Ano I - Nº 01 - Maio de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178
O que é a filosofia?
Escrevi em um texto publicado no Portal Brasileiro
da Filosofia, com o título “O que é definir a filosofia?”, no qual passo
por algumas noções do que é a filosofia para, no final, dizer que o melhor seria
não a definirmos. No entanto, escrevi também outros textos, entre eles um que
não era um “paper”, mas apenas uma provocação ¾ “Crianças precisam de
filosofia?”. Este não foi publicado no Portal, mas apenas colocado na CVF, a
Comunidade Virtual-Filosofia, que lança os boletins do que ocorre no meio
filosófico e, principalmente, as novidades dispostas no Portal.
No texto que cito primeiro, eu disse que os modernos
estreitaram a noção do que é filosofia na medida em que a fizeram sinônimo de
“crítica”, obviamente no sentido filosófico desse termo, como ele aparece em
Kant e em Marx. Lembrei depois que os antigos, principalmente Platão e
Aristóteles, tinham uma noção mais ampla, às vezes, tomando a filosofia como um
“estranhamento-admiração”, o que a fazia uma arma contra a banalidade do
banal. Não deixei de tocar na noção dos pragmatistas, vendo a filosofia como
algo que vale a pena se faz alguma diferença na prática. E emendei com a noção
dos neopragmatistas, de que a filosofia poderia gastar mais tempo dando vazão à
esperança do que ao conhecimento e, para tal, deveria ser um instrumento de
criação de novas metáforas que viessem a ser, talvez, literalizadas, ou se
mantivessem como metáforas mas, enfim, que nos desse uma vida melhor, mais
livre, com menos humilhação dos mais fracos pelos mais fortes.
Chamei isso tudo de definições. Aqui, estou mudando,
e chamando de noções. Porque de fato eu adoto todas, mas como noções, e não
como definições. Ou melhor: eu as prefiro como noções, e não como definições.
Eu as prefiro como guia heurístico, e não como conceitos.
Bem, depois disso, já não em um “paper”, mas apenas
em uma mensagem de provocação, que corresponde ao texto “Crianças Precisam de
Filosofia?”, o que eu quis dizer é que se você fala de filosofia para crianças
talvez, no final, quando elas crescerem, elas apenas fiquem falando de
filosofia, e nunca sejam capazes de fazer filosofia. E é óbvio que eu
estava usando uma acepção bem delimitada de filosofia. O professor Waldomiro José
da Silva Filho, em uma mensagem arguta, endossou meu texto na medida em que
ele, como eu, estávamos falando da mesma coisa: filosofia, como os filósofos a
tomam, hoje, em qualquer departamento de filosofia que valha alguma coisa, é um
saber específico, com técnicas tão sofisticadas quanto a que temos em outros
conjuntos de saberes específicos. As crianças podem ganhar uma preparação,
tendo cultura geral, para um dia manipular essas técnicas, mas elas não podem
compreender essas técnicas. Se elas pudessem usar dessas técnicas enquanto
crianças, então elas também poderiam usar as técnicas matemáticas necessárias à
física nuclear.
Não estávamos falando, portanto, de se ter “uma
filosofia de vida”, ou de “ser capaz de se compreender melhor”, ou de conseguir
“ver coisas nos outros que são mais positivas que negativas”, ou de “usar de
certos conhecimentos de filosofia ou de história da filosofia para fazer
pensar”, ou de “fazer uma educação, coletiva ou individual, com elementos
filosóficos” etc. Não, nada disso. Nem estávamos falando de algo que realmente
não dá certo, que é achar que quem tem a filosofia nas mãos será uma pessoa
melhor. Longe disso. Não estávamos, como Gramsci, querendo dizer “todos os
homens são intelectuais”, todo homem é um filósofo porque tem uma visão de
mundo, um tipo de gosto etc. Não! Gramsci pagou caro por Ter dito isso, porque
depois ele, na seqüência, já advinhando o que viria, tratou de ir delimitando
as coisas até ele próprio chegar a lembrar que até a filosofia é uma
técnica. Quem leu Gramsci – e eu o li bem, muito bem, na juventude – vai se
lembrar disso.
Vou direto a um exemplo. Peguemos uma pergunta do
tipo das que se fazem, hoje, no debate entre realistas e não realistas, em um
departamento que cultiva a tradição da filosofia analítica: “ como o
linguístico se engancha no não-linguístico, ou seja, como ‘palavras’ se ligam
ao ‘mundo’?” Ora, os filósofos atuais,
os que realmente fazem filosofia “hard”, gastam uma vida apenas para poder equacionar
esse problema de modo que outro filósofo mais velho e mais experiente, e bom no
que faz, possa reconhecer nele um interlocutor e, então, considerar seus
argumentos. Nessa acepção de filosofia, que é uma acepção que não está longe do
que se faz hoje nos bons departamentos de filosofia das boas universidades do
mundo todo, não é coisa de criança. Portanto, aí, não se trata de se fazer o
que quer fazer os que lidam com “filosofia para crianças”, sendo esses
picaretas ou não. Também não se trata de fazer o que os que se denominam
“filósofos clínicos” querem fazer, sendo esses picaretas ou não. Trata-se de
outra coisa.
Bom, você, caro leitor, pode dizer: ora, Paulo, mas
filosofia para mim não é isso! Tudo bem: filosofia, como eu mostrei no artigo
“O que é definir a filosofia?”, ganhou várias acepções. No artigo eu
citei algumas, mas há bem mais que aquilo. Mas em nenhuma delas, na conversação
de 25 séculos intitulada filosofia, tivemos algo que não fosse um conjunto
específico de saberes, que exigia uma alta especialização prática, com temas muito
bem definidos e técnicas sofisticadas. Todas as vezes que, nessa conversação,
desrespeito-se tais técnicas, a filosofia ficou de um lado e surgiu a vulgata
de outro. O pensamento foi para um lado e surgiu em seu lugar a doutrinação.
As pessoas que lidam com filosofia para crianças ou
filosofia clínica e que fizeram filosofia “hard”, ou seja, chegaram mesmo a
escrever textos em filosofia no interior dos rigores acadêmicos de boas
academias, sabem perfeitamente que o que elas fazem com as crianças não precisaria
ser chamado de filosofia para crianças e o que elas propõe para seus, digamos,
pacientes, não precisaria de ser chamado filosofia clínica. Elas sabem que
conhecimentos gerais em história, geografia, literatura, matemática, química,
etc. – e até mesmo história da cultura e história da filosofia -, sendo
administrados às crianças e jovens por uma boa escola, durante anos, faria o
mesmo efeito que elas querem fazer com o que chama de “filosofia para crianças”
ou “filosofia clínica”. Mas tais pessoas, corajosas, que não querem ser
protegidas por corporações que nascem mais para garantir negócios do que
realmente por necessidades outras, são poucas. São poucos os que chegam para
mim e falam: “Paulo, você está certo, o que eu faço com as crianças poderia muito
bem ser feito se elas tivessem um bom professor de educação física ou um bom
professor de literatura ou um bom professor de matemática etc.” Coisa similar
me dizem os “filósofos clínicos” corajosos. Mas para se ter coragem, nesse
caso, é preciso Ter passado pela filosofia no sentido estreito que ela possui
no âmbito do que os filósofos a fecharam, em 25 séculos de conversação
filosófica, ou seja, o conhecimento sofisticado que não está ao alcance das
crianças. Só adultos que nunca passaram por esse tipo de formação filosófica
“hard” acreditam que se pode ter, no grau que se quer ter, filosofia para
crianças ou filosofia clínica ou coisas similares. Os que não participaram
desses 25 séculos de conversação filosófica, não conseguem entender o que
dizemos, Waldomiro e eu, ou o que o professor Giannotti já disse no passado.
Agora, isso não tem nada a ver em acharmos que o
Padre Roque está certo ao lutar para que a filosofia volte a ficar no ensino
médio, como qualquer outro patrimônio cultural que geramos. Mas, aí também cabe
uma ressalva: ela não pode ser ensinada pelos que discutem “ensino de
filosofia” mas que nunca escreveram e publicaram suas aulas. Como escreveu
Lauro de Oliveira Lima nos anos 70: um professor só é um professor se ele é
capaz de elaborar um bom manual, um livro, com suas aulas. Ora, é que é o Convite
à Filosofia da Marilena Chauí. Mas não vejo no cenário entre os que vivem
discutindo ensino de filosofia, alguém que ao invés de dissertar sobre o ensino
da filosofia, consiga escrever um manual que ensina filosofia, como o da
Marilena mostra que é possível. Então, acho que, junto com os que lidam com
“filosofia para crianças” e com “filosofia clínica”, podemos colocar os que
lidam em dissertar sobre “ensino de filosofia”. Grande parte desse pessoal não faz
filosofia. Nunca escreveram um texto “hard” em filosofia. Desconhecem técnicas
filosóficas de quaisquer correntes. Falam sobre algo, mas não fizeram o
que teriam de fazer para, depois, poderem optar em achar que existe ou não as
áreas da “filosofia” que eles criaram.
Pensem nisso. Com coragem, e não com preconceito
apenas porque foram pegos de calças curtas, até porque todos nós somos pegos de
calças curtas a todo momento, e temos de tentar nos recompor.