Ano I - Nº 01 - Maio de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178
MAURÍCIO TRAGTENBERG
A
IMPORTÂNCIA DA LITERATURA PARA O HOMEM DE CULTURA UNIVERSITÁRIA, QUALQUER QUE
SEJA SUA ESPECIALIZAÇÃO *
Separata da Revista
de História Nº 44
São Paulo- Brasil
A mensagem literária dirige-se hoje para um
homem que vive numa época de especialização, que exige o culto às ciências
naturais como o único digno de si. Partindo dessa premissa, uma evidência nos
aponta: encontramos médicos, engenheiros e advogados, mas não o “homem”
inserido nessas profissões. Essa especialização diferencia-os do resto da
humanidade. Submergidos em suas atividades estes não têm oportunidade para
serem no meio dos homens, “iguais entre iguais”.
A especialização é o signo de nossa época. O gigantesco desenvolvimento do conhecimento nas ciências naturais, a centralização de esforços dos Institutos Universitários em torno das pesquisas físicas longe de prescindirem de um sentido humano à sua atividade, colocam-no com mais dramaticidade.
É o espantoso
desenvolvimento das ciências naturais que revela o fato do homem achar-se num
período de transição. Os velhos valores fenecem e os novos não foram ainda
encontrados. Esse vácuo é preenchido pela incerteza do homem quanto ao seu
destino [1]
Numa época de
especialização [2] , a literatura define os ideais de um
período de crise e transição. Daí toda grande obra literária ser de um período
de transição (veja-se a importância da mensagem de Dante, Dostoievski ou
Kafka).
Pois é nesses períodos que se põe dramaticamente ao homem essa interrogação: qual o sentido de sua vida, qual a significação do mundo que o cerca?
O médico, engenheiro,
advogado, encarnam especializações necessárias ao exercício de suas atividades,
mas têm em comum, um atributo, o de serem humanos e o de enfrentarem idênticos
problemas numa sociedade em transição.
Somos filhos de uma
sociedade individualista e liberal e caminhamos para um outro tipo de sociedade
planificada. Como dar-se-á tal mudança? Quais os agentes desse processo? Não o
sabemos. O que sabemos é que assistimos a um espetáculo de crise, de transição,
onde os velhos quadros sociais desaparecem e os novos ainda não se
estruturaram.
A literatura é uma forma
de resposta a essa interrogação. Ela, pelos escritos de Homero transmitia-nos
uma mensagem corporificando um tipo de homem: o cavaleiro e o nobre; pela pena
de Hesíodo, transmitia-nos uma ética do trabalho e sua dignificação como
sentido da vida [3] . Os escritos de Joyce, Kafka e Faulkner,
constituem uma mensagem adequada aos tempos novos: as formas clássicas do
romance estão fenecendo; cabe ao homem descobrir uma nova linguagem para
exprimir novas experiências de uma nova vida [4] .
De todas as formas de
arte a literatura é a mais próxima da vida e a mais sintética, pois reúne a
arquitetura, quando no processo de composição do romance, a música, na
estrutura melódica da frase, a pintura, no traçar o caráter dos personagens, a
filosofia, ao definir seus ideais de vida. Daí sua importância para a cultura.
Sendo ela acessível aos
diferentes especialistas, poderá formular novas formas de ação ética e padrões
morais. Como um sismógrafo poderá ela captar o sentido interno da mudança que
se opera no mundo. Para tal, conta com a intuição artística, que faz com que as
mudanças sejam pressentidas antes pelos seus possuidores, passando depois aos
campos sistemáticos do conhecimento.
A transição do século XIX
e XX foi assinalada, em primeiro lugar, pelos impressionistas, pelo naturalismo
literário e posteriormente pelos teóricos de política, economia e filosofia.
A literatura pertencendo
a um dos campos assistemáticos do conhecimento tem esse poder. Pode auscultar
as mudanças que se operam no mundo e pela imaginação de seus grandes nomes,
definir ao homem comum, novos caminhos.
Se não conseguir
formulá-los com nitidez, pelo menos servirá como testemunho de uma época. A
época que produz Camus, Kafka e Faulkner [5] , já escolheu seu destino: eles testemunham
por ela.
Na época moderna à
literatura cabe um papel integrador. O papel de superar o abismo existente
entre a arte e a vida, arte e ciência, na medida em que ela mesma é concebida
como uma forma de conhecimento dessa totalidade, que é o homem.
Cabe ao escritor viver
plenamente sua época, pois só atinge a grandeza, aquele que sentiu seu próprio
tempo. Este é o segredo da universalidade de um Goethe, Balzac ou Cervantes.
Nessa tentativa de traçar
com lucidez os quadros do mundo, onde se desenrola o drama humano, num período
de transição, é que a literatura deixará de ser o “sorriso da sociedade”, para
ser testemunho de uma época, uma mensagem acessível a todos, que permitia ao
homem independente de sua especialidade sentir-se junto ao seu semelhante, como
“igual entre iguais”, cumprindo um sábio preceito chinês.
Se as profissões
diferenciam o homem, cabe à arte uní-lo em torno de ideais comuns. Isso ela
pode fazê-lo, pois sua linguagem é universal e a condição humana idêntica em
toda a face da terra.
Maurício Tragtenberg
Licenciado em história pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
* - Trabalho premiado – prêmio Graciliano Ramos – no concurso de literatura para os universitários do país, instituído pelo Ministério de Educação e Cultura e pela revista O Cruzeiro, conforme sua publicação de 2-1-60.
[1] - A respeito da incerteza do homem quanto ao seu destino individual, num mundo em mudança, existe uma vasta bibliografia, cujos pontos de vista mais relevantes aparecem expostos em:
S. Freud – Civilisation and its discontents. Londres, 1930.
J. Ortega y Gasset – La rebelión de lãs massas. Madri, 1930.
Huizinga – Entre las sombras Del mañana. Madri, 1936.
Niebuhr – Moral and imoral society. A study in ethics and politics. Nova York, 1932.
Os trabalhos acima estão pautados por uma visão romântica e pessimista ante os problemas da técnica numa sociedade de massas e suas repercussões morais, políticas e econômicas.
Uma posição mais construtiva e realista em relação aos mesmos fenômenos se encontrará em:
Karl Mannheim – Libertad y Planificacion Social. México, 1946.
Karen Horney – The neurotic personality of our time. Londres, 1937.
Erich Fromm – Psicanálise da sociedade
contemporânea. São Paulo, 1959.
[2] - A respeito da tendência irrecorrível de nossa civilização à especialização, veja-se Gerth e Mills – “From Max Weber”, cap. Science as vocation. Londres, 1955.
[3] - Sobre a importância da literatura como “formação do homem” em Homero e Hesíodo, veja-se, Werner Jaeger – Paidéia – I Volume,\ págs. 53-93. México, 1955.
[4] - O “tipo ideal” de romance construído arquitetonicamente é o de Balzac. “La Commedie Humaine” representa o ideal linear do romance do século XIX. Com “Lês Faux Monnayeurs” de A. Gide, este esquema de desenvolvimento linear da ação do romance deixa lugar à simultaneidade das ações. Esta ruptura com a construção tradicional de romance é salientada por Claude Edmonde-Magny quando escreve: “en écrivant “Les Faux Monnayeurs”, ce modèle de “sur-roman”, Gide refuse la conception traditionelle du genre, avec une vigueur, à peine moins grande, que celle de son ami Paul Ambroise” in “Histoire du roman français depuis de 1918, pág. 229.” Paris, 1950. Joyce representa uma nova experiência construtiva utilizando um tema clássico. Diferentemente dos modernos é introspectivo. O monólogo interior é a razão de Dédalo, é uma forma de existência. Joyce lançou essa técnica já descoberta anteriormente por um francês, Edouard Dejardin. Antes de Joyce, já o inglês Stephen Hudson dele já fazia uso. Até o nosso semiconhecido Adelino Magalhães já o usava.
[5] - Em Faulkner o
diálogo não é uma relação entre duas consciências, é uma relação com vistas à
ação. Ele não exclui inteiramente o monólogo, como por exemplo em “Tandis que
j’agonise”. Nota Claude Edmonde Magny, que “chez Faulkner l’analyse intérieure
alterne perpetuellement avec l’énoncé des comportements” in L’Age du roman
americain, pág. 50. Paris, 1948. No entanto, sua obra, como a de Hemingway,
Dos Passos e Caudwel estrutura-se sob modelos behaivoristas inspirados na
técnica do cinema norte-americano. A respeito das influências do cinema no
romance americano e franc6es após-guerra, veja-se as pertinentes observações de
Magny, ob. cit., pág. 11.