Fracasso
escolar:
realidade ou
produção?
Priscila Valverde Fernandes
RESUMO
O artigo se propõe
a levantar algumas questões para o debate em torno das perspectivas
da avaliação psicológica na escola. A sociedade busca cada vez mais
o êxito profissional, a competência a qualquer custo e a escola
também segue esta concepção. Aqueles que não conseguem responder às
exigências da instituição podem sofrer com um problema de
aprendizagem. Assim, torna-se comum o surgimento em todas
instituições educativas de ‘crianças problemas’, ‘fracassadas’,
hiper-ativas, agressivas. Esses problemas tornam-se parte da vida da
criança. Porém, ao conceder este rótulo à criança, não se observa em
quais circunstâncias ela apresenta tais dificuldades, que tipo de
dificuldades existem, como elas aparecem, qual a função da escola
diante do fracasso, dentre outros aspectos.
Unitermos:
fracasso escolar, criança, produção social.
ABSTRACT:
The
article intends to raise a few questions about perspectives in of
the psychological evaluation in the school. The society searchs each
time more the professional success, the ability to any cost and the
school also follows this conception. Those that they do not obtain
to answer to the requirements of the institution can suffer with a
learning problem. Thus, the sprouting in all educative institutions
of becomes common ‘children problems', ‘failed ', ‘hiper-active’
and ‘aggressive’. These problems become part of the life of the
child. However, when granting this mark to the child, does not
observe in which circumstances it presents such difficulties, that
type of difficulties exist, as they appear, which the function of
the school ahead of the failure, amongst other aspects.
Uniterms:
failure pertaining to school, child, social production |
A cada época a relação
aluno-escola se configura de uma forma específica. Um número significativo
de crianças que foram encaminhadas com problemas de aprendizagem vem sendo
feitos aos psicólogos, surge então questionamentos a respeito do lugar que
o psicólogo vem ocupando nesse espaço, a maneira como a escola trabalha
com os alunos ‘problemas’ e ainda a inculpação de outrem para problemas de
não-aprendizado e repetência dos alunos.
É muito comum que as
crianças consideradas ‘problemas’ sejam provenientes de escolas públicas ou
ainda de camada pobres da população. Segundo Machado e Souza (1997),
diversas pesquisas foram realizadas relacionando fracasso escolar e pobreza,
questionando a idéia de culpa do aluno, em virtude do fracasso escolar,
destacando a má qualidade do ensino oferecido e a presença, nas práticas
escolares, de estereótipos e preconceitos existentes a respeito da criança
pobre. Essas idéias preconceituosas compactuam com a exclusão de crianças,
adolescentes e ainda adultos desse universo escolar. Deve-se desvencilhar da
idéia da criança carente que não aprende e atuar em bases mais realistas,
faz-se necessário problematizar e questionar o que se entende por carência e
quais as suas implicações na produção e superação do fracasso escolar.
O psicólogo tem
possibilidade de atuar de diferentes modos; entretanto, basicamente a queixa
escolar é entendida como uma dificuldade do aluno em aprender. O exame
psicológico que muitas vezes é realizado pode produzir diferentes
resultados, dependendo da classe social em que a criança está inserida. Nas
classes média e alta, a criança diante do diagnóstico poderá ser levada a
psicoterapias, terapias pedagógicas e diversas outros meios que propendem a
ajustar a criança a uma escola ideal. Já as crianças de classe pobre, de
posse desse laudo, encontram-se em uma situação de justificativa de sua
dificuldade na escola e futuramente a exclusão dela (PATTO, 1997).
A educação, assim como todas
as áreas sociais, vêm sendo “medicalizada” em grande velocidade,
destacando-se o fracasso escolar e seu reverso, aprendizagem, como objetos
essenciais desse processo. As aprendizagens e a não-aprendizagem muitas
vezes são relatadas como algo individual, inerente ao aluno, um elemento que
transcende, ao qual o professor não tem acesso, portanto, também não tem
responsabilidade. Inúmeras vezes o diagnóstico é centrado no aluno, chegando
no máximo até sua família, a instituição escolar, a política educacional
raramente são questionadas no cotidiano da escola. Aparentemente, o processo
ensino-aprendizagem iria muito bem, não fossem os problemas existentes nos
que aprendem (COLLARES & MOYSÉS, 1994).
Se o fracasso escolar se
mantém por tanto tempo, é preciso contextualizá-lo e “historicizá-lo” para
tirar-lhe o caráter de fenômeno natural que, por ser esperado, já que é
natural, não é problematizado nem questionado.
Primeiramente o que se deve
observar é que, enquanto fenômeno, é histórico, ou seja, nem sempre existiu
e se isto não ocorria deve-se ao fato de que a maioria da população
brasileira não tinha acesso à escola, exatamente os membros das classes
trabalhadoras, tanto urbanas, quanto rurais. É importante também perceber
quem ‘fracassa’, pois assim começa-se a deixar de fazer uma análise abstrata
para identificar concretamente quando ocorre e em que circunstâncias a
escola apresenta um rendimento diferenciado.
Não há como negar que as
condições materiais, concretas, de vida da maioria das crianças que
freqüentam a escola pública são de fato extremamente precárias, e se
encontram, freqüentemente, num quadro de alimentação deficiente, falta de
atenção, de carinho e de estímulos em casa, de informações, de contatos com
a língua escrita, além da necessidade de ajudar, seja trabalhando seja
tomando conta dos irmãos. Sabe-se também que não contam com auxílio e até
mesmo espaço apropriado para estudar. Conhecer essa realidade deve ser ponto
de partida para adequar a prática pedagógica e psicológica às crianças que
nela estão inseridas, e não como vem sendo feito, usar esse conhecimento
como álibi para eximir a escola de seu papel na produção do fracasso
escolar.
O modo de conceber o
significado do fracasso escolar está intimamente ligado à concepção de vida
e de vida escolar de quem se propõe a analisá-lo e entendê-lo. Deve-se ter
uma concepção que segue o caminho que desnaturaliza o fracasso escolar,
vendo-o como uma produção a serviço da exclusão e injustiças sociais. A
escola é uma instituição de nossa sociedade que se baseia em algumas idéias
do mundo ocidental como individualismo, constitucionalismo, direitos
humanos, igualdade, liberdade, democracia, livre-mercado, além da
competitividade, do capitalismo etc. Idéias essas que esse mundo tenta
"universalizar" através da escola.
Não prendendo o olhar aos
alunos ‘problemáticos’, percebe-se uma quantidade de práticas que os
objetiva. A prática de encaminhar essas crianças para psicólogos se amarra a
uma série de práticas paralelas, como psicólogos fazendo avaliações
diagnósticas, com testes, para encaminhamento, professores entendendo os
problemas das crianças como algo individual ou familiar, a requisição de um
laudo psicológico para a criança estar na classe especial, dentre outras.
A produtividade da escola
reside em produzir fracasso escolar, já que o "sucesso" escolar não é para
todos. Se tomarmos, porém, valores como direitos humanos, igualdade,
democracia, diríamos que a escola, por não tratar ou não saber tratar seus
usuários com igualdade, fracassa nos seus objetivos. De um jeito ou de
outro, o fracasso escolar não é intrínseco aos seus usuários (discentes),
mas diz respeito às relações sociais. Ou seja, diz respeito a como a
comunidade escolar se constitui e se relaciona entre si, com a sociedade
mais ampla e com o Estado. Diz respeito às relações de poder entre grupos
sociais. Se relações de poder, produção sócio-histórica não são dadas, não é
natural, é construção.
Talvez a priori seja
difícil imaginar soluções ou ações a respeito da relação aluno e escola em
contraponto com o fracasso escolar; entretanto, Machado e Souza (1997) falam
de certas atitudes que podem ser tomadas perante a escola, o aluno e a
família. Sugerem que ao invés de perguntar à mãe, numa anamnese, a respeito
de um dia na rotina da criança, é preciso conhecer como a professora entende
o problema de seu aluno, dando informações sobre o contexto de sala de aula.
Ao invés de colher informações sobre os primeiros anos de vida da criança,
pode-se obter dados sobre a sua história escolar, sobre a classe em que
está, e o que pensa sobre as queixas da professora. Ao invés de aplicar
teste de inteligência e projetivos, formam-se pequenos grupos onde são
criados espaços de expressão e comunicação, onde a criança fala de seu
aprendizado, de sua vida escolar e mostra suas potencialidades cognitivas e
expressivas. Paralelamente seria preciso trabalhar com as professoras que
encaminham as crianças. Os grupos de alunos e professores seriam feitos na
própria escola.
A superação da produção social e um conhecimento
mais consistente da realidade sobre o fracasso escolar deve,
necessariamente, ser resultado de um trabalho, de um esforço
interdisciplinar que aproxime cada vez mais o mundo acadêmico e as redes de
ensino na perspectiva de um duplo enriquecimento. Só assim pode-se
contribuir para que a escola exerça seu papel de transmissora de
conhecimento, sem esquecer que deve atuar com sujeitos do conhecimento
coerente com o objetivo de desenvolver cidadãos críticos, capazes de
construir uma sociedade democrática.
A atuação do psicólogo deve voltar-se para a
escuta da versão dos personagens envolvidos, sobre o processo de
escolarização em que estão inseridos, buscando refletir com eles os aspectos
que estariam produzindo o fracasso escolar. Esta reflexão compreende,
portanto, discussões sobre a política educacional e a história falada no
processo de escolarização, que envolve o histórico escolar do aluno, a
relação professor–aluno, a relação pais–aluno e a relação escola–pais, além
de aspectos referentes ao funcionamento institucional escolar. O psicólogo
ainda não deve se utilizar diagnósticos ou testes, visto que se é muito
falado de conhecimento científico pelo que se chama de senso comum, no qual
em nome de uma ciência supostamente neutra e imparcial, sob o encanto dos
números, pretende-se justificar qualquer idéia, como se fosse expressão de
uma verdade incontestável. O uso dos testes, ainda, faz com que se
estigmatize a criança e a torne ‘prisioneira’, para o resto de sua vida
escolar, de uma classe especial. Ao contrário disso, o profissional de
psicologia deve fazer uma intersecção entre a realidade escolar, a criança,
a família, tentando suprimir a idéia de ‘carência cultural’, pelos lugares
por onde ele atua. Sendo assim, poderá contribuir para que o fracasso
escolar não seja considerado uma realidade e nem exista como produção.
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Referências Bibliográficas:
COLLARES, C. A. L. e MOYSÉS, M.
A. A. A transformação do espaço pedagógico em
espaço clínico (a patologização da educação) Série
Idéias n. 23. São Paulo: FDE, 1994
p.:
25- 31 [artigo científico] Disponível em:
www.crmariocovas.sp.gov.br
. Acesso em: maio de 2004.
MACHADO A. M. Avaliação e Fracasso: a produção
coletiva da queixa escolar. In: AQUINO, Julio Groppa (Org) Erro e
Fracasso na Escola: alternativas teórico práticas. 2ª ed. São Paulo:
Summus, 1998. p. 73-79
______. Souza, M.P.R. (1997). As crianças
excluídas da escola: um alerta para a Psicologia. In: A. M. Machado & M.P.R.
Souza. (orgs.). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São
Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
PATTO, Maria Helena.
Para
uma crítica da razão psicométrica.
Psicologia USP. São Paulo, vol. 8, n°1, p. 47-62, 1997.