Ano I - Nº 01 - Maio de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

 

Um passeio pelo poema dia-a-dia de Amador Ribeiro Neto

 

Mario Donadon Leal *


dia-a-dia

     lua e poetas concretos passeiam no chão correto de perdizes
     sampa inunda-se em barracos norte-destinos do brasil liberal-gerou
     uma mulher se foi & veio se de longe se sem cajado
     assoviando dois rocks pauleiras de arnaldo antunes  titã  poeta
     a mulher gordabaixa  de olhos grossos na fotografia  da parede sem o
     destino  calejado  dos açuns volta disse que disse que volta
     sol de arames e néons na barraca hippie apesar de pós-tudo
     goiabada com queijo alfenim farinha seca gaiolas graviolas
     bips da voz sem nem vitrolas ora bolas cara desencana orra
    
 
Amador Ribeiro Neto é Professor de Teoria da Literatura na UFPB (Universidade Federal da Paraíba) e, atualmente, doutorando em Semiótica na PUC-SP, onde prepara trabalho nas áreas de poesia e música popular. Durante muitos anos, escreveu regularmente crítica literária em diversos jornais de São Paulo.  

Um passeio pelo dia-a-dia

A poesia de Amador é o estilo levado às últimas conseqüências. Não apenas pela força agressiva da palavra, mas também pela multiplicidade de imagens que surgem de seu interior. O poeta não adota o convencional em nenhum momento, como verificamos no seu dia-a-dia. Desde a forma algo salta aos olhos, a abolição de pontuação, maiúsculas ou rimas de qualquer tipo. A ausência de pontuação libera os significados das palavras nas diversas combinações imagináveis. Aqui, as palavras são seres em uma paisagem de existência nunca totalmente acabada, dispostas segundo uma gênese fenomenal em pleno devir no leitor-modelo, o qual se faz com poderes de criador de mundos no autor-modelo. As combinações entre os elementos semânticos da composição são tantas, que é razoável supor, no autor-modelo, a privação da idéia do âmbito. Daí ser o leitor-modelo essencial na criação da poesia aqui estudada.

O verso inaugural, como os demais em maior ou menor intensidade, é um enigma sempre de novo decifrado em co-enunciado diverso. Vôo: “lua e poetas concretos passeiam no chão correto de perdizes”. Estamos em Perdizes, melhor “perdizes”; nosso vôo é ao rés do “chão”, com “lua e poetas concretos”; “o chão correto” é chamado pelo artigo, mas não “lua”, não “poetas concretos”, que são essência daquela e destes; referimos ao vôo como passeio. Sem artigo não podemos desvelar a lua e nem os poetas concretos, no que há de concreto neles, fogem, não se demoram em presença, assim como demora-se “o chão correto”. O chão demora-se a servir de passeio a quem quer que vá & venha, a muitos destinos vãos – luas – outros menos vãos – concretos, quiçá. A presença do chão é a única certeza, o que há de “correto”, portanto não estaremos muito seguros em pleno vôo, um caçador qualquer sempre nos terá sob sua mira, podemos nos tornar um prato apetitoso. Mas, por outro (mais um só) lado, pode ser que “lua e poetas” passeiem “concretos (...) no chão”, pois é assim que devem fazer, assim devem proceder os narcisos: esse é o portar-se “correto de perdizes”.

Sim, estamos em São Paulo, melhor “sampa”: “sampa inunda-se em barracos norte-destinos do brasil liberal-gerou”. Também “sampa” não se demora, está na boca dos “norte-destinos” como o jargão dos sonhos, é amorfa como a cidade, nunca a mesma, está desacompanhada de artigo. Assim, também “barracos” é vai & vem, não se presentifica, levanta & inunda & cai, sem artigo. Mas eis que algo dura: “o brasil liberal-gerou”, o “brasil liberal” que liberou geral e “gerou” “destinos” cujo “norte”, rumo, “inunda-se em barracos”, na “sampa”, a tão reiterada e salvadora sampa. No modo inverso, nessa invasão desnorteada “sampa inunda-se em barracos”, transborda, sem poder conter os “norte-destinos” gerados por um “brasil liberal”.

Em particular, acompanhamos um destino: “uma mulher se foi & veio se de longe se sem cajado / assoviando dois rocks pauleiras de arnaldo antunes  titã  poeta”. Não podemos dizer como é essa mulher, se é uma coisa ou outra; assim como não podemos determinar onde estão as pausas, as quais estão ora aqui ora ali; nem se há pausa ou uma fusão de tempo-espaço. Vejamos: “uma mulher se foi & veio”, mas, quem sabe “se foi & veio”? se sim, foi & veio “de longe”? se sim, veio de longe “sem cajado”? Talvez a única coisa que saibamos é que “uma mulher” veio “assoviando dois rocks pauleiras de arnaldo antunes  titã  poeta”. Se o caos é completo, ele tem a sua forma de liberar geral em cada destino, naquilo que o “brasil liberal” emprestou dos pais liberais, os americanos, no rock. Assim cada um pode se sentir um “titã” na luta pela sobrevivência, ou, na pior das hipóteses, um “poeta”, ou ainda um consumidor de “rocks” do “arnaldo antunes” - esse sim o “titã poeta”. Não só o rock consomem os destinos, mas a própria essência do capitalismo está presente em cada inconsciente, veja o vai & vem do “&” comercial, um valor de troca.

A vida dos destinos continua. “a mulher gordabaixa  de olhos grossos na fotografia da parede sem o / destino calejado dos açuns volta disse que disse que volta”. A “gordabaixa” seria a mesma mulher do rock? não, é a dos “açuns”. Importa aqui é que a mulher tem um adjetivo que reúne altura e largura, o contrário do ideal de beleza moderno, como se o olhar estivesse escrevendo a personagem plana socialmente redonda. O verso terminado em artigo, retalhando o “destino” em duradouro e não duradouro, diz que o que se demora, e presentifica-se do destino “gordabaixa”, é a negação (“na fotografia da parede sem o...”); enquanto o que não se demora é “destino calejado dos açuns”: este, a essência do destino, é desilusão e é calejado, não dá em nada. Por isso mesmo, por ver o quanto de sonho existia naquele “norte”, no rumo tomado pela mulher “de olhos grossos na fotografia da parede” (o olho maior que a barriga!), a “mulher” de presença “gordabaixa” diz que “volta” para aquele sonho um dia fotografado na sua inteira presença, mas apenas diz. O falado é “disse que disse”: sabe que nunca mais vai voltar. Olha-se no retrato e não se vê: “volta”, então, para “destino calejado dos açuns”.

Pós-pós. “sol de arames e néons na barraca hippie apesar de pós-tudo / goiabada com queijo alfenim farinha seca gaiolas graviolas / bips da voz sem nem vitrolas ora bolas cara desencana orra / só” Alguns destinos a vender massas e doces e miudezas, outros a vender aparelhos eletrônicos, outros com bugigangas excêntricas. A miscelânea de substantivos de qualidade vária só é quebrada por: uma observação a respeito do “pós-tudo”, crítica revelada pelo “apesar de” refletindo o quão kitsh tornara-se o próprio ser “hippie”, este totalmente incorporado ao capitalismo; depois, pela seqüência de jargões próprios do universo hippie: “ora bolas cara desencana orra / só”. Isso é “só”?! Estando só diante do que se presenta, presentifica, tudo seria menos trágico se houvesse a possibilidade de inventar um novo “norte-destino”, de “desencanar”, mas isso não acontece. Amanhã, tudo renasce como fora hoje, como se fora agido por outro poder maior cada destino marginal, no dia-a-dia sem volta do eterno retorno.

Amador Ribeiro consegue, assim, laborar, lavrar ao máximo as palavras para apanhar um ser complexo. Nosso trabalho quis mostrar que o autor-modelo nascido dessa lavra é caracteristicamente fértil nas combinações semânticas, sendo, por isso, apropriado a uma análise estilística desse tipo. Poderíamos encontrar outras imagens extremamente expressivas, mas, para o nosso intuito, basta isso como forma de iniciar uma futura investigação mais aprofundada.

* Acadêmico do 1º ano de Filosofia na Universidade Estadual de Maringá