Ano I - Nº 01 - Maio de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

 

O conhecimento a serviço do desenvolvimento

Uma "revolução" conceitual e prática

 

Lizia Helena Nagel *

Resumo:

O texto, com base no documento oficial do Banco Mundial, -   Informe sobre o desarrollo mundial- El conocimiento al servicio del desarrollo (1999) -, problematiza o conceito de conhecimento advogado por essa instituição, sobre o qual se assenta, de forma sofística, não só a proposta de redução das desigualdades entre países ricos e pobres, omo a política educacional para as nações com carência de conhecimentos científicos, tecnológicos e/ou culturais.
Palavras-chave: educação – conhecimento - desenvolvimento – Banco Mundial
Abstract

The World Bank document Information on World Development – Knowledge for Development (1999) is analyzed. Our research problematizes the concept of development as enhanced by the above institution. The World Bank's suggestions on the decrease of inequalities between rich and poor countries and its educational policy with regard to countries lacking scientific, technological and cultural knowledge are provided and critically evaluated.

Key words: Education, knowledge, development, World Bank.

O Banco Mundial, publicando seu Informe sobre o Desenvolvimento Mundial (1998-1999), oferece ricos subsídios para considerações dos educadores. Analisando apenas o Resumo desse estudo -  O conhecimento a serviço do desenvolvimento - , pretendemos discutir, fundamentalmente, o significado do conhecimento que é considerado necessário aos países pobres ou em desenvolvimento.

A versão resumida, expressando sinteticamente as questões trabalhadas na totalidade do Informe, contempla os seguintes itens: a) necessidade de reduzir as diferenças de conhecimentos entre países pobres e ricos, b) sugestões para corrigir os problemas derivados da falta de informação dos países em desenvolvimento, c) políticas para diminuir as deficiências de comunicação através de instituições internacionais, assim como a delimitação das novas funções do Estado na perspectiva do desenvolvimento global. Roteiro de trabalho importante para debate posto que sugere não só o ponto de partida desse órgão internacional para entender a principal causa da riqueza e da pobreza como oferece (para debelar o problema detectado como tal) um conjunto de alternativas capazes de, contraditoriamente, assegurar o inverso defendido pelo discurso organicamente articulado. 

Já foi dito que, dependendo da forma como se elabora um problema, nessa formulação, já estão contidas as idéias mestras, consideradas chaves, para a superação da situação aflitiva. Ora, o problema principalizado pelo Banco Mundial constitui-se na tese de que a falta de conhecimento impede o desenvolvimento, gerando pobreza. Cabe portanto tornar mais ágil a aquisição de conhecimentos. Diz inicialmente esse estudo:

El conocimiento se asemeja a la luz. (...) A pesar de ello, miles de milliones de personas viven todavía sumidas - sin ninguna necesidad - en la oscuridad de la pobreza.  (p. 1)

Lo que distingue a los pobres -sean personas o países - de los ricos es no sólo que tienen menos capital sino tambíen menos conocimientos (p. 1)

Los problemas de información son com frecuencia la causa fundamental de las dificultades que los pobres de los países en desarrollo encuentran en su lucha diaria por sobrevivir y mejorar su nivel de vida. (p.4)

Secundarizando as relações capitalistas na determinação das diferenças entre nações ou homens, o Banco Mundial investe naquilo que considera o problema real a  ser debelado: a superação da pobreza pela perspectiva do conhecimento. Tese aparentemente cativante  porque, ao recuperar o ideal Iluminista, que promete pelo saber a transformação social, reativa em muitos homens, em muitos professores, o otimismo perdido nos discursos asseguradores da  morte dos paradigmas, tão comuns neste fim de século. Reativa, na verdade, nos mais desavisados, um certo otimismo pedagógico, que se esforça por difundir a nova forma de ser que deve ter o ensino, acreditando nas virtudes do novo modelo sugerido pelos organismos internacionais e confirmado pelos órgãos competentes do Estado.

Mas o estímulo ao crédito na razão ou no conhecimento para o saneamento de problemas sociais também deve ser examinado para além de suas aparências. O conceito de razão embutido nas teses Iluministas, da Ilustração, ou mesmo dos partícipes de um otimismo pedagógico, não é o mesmo que o Banco Mundial utiliza para defender ou emular o conhecimento nas nações subdesenvolvidas. O conhecimento que o Banco Mundial sugere para o Terceiro Mundo é um produto acabado, feito no Primeiro Mundo, passível de ser adquirido como uma mercadoria que, objetivada em um pacote, pode ser utilizada segundo normas técnicas, presas ao próprio produto, por qualquer consumidor. Segundo esse órgão, o conhecimento assim empacotado, servindo para eliminar, de modo rápido, a defasagem entre ricos e pobres traz a vantagem embutida na supressão do tempo que seria necessário à compreensão, pelo usuário, das relações entre as medidas a serem tomadas e os seus efeitos, ou as possíveis conseqüências (boas ou más) do tratamento utilizado.

Na perspectiva do Banco Mundial, a possibilidade de correção das diferenças de conhecimento entre pobres e ricos, é otimizada justamente porque o usuário do conhecimento-pronto, dispensado de racionalmente entender as causas do processo problemático que exige a interferência prática dele, fica desobrigado de examinar as razões determinantes de eficiência ou ineficiência dos métodos ou recursos empregados para a superação do mesmo problema. Nesse sentido, a idéia de conhecimento necessário expõe-se nos limites da mera aplicação de conhecimentos já produzidos. O processo de conhecer em todas as suas fases é eliminado da vida de alguns grupos por intencionalidade pragmática em nome de um desenvolvimento mais aligeirado da humanidade! Nesse momento, a questão básica consiste em perguntar quem vai ser, de fato, educado para pensar abstratamente, para pensar teoricamente? Infelizmente, o preconceito que vem crescendo de modo tendencial nos discursos pedagógicos,  sempre a favor do pragmatismo e da utilidade imediata do sujeito que aprende, negando a importância do pensamento abstrato, só pode ajudar na implementação dessa nova política educacional.

É dentro do quadro de prazer auferido pela resposta imediata, sem as dores que o conhecimento científico, pleno de mediações e abstrações possa oportunizar, que o comprador do pacote de conhecimentos-prontos é desobrigado de procurar, de investigar ou de estabelecer relações entre ações passadas, presentes e futuras afastando-se dos processos mentais associativos ou de encaminhamentos compreensivos através de analogias. Fica desobrigado de conhecer os nexos que unem a teoria à prática e eximido de conhecer símbolos ou terminologias específicas, atributos ou propriedades dos materiais. Livre, dessa forma, da necessária disciplina para organizar dados, investigar, examinar tendências, ter familiaridade com critérios de julgamento, com generalizações ou com estruturas teóricas que permitem, inclusive, previsões antecipadas dos fenômenos. Como diz o Informe:

Por otro lado, los países en desarrollo no tienen que reinventar la rueda ni las computadoras, ni redescubrir el tratamiento del paludismo. En vez de volver a descubrir lo que ya se sabe, los países más pobres tienem la posibilidad de adquirir y adaptar gran parte de los conocimientos  ya disponibles en los países más ricos. (p. 2)

Suprime-se pedagogicamente, nesta proposta, os atos intelectivos de compor e de decompor as tecnologias, os símbolos, as representações, para o entendimento dos produtos elaborados pelo homem. Desvaloriza-se o processo próprio à formação da consciência que se instaura através de uma seqüência de experiências indispensáveis.  Suprime-se, de fato, a importância do ato interior de conhecer enquanto um ato humano, histórico. Estimula-se um voluntarismo destinado a implementar o já constituído, como promessa de superação das desigualdades, embora, o próprio texto do Banco Mundial, contraditoriamente, afirme:

De hecho, la mayor diferencia es la que existe no en el volumen de conocimientos disponibles sino en la capacidad de generación de los mismos. (p. 2)

Na verdade, é a atividade intelectual enquanto geradora de conhecimentos que esse organismo internacional considera desnecessária aos países em desenvolvimento. É o processo construtor da ciência, que arrancando o homem da imediatez de uma vivência sensível, é considerado desnecessário para a educação dos povos menos desenvolvidos. Enquanto os empiristas, racionalistas, iluministas ou qualquer outra corrente teórica, ajudando a solidificar a sociedade capitalista, conferiram à geração de conhecimentos uma força demiúrgica, um crédito à cognição que, se ativada, poderia transformar o mundo, o liberalismo, nos limites da globalização e sob o comando de instituições financeiras, gerencia a paralisação da razão, a castração da gênese da consciência através do direcionamento sofístico dos  sistemas de ensino e das  propostas curriculares para os países endividados ou pobres.

Sem negar a importância de repassar e/ou  adquirir conhecimentos já produzidos pela humanidade, afirmamos o poder pernicioso do ideário e da prática que limita o ato de conhecer à  aplicação de saberes disponíveis no mercado do Primeiro Mundo. Empreitada reducionista de valorização meramente mecânica de aplicação da tecnologia, que sempre renova sua força e credibilidade da sistemática propaganda, posto que os argumentos a favor dessa proposta não escondem o seu caráter político, explorador e opressivo, como podemos ler no texto que segue:

Los factores fundamentales para la adquisición de conocimientos  en el exterior son tres: un régimen comercial abierto, la inversión extranjera y la concesión de licencias de tecnologia.

La concesión de licencias de productos tenoclógicos  desempeña un papel de creciente importancia en la adquisición de conociminetos  por los países en desarrollo. (...)

Al mismo tiempo que el mundo avanza hacia una economía basada en el conocimiento, se observa una tendencia a proteger mejor los derechos de propriedade intelectual.  (...)

Los países en desarrollo deben participar activamente en las negociaciones en curso sobre estos temas, para poner de manifiesto su preocupación de que el endurecimiento de los derechos de la propriedad intelectual pueda inclinar la relación de fuerzas en favor de quienes generan la información  y, al frenar la adaptación, agrande las diferencias de conocimientos. (p. 9)

Esse conjunto de juízos, entre outros, emitidos pelo Banco Mundial, obriga a refletir sobre as mudanças na estrutura da economia desde a década de 80, na qual, os investimentos externos e os mecanismos internacionais tem proeminência na definição das políticas sociais. Considerando que o mesmo documento aponta para a necessidade, nos países não desenvolvidos, de uma legislação mais agressiva e de tribunais menos corruptos e menos lentos para processar crimes, entre os quais aqueles relativos à pirataria, roubos dos direitos autorais e de patentes, não pagamento de royalties, não cumprimento das normas e compromissos próprios à aquisição de informações, percebe-se, com maior clareza, o significado e/ou a função mais radical da instrução ou formação teórica para as sociedades do conhecimento nas beiradas do século XXI. O saber científico e tecnológico aparece, definitivamente, como mercadoria do primeiro mundo.

O conhecimento, como um bem privado, afirmado sem nenhum pudor como tal, passa a ser preservado sob o império de leis, ratificadas constitucionalmente, que garantem, mais do que nunca, os direitos dos proprietários intelectuais. O crescimento do comércio internacional alarga-se nas bandas da comunicação, jamais pensando esses interesses externos como restritos à área das telecomunicações ou da telefonia. O poder que o saber detém, verdade histórica para a burguesia, continua indiscutível, mas emerge sob outra configuração mais abstrata. Nessa nova configuração, nesse novo estágio de desenvolvimento capitalista, o conhecimento passa a ser explicitamente controlado por corporações internacionais, semelhantes, mais complexas, mas não iguais às multinacionais.

A concorrência, portanto, que não desaparece, - incluindo-se todas as estratégias para excluir possíveis competidores ou incorporar outros de seu interesse -, é mantida, ou melhor, acelerada por um mercado que, considerando-se auto-ajustável, enfraqueceu o Estado Nacional. Este, na perda de sua proeminência, passa a dar legitimidade não só aos mecanismos dos mercados internacionais como a ser controlado pelos novos meios de comunicação, encaminhando, inclusive, sob a égide do conhecimento a serviço do desenvolvimento, mudanças estruturais no sistema educacional do país.

Nesse quadro, cabe pensar quais são as políticas, as propostas, as alternativas educacionais sugeridas aos países em desenvolvimento? Sem maiores esforços encontra-se as primeiras respostas no próprio documento do Banco Mundial. Nele, afirma-se que, à Educação Básica, cabe, principalmente,  fornecer conhecimentos técnicos sobre nutrição, controle da natalidade, programas de contabilidade e de informática, além de conhecimentos sobre ecologia para impedir a degradação ambiental e manter a força dinâmica do trabalho saudável (p.2/10). Ao Ensino Universitário, por outro lado, deixando de ser uma prerrogativa do Estado, com o compromisso de oferecer serviços  de qualidade e de baixo custo, cabe, principalmente, o ensino virtual. Em qualquer grau de escolarização, no entanto, segundo o Banco Mundial, seria necessário que o conceito de conhecimento - para os países em desenvolvimento - fosse entendido e assumido até às últimas conseqüências nos limites da adaptação e/ou da aplicação de saberes já produzidos (p. 10-11). Na verdade, uma grande "revolução" conceitual e prática!

* Professora Titular da UEM. Doutorado em Filosofia da Educação. (PUC/SP) Mestrado em Educação/ Ensino (UFRGS/RS) . Graduação em Filosofia e História (FFCL de Bagé/RS)


Referência Bibliográfica

BANCO MUNDIAL. Informe sobre el desarrollo mundial. El conocimiento al servicio del desarrollo. Resumen. Washington, D.C. 1998-1999