Ano I - Nº 01 - Maio de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178
MAURÍCIO TRAGTENBERG
Separata da Revista
ALFA. Nº 1. Departamento de Letras da F.F.C.L. de Marília
Marília – 1962
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EXPLICAÇÃO PRELIMINAR
O presente “Ensaio” tem como finalidade básica analisar o tema do “absurdo” no seu “desenvolvimento histórico”, estruturado por Dostoievski em seus romances, desenvolvido por Franz Kafka no sentido transcendental e por Albert Camus no sentido imanente.
Pretende ele analisar também o tema da incomunicabilidade ligado ao “absurdo”, partindo de textos considerados básicos na bibliografia kafkiana, quais sejam, “O Castelo” e seu “Diário”, evitando cair numa análise estilística tão a gosto dos adeptos do modern criticism [1] como a uma redução sociologística da obra de arte, cultivada pelos epígonos modernos de Taine.
Crê o Autor, que o equilíbrio entre o aspecto psicológico, literário e histórico permite uma visão mais “integrativa” do universo literário, sem cair nos reducionismos atraentes, porque fáceis, de cunho estilístico ou sociologizante. Nessa linha de equilíbrios integram-se a obra de Antônio Cândido “Panorama da Literatura Brasileira” e a de Hugo Friedrich na sua Die struktur der modern lyrik (von Baudelaire bis zur Gegenwart).
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O grau de validade de uma crítica literária situa-se entre o nexo histórico que capta a realidade objetiva e a análise psicológica e literária que constitui seu suporte subjetivo; da interação desses elementos é que a criação literária recebe sua configuração última, adquirindo autoconsciência dos problemas que analisa e das medidas propostas.
A criação intelectual, como toda criação, nasce e se desenvolve num complexo cultural determinado, onde os fatores objetivos – econômicos ou ideológicos – são captados pelo intelecto em conexão com seu suporte subjetivo – o psicológico.
Portanto, impõe-se a análise do pensamento intelectual, - o “espírito subjetivo” da inteligentsia – dentro de um marco sócio-cultural, donde ele emerge individualmente diferenciado.
Um dos fatores mais significativos da criação intelectual na atualidade, consiste em que esta, contrariamente às civilizações anteriores, não é exercida por uma casta fechada mas por uma camada, que em sua gênese aparece desligada de qualquer classe.
Esse fenômeno sociológico é que determina a universalidade do pensamento que já se inicia com o humanismo e cristaliza-se na “Ilustração”, na sua forma leiga e mundana, oposta à “sacral”.
Criado pela Revolução francesa, surge esse estrato social destinado a salvaguardar a herança intelectual, cumprindo o mesmo papel que as castas sacerdotais no mundo antigo.
Enquanto que os homens que tomam parte ativa na produção social, provindos de diferentes classes, têm um estilo de vida e pensamento correspondente à sua “situação de classe”, os intelectuais, além de trazerem o cunho de sua afinidade classista, são também determinados pelo meio intelectual este contém em si todos os elementos contraditórios da vida social, e fornece aos intelectuais os elementos potenciais que os habilita a desenvolver uma sensibilidade social, sintonizada com as forças em conflito.
Duas são as linhas de ação adotadas pelos intelectuais para sair dessa posição intermediária: filiação voluntária a uma das classes antagônicas ou o exame de suas próprias raízes sociais que os condicionam a defender a herança cultural da sociedade em seu conjunto. Em relação à primeira atitude, encontramo-los fornecendo teóricos para os conservadores, que, devido a sua própria posição social, dificilmente chegavam a autoconsciência teórica de sua situação, e fornecendo teóricos aos movimentos populares. Marx, Engels e Trotsky são a materialização da inteligentsia “pequena-burguesia” pelo estilo de vida, e por seu contacto com o povo, que os habilitava à posição de porta-vozes dos seus interesses mediatos e imediatos.
A possibilidade de se aliar a classes que não pertencem era dada originariamente aos intelectuais, porque podiam adaptar-se a qualquer ponto de vista e devido também a sua posição intermediária entre as duas grandes classes sociais.
Essa decisão voluntária tinha a virtude de unir os intelectuais a essa classe durante a luta, mas nem por isso eles se libertavam da desconfiança dos membros dela originários.
Segundo
Karl Mannheim, tal desconfiança é um sintoma de uma realidade social: a assimilação
dos intelectuais a uma classe estranha é limitada por suas características
sociais e psíquicas que lhes são próprias. Somente à luz dessa desconfiança
é que se entende o fanatismo dos intelectuais radicados nos movimentos totalitários,
sejam fascistas ou estalinistas. Esse fanatismo é uma compensação psicológica
pela falta de integração mais profunda numa classe e pela necessidade de vencer
a própria insegurança e a desconfiança da mesma classe, à qual pretende ele
se ligar.
A inteligentsia como parte orgânica de uma estrutura social determinada, dela recebe sua configuração específica – conservadora ou revolucionaria – e a amplitude e limites lógicos de seus problemas.
Assim a inteligentsia russa que trocou os diplomas universitários por uma bomba, o estudo pela ação conspirativa, representada por Netchaev, Bakunine e Vera Figner, era fruto de uma estrutura social feudal e do absolutismo político; somente a industrialização e o aparecimento das Dumas é que permitiu o surgimento dos Plekhanov ou Jordânia.
Enquanto isso a inteligentsia ocidental, formada na tradição parlamentar ingressava nas universidades oficiais. No entanto, à medida que entrava em contacto com as realidades fundadas pela revolução industrial ela se ligava, sob a ação da propaganda ou da vaidade, ao totalitarismo, seja nazista, fascista ou estalinista, tendo um destino trágico.
Ela é a parte da sociedade que reflete mais diretamente sua ascensão ou decomposição. Sua deterioração, seu aniquilamento físico, a perda de sua liberdade de crítica, mostram o processo de decomposição das elites dirigentes e do estalinismo.
O nazismo e o fascismo sabiam bem o que faziam, quando exterminaram a inteligentsia independente de vinculações estamentais, suprimindo-a ou transformando-a em simples parafuso de máquina burocrática, estatal ou partidária.
No entanto, a inteligentsia não pode flutuar no ar: coloca-se o problema de orientá-la num sentido positivo, pois ao ver-se privada do apoio dos grupos progressistas da sociedade, ela volta-se contra si mesma erigindo sua “torre de marfim”.
Ela deve procurar esse apoio nos grupos sociais ascendentes, pois ela é a materialização do espírito histórico da cultura, em oposição aos grupos sociais decadentes que tomam e da cultura, devido a uma “falsa consciência” de sua situação específica – grupo decadente – identificando-a com a situação da sociedade global.
Sua obra constitui a materialização das tensões sociais numa alma pequeno-burguesa, isso aparece na sua dicotomia: profissionalmente é gerente de uma companhia de seguros, e subjetivamente é um intelectual, um artista.
O vácuo existente entre esse “desdobramento” foi preenchido pela crise. Essa antinomia marcou sua existência, tornando-o um tipo introvertido. Daí, seu estilo alegórico e o tema da “incomunicabilidade” entre os homens, vivido por José K. no “O Processo” e pelo agrimensor no “O Castelo”.
Justifica-se essa atitude de reserva, pois ele, como intelectual, é olhado com suspeita pelo seu próprio grupo social e familiar, por esses burgueses rotineiros que compensam suas frustrações quotidianas no culto fetichista do cheque bancário que lhes garante a segurança financeira, da religião, que assegura um passe livre ao céu e do Estado, supremo protetor de suas propriedades.
Franz Kafka choca-se com uma organização social que impõe como “anormal” toda atividade que não vise um lucro, não propicie uma felicidade sonante, como a do escritor que faz profissão do mental e do “ocioso”, num mundo de valores pragmáticos e contábeis.
O drama de F. Kafka é o drama de um membro de uma família pequeno-burguesa.
A “incomunicabilidade” kafkiana não é uma categoria abstrata de caráter extraterreno, ela pertence à “contingência”, “ao quotidiano” da vida de cada um.
Ela é um “recurso” literário e artístico refinado como conseqüência de sua oposição ao Pai. Segundo seu próprio testemunho, toda sua obra advém do conflito com seu pai. O pai, um tipo bonachão, audacioso, de temperamento brutal e dominador, o filho, o oposto: um “intelectual”, um contemplativo.
A incomunicabilidade leva a oposição de caracteres; daí advém uma luta surda e Kafka se sente como um criminoso que espia um crime que não cometeu.
É a mesma sensação de esmagamento que José K. sente ao enfrentar o Tribunal, de um criminoso sem culpa formada e formalizada, julgado sem saber por quem e condenado sem saber como.
É uma antevisão kafkiana da tragédia judaica no processo da 2ª guerra mundial, - a de perseguidos sem culpa, pela onda totalitária.
No entanto, deve-se ressaltar que seu desligamento de um grupo social ascendente impediu-o de levar sua obra a uma espécie de uma tomada de consciência de uma realidade universal e ao mesmo tempo particular: a do homem do século XX, entre duas guerras.
Essa unilateralidade sociológica é compensada por qualidades pessoais: o sentido kafkiano da arte como atividade vital e sua sensibilidade em captar o que há de trágico e agrotesco no quotidiano do homem moderno.
Se O Processo é o retrato da desintegração da personalidade humana ante um Estado totalitário e impessoal, América é uma critica severa a uma civilização que erige como ideais de vida, a televisão, a geladeira ou o automóvel.
Na preparação do caminho para a interpretação do “absurdo” na vida humana situa-se o homem “dostoievskeano”, que aparece como negação de um racionalismo de perfumaria, de um Botroux ou de um Alain.
No homem “dostoievskeano” a alma é puro caos. Encontramos ébrios por desejo de pureza (Marmeladov), homens que violam virgens por respeito à inocência. O amor e o ódio, a volúpia e a fraqueza confundem-se em “transposições” ininterruptas.
Svidrigailov, Fedor Karamazov e Raskolnikov são dissolutos, no entanto estão separados por um abismo dialético. A volúpia de Svidrigailov e a depravação “fria” de Karamazov representam “a alegria de viver”. Raskolnikov encarna a maldade intelectual unida à perversão.
Dostoievski decompõe a volúpia e remonta às suas raízes, às suas composições mais misteriosas, insistindo na antinomia entre o “mundo” e o “eu”, o aniquilamento do homem em favor de forças invisíveis.
É o profundo sentido do “absurdo da vida”, que tem suas raízes em Dostoievski, ramificando-se em Albert Camus com La Peste num sentido “imanentista” e assumindo “traços transcendentais” em Franz Kafka.
O
“absurdo” atinge sua máxima expressão em Dostoievski, na lenda do Grande Inquisidor
nos Irmãos Karamazov e no suicídio de Kirilov n’Os Possessos.
Na legenda do Grande Inquisidor, Cristo desce à terra na época da inquisição espanhola. O Grande Inquisidor justifica sua missão terrena mostrando a Cristo que ele dando liberdade ao homem – “a verdade vos tornará livres” – “eu sou a verdade” – deu-lhe um fardo pesado para suas costas fracas e o Grande Inquisidor “tirando-lhe a liberdade em troca da segurança” revelou-se seu amigo, ao mesmo tempo em que transferia toda responsabilidade dos atos humanos na terra para si, deixando para o homem o pão terrestre. Em nome do homem e do cristianismo o Grande Inquisidor poderia atirar Cristo à fogueira.
Nessa legenda, além de Dostoievski mostrar todo o processo de burocratização da Igreja Romana a quem ele odiava por ser ortodoxo, ele nos mostra que toda idéia religiosa ou social desenvolve-se sob o signo do absurdo.
Em sua fonte original a idéia é limpa e pura: o cristianismo na pessoa do Cristo. Quando porém ela se institucionaliza – Igreja, dogma e clero -, ela se nega a si própria. Daí o cristianismo poder findar em Inquisição, como o culto à “deusa razão” terminou no “despotismo da liberdade”, contra a tirania, de Robespierre.
Se Deus não existe, tudo é permitido, então eu gozo de uma liberdade ilimitada. O máximo de liberdade consiste na prova de meu aniquilamento. Eu me mato para provar a minha liberdade e ao mesmo tempo que Deus não existe.
Esse é o “absurdo” do homem que vai da liberdade ilimitada ao auto-aniquilamento.
Em La Peste de Albert Camus esse absurdo tem um aspecto imanentista; é a morte; uma multidão de ratos invade uma cidade, espalhando-a tornando-a quotidiana. A coabitação com a morte tira dela qualquer aspecto “trágico”. É o inumano bordejando o humano: ele é imanente à própria existência.
Em Franz Kafka o “absurdo” é transcendental; reside na incomunicabilidade do homem com o homem, formando uma trama de relações pessoais “sem” sentido, impostas por circunstancias alheias ao homem. O agrimensor n’O Castelo não se comunica com a autoridade suprema, Klamm. O personagem de O Processo José K., não se comunica com uma justiça, que permanece eternamente na penumbra, assim como Kafka não se comunica com Deus.
O fenômeno mais significativo no pensamento de F. Kafka consiste na desierarquização espiritual que coloca seres, objetos e situações em nível de idêntica força causal.
Nele tudo assume a forma de uma categoria capaz de transcendência; o fato mais insignificante converte-se em símbolo, em sonho. Assim, o sobrenatural pertence também a esse mundo quotidiano. Sua irônica dialética a respeito do conhecimento além do real, encontra sua expressão nessa sentença típica: “o conhecimento é a etapa que leva à vida eterna e o obstáculo colocado diante dela”.
Essa obra de F. Kafka é a previsão das maiores farsas judiciais dos tempos modernos, como os Processos de Moscou e Budapeste. É o supremo protesto contra a volta aos aspectos mais negativos da Renascença, materializados no culto à “razão de Estado”, sob os regimes totalitários.
Essa antevisão aparece no destino trágico e absurdo de José K., escravo e joguete de forças estranhas e invisíveis, tão impessoais como a burocracia que o condena.
Nessa obra aparece com maior clareza o traço original que liga a vida à obra de F. Kafka.
O personagem principal de O Processo coloca-se diante de um problema de caráter finalista: “da direção e sentido de sua existência, de seu destino inexorável que culmina com a morte”.
Pelo fato de viver “para” esse destino é que o homem kafkiano se converter num condenado permanente sem outro consolo que suas meditações sobre uma culpa inexplicável, projetada em sua vida por uma autoridade impessoal e invisível como ela própria. Essa luta contra o absurdo finalismo de nossa existência adquire aspectos patéticos no homem kafkiano.
Ela é expressa por Kafka quando no seu Diário escreve:
“Eu luto mais que os outros. A maior parte luta com sonhos como quando se agita a mão para desviar minhas forças com reflexão e minúcia”.
O personagem verdadeiro de O Processo é a culpa. Uma culpa surda e invisível ligada organicamente ao ser, à existência.
José K., não enfrenta a luta, limita-se a padecê-la como um doente experimental que sofresse sozinho os efeitos da culpa. Esse herói é um tipo comum de funcionário bancário que enfrenta a Autoridade, “sofrendo” uma culpa cuja origem e razão ele próprio desconhece.
Com essa passividade de José K., diante da culpa e da Autoridade invisível, Franz Kafka esforça-se em mostrar que o que existe “fora” de nós, consiste simplesmente no aniquilamento e no “absurdo”. O inumano sempre bordeja o humano. E todas as consolações edificantes expressas em sistemas filosóficos nada mais são do que “racionalizações” desse absurdo, que só é apreendido pelo processo novelesco. Daí, a opção de Kafka pelo gênero conto ou romance.
O
“absurdo” em F. Kafka rejeita todas as formas de “alienação”, seja a família,
profissão, dinheiro, sistemas filosóficos, religião e o patriotismo. Elas
nada podem contra o “escândalo” que consiste no simples existir.
O herói kafkiano rejeita a santidade como o desespero: sua atitude é de imobilidade ante o absurdo.
José K., faz a prova da liberdade, permanecendo imóvel ante a Autoridade e atraindo sobre si “livremente” todas as conseqüências de sua atitude.
No decorrer do processo, José K., comporta-se-á como culpado do principio ao fim; em vez de inquirir “porque” o acusam interessa-lhe saber mais “quem” o acusa, tentando manter-se lúcido, a única arma que lhe resta. Sua tristeza é ter que se ir, sem conhecer nem saber que juiz o condena.
A impessoalidade da burocracia judicial transparece claramente no encontro entre José K. e o pintor:
- Os grandes advogados quem são? Como podem ser vistos? – pergunta José K.- Você nunca ouviu falar deles? – responde o pintor. Não há nenhum acusado que não sonhou com eles durante algum tempo. Não se deixe dominar por essa debilidade. Quem são? Não sei. Quanto a conhece-los, impossível.
Vemos o tema da autoridade unido estreitamente à culpa. José k., não pode viver sem se justificar. Então, tende a procurar a Autoridade. E se tal Autoridade não existisse, pensa ele, para que então essas idas e vindas, todo esse sofrimento, todo esse absurdo? Ela existe mas não é acessível a José K. Estamos diante da “incomunicabilidade”. A Autoridade, o Conselho Judicial de um lado, o homem do outro.
É a presença hofmaniana dessa máquina judicial, de uma justiça invisível que deixa no ar o gesto cego e impensado de uma acusação e uma sentença que parecem agitar-se no vácuo, funcionando mecanicamente que acaba reduzindo o individuo a condição promiscua de sub-homem.
Na prisão de José K. revela-se novamente a incomunicabilidade. Os funcionários que o prenderam nada podem dizer. Estão aí para prendê-lo, para cumprir ordens. “Tudo existe, mas nada se comunica”. A desconformidade do movimento parcial é a lei. Cada fenômeno move-se em seu próprio circulo hermeticamente fechado, sem ligação com o general.
O espanto de José K. ante sua detenção não tem limites. Nascido sob o agasalho de uma Constituição que garantia os direitos individuais, não concebe essa invasão em sua vida e ainda desconcertado pergunta:
- De que falam? A que serviço pertencem? Ninguém lhe responde.
Essa experiência do pacato cidadão diante da Autoridade é uma visão antecipadora do processo de sujeição do homem ao totalitarismo vivido na experiência do fascismo, nazismo e estalinismo.
José K. sente a força do destino em sua vida: este está traçado. Se o deixassem em liberdade condicional o pacato José K. seguiria sua existência normal: ir ao Banco, visitar semanalmente Elsa, passear com o chefe. Tenta iludir-se pensando que sua detenção nada pode ter de terrível.
José K. achega-se ao guarda principal e os outros se achegam por sua vez, formando um grupo cerrado. Por um processo de abstração ele se imagina tomando parte no grupo que o persegue, o “acusado livre” comenta o seu próprio “caso” com outrem, como se outro fosse. No entanto ele, nem sempre pode levar-se pelos vôos da imaginação e manter-se calmo.
Há momentos em que o desespero se apodera dele. Então, é quando sente a necessidade de conversar despreocupadamente, justificar-se perante os outros. José K. procura contacto com a vida, com os bens terrestres, coisa que Kafka aspirará encontrar em sua vida, mais inutilmente.
Angustiado José K. procura comunicar-se; sente uma incoercível necessidade de falar sobre o “caso” com a Senhora Grubach, travar com ela relações mais amigáveis, quotidianas.
O que importa n’O Processo é o culpado mais do que a justificação ou não da causa, que é pouco menos que secundaria, porque a justiça é inacessível, permanecendo incomunicável com o homem. Essa máquina permanece só, sem gestos, nem aparatos, como uma presença insólita no drama do humano.
Nesse singular processo pouco interessa o dia do julgamento: ele se efetua num “domingo”. O lugar onde funciona o tribunal pouco importa, num “local abandonado”. Pouco importa o “nome” do acusador; José K. é confundido com um pintor de paredes. Uma promiscuidade horrível reina em seu redor e tudo se processa numa marcha “mecânica” e “indiferente”. Pressente-se que o desfecho inevitável do drama, que se passa num ambiente opressor, junto às lavadeiras inexplicáveis, é a “morte”. Isso todos sabem porque todos estão envolvidos. A intervenção inexplicável do tio do acusado no processo representa “simbolicamente” um chamado à vida familiar, de cujo circulo Franz Kafka permaneceu inteiramente afastado.
O advogado sob cuja tutela o herói permanecerá durante o transcorrer do processo, representa a transição com a corrupção, a cujos sinistros mecanismos é mister submeter-se e a cuja autoridade é impossível atingir. Essa é a significação exata da presença de Titorelli, pintor medíocre, amigo, tal como o advogado, de juizes subalterno se servis que muito pouco farão por José K. lhe diz:
- Pertences à Justiça? Para que me queres?- A Justiça nada quer de ti. Toma-te quando vens e deixa-te quando vais.
Certa noite a Justiça vestida de negro aparece diante de José K. Levam-no a um local afastado e com três facadas no coração liquidam-no. Onde estava o juiz? Onde estava a Alta Corte que o condenou? Continuam sendo entidades abstratas e incomunicáveis com o humano, com José K. transformado em símbolo.
A
vontade de possuir uma casa, ter uma segurança mínima é o que alenta o incansável
agrimensor de O Castelo.
“As primeiras experiências do agrimensor K., desenvolve-se na trama sutil armada pelo absurdo que acolhe o homem em suas malhas”.
O agrimensor K. choca-se com o sentimento de impotência, com as casas semi-destruídas, que aglutinadas entre si formam um bloco compacto representando o inacessível, que o homem tenta atingir, mas não consegue.
O agrimensor esmagado pela incomensurabilidade do Castelo, chega a duvidar de si próprio, perguntando-se: “quem sou eu pois?”. No entanto, uma carta da Alta Autoridade do castelo chama-se para lá; ela é assinada por um chefe poderoso, Klamm. Logo se anuncia o equivoco havido. Após sua conversa com o alcaide, K., começa a duvidar da própria existência de tal chamado.
É informado que O Castelo prescinde de seus serviços, que tudo se encontra medido. Inicia-se aqui a luta violenta com o “inimigo”. Apesar de tudo, o agrimensor obstina-se em ser admitido. Sua esperança é entrar em contacto com Klamm, ser admitido, ouvir de seus lábios a palavra decisiva; essa é a aspiração constante que o domina.
Não consegue realizar seu desejo, sua vontade é consumida num continuo rodeio, fica sempre detido nas imediações, nas medidas preliminares; outro aspecto da “incomunicabilidade” kafkiana.
Busca ele apoio para se ligar, entrar em contacto com a autoridade inacessível: Klamm. Liga-se a Frieda, à hoteleira e a Barnabé. A hoteleira torna-se amiga de Klamm, o chefe poderoso.
Sem ser poderosa aspira a sê-lo e admira secretamente os que estão nas altas posições da escala social. Essa burguesia média despreza o idealista que sai de suas próprias fileiras, tendo maior consideração pelos tipos vazios que freqüentam o “Hotel dos Senhores”. Em outro plano, a hoteleira representa uma liberdade submissa à autoridade (Klamm).
O principio do mundanismo é claramente refletido pela hoteleira, principio que quer salvar pela sua oposição ao matrimonio de K., com Frieda. A hoteleira teme por seu mundo. Receia no fundo qualquer contacto entre K. e Klamm.
“Isso mostra que a Autoridade está seqüestrada pelos submissos. E a submissão que tem medo de modificações, dos que querem ‘continuar’ que confere a ela sua força inaudita”.
A hoteleira pressente que o encontro entre K. e Klamm dissolve o princípio da Autoridade da qual ela depende.
Quão comovente é a descrição do episódio em que o agrimensor desesperado se decide a falar diretamente com a Autoridade, Klamm, de quem depende diretamente seu destino. A espera inútil, o ambiente no “Hotel dos Senhores”, a descrição desse ambiente, que parece não conter em si outra vida, senão de forjar a “vivencia” do herói, é de uma força digna de um Dostoievski.
K. permanece distraído e cansado no interior de um trenó esperando a chegada de Klamm. Um homem vem ao seu encontro: não é Klamm. Informa-lhe que este não virá. Há um instante em que o recém-chegado, o cocheiro e o trenó se retiram. Então K. sente que se “cortou” toda união, que goza de uma terrível liberdade, ninguém teria o direito de jogá-lo, tocá-lo ou falar-lhe. Nada tão desprovido de sentido e aterrador como essa intangibilidade do herói.
Enquanto K. sonha chegar ao Castelo, Frieda sente a nostalgia da quietude olhando com sugestiva simpatia esses seres despreocupados que lhe são afins. Ainda que bobos ou inconscientes, Jeremias e Artur representam a “segurança”, o não-compromisso. K. vê-se obrigado a compactar com eles. Sujeita-se a viver na mesma habitação, na escola.
Essa curiosa residência e a promiscuidade reinante, simbolizam com maestria a transação, o compromisso a que nos obrigam com desgraça freqüência as circunstâncias da vida.
O fracasso configura toda a existência de K., pois as aspirações realizam-se de um modo “absurdo”, a realidade as deforma.
Frieda e K. têm plena consciência que sua união é impossível: apesar da vontade subjetiva de unir-se, o destino de cada um é diferente. O destino de Frieda diferencia-se profundamente do destino trágico de K. Ela não é um tipo para abandonar sua família, seu estilo de vida tecido de fins imediatos. Ela representa o quotidiano, o comum, o banal.
Essa passagem está impregnada do drama pessoal de Franz Kafka, o biográfico, o psicológico e o literário se confundem.
Numa carta memorável destinada ao pai F. Kafka expõe os motivos que o levam a renunciar a uma união conjugal. Em primeiro lugar, ela se opõe à sua vocação literária. Tudo que não é literatura, para ele é penoso e insuportável. Outro motivo, sua constituição débil e enfermiça, seu caráter nervoso e insatisfeito. F. B. sua noiva é o oposto, “um ser tão natural e robusto”.
Apesar de todos os protestos da noiva ele sabe que o matrimônio a desgraçaria. Desprovido de todo o sentido de família a união contribuiria para afetivá-lo.
A hoteleira n’O Castelo não vê com bons olhos a união de Frieda com K.
Ela é a imagem de uma sensatez doentia, que consiste em compor as partículas em que se dividem as circunstâncias com o mundo. Ela considera K. um insensato e uma loucura, sua pretensão de entrar em contacto com Klamm, expoente do único poder que ela reconhece e respeita.
As dificuldades com que tropeça K., não se erguem só em seu caminho ao Castelo, elas aparecem insistentemente no mais humilde acesso a um oposto, por pequeno que seja, na comunidade.
Esta sociedade não é digna do herói. Nela as coisas estão organizadas no sentido de uma submissão hipócrita, de uma “convivência” com a Autoridade que K. não aceita, pois, aspira a se realizar no seu ofício de agrimensor. Mas, o meio sugere-lhe outra solução. Klamm, Frieda incitam-se a manter-se longe de seus desejos íntimos, conformando-se com as “mediações”. K. não aceita o meio termo que as circunstâncias lhe impõem, assim como F. Kafka – é um rebelde, um insubordinável.
Franz Kafka havia explicado ao seu amigo Max Brod como terminava essa novela, truncada, como o fora a vida de seu autor. O agrimensor finalmente consegue obter uma parca satisfação. Mantêm-se firme, não se dobrando. Mas morre de esgotamento. Em redor de seu leito mortuário a comunidade se reúne e nesse instante chega do Castelo uma decisão que declara não ter K. realmente direito à cidadania no lugar, mas, não obstante, tem autorização para viver e trabalhar na localidade.
Há algo mais simbólico que esse final? Não é visível que o herói como o seu Autor “preferiu” a morte?
O que agravara a luta entre o herói e o Castelo, foi o fato deste não lhe dar combate, oferecendo-lhe uma resistência passiva. Desesperante e esgotadora. K. é “vivido” pelo Castelo e as coisas se sucedem com pré-determinação absoluta. A essa vivência deve-se o fato da vida do agrimensor desenvolver-se ligada a um equívoco fatal: o erro consiste em crer que se está lutando para chegar ao Castelo, quando não se faz outra coisa na realidade, do que permanecer nas mediações. É o fenômeno da incomunicabilidade, que marca não somente O Castelo mas o sentido profundo dos escritos de Franz Kafka [2] .
Sobre a ‘inteligentsia’ ocidental e se papel social: Karl Mannheim, “Ideologia e Utopia”, págs. 141-151. Ed. Globo, 1950, onde o autor defende a famosa tese da “desvinculação classista” do intelectual e a existência de várias alternativas colocadas ante o mesmo, permitindo uma tomada de posição perante outros grupos sociais. Essa noção do “intelectual” livre está vinculada a tradição da filosofia especulativa do idealismo clássico onde o pensador aparece colocado ante o produtor de um lado, e o consumidor de outro. A critica a esse “fetichismo da consciência intelectual desvinculada dos grupos sociais” aparece com clareza em Irving Louis Horowitz, “Sociologia cientifica y sociologia Del conocimiento”. Lib. Hacchete. Buenos Aires, pág. 60. Ed. 1958-1959.
Sobre o histórico do tema do ‘Absurdo’ em Dostoievski:
1. “Crime et chatiment”. Ed. Gallimard. Paris, 1950.
2. “Les Fréres Karamazov”. Ed. Gallimard. Paris, 1952.
3. “Les Demons”. Ed. Gallimard. Paris, 1955.
Em Albert Camus – 1. “La Peste”. Ed. Gallimard. Paris, 1947.
Sobre a vida de F. Kafka – Max Brod “Franz Kafka”. Ed. Gallimard. Paris, 1945.
Obras
de F. Kafka utilizadas:
1. “The Diaries of Franz Kafka”. Ed. Schocken. New York, 1948.
2. “El Processo”. Ed. Losada. Buenos Aires, 1939.
3. “America”. Ed. Routledge. Londres, 1938.
4. “The
Castle”. Ed. Konpf. New York, 1947.
[1] - Aliás, já Marcel Proust num artigo publicado na “Nouvelle Revue Française” no ano de 1920 sob o título A propos du style de Flaubert já fazia o que hoje os adeptos do new criticism anglo-saxão tão empafiamente chamam de ‘análise estilística” ou “crítica interna”.
[2] - Trabalho premiado pelo Centro Literário “Barros Casal” (Rio Grande do Sul) 1º prêmio no gênero “Ensaio literário”.