Por FERNANDO HENRIQUE CASTANHEIRA

Advogado e mestre em direito pela UNIVEM – Marília/SP

 

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A influência kantiana na construção de uma nova ordem jurídica internacional

Fernando Henrique Castanheira

 

Resumo

O objetivo do artigo é analisar a forma pela qual Kant pensa os fundamentos do direito das gentes no ensaio À paz perpétua, e verificar suas influências no cenário internacional contemporâneo e como ele pode servir de inspiração para pensar a formação de um novo modelo de ordenamento internacional para suprir as demandas do novo contexto global.

Palavras-chave: Direito; Kant; Direito Internacional

Abstract

This paper aims to analyze the form for which Kant thinks the international law fundaments about the essay Toward perpetual peace, and to verify its influences in the international scene contemporary and how can serve of inspiration to think the formation of a new model for international order to resolve the new global context demands.

Key-words: Law; Kant; International Law

 

Introdução

O opúsculo À paz perpétua foi escrito por Immanuel Kant em 1795, num momento em que a Europa passava por vários conflitos bélicos entre as grandes nações do continente.

Por isso, o texto reflete em larga medida, a dramática situação da Europa neste período (sobretudo o contexto de guerra entre Prússia e França). Não obstante, a obra não tem o caráter de panfleto político. Pretende-se antes, fornecer um modelo de direito internacional e de relações internacionais, para contribuir no debate concernente à possibilidade de se estabelecer relações ao mesmo tempo pacíficas e justas entre os Estados.

É uma das últimas obras de Kant, a qual sintetiza grande parte do seu pensamento jurídico – político, e trará enorme contribuição ao propor a passagem do estado de natureza para o estado civil (jurídico) entre os Estados, de forma análoga aos indivíduos.

Sua reflexão sobre a paz, como observa Höffe, parte de um enfoque totalmente original e diverso das contribuições anteriores sobre o tema, como a abordagem de Platão, Santo Agostinho, Hobbes ou Abbé de Saint-Pierre e estabelece uma nova etapa na teoria da paz. Uma verdadeira ordem pacífica global deve estar fundamentada sobre uma ordem jurídica global (HÖFFE , 2004, p.3), como propõe o segundo artigo definitivo de À paz perpétua.

A questão da paz, que estava até este momento relacionada à religião, passa a ser posta em termos jurídicos. Esta abordagem acompanha o processo de secularização que era realizado neste momento, dentro da modernidade em relação a outros valores e conceitos como direito, justiça e política.

A importância das teses kantianas apresentadas nesta obra, em relação ao contexto internacional moderno pode ser verificado por exemplo, nos documentos de origem das Nações Unidas (como no preâmbulo de seu estatuto, promulgado em 1945), que refletem a concepção kantiana de direito internacional público. Kant apresenta uma extraordinária reflexão sobre o direito das gentes, questiona o seu telos e conclui a que concepção deste, como um direito para a guerra não dispõe de um fundamento a priori, ou seja, é uma falácia.

O ensaio À paz perpétua é uma das últimas obras de Kant e compreende grande parte do seu pensamento jurídico – político. É um texto pouco volumoso, sobretudo se comparado à primeira crítica, mas de enorme extensão em termos de reflexão da política e do direito internacional.

O texto apresenta a forma de um autêntico tratado de paz. É dividido em artigos provisórios (que tratam das condições prévias para eliminação das razões que motivam a guerra entre Estados) e artigos definitivos (condições necessárias para o estabelecimento da paz duradoura). Kant pretende fornecer sua contribuição para o estabelecimento da paz definitiva entre os Estados, de modo que o uso da força entre estes seja considerado um fato inaceitável.

Kant pretende concretizar a transplantação da concepção iluminista da lei como fonte da liberdade individual, para a visão do direito como instrumento de pacificação entre os Estados, por força de uma constituição supranacional. Este seria um imperativo moral. Afinal, enquanto os Estados continuarem desprovidos de uma ordem jurídica internacional fundada nestes critérios, os propósitos expansionistas determinarão suas condutas externas, de forma a estimular a continuidade das violações seqüenciais perpetradas aos direitos dos cidadãos.

A liberdade jurídica universal seria alcançada através do direito pela harmonização da conduta externa (o que seria chamado hoje de agenda de política externa) entre os Estados.

As condições indicadas por Kant para alcançar a paz entre os Estados são pensadas a partir de dois planos: nacional e internacional. A idéia de paz está vinculada à realização do direito público nos dois planos.

As três dimensões do direito público pensadas por Kant são expostas nos artigos definitivos da obra. Nestes artigos Kant apresenta uma teoria do direito público que é completa de um ponto de vista jurídico-moral (HÖFFE , 2004, p.6).

Kant postula o desenvolvimento de uma nova ordem jurídica internacional, a partir de normas com eficácia supranacional e derivadas de um direito internacional legítimo, bem como uma forma de governo inserida no contexto democrático (equiparando  este termo à noção kantiana de republicanismo) de participação política, a qual tem na constituição política perfeita o fim último a ser alcançado pela humanidade e que garantiria a suspensão das guerras e o estabelecimento da paz e prevalência da razão.

As condições para instaurar a paz definitiva exigem uma constituição republicana, um direito internacional baseado em uma federação de Estados Livres (e autodeterminados, conforme a quinta proposição) e um direito cosmopolita.

O primeiro artigo definitivo trata da relação entre indivíduos e grupos. O segundo refere-se à relação entre Estados e o terceiro diz respeito à relação entre indivíduos e grupos de determinado Estado com Estados estrangeiros, em outros termos, a relação de indivíduos e Estados como “cidadãos de um estado universal da humanidade (ius cosmopoliticum)” (KANT, 1995, p. 127).

No presente trabalho pretende-se analisar detalhadamente a forma pela qual Kant pensa do Direito das Gentes em À Paz Perpétua os reflexos de sua visão no cenário internacional contemporâneo.

Direito das gentes

A construção da teoria kantiana no que concerne ao plano internacional, tanto em relação ao direito quanto à política, é realizada a partir de fundamentos racionais semelhantes e muitas vezes a partir de analogias aos fundamentos que nortearam suas reflexões em relação ao aspecto jurídico-político no âmbito interno dos Estados.

O segundo e o terceiro artigos definitivos constituem juntos a ampliação da visão cosmopolita de república e da paz.

O que fundamenta ou confere legitimidade ao direito positivo e ao Estado é o contrato originário acordado entre os indivíduos. A partir deste ocorre a passagem do estado de natureza para o estado civil.

Para pensar o direito das gentes, Kant parte desta construção teórica e afirma que o Direito Internacional apenas pode ser válido e justo num estado civil internacional, o qual deve também ser decorrente de um pacto originário entre estados (KANT, 2004, p. 13 e 1995, p.134).

Deve então ser realizada a passagem do estado de natureza, que é um estado de guerra (Kant segue a premissa de Hobbes neste aspecto) entre os Estados (como o é primeiramente no caso dos indivíduos), e a constituição de um Estado de Direito no plano Internacional, que constitui um imperativo jurídico-moral como no plano dos indivíduos. 

Desta forma Kant propõe que a questão da paz entre os Estados está relacionada também à existência de um direito internacional legítimo.

E um direito internacional legítimo apenas pode fundar-se sobre uma federação de Estados livres (KANT, 1995, p. 132), conforme o segundo artigo definitivo. “Só se pode falar do direito das gentes sob o pressuposto de alguma situação jurídica (isto é uma condição externa sob a qual se possa atribuir realmente ao homem um direito)”. E este status juridicus deve ter origem num consenso de vontades livres dos vários Estados, sob pena de tornar-se uma expressão sem conteúdo, como se afirma no apêndice da obra (KANT, 1995, p. 160-167).

Para caracterizar a relação que existe entre os Estados fora da federação dos povos ou da comunidade jurídica universal, Kant usa adjetivos como: barbárie, grosseria e degradação animal da humanidade. Estas são as características da relação que prefere a liberdade grotesca em detrimento da racional. Esta preferência faz com que persista uma relação de selvageria dos Estados entre si. Os povos (pelo menos os civilizados) deveriam avaliar se é preciso viver neste tipo de relação (KANT, 1995, p. 133). O direito (como já visto) é um reflexo do grau de desenvolvimento da racionalidade humana. Quanto menos desenvolvido, menos racional é a comunidade que o institui. Este tipo de direito subdesenvolvido é o que fundamenta a guerra (se é que se pode chamar de direito).

Ao tratar do direito das gentes Kant esta está totalmente familiarizado com  a forma pela qual este é discutido no início da modernidade. Referindo-se aos teóricos do direito internacional (ainda muito incipiente) de sua época (Grócio, Pufendorf, Vatel, dentre outros), Kant classifica-os como incômodos consoladores apenas. Estes autores eram usados como referencial para fundamentar as ações bélicas de diversos Estados, na medida em que preconizavam uma concepção de direito internacional ilusória, a qual servirá no máximo para encobrir ou tentar justificar a política de guerra, e garantiria a continuidade da barbárie nas relações entre os Estados. Este tipo de relação seria a fiel expressão da maldade da natureza humana (KANT, 1995, p. 133 e 134), afastando-se aqui de Rousseau.

Em tal contexto talvez fosse mais honesto simplesmente suprimir a palavra direito. Mas isso seria feito mais tarde por autores que desenvolveriam enfoques radicais do realismo no plano internacional. Afinal, um direito internacional que não é fundamentado numa federação de povos, construída a partir de um pacto entre estes, a quais fins pode servir? É um engodo. A resolução de conflitos através da guerra, na verdade não é solução.

Não passa de procrastinação das hostilidades. Questões (supostamente) resolvidas por meio da força nunca põem fim ao estado de guerra, que continua latente podendo suscitar a ocorrência de novos conflitos a qualquer momento. A via jurídica de resolução de conflitos é o processo, julgado por um tribunal externo (competente). Reconhecer como a parte (o Estado) titular de uma pretensão verdadeira (quem tem o direito) aquela vitoriosa numa guerra é retroceder aos chamados juízos de Deus (KANT, 1995, p. 134).

Desta forma estabelece-se uma comparação entre a guerra, como forma de resolução de conflitos com as formas medievais de decisão de conflitos. Geralmente nestas últimas, era considerado inocente ou titular de um direito aquele que saísse vivo de uma prova. Assim Kant propõe a necessidade, do que a partir do século XX seria uma realidade concreta: os tribunais internacionais, como sede legitima para resolver conflitos neste plano.

A concepção então do direito internacional como um direito para a guerra é desprovida de um fundamento racional, ou seja, é incompatível com o imperativo categórico do direito.

Evidências textuais da afirmação de Kant em relação à necessária vinculação entre imperativo categórico e ordem jurídica internacional podem ser encontradas tanto na Doutrina do Direito quanto em À paz perpétua. Uma análise aprofunda sobre a aplicação do imperativo categórico para justificar o direito internacional, a partir de visões diversas de autores contemporâneos desta área como Carty, Koskennieni e Slaughter, pode ser encontrada em The kantian project in modern international legal theory (CAPPS, 2001 p.1003 – 1025).

Direito das Gentes – a necessidade de uma nova ordem jurídica no plano internacional

A validade de um direito internacional está vinculada a um estado civil entre Estados. O imperativo do direito e da democracia deve ser ampliado para as relações globais. Existe então a necessidade de um direito legitimado democraticamente para reger o sistema internacional. Existem questões que apenas podem ser resolvidas em nível global. A solução destas questões (como no caso dos crimes contra a humanidade e contra a ordem internacional) pressupõe a existência de instâncias criadas a partir de um sentimento universal de direito em alguma medida

A construção de um ordenamento jurídico internacional legítimo seria uma parte do caminho a ser percorrido para por fim ao estado de guerra latente entre os Estados. O fim deste estado apenas pode ocorrer com a instituição de um direito internacional fundado no imperativo categórico do direito e não a partir de uma ordem jurídica internacional construída sob os pressupostos do realismo.

Como afirma Carty: “não se pode simplesmente estudar o comportamento dos Estados como evidência do direito, porque é logicamente inconcebível examinar alguma evidência sem um critério a priori de relevância e significado” (CARTY, 1986, p. 95 e 96).

A partir do imperativo categórico, pode ser encontrada uma base não arbitrária para o direito das gentes. “O conceito de direito ou de direito internacional deve ser fundamentado sobre o imperativo categórico se ele quiser ser considerado justificado” (CAPPS, 2001 p.1009).

A perspectiva alternativa a esta, é a da chamada Realist challenge que considera o direito simplesmente irrelevante para as políticas internacionais, e serviria apenas de instrumento para legitimar propósitos hegemônicos (SLAUGHTER, 1995, p.538).

É preferível seguir a perspectiva liberal e kantiana. Mas seria interessante dar um passo além em relação a Kant, no sentido de postular uma ordem jurídica internacional com poderes públicos, ou seja, na forma de um verdadeiro órgão global, legitimado democraticamente seguindo o modelo do Estado constitucional democrático.

Afinal o fundamento do vínculo jurídico entre as nações é um aspecto polêmico em Kant. Sobre este aspecto como afirma Habermas (2001, p.190):

Kant não explicou porém, nem como garantir a permanência dessa união, da qual depende a “natureza civil” da harmonização de conflitos internacionais, nem como fazê-lo se a obrigação jurídica de uma instituição análoga à constituição.

Esta análise de Habermas que aponta a falta de vínculo jurídico entre as nações no projeto kantiano está relacionada ao fato de Kant pensar este vínculo a partir do dever moral, em última instância.

Este é o aspecto que deve ser superado. A construção de um novo direito internacional público deve ser fundamentada nos pilares do constitucionalismo moderno, a saber, a razão pública e a vontade geral.

O impacto decorrente das exigências econômicas e políticas da nova ordem internacional nas constituições é verificado por muitos juristas e cientistas políticos contemporâneos. Mas como afirma Vieira (1999, p.15), trata-se de uma via de mão dupla, pois da mesma maneira que ocorre uma internacionalização do direito constitucional, acontece também um movimento inverso, ou seja, a constitucionalização de setores do sistema internacional.

Além do Estado constitucional democrático, as unidades continentais como a União Européia também devem servir de exemplo para a instituição da ordem jurídica da republica mundial (HÖFFE, 2001, p.563).

O modelo sugerido pela União Européia é neste aspecto importante porque não leva em consideração apenas o primeiro artigo definitivo de À Paz Perpétua. Como afirma Czempiel (1997, p. 138)

o fato de a paz já estar assegurada na União Européia, graças à democratização e com ajuda da organização internacional, não é apenas uma confirmação grandiosa das duas opiniões básicas de Kant. Essa constatação encerra também uma referencia importante à estratégia que uma política externa empenhada na garantia da paz deve desenvolver. Quem quiser pacificar um subsistema internacional deve democratizar os sistemas de dominação dos países e criar entre eles uma organização internacional.

A partir desta análise fica demonstrado que os pressupostos kantianos para a justiça e paz no plano internacional tem um enorme significado estratégico, além da importância para a filosofia da história e para teoria política.

Outro aspecto importante ao se pensar numa nova ordem internacional é o caráter do vínculo que deve ser proposto. É importante levar em consideração que o vínculo jurídico neste novo ordenamento internacional deve ser, como no modelo de república mundial, proposto por Höffe, de caráter subsidiário. Este caráter demonstra a cautela, tendo em vista o perigo de instituição de uma tirania mundial, o que talvez tenha influenciado Kant a não propor uma verdadeira constituição internacional.

A nova concepção deve levar em conta além da subsidiariedade, uma compreensão de soberania diversa da concepção clássica preconizada pelos realistas.

Para que haja progresso em termos de legitimidade e eficácia no direito internacional, e para que não mais seja considerado irrelevante no sistema internacional ou apenas um instrumento para maquiar interesses hegemônicos é imprescindível a superação ou em alguns casos de reformulação de algumas de suas categorias clássicas.

Nos séculos XVII e XVIII os pais do direito internacional clássico construíram-no com base em posições e suposições que caracterizavam a incidência de guerras e a natureza dos Estados na época. Estes estudiosos viviam num mundo no qual as guerras tinham uma configuração diversa e a estrutura da governança doméstica era diferente do contemporâneo. Neste contexto, o avanço para a consolidação de uma concepção absoluta e irrestrita de soberania e simultaneamente a delimitação do poder na esfera transnacional oferecia a mais promissora esperança de reduzir os conflitos violentos em ambas as esferas (SLAUGHTER, 1995, p.576).

No cenário político internacional contemporâneo a questão fundamental não é de falta, mas de abuso do poder decorrente soberania dos Estados (SLAUGHTER, 1995, p.577).

Fazendo um balanço sobre os custos sociais dos conflitos e das intervenções em Kosovo e Timor Leste, o secretário-geral das Nações Unidas Kofi Annan afirmou: “A soberania estatal, no seu sentido mais comum, está sendo redefinida... Estados são agora entendidos em sentido amplo”, para que sejam “instrumentos a serviço de seus povos e não vice-versa”  (COICAUD; DOYLE; GARDNER, 2002, p.1).

Evidencia-se neste contexto, a demanda por redefinição e reestruturação das categorias do direito internacional.

E uma das questões centrais neste sentido diz respeito à noção de Estado como ente estritamente racional no sistema internacional (o que implica também em considerá-lo o ator primário neste). Nesta visão, os Estados estão sempre preocupados com seu poder e com suas capacidades (militares, econômicas, diplomáticas, etc...) de influenciar os outros Estados, e são sempre guiados por estes interesses.

Rawls propõe que o sistema internacional seja pensado a partir dos povos (aos quais pode ser atribuído caráter moral, diferentemente dos Estado, no seu conceito tradicional).

Em seu modelo normativo, insere-se outro elemento para dirigir as decisões dos atores internacionais primários: a razoabilidade. Este elemento deve ter um peso igual ou maior que a razão de Estado. Mas quando o Estado é guiado exclusivamente pelos próprios motivos e ignora a reciprocidade nas relações com os outros Estados, então a racionalidade exclui o razoável (RAWLS, 2001, p. 36 e 37). A reciprocidade é pressuposto para justiça e paz no plano internacional.

A idéia de razoabilidade impõe a revisão do conceito de jus ad bellum (que em Rawls deve ser definido segundo de acordo com os princípios estabelecidos a partir do consenso sobreposto entre povos liberais), limitando-o estritamente a situações de autodefesa. Além da questão da soberania externa, deve também ser refletido sobre o plano interno. A autonomia exacerbada do governo para lidar com o próprio povo é um equívoco, e também deve ser restringida nos termos de um direito dos povos razoável (RAWLS, 2001, p. 33 e ss.)

O enfoque realista ignora a atuação da sociedade civil nas relações internacionais. O que torna possível a paz nas sociedades democráticas liberais é a natureza interna destas sociedades, nas quais a participação dos cidadãos é maior na ordem internacional (RAWLS, 2001, p. 38).

A perspectiva realista concebe os Estados a partir do que Kant afirma em relação às coletividades estatais que têm dono. Este pode fazer o que quiser com o Estado, de acordo com seus caprichos.

No caso da visão liberal (como a exposta acima) a sociedade civil, a opinião pública, tem extrema relevância nas decisões e objetivos a serem implementados pelo Estado. E seguindo Kant também, pode-se dizer que as chances de que uma democracia liberal inicie uma guerra é muito menor.

Instituições políticas representativas, proteção dos direitos das minorias e avanço no tema da cidadania dos refugiados, parecem ter maior probabilidade para avançar a longo prazo na questão da paz nacional e internacionalmente do que a emergência de novos Leviathans, como afirma Slaughter (1995, p.577).

O problema da legitimidade do direito internacional demanda cada vez mais discussão e torna-se central na medida em que a ordem internacional se afasta dos tradicionais sistemas “soft” de cumprimento de normas, em direção tanto a medidas mais rigorosas de aplicação coercitiva, como em direção a uma contração do que se entende por soberania e não-intervenção e a uma diluição das noções tradicionais de consentimento (HURRELL, 1999, p. 70).

Para concluir, pode-se sugerir que a concepção de soberania deva ser pensada de forma análoga à noção de arbítrio no conceito de direito de Kant.

Assim, o direito internacional poderia ser definido como o conjunto das condições que possibilitam a coexistência de soberanias. Ou ainda, o conjunto das condições pelas quais a soberania de um Estado pode estar em acordo com a soberania de outro, segundo uma lei universal da liberdade.

E enquanto o direito internacional não for concebido a partir da perspectiva indicada por Kant, a única paz perpétua que pode ser esperada é aquela encontrada nos vastos túmulos que recobrem os horrores da violência.

Referências Bibliográficas:

CAPPS, Patrick. The kantian project in modern international legal theory, European Journal of International Law, vol.12, n.6, 2001.

CARTY, Antony. The decay of international law?, Manchester University Press, 1986.

COICAUD, Jean-Marc; DOYLE, Michael W.; GARDNER, Anne-Marie, Globalization of human rights, United Nations University Press, 2002.

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HÖFFE, Otfried. Peace in Kant`s Theory of Justice. Goethe-Institut Online Editorial Team.

____. Visão República Mundial – Democracia na Era da Globalização. in: Veritas. Porto Alegre, dezembro de 2002.

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VIEIRA, Oscar Vilhena. Realinhamento constitucional, In: SUNDFELD, C., VIEIRA, O. V. (eds.) in: Direito global. São Paulo: Max Limonad, 1999.

 

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Publicada em 03.12.04 - Última atualização: 18 agosto, 2005.