Ano I - Nº 01 - Maio de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178
História e emancipação
nos romances de José Saramago
Pode-se atribuir às narrativas criadas por Saramago a interpretação segundo a qual tudo o que este autor "...consegue perceber em termos de bens culturais, tudo, sem exceção, tem uma origem que ele não pode rememorar sem horror. Eles devem a sua existência não só aos esforços dos grandes gênios que os produziram, mas também à anônima servidão dos seus contemporâneos (BENJAMIN: 1991: 157).
Os vínculos entre
história, memória e identidade são esclarecidos por Hobsbawm (1998: 288) quando este historiador
escreve que "ler os desejos do presente no passado ou, em termos técnicos,
anacronismo, é a técnica mais comum e conveniente de criar uma história que
satisfaça as necessidades do que Benedict Anderson chamou "comunidades
imaginadas" ou coletivos, que não são, de modo algum apenas nacionais".
Desta forma, a representação literária que Saramago realiza sobre a história
portuguesa traz implícita uma responsabilidade ética atribuída à geração atual
de redimir o sofrimento das gerações passadas, da mesma forma como o destino
das gerações futuras está inscrito no seu horizonte. E é através da rememoração
que se pode expressar a solidariedade com aqueles que sofreram no passado
e que nos legaram o presente. Segundo Habermas (1990: 25), Walter Benjamin
"...atribui a todas as épocas passadas um horizonte de expectativas insatisfeitas,
e ao presente que se orienta para o futuro atribui a tarefa de experimentar
em rememoração um passado correspondente de tal modo que possamos satisfazer
as expectativas desse passado com a nossa débil força messiânica".
Mesmo admitindo-se
a inspiração que José Saramago receberá da chamada "Nouvelle Histoire" francesa para o
tratamento literário da história portuguesa, sem deixarmos de reconhecer a
influência de uma historiador como George Duby sobre o escritor português,
influência esta, assumida pelo próprio Saramago
[2]
, e discutida por Braga (1999), considero mais pertinente
a identificação do tratamento que Saramago dispensa à história do seu país
a uma expectativa de transformação redentora e revolucionária da História,
que guarda uma homologia direta com a concepção de história de Walter
Benjamin. Como escreveu Jeanne Marie Gagnebin (1994: 19) a filosofia da história
de Benjamin indica "...que a rememoração do passado não implica simplesmente
a restauração do passado, mas também uma transformação do presente tal que,
se o passado perdido aí for reencontrado, ele não fique o mesmo, mas seja,
ele também, retomado e transformado".
Na história portuguesa
a realeza e a Igreja Católica influenciam diretamente na configuração da nação,
porém a "identidade legitimadora"
construída será problematizada ao longo da obra de Saramago: a tomada de Lisboa
aos mouros, confrontada através de uma releitura do episódio proposta pelo
revisor Raimundo Benvindo Silva em História do cerco de Lisboa; o cotidiano
de opressão, mas também de fantasia, vivenciado pelos súditos de um rei perdulário
e caprichoso, em Memorial do Convento;
a saga e a redenção da população rural portuguesa, oprimida pelo Estado policial
a serviço do latifúndio, em Levantado
do chão; e uma pesquisa minuciosa sobre as bases políticas e culturais do cotidiano de implantação do nacionalismo
ufanista próprio do salazarismo, em O
ano da morte de Ricardo Reis; até a "dúvida existencial" da
Península Ibérica, transformada por Saramago em uma Jangada
de pedra, para avaliar a pertinência de sua identidade européia e a busca
de um novo destino. Saramago revela
através destas obras aquilo que Maria Alzira Seixo (1999:93) considera como
seu gosto pela reescrita e pela "correção ou alteração do passado",
e, sobretudo, "a adoção, na narrativa, do ponto de vista do outro (o
esquecido pela história oficial, o perdedor ou o "mau da fita";
o ponto de vista dos soldados e dos operários, em Memorial do convento; o ponto de vista dos árabes, em História do cerco de Lisboa; o ponto de
vista do cidadão anônimo, entendido, aliás, como o efetivo fator das alterações
sociais, em A Jangada de Pedra)".
Em seu estudo A concepção de língua de Saramago - confronto
entre o dito e o escrito, Miriam Rodrigues Braga interpreta que:
"O escritor endereça a língua à procura do sentido da história, do homem-história e da língua-história, num diálogo interdiscursivo e intertextual entre a verdade da história e a verdade da ficção... O escritor reconhece a importância do passado histórico na constituição da cultura e na salvaguarda da identidade nacional e individual. Porém, seu respeito pela história implica não só sustentar a continuidade desse passado, mas também a sua transcensão. É justamente essa ambivalência, projetada no devir de uma coletividade, que o escritor se encarrega de recriar pela linguagem ficcional, para tentar impedir a imobilidade da história, imputando à memória histórico-cultural um papel nuclear de contribuição para a legitimação da identidade histórica... Para ele, a cultura deve manter viva a dimensão histórica da língua, para favorecer a interação do indivíduo com o mundo em que vive, num constante processo de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significados. Sob esse enfoque, o reforço da identidade nacional passa a ser resultante da consciencialização de um acervo de informações que a memória cultural propicia, e do qual o discurso de identidade não se pode demitir, sem o inconveniente de se desgastar um conjunto de figuras, episódios e vivências históricas cuja evolução potencia a união entre os indivíduos" (BRAGA, 1999: 101-103).
Saramago busca o rejuvenescimento
do gênero romanesco com o objetivo de fortalecer o idioma como um dos componentes
essenciais da identidade nacional portuguesa, ameaçada que está a lingua portuguesa
pelo inglês como língua franca da globalização. Com o objetivo de contribuir
para o fortalecimento da identidade nacional, o idioma, a memória e a cultura
portuguesa são elementos revigorados intencionalmente na ficção saramaguiana.
Daí a importância atribuída à releitura do passado e à memória coletiva. Para Saramago, "...todo
o romance é isso, desespero, intento frustrado de que o passado não seja coisa
definitivamente perdida. Só não se acabou ainda de averiguar se é o romance
que impede o homem de esquecer-se, ou se é a impossibilidade do esquecimento
que o leva a escrever romances" (HCL: 56).
Por via das dúvidas, Saramago não deixa de escrever seus romances, ensinando-nos a não esquecermos do passado através de uma fabulação que reaviva a memória com o intuito de inspirar novas formas de vivência. Por tudo isso é que a Saudade, sentimento síntese da identidade de um povo que concebe o passado como paraíso, nas palavras de Eduardo Lourenço (1999: 14), e que pode ser explicado simplesmente como um olhar sobre o passado subtraindo deste o elemento contraditório, problemático, é superada por uma memória crítica da tradição, fundada na rememoração do conflito e das expectativas humanas tantas vezes frustrada, mas nem por isso menos perseverante e esperançosa de que a emancipação do homem será obra humana, afinal, como nos ensina o narrador do Evangelho segundo Jesus Cristo, "...milagre, milagre mesmo, por mais que nos digam, não é boa coisa, se é preciso torcer a lógica e a razão própria das coisas para torná-las melhores..." (ESJC: 77)
[1] A partir de 1980 o escritor português José Saramago pública os seguintes romances que tematizam a história portuguesa: Levantado do Chão (LC), 1980; Memorial do Convento (MC), 1982; O Ano da Morte de Ricardo Reis (AMRR), 1984; A Jangada de Pedra (JP), 1986; História do Cerco de Lisboa(HCL), 1989; O Evangelho Segundo Jesus Cristo (ESJC), 1991.[2] Na data do falecimento do historiador George Duby, 3/12/1996, José Sarmago registrou em seu diário: "Morreu George Duby. Ficaram de luto os historiadores de todo o mundo, mas sem dúvida também alguns romancistas. Este português, por exemplo. Posso mesmo dizer que sem Duby e "Nouvelle Histoire" talvez o Memorial do Convento e a História do Cerco de Lisboa não existissem..."(CL, IV, 1996, 1999: 262).
BIBLIOGRAFIA