Por Laerte Ziggiati
Folhetim:
Professor Maurício, que universidade é esta?
Maurício
Tragtenberg: A universidade está em crise e isso ocorre porque
a sociedade está em crise. O tema é amplo, abrangendo a relação
entre dominação e saber, a relação entre o intelectual e universidade
como instituição ligada à dominação, ou seja, a universidade anti-povo.
A universidade não é uma instituição neutra, é uma instituição de
classe onde as contradições de classe aparecem. Para obscurecer
esses fatores ela desenvolve uma ideologia, um saber neutro, cientifico,
quer dizer, a neutralidade cultural e o mito de um saber “objetivo”
acima das contradições sociais. Isso se acirrou a partir de 1964,
quando a Universidade foi praticamente apartada da realidade, se
encastelou. Nesse momento surgiu a figura do intelectual burocrata,
do funcionário intelectual, que mais reproduz do que produz conhecimento
próprio.
Folhetim:
Aparentemente ela distribui o saber “objetivo”. Mas qual deveria
ser a função real da universidade?
Maurício:
Hoje a universidade forma a mão-de-obra destinada a manter nas
fábricas o despotismo do capital. Nos institutos de pesquisa cria
aqueles que deformam dados econômicos em detrimento dos assalariados.
Nas escolas de Direito forma os aplicadores de legislação de exceção.
Nas escolas de Medicina aqueles que irão convertê-la numa medicina
do capital ou utiliza-la repressivamente contra os deserdados do
sistema. Em suma, trata-se de um “complô de belas almas” recheadas
de títulos acadêmicos, de doutorismo substituindo o bacharelismo,
de uma nova pedantocracia, da produção de um serviço do saber.
Folhetim:
Existe gente na Universidade preocupada com a reforma universitária.
Mesmo assim...
Maurício:
A coisa é feita às cegas. Existe a figura do planejador tecnocrata
formado pelas faculdades de educação a quem importa discutir os
meios sem discutir os fins da educação, confeccionar reformas educacionais
que são verdadeiras “restaurações”. Formam o professor-policial,
aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida
do aluno, seu conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação
do conhecimento é substituída pelo controle sobre o parco conhecimento
produzido pelas nossas universidades. O controle de meio se transforma
em fim e o campus universitário cada vez mais parece um universo
concentracionário que reúne aqueles que se originam das classes
alta e média, professores e alunos, “herdeiros” potenciais do poder
através de um saber minguado atestado por um diploma.
Folhetim:
Qual o mecanismo através do qual a Universidade mantém sua
característica classista?
Maurício:
A Universidade classista se mantém através do poder exercido
pela seleção dos estudantes e pelos mecanismos de nomeação para
os professores. Na universidade mandarinal do século passado o professor
cumpria a função de “cão de guarda” do sistema, ou seja, como produtor
e reprodutor da ideologia dominante, chefe da disciplina do estudantado.
Cabia à sua função professoral, acima de tudo, inculcar as normas
de passividade, subserviência e docilidade através da repressão
pedagógica. A transformação do professor “cão de guarda” em “cão
pastor” acompanha a passagem da universidade pretensamente humanística
e mandarinesca à universidade tecnocrática, onde os critérios lucrativos
da empresa privada funcionarão para a formação das fornadas de “colarinhos
brancos” rumo as usinas, escritórios e dependências ministeriais.
E o mito da assessoria, do posto publico que mobiliza o diplomado
universitário.
Folhetim:
Como o senhor explica o fato de que a Universidade também mantém
alguns cursos críticos?
Maurício:
Os “cursos críticos” desempenham a função de um tranqüilizante
no meio universitário. Essa apropriação da crítica pelo mandarinato
universitário, mantido o sistema de exames, a conformidade ao programa
e o controle da docilidade do estudante como alvos básicos, constitui-se
numa farsa, numa fábrica de boa consciência e delinqüência acadêmica,
aqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder. Por isso
é necessário realizar a crítica da “crítica”, destruir a apropriação
da crítica pelo mandarinato universitário. Não se trata de discutir
a apropriação burguesa do saber ou não-burguesa do saber, e sim
a destruição do “saber institucionalizado”, do “saber burocratizado”
como único “legitimo”.
Folhetim:
A função principal da Universidade seria então a de reproduzir
a ideologia do sistema da dominação?
Maurício:
A Universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante
não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela
forma. Por exemplo, o sistema de exames, esse batismo burocrático
do saber. O exame é a parte visível da seleção. A parte invisível
é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de “exclusão” que possui
a empresa em relação ao futuro empregado.
Informalmente, docilmente, ela “exclui” o candidato. Para o professor
há o currículo visível tipo publicações, conferências e atividade
didática, e há o currículo invisível, esse de posse da chamada “informação”,
que possui espaço na Universidade, onde o destino está em aberto
e tudo é possível acontecer. Há os “ratos” das salas privadas, os
“ratos” da Reitoria. É através da nomeação, da cooptação dos mais
conformistas, nem sempre os mais produtivos, que a burocracia universitária
reproduz o canil dos professores.
Folhetim:
O que é essa “delinqüência acadêmica”?
Maurício:
Essa “delinqüência acadêmica” aparece em nossa época longe de
seguir os ditames de Kant ouse conhecer. Se os estudantes quiserem
conhecer os espíritos audazes da nossa época, é fora da Universidade
que irão encontra-los. A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou
a profissão acadêmica. É a razão pela qual os filósofos da revolução
francesa se autodenominavam de intelectuais e não de acadêmicos.
Isso ocorria porque na Universidade havia hostilidade ao pensamento
critico avançado. O projeto de Jefferson para a Universidade de
Virginia, concebida para a produção de um pensamento independente
da Igreja e do Estado de caráter critico, foi substituído por uma
universidade que mascarava a usurpação e monopólio da riqueza, de
poder. Isso levou os estudantes da época a realizarem programas
extras curriculares onde Emerson se fazia ouvir, já que o obscurantismo
da época impedia sua entrada nos prédios universitários.
Folhetim:
Além de pouco audaz parece que a “delinqüência acadêmica”
se preocupa mais com o titulo do que com o ensino.
Maurício:
É que a política das “panelas” universitárias de corredor e
a publicação a qualquer preço e um texto qualquer se constituem
o metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe
uma simples pergunta: o conhecimento a quem serve e para que serve?
Folhetim:
A quem e para quê?
Maurício:
Em nome do “atendimento à comunidade” e do “serviço público”, a
universidade tende cada vez mais a se adaptar a qualquer pesquisa
a serviço dos interesses econômicos hegemônicos. Nesse passo a universidade
brasileira oferecerá disciplinas como as existentes na Metrópole:
cursos de escotismo, defesa contra incêndios, economia doméstica
e datilografia a nível de secretariado... (risos) pois já existe
isso em Cornell, Wisconsin e outros estabelecimentos legitimados.
A universidade brasileira se prepara para ser uma “multiversidade”,
isto é, ensina tudo aquilo que o aluno possa pagar. A universidade
vista como prestadora de serviços corre o risco de enquadrar-se
numa “agência de Poder”, especialmente após 68, com coisas do tipo
Operação Rondon. O assistencialismo universitário não resolve o
problema da maioria da população brasileira: o problema da terra.
Uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a
pagá-los perde o senso da discrição ética e da finalidade social
de sua produção. E uma “multiversidade” que se vende no mercado
ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda. Isso tudo
encoberto pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu produto.
Já na década de 30, Frederic Lilge, em seu livro “The Abuse of Learning:
The Failure of German University” acusava a tradição universitária
alemã da neutralidade acadêmica de permitir aos universitários alemães
a felicidade de um emprego permanente, escondendo a si próprios
a futilidade de suas vidas e seu trabalho.
Folhetim:
No 1º Seminário de Educação Brasileira a situação parecia
ser outra. Havia bastante gente preocupada com a responsabilidade
social do educador.
Maurício:
Realmente havia. Mas eu não me iludo com congressos. A maioria dos
congressos acadêmicos universitários serve de “mercado humano” onde
entra contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos
aos encontros entre gerentes de hotel onde se trocam informações
sobre inovações técnicas. Revê-se velhos amigos e se estabelecem
contatos comerciais. Estritamente falando, o mundo da realidade
concreta é muito generoso com o acadêmico, pois o titulo torna-se
o passaporte que permite o ingresso nos escalões superiores da sociedade:
a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal. O problema
da responsabilidade social é escamoteado. A ideologia do acadêmico
é não ter nenhuma ideologia, ele faz fé de apolítico, servindo assim
à política do poder. A filosofia racionalista do século 18 legou
uma característica do verdadeiro conhecimento: o exercício da cidadania
implicava no soberano direito de crítica à autoridade, aos privilégios
e tradições. O serviço público prestado por esses filósofos
não consistia na aceitação indiscriminada de qualquer projeto,
fosse destinado à melhora de colheitas, ao aperfeiçoamento do genocídio
de grupos indígenas a pretexto de “emancipação” ou políticas de
arrocho salarial, que converteram o Brasil no detentor do triste
recorde de primeiro país no mundo em acidentes de trabalho, pois
a propaganda pela segurança no trabalho emitida pelas agências oficiais
não substitui o aumento salarial.
Folhetim:
O senhor fala no discurso apolítico do acadêmico. Não há
nenhum discurso político na Universidade?
Maurício:
A separação entre fazer e pensar se constitui numa das doenças que
caracteriza a delinqüência acadêmica. O falar é às vezes muito pra
trás. Ao analisar a crise de consciência dos intelectuais americanos
que deram o aval à escalada no Vietnã, Horwitz notara que a disposição
que eles revelaram no planejamento do genocídio estava vinculada
à sua formação, a sua capacidade de discutir meios sem nunca questionar
os fins, a transformar os problemas políticos em problemas técnicos,
a desprezar a consulta pública preferindo as soluções de gabinete,
consumando o que definiríamos a traição dos intelectuais.
Folhetim:
Como então combater o academicismo?
Maurício:
Fundamentalmente, a realidade é dialética. A mesma realidade
que cria o academicismo, que cria o saber oficial, que cria a ideologia
oficial, que se esclerosa e se cristaliza através dos manuais oficiais
e livros didáticos, essa mesma realidade cria também a contra-ideologia.
Essa mesma realidade cria o seu oposto.
Folhetim:Qual
a alternativa para que a Universidade deixe de ser, para usar palavras
suas, um “depósito de alunos”, ou um “cemitério de vivos”?
Maurício:
A alternativa é a criação de canais de participação real de
professores, estudantes e funcionários no meio universitário que
se oponham à esclerose burocrática da instituição. A autogestão
pedagógica teria o mérito de devolver à Universidade um sentido
de existência, ou seja, um aprendizado baseado numa motivação de
participação e não em decorar determinados “clichês” repetidos semestralmente
nas provas que nada provam, nos exames que nada examinam, onde o
aluno sai da universidade com a sensação de estar mais velho e apenas
com um dado a mais: o diploma, que em si perde valor na medida em
que perde sua raridade. A saída é a autogestão. Só que esta solução
não se dá a nível interno da Universidade, sendo uma questão da
sociedade global. Não se pode ter uma Escola pra frente com Estado
pra trás.
Folhetim:
Então, qual o poder da Universidade?
Maurício:
A Universidade é o reflexo das contradições sociais, ela não as
cria mas reflete.Pelo fato de ser um reflexo, o seu papel não é
determinante no corpo social. Não é tendo o poder na Universidade
que se tem o poder na sociedade global. Isso só pode ser um sonho
de uma noite de verão, não é? O messianismo acadêmico é uma desgraça.
Agora, na medida em que a Universidade reflete contradições, existem
intelectuais críticos e intelectuais fascistas na Universidade em
si, a questão do pensamento crítico na Universidade, não se resolve
internamente e sim no plano político maior, no plano das relações
de poder. Se no todo social há espaço para as contradições aparecerem,
se o operário tem o direito de fazer greve, se ele tem direito de
organizar o seu sindicato independente da burocracia do Estado e
da política, então na Universidade há espaço para a luta. Embora
a opção seja pessoal. Se não se juntar a grupos, a associações,
a partidos, a ação será ineficiente. Só que as associações que se
criaram neste País, os partidos políticos, como dizia o velho Oliveira
Vianna, são associações públicas de direito privado, e a última eleição mostrou isso
fundamentalmente. São meros clãs parentais, meros clãs feudais,
meros grupos de pressão dos interesses econômicos. A formação de
outros agrupamentos depende da dinâmica social e nem tanto do voluntarismo
do segmento acadêmico que porque leu Marx, leu Weber, sai na rua
e acha que vai formar o partido a, b ou c. Isso também é uma coisa
típica do messianismo intelectual. Fundamentalmente, depende da
dinâmica da organização dos trabalhadores industriais e burocráticos.
Agora, apressar pode ser negativo, estar atrás também é negativo,
mas estar muito a frente é mau porque fica na vanguarda sem retaguarda.
Nós vimos o que foi 64: excesso de vanguarda sem retaguarda, quer
dizer, muito chefe e pouco índio.
Fonte:
Folhetim: Folha de S. Paulo, 03 de dezembro de 1978