração dos Princípios
Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de
Abuso de Poder, adotada em 29 de novembro de 1985, pela Assembléia Geral
do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Resolução
40/34). Embora não seja um tratado internacional e portanto sem força
vinculante entre os Estados parte, essa Declaração revela a importância
do tema na esfera internacional.
Vítimas
de violência
Analisando-se
o papel e participação da vítima na apuração e punição dos crimes,
verifica-se um período atual de “redescobrimento” da vítima no
processo penal – em oposição a períodos anteriores em que a vítima
ocupava uma posição de destaque numa época em que a lei disciplinava o
exercício da vingança; ou em que a vítima era totalmente esquecida e
ignorada pelo direito. (OLIVEIRA, 1999)
A
fase atual aponta uma tímida participação da vítima no processo penal
e aproximação do tema nos estudos acadêmicos, assim como um novo
enfoque na atuação estatal além da esfera repressiva-punitiva,
ampliando-se na prática com a criação de programas de proteção e
assistência às vítimas, que passam a ser observadas como alvo de políticas
públicas.
O
termo “vítima” nos remete a diferentes noções, mas ressalta-se a idéia
trazida na Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos
às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder – a qual define, em
seu artigo 1o, vítimas como “as pessoas que, individual ou
coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à
sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda
material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como conseqüência
de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado
membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder”. Considera-se vítima
aquele(a) que sofreu dano ou lesão, independentemente de laços de
parentesco com o autor, seja ou não identificado, preso, processado ou
declarado culpado.
Nos
termos do artigo 2o da Declaração, “o termo vítima
inclui também, conforme o caso, a família próxima ou as pessoas a cargo
da vítima direta e as pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao
intervirem para prestar assistência às vítimas em situação de carência
ou para impedir a vitimização”. Tal definição inclui o conceito de vítima
indireta, ampliando-se a compreensão da vitimização provocada pela
violação além da pessoa da vítima direta, a qual suportou o ato
violento, pois a violência pode atingir indiretamente e de forma difusa
outras pessoas ou um grupo.
A
vítima, às vezes, passa a isolar-se do convívio social e passivamente
aceitar ou se conformar com a perda, sem se reconhecer como sujeito de
direitos e responsável por mudanças. Ou ainda, pode caminhar para uma
atuação excessiva, sem ponderar riscos ou ameaças, em atitudes suicidas
ou vingativas. Ambos, a passividade ou a atividade excessiva, demonstram
riscos ao próprio sujeito e ameaçam efetivação dos direitos.
A
passividade da vítima tende a conduzir a pessoa a uma posição de
“recebedora de favores”, ou seja, os direitos são assimilados como
favores ou benesses, sem uma postura de reivindicação de direitos: o
sofrimento experimentado a eximiria de qualquer atividade.
A
atividade excessiva pode confundir-se com uma defesa, para não lidar com
a dor e o sofrimento provocados, ou caminhar para atitudes baseadas em noções
vingativas (buscar a “Justiça” “custe o que custar” ou “com as
próprias mãos”), afastando-se dos direitos declarados. O sofrimento
justificaria qualquer atitude praticada, desumaniza-se o infrator,
negando-lhe seus direitos.
Nesse
sentido, as respostas às violações de direitos humanos devem considerar
também as vítimas dessas violações, direta e indiretamente atingidas.
A vingança e a passividade precisam ser ponderadas para o pleno exercício
dos direitos humanos, por todos e com autonomia necessária.
Há
que se evitar ainda os riscos de processos de vitimização. A vitimização
primária é normalmente entendida como aquela provocada pelo cometimento
do crime, pela conduta violadora dos direitos da vítima – pode causar
danos variados, materiais, físicos, psicológicos, de acordo com a
natureza da infração, personalidade da vítima, relação com o agente
violador, extensão do dano, dentre outros.
Por
vitimização secundária, entende-se aquela causada pelas instâncias
formais de controle social, no decorrer do processo de registro e apuração
do crime. Ocorrido o crime, deve-se registrar a ocorrência, em alguns
casos é preciso realizar um exame de corpo de delito, dentre outras
providências. O sistema de justiça pode violar outros direitos nesse
processo, vitimizando novamente o cidadão: condutas ou comentários
discriminatórios, demoras excessivas na finalização do processo, ausência
de orientação sobre providências necessárias, dentre outros exemplos.
A pessoa que já sofreu uma violação de seu direito experimenta
novamente outra violação, desta vez, praticada por algum agente estatal
do sistema de justiça, o que pode agravar as conseqüências da vitimização
primária.
A
vitimização secundária pode dificultar o processo de superação ou
elaboração do fato, pode ainda provocar uma sensação de impotência,
desamparo e frustração com o sistema de controle social, provocando
descrédito e desconfiança dessas instâncias.
Por
outro lado, a violência pode atingir outras pessoas, além da vítima
direta que tenha suportado o ato violento. A vitimização indireta ou
difusa amplia a compreensão do sofrimento gerado em decorrência da violação
(crime), tendo em vista que a violência perpetrada contra a vítima
reverbera em outros contextos, atingindo, de forma diferenciada e difusa,
outras pessoas que podem pertencer ao círculo de convivência da vítima
direta e também sofrer os efeitos da violência perpetrada.
Esse
conceito de vitimização indireta ou difusa é recente e desafiador. A
ampliação da compreensão da vitimização provocada pela violência
pode ser observada, por exemplo, no impacto do “11 de Setembro de
2001”, em que os efeitos da violência difundida em tempo real foram
sentidos e suportados pela população mundial generalizada, de forma
indiscriminada e difusa. Não apenas os atingidos diretamente pelos
atentados, mas uma coletividade (até mundial) sofreu o impacto do
terrorismo. E a reação no Pós-11 de Setembro, com restrições a
direitos historicamente conquistados, confirma a necessidade de atenção
às vítimas para romper o ciclo de violência.
Assim,
faz-se necessário uma política de atendimento a vítimas de violação
de direitos a fim de se promover efetivação dos direitos humanos e
evitar que tais vítimas, descrentes do sistema de justiça e revoltadas
com a violência sofrida, violem direitos de terceiros, perpetuando e
reproduzindo um ciclo de violência e violação de direitos.
A
prática do atendimento integrado e interdisciplinar
O
atendimento prestado em centros de apoio a vítimas é, em tese, realizado
por equipe multidisciplinar formada por profissionais das áreas jurídica,
psicológica e social, numa “abordagem teórica, técnica e prática do
problema da violência com enfoque na promoção da cidadania e da cultura
dos direitos humanos (...) de modo a que possam realizar a avaliação dos
fatos vividos à luz de parâmetros legais e éticos e definir e formular
suas prioridades e estratégias de ação, evitando, assim o processo de
vitimização que pode conduzir ao fatalismo e imobilismo”. (BRASIL,
2002)
As
famílias de vítimas de violência fatal, em geral, buscam uma justiça
que restaure a ordem, e muitas vezes, o intenso sofrimento e desamparo
vivido frente à situação de homicídio ou latrocínio ficam disfarçados
sob a busca por uma solução jurídica. Uma resposta formal das instâncias
judiciais e/ou de segurança, por si só,
não é suficiente para dar conta do trabalho de luto e da
instabilidade sócio-econômica que a família vive por conseqüência da
perda, nem para rompimento do ciclo de violência.
Diante
desse quadro, vale analisar o serviço prestado
a vítimas indiretas de violência fatal e apontar algumas dificuldades no
cumprimento de tais metas e propostas. Num primeiro contato com tais vítimas,
a partir da escuta dos fatos, realiza-se uma identificação inicial das
questões e demandas trazidas para possibilitar um diálogo baseado em
sigilo, confiança e respeito. A identificação das demandas, através de
um acolhimento interdisciplinar, permite distinguir as reais necessidades
de cuidado que esta família requer. Muitas vezes, o relato da história
da violência letal é bastante emocionado e intenso, rico em detalhes e
lembranças – destaca-se que essa carga emocional independe do tempo
transcorrido: em alguns casos, fatos passados há anos são revividos com
intensidade, pois não foram elaborados.
A
partir desse diagnóstico preliminar, cada área (psicológica, social e
jurídica) propõe seu trabalho de acordo com sua especificidade, mas
tendo em vista a atuação interdisciplinar. No decorrer do atendimento
proposto, a troca de informações entre os profissionais é bastante rica
e necessária para o melhor atendimento ao sujeito vítima de violência.
Há espaço de supervisão clínica e institucional para o distanciamento,
reflexão e discussão de caso, fundamental para a qualidade do serviço
prestado.
A
fim de promover um atendimento integrado e interdisciplinar é necessário
um esforço conjunto, vontade individual e coletiva, apoio político para
manter e aperfeiçoar a política pública de atendimento a vítimas e um
intenso trabalho de descobertas e construções conjuntas.
Discutindo
apenas o âmbito interno, a integração do olhar e da intervenção
viabiliza um atendimento a um sujeito visto de forma integral. Para isso,
a troca entre os técnicos é de extrema importância e riqueza ao se
compartilhar intervenções e reações. O mais conhecido é o
“advogado” e o ressarcimento pelo dano através da justiça. Pouco
ainda se sabe das possibilidades de um atendimento que lide com a perda,
com a morte violenta, com ciclos de violência, com o luto.
A
abordagem múltipla e diferenciada do usuário possibilita a visão do
sujeito atendido além do evento violento: uma pessoa dotada de
personalidade, de história de vida, dificuldades e condição atual. Isso
se opõe a uma tradição que privilegia olhares fragmentados e
justapostos que tendem a considerar o usuário como um objeto de intervenções
(e não como um sujeito dotado de personalidade e história, projetos e
planos), em que é usual o encaminhamento do atendido de um setor para
outro, o que o faz assemelhar-se a um objeto, uma “batata quente” que
vai de um setor para outro, de uma instituição para outra.
Alguns
desafios à prática
O
tema da violência e da morte exige que se tenha um cuidado especial com a
equipe de atendimento. Há necessidade de distanciamento e reflexão, bem
como discussão do atendimento realizado e proposto. Assim, a supervisão
e outras formas de reflexão (capacitação, seminários ou cursos) são
de extrema importância para a qualidade do atendimento oferecido. O
distanciamento – que não se confunde com indiferença – do caso
atendido e a construção de um cotidiano da instituição que seja acolhedor e seguro são
fundamentais para a saúde dos técnicos, para ampliar o horizonte de sua
visão e aperfeiçoar o atendimento realizado.
O
atendimento direto pode ser extremamente estimulante e motivador,
representando novos desafios e constantes transformações; por outro
lado, pode ser frustrante e opressor, com diversas angústias e decepções,
e por vezes violento, reproduzindo o objeto de intervenção.
O
público alvo de intervenção exige determinadas competências e
disponibilidade do corpo técnico – para trabalhar com vítimas de violência,
é necessário ter habilidade para lidar com pessoas vítimas (com todas
as implicações acarretadas por essa posição de vítima) e capacidade e
competência para intervir na situação de violência tratada.
O
técnico, no atendimento direto à população,
está sujeito a “contaminar-se”
de aspectos da situação violenta. O profissional em atendimento direto
é uma pessoa dotada de personalidade própria e seus valores podem ser
constantemente questionados diante de relatos e atendimentos realizados,
em especial sobre a violência retratada e abordada. Além do
auto-conhecimento, é fundamental que o profissional consiga distanciar-se
do caso sob intervenção e procurar agir de forma neutra.
O
profissional deve vencer suas próprias dificuldades para lidar com a
questão objeto de intervenção e com o sujeito em atendimento (o usuário
com sua personalidade e identidade que carrega), assim como deve enfrentar
os desafios que o próprio trabalho proporciona – por exemplo,
sentimento de frustração e impotência, limitações institucionais,
buscar motivação no trabalho, abandonar a onipotência, etc.
Num
atendimento integrado e interdisciplinar, pautado na perspectiva de
direitos humanos, a visão integral do sujeito é privilegiada em oposição
a uma visão fracionada de um objeto de intervenção. Não se atende
demandas isoladas, mas um sujeito em transformação, um indivíduo com
uma história de vida e que pode demandar determinadas intervenções
psicológicas, sociais ou jurídicas. É necessário um diálogo entre as
diferentes disciplinas e técnicos, com base no respeito e promoção dos
direitos humanos, para um atendimento capaz de promover a autonomia e
emancipação da vítima de violência para uma situação de exercício
de direitos e cidadania democrática.
Outras
dificuldades de ordem institucional também são enfrentadas pela equipe
de atendimento. Destacam-se, em especial, as interrupções dos convênios
celebrados entre as diferentes instâncias do Estado e a sociedade civil
organizada – o que pode provocar a fragmentação da equipe, com a saída
de parte contratada pelo convênio e o comprometimento do trabalho
realizado junto aos usuários.
O
financiamento dos projetos segue uma lógica e um tempo que nem sempre
contribui para a necessária continuidade do serviço prestado. Os convênios
celebrados terminam e as renovações ou aditamentos podem demorar um período
incerto; ainda que celebrados e formalmente assinados, os convênios se
viabilizam quando o financiamento é concretizado com o depósito dos
valores. Esse modo de funcionamento da instituição, que se opera através
de convênios com a sociedade civil, gera uma profunda instabilidade em
seus projetos, o que compromete o serviço prestado e os atendimentos
realizados.
Esta
situação - comum em projetos sociais e comum aos demais centros de referência
e apoio a vítimas do país - revela uma certa ambigüidade do Estado ao não
vincular orçamento adequado ao programa por ele criado, o que compromete
não apenas a continuidade do serviço, mas em especial a qualidade do
atendimento realizado. Daí a necessidade de promover e concretizar políticas
públicas não sujeitas às flutuações das políticas governamentais,
como se espera de uma política de direitos humanos.
3.
A linguagem dos direitos humanos
Conceito
e Fundamento dos Direitos Humanos
Os
direitos humanos pautam-se no reconhecimento da condição de humanidade a
todo e qualquer ser humano, bastando-se a condição de pessoa,
independentemente de qualquer distinção de raça, etnia, religião,
nacionalidade, condição social, ou “bondade” ou “maldade” do
cidadão.
Os
direitos humanos não são dados, não nascem de uma única vez, nem de
uma vez por todas; são conquistados e dependem de lutas sociais. Conforme
salienta BOBBIO (1992, p.6), “os direitos humanos não nascem todos de
uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer.” Tais direitos são fruto
de um processo histórico, uma invenção humana que depende do passado e
do presente, em constante processo de construção e reconstrução.
(PIOVESAN, 2004)
Numa
perspectiva histórica, “os direitos do homem nascem como direitos
naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares,
para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos
universais”. (BOBBIO, 1992, p. 30)
A
Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 lançou uma concepção
contemporânea de direitos humanos, a qual consagra sua universalidade:
toda e qualquer pessoa tem direitos, visto que a dignidade é um valor
intrínseco à condição humana. Em outras palavras, para a titularidade
de tais direitos basta a condição de pessoa, de ser humano.
Por
direitos humanos entendem-se todos requisitos necessários para a plena
realização e desenvolvimento da condição de dignidade da pessoa
humana. Compõem o rol dos direitos humanos, os direitos civis e políticos
(relacionados à idéia de liberdade),
os direitos sociais, econômicos e culturais (noção de igualdade)
e os direitos difusos (solidariedade)
– os quais são indivisíveis e inter-relacionados, bem como dependem
uns dos outros para condição de dignidade humana. O princípio da proibição
de retrocesso social estabelece a progressividade dos direitos humanos,
numa lógica evolutiva.
A
Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada pela Conferência
Mundial de Direitos Humanos, em 1993, endossou a indivisibilidade,
interdependência e inter-relação entre os direitos humanos e ressaltou
a relação indissociável entre direitos humanos, democracia e
desenvolvimento. No entanto, a visão integral dos direitos humanos ainda
é um desafio.
A
concepção contemporânea de direitos humanos traz diferentes desafios,
além da integralidade. Inicialmente, há que se ressaltar a necessidade
de uma visão mais ampla que a normativa, que o raciocínio jurídico a
partir de normas. Os direitos humanos são processos que inauguram
conquistas de dignidade humana, o que impõe trabalhar com a realidade a
partir de uma hermenêutica de valores que reflita escolhas morais em
jogo, numa ótica de transformação social, rompendo-se com a lógica
formal tão difundida entre os operadores do direito.
Dentre
os desafios contemporâneos, destaca-se a tensão entre o universalismo e
o relativismo cultural. O primeiro tem a dignidade como fonte dos direitos
humanos; ao passo que para o segundo, a fonte é a cultura. Esse é um
debate aberto no campo dos direitos humanos: há uma ética universal, ou
não? Os direitos humanos valem para toda e qualquer sociedade,
independentemente da cultura local?
DONNELLY
(2003) refere-se a gradações entre universalismo radical e relativismo
radical nos extremos. Para o universalista radical, há um mínimo ético
irredutível de grande alcance e sem espaço para diálogo com outras
culturas. Ao relativista radical, cada cultura determina seu rol de
direitos humanos, independentemente de um patamar mínimo.
Intermediariamente
aos pólos mencionados, há o universalismo forte e universalismo fraco. O
primeiro, embora com o pressuposto de um mínimo ético irredutível de
grande alcance, abre espaço para influência da cultura; o universalista
fraco permite maior diálogo com a diversidade cultural e apresenta um mínimo
ético com menor alcance (IKAWA, 2004). As posições intermediárias
tendem a permitir o diálogo entre as culturas e maior alcance dos
direitos humanos, conciliando-se diferenças e igualdades.
Diante
da diversidade de culturas e do reconhecimento da incompletude dessas
culturas, há que se fortalecer e investir num diálogo intercultural, que
possibilita a definição de um mínimo ético dos direitos humanos, numa
concepção multicultural dos direitos humanos de caráter emancipatório.
(SANTOS, 2003)
Nesse
sentido, ressalta-se a necessidade de composição entre o princípio da
igualdade e o da diferença: a defesa da igualdade deve ser evocada sempre
que a diferença gerar inferioridade; há que se defender a diferença
quando a igualdade implicar em descaracterização. O multiculturalismo
pode ser um recurso estratégico para políticas emancipatórias, com a
exigência do reconhecimento da diferença e afirmação do imperativo do
diálogo.
Direito
como instrumento de emancipação e promoção de cidadania e autonomia do
sujeito
Os
direitos humanos têm potencial emancipatório se transformados em
discurso e prática para um projeto cosmopolita, numa luta contra exclusão
e discriminação sociais e destruição ambiental produzidas pela
globalização hegemônica, numa iniciativa ou movimento do subalterno em
luta contra sua subalternização. (SANTOS, 2003)
Tal
desafio tem como premissa a superação do debate entre universalismo e
relativismo cultural, com a proposta de um diálogo intercultural sobre
questões convergentes e definição de critérios para distinguir entre
política emancipatória de política regulatória, assim como entre política
progressista e de outra conservadora.
Outra
premissa da transformação cosmopolita dos direitos humanos é que,
embora nem sempre concebidas como direitos humanos, todas as culturas têm
concepções de dignidade humana, em versões diferentes e de acordo com
cada cultura. No entanto, todas as culturas são incompletas e problemáticas
em suas concepções – a incompletude decorre da ausência de uma única
visão e, portanto, da própria existência de uma pluralidade delas.
Todas
as culturas tendem a distribuir pessoas ou grupos sociais entre princípio
de igualdade e princípio da diferença. Uma política emancipatória de
direitos humanos deve saber distinguir entre a luta pela igualdade e a
luta pelo reconhecimento igualitário da diferença. A mobilização
pessoal e social para as possibilidades e exigências emancipatórias dos
direitos humanos e da dignidade humana só será concretizável na medida
em que tais possibilidades e exigências forem apropriadas e absorvidas
pelo contexto cultural local. A luta pelos direitos humanos e pela
dignidade humana jamais será eficaz se baseada em imposição cultural ou
“canibalismo cultural”. (SANTOS, 2003)
Num
diálogo intercultural, a troca não é apenas entre diferentes saberes,
mas também entre diferentes culturas, entre universos de sentido
diferentes – o que muitas vezes faz necessário explicar ou justificar
idéias e ações que em determinada cultura são evidentes e do
senso-comum.
A
hermenêutica diatópica (SANTOS, 2003; PANIKKAR, 1983) baseia-se na
interpretação e diálogo a partir da noção de que os topoi
de uma determinada cultura, por mais fortes que sejam, são incompletos
como a própria cultura a que pertencem. Não se tem como objetivo atingir
a completude (que é inatingível), mas ampliar ao máximo a consciência
da incompletude mútua por meio do diálogo que se desenrola com um pé em
cada cultura.
O
reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine
qua non para um diálogo intercultural. A hermenêutica diatópica é
um trabalho de colaboração intercultural e não pode ser levado a cabo a
partir de uma única cultura ou por uma só pessoa; exige diferentes
processos de criação de conhecimento. A produção de conhecimento deve
ser coletiva, participativa, interativa, intersubjetiva e reticular,
baseada em trocas cognitivas e afetivas que avançam por intermédio do
aprofundamento de reciprocidade entre as culturas; de forma a favorecer o
conhecimento-emancipação em detrimento do conhecimento-regulação
(SANTOS, 2002).
Os
diálogos interculturais devem ser baseados em condições estabelecidas
por mútuo acordo, tomando-se cuidado com o risco de fechamento cultural
ou de conquista cultural. Para um multiculturalismo progressista é
preciso que o princípio da igualdade seja utilizado conjugado com o princípio
da diferença, de forma que seja respeitado o direito a ser igual quando a
diferença inferioriza e o direito a ser diferente quando a igualdade
descaracteriza.
Vale
apontar que as possibilidades ora levantadas levam em consideração o
direito como instrumento de direção e promoção social, em contraposição
ao direito como técnica de controle e organização social (FARIA, 1998).
O
direito como técnica implica um conhecimento jurídico meramente
informativo e despolitizado partindo-se de um sistema legal tido como
completo, lógico e formalmente coerente. Nesse sistema normativo, ao
direito positivo importa apenas estabelecer sanções como conseqüência
do descumprimento de prescrições normativas. Nessa ótica, o direito é
tido como um sistema de normas para tratar de conflitos sociais de maneira
exclusivamente formal, fragmentando-os, individualizando-os e
trivializando-os para melhor equacioná-los funcionalmente por meio de
decisões judiciais.
Por
outro lado, o direito como instrumento de direção e promoção social
pressupõe um conhecimento jurídico multidisciplinar a partir de uma dúvida
sobre a dimensão política, as implicações sócio-econômicas e a
natureza ideológica da ordem legal, numa perspectiva de um projeto político-normativo.
Tem por objetivo a consecução de um equilíbrio material entre os
diferentes setores, grupos e classes sociais, o que implica em normas com
propósitos compensatórios, redistributivos e protetores, as quais devem
ser interpretadas à luz da realidade material.
Assim, o ordenamento jurídico aparece não como uma estrutura logicamente
coerente e harmoniosa, mas como um construído histórico refletindo múltiplos
valores e interesses de diferentes setores, grupos e classes sociais em
confronto.
Tal
concepção do direito como instrumento de direção e promoção social
exige a conciliação do saber jurídico especializado com um saber mais
amplo e profundo sobre a produção, função e condições de aplicação
do direito positivo; o que exige uma “reflexão multidisciplinar capaz
de propiciar desvendamento das relações sociais subjacentes às normas e
às relações jurídicas e de fornecer aos magistrados não apenas métodos
mais originais de trabalho mas, igualmente, informações novas, de
natureza econômica, política e sociológica.” (FARIA, 1998, p. 26)
Por
fim, partindo-se da concepção de direito como instrumento de direção e
promoção social, há que se promover o conhecimento-emancipação, de
maneira a promover um atendimento à vítima de violência estimulador de
cidadania e da autonomia do sujeito. Para isso, há que se praticar relações
emancipatórias, baseadas na igualdade e diferença, incentivando-se o diálogo,
o caráter coletivo e a criação conjunta.
A
gramática dos direitos humanos
Se
alguém tem um direito, pressupõe-se que outros tenham deveres num
sentido amplo, vez que para cada direito há distintas formas de deveres.
Os direitos valem para todos e devem proteger a todos sem distinção,
estabelecendo-se relações horizontais e de reciprocidade – o que os
distingue de caridade ou favor, assim como diferencia direito e privilégio.
Direitos
são trunfos, em outras palavras, ter um direito favorece o titular como
uma boa cartada num jogo de baralho (DWORKIN, 1984). Permite maior
garantia e possibilidade de reivindicar o interesse ou valor protegido
pela norma em relação aos outros valores ou interesses não protegidos.
Vale acrescentar que os direitos não são absolutos e pode haver conflito
entre diferentes direitos.
A
relação entre um direito e uma obrigação não é automática. Ter um
direito pode ser uma boa justificativa, uma razão suficiente para que
outros estejam obrigados e, portanto, tenham deveres e respeitem os
direitos. O direito só existe em sociedade e pressupõe a decisão de
preservar certos valores ou interesses por meio legal para todos. Por
conseqüência, o direito deve ser capaz de conciliar com outros
interesses e compatibilizar-se com causas coletivas, para assim ser
entendido como uma justificativa suficientemente importante para que os
outros respeitem ou tenham o dever de respeitá-lo.
Num
conflito entre diferentes valores ou interesses, aquele protegido pelo
direito prevalece sobre os demais, ou tem uma boa razão para prevalecer.
Essa gramática dos direitos aponta a prioridade daquele valor ou
interesse protegido em relação aos demais não protegidos. Ainda que um
direito possa ceder espaço para outro considerado mais importante na
situação, o valor ou interesse protegido pelo direito é prioritário
diante dos demais não protegidos, estabelecendo-se uma razão a ser
considerada antes de agir.
Ao
associar a idéia de humano à noção de direito abordada, a proteção e
prioridade é ainda maior. Para a condição de humanidade alguns valores,
interesses ou necessidades precisam ser protegidos e preservados; tal
elenco é historicamente construído como indispensável ao pleno
desenvolvimento da condição de humanidade e se sobrepõe aos demais
direitos não classificados como tal. Nesse contexto, a força do direito
é empregada para proteger valores e interesses indispensáveis à realização
da condição de humanidade de toda e qualquer pessoa.
Essa
gramática também indica a distinção entre direito, privilégio, favor
e mercadoria. O direito visto como privilégio, como favor ou como
mercadoria dificilmente será um instrumento de emancipação social, de
autonomia. Embora aparentemente óbvia, tal distinção muitas vezes é de
difícil apropriação pelos próprios titulares. No discurso e na
abordagem prática essas noções podem se confundir, por exemplo, no caso
de atendimento em serviço público vivenciado pelo usuário como um favor
e não como um direito.
A
linguagem e a efetivação dos direitos humanos: um lugar fundamental no
atendimento a vítimas de violência
A
linguagem dos direitos humanos inspira-se em considerações de ordem pública
em defesa de interesses superiores e comuns, contra todas as formas de
discriminação, repressão e exclusão, buscando-se a realização da
justiça. O Direito dos Direitos Humanos opera na defesa dos mais fracos e
na proteção do pólo mais frágil nas relações entre desiguais, a fim
de remediar os efeitos do desequilíbrio e da disparidade; interpreta e
aplica a norma tendo em vista as necessidades prementes de proteção das
supostas vítimas – o que requer maior elaboração e articulação dos
operadores do direito com base na realidade social e identificação das
necessidades de proteção.
Daí
a importância do diálogo e troca entre diferentes saberes para analisar
a realidade social, identificar as necessidades de proteção e aplicar
mecanismos corretos para a promoção dos direitos humanos.
No
atendimento a vítimas de violência, a equipe técnica composta por
diferentes profissionais tem necessidade de integração e de uma
linguagem comum para unificar a intervenção. Para tanto, a equipe deve
ser composta baseada na cooperação (e não na competição) entre as
diferentes áreas, a fim de que as diferenças sejam vistas como
potencialidades e enriquecimento conjunto (e não como exclusão e/ou
disputa).
Para
uma linguagem capaz de colaborar com a efetivação dos direitos humanos
é preciso também que a teoria dialogue com a prática. Os profissionais
em atendimento direto devem se apropriar da linguagem dos direitos humanos
a fim de que os usuários sejam atendidos de acordo com esse conceito. Os
diferentes olhares e diferentes intervenções podem compor um atendimento
integral e interdisciplinar pautado na lógica dos direitos humanos.
O
psicólogo, quando viável nas intervenções, pode fortalecer o sujeito
internamente e reforçar a noção de autonomia e alteridade, de respeito
ao outro e tolerância. Ao problematizar a dignidade do outro, seja
agressor ou vítima, pode auxiliar na formação da identidade do sujeito
(no momento vivida como vítima), para uma construção de cidadania e
emancipação, com base no respeito aos direitos humanos e colaborar para
o possível rompimento do ciclo de violência.
O
assistente social também pode intervir com a linguagem dos direitos
humanos ao trabalhar a inserção do sujeito no meio em que vive, assim
como abordar noções de direito e respeito à dignidade humana. Ao
auxiliar na elaboração de estratégias para solução dos problemas,
buscando apoio na rede social da vítima e mobilizando-a para sua utilização
como cidadã, pode reforçar uma noção de direito e de autonomia, em
oposição ao favor ou benesse, cuja tendência é tutelar o sujeito.
O
advogado, por sua vez, em sua atuação na defesa do direito do usuário
pode promover sua autonomia. Porém, a ação do operador do direito ao
responder imediatamente uma demanda corre o risco de (ou colabora para) a
vítima manter-se numa posição passiva e receptora de favores, sem
trabalhar questões mais complexas do sujeito, que podem e devem ser
abordadas de forma interdisciplinar. Ao estimular a vítima a exercer seus
direitos, pode-se favorecer a visibilidade de suas questões (dar voz às
vítimas). A divulgação dos direitos da vítima e dos direitos do réu
pode contribuir para a compreensão do caráter universal do direito, que
se aplica para todos. Essas são alguns exemplos de diferentes formas de
intervenção que podem contribuir de alguma forma para a mudança da posição
de vítima para a de cidadão e para o rompimento do ciclo de violência e
de vitimização.
4.
Contribuições do Direito e atendimento interdisciplinar a vítimas de
violência
A
demanda trazida pela vítima de violência apresenta-se em sua grande
maioria como uma demanda jurídica, uma demanda por “Justiça”, quando
pode na realidade estar ocultando uma questão mais complexa, como o
sofrimento vivido com a perda do familiar de forma violenta ou o ciclo de
violência reproduzido entre gerações.
Não
de questiona a importância do papel da Justiça para a elaboração da
morte violenta, mas esse aspecto é apenas uma das faces da questão. Para
algumas vítimas, o pedido por “justiça” deve ser atendido somente
pela figura do advogado, que é representado de forma onipotente.
Entretanto, a condenação do autor do crime não é suficiente. O termo
“justiça” muitas vezes empregado no discurso das vítimas tem múltiplos
significados e tende a oscilar entre noções de justiça divina (diante
da impotência e impunidade frente à “justiça dos homens”,
representada pelo sistema de justiça) e vingança. O fator externo como
causador do problema ou da solução, numa polaridade onipotência e impotência,
é uma característica da vítima, que geralmente não se coloca como
responsável ou protagonista.
Ter
informações sobre o resultado das investigações e do processo judicial
é um dado relevante para a elaboração do luto e para confiança nos
mecanismos institucionais de solução de conflito. A orientação jurídica
é um importante instrumento para informar a família sobre os direitos
existentes e suas formas de exercício, como uma forma de acesso à Justiça.
O
discurso de vingança é bastante presente nos relatos dos familiares de vítimas
de violência letal e muitas vezes condicionado à ineficiência do
sistema de Justiça formal. As garantias processuais são muitas vezes
vistas como “injustiças” porque confundidas com privilégios,
acrescentando-se a emoção e o desejo de reparação. É importante
orientar os familiares sobre a necessidade de provas suficientes de
autoria e materialidade para condenação do réu.
Seja
como for, o advogado pode contribuir para a apropriação de direitos e a
desconstrução do discurso restritivo e violador presente nas falas de
algumas vítimas (por exemplo, ao mencionar que o assassino deveria ser
morto, ou estar preso ainda que não haja provas de sua autoria). O
profissional pode atuar também como uma “ponte”, um canal de comunicação
entre vítimas e o Judiciário, a fim de levar a voz das vitimas ao
processo e dar visibilidade à questão.
Numa
perspectiva de direitos humanos, o operador do direito deve atuar com base
na dignidade da pessoa humana e na indivisibilidade, interdependência,
inter-relação e progressividade dos direitos humanos; deve ainda buscar
a aplicação do Direito como instrumento de emancipação e autonomia do
sujeito para o pleno exercício de direitos. Para tanto, é fundamental
ter em mente os atores envolvidos e o contexto social inserido (a
realidade material).
O
advogado tem importante papel no atendimento a vítimas de violência, mas
sozinho dificilmente soluciona a questão. A integração e a
interdisciplinaridade parecem responder melhor a esse desafio.
A
linguagem dos direitos humanos deve ser difundida e apropriada pela equipe
de atendimento (não deve ser monopólio dos juristas), a fim de que nas
intervenções a noção de dignidade humana possa ser trabalhada sob
diferentes aspectos no decorrer do atendimento. Os direitos humanos são
também interdisciplinares. Cada área contribui, ao seu modo, com seu
olhar e intervenção, na realização desses direitos. Nesse viés, a
educação em direitos humanos parece estar presente no trabalho de cada
um dos técnicos, seja qual setor.
Nesses
termos, o Direito é apenas parte desse processo, fazendo-se necessária a
contribuição de outros olhares e intervenções para a efetiva autonomia
do sujeito. Numa perspectiva de direitos humanos, a interdisciplinaridade
e a construção coletiva são fundamentais para uma política emancipatória.
5.
Conclusões
O
atendimento a vítimas de violência pautado em direitos humanos pode
fortalecer a perspectiva de emancipação e promoção social, a partir do
reconhecimento de sujeitos de direitos e da dignidade humana, tanto em
relação à vítima quanto ao agressor. Para romper o ciclo de violência,
há que se reforçar o caráter de universalidade, interdependência e
inter-relação dos direitos humanos.
Para
tanto, os profissionais que realizam atendimento direto à população
devem ter conhecimentos básicos sobre direitos humanos e principalmente a
prática de reconhecimento e respeito à dignidade humana, o que pode
estimular a apropriação dos direitos, de acordo com a especificidade de
cada área de atuação, no âmbito da subjetividade, do convívio social
e/ou comunitário e sua relação com o Estado e normas formais.
Somente
o Direito não responde à complexidade diante do atendimento a vítimas
de violência. Há necessidade de compor olhares e intervenções de
outros profissionais, considerando-se o caráter multidisciplinar e
multifatorial da violência e a importância da visão integral do
sujeito, indicando-se uma abordagem interdisciplinar. Assim, todos devem
conhecer minimamente a linguagem dos direitos humanos, de forma a
possibilitar melhor intervenção técnica pautada na dignidade humana.
A
fim de promover a mudança do papel de vítima para um papel de cidadania
e exercício de direitos, pautado no respeito à dignidade humana e na
autonomia do sujeito, o diálogo é fundamental – em destaque, o diálogo
entre o Direito e demais disciplinas, como psicologia e serviço social.
Para essa troca, a linguagem dos direitos humanos deve ser universalizada
para uma intervenção mais precisa no indivíduo vítima para alcançar
uma posição mais coletiva e atuante. É fundamental também que, com
respeito mútuo, as partes envolvidas reconheçam sua incompletude e
tenham voz e visibilidade.
Por
fim, o atendimento a vítimas de violência para ser realmente pautado em
direitos humanos, deve fortalecer o indivíduo de forma a emancipar o
sujeito-vítima para uma posição de autonomia e exercício de direitos,
respeitando-se a dignidade humana do outro. Só assim o rompimento do
ciclo de violência parece ser efetivo.
6.
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