Ano I - Nº 01 - Maio de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

 

Aspectos políticos de “O Leopardo” de Tomasi di Lampedusa

 

André Del Grossi Assumpção [i]

 

 

RESUMO: “O Leopardo” de Tomasi di Lampedusa é romance histórico-político que ilustra a composição de interesses entre a velha nobreza siciliana e a burguesia nascente. Conceitos usados por Bobbio, como o de poder político, econômico e ideológico são perfeitamente aplicados ao texto. Antes conexas que isoladas, estas formas do poder se completam. O Dom Fabrizio da obra de Lampedusa é o patrão de muitos empregados, é um intelectual próximo à Igreja local, detém apoio armado da monarquia. A passagem destes elementos à burguesia transfere poder e força-o, como a todos os outros nobres de seu tempo, a transigir amargamente.

 

A obra de Lampedusa

Quando Giusepe Tomasi, príncipe de Lampedusa, escreveu sua obra prima na década de cinqüenta deste século, tinha perfeita consciência da carga histórica que ela trazia. Publicamente manifestou em vida o desejo de escrever sobre a Sicília de seu bisavô paterno, Giulio di Lampedusa, astrônomo como o Dom Fabrizio de seu livro, provavelmente tão desapontado com os acontecimentos de seu tempo quanto o personagem da Casa dos Salina. Portanto, a história de Dom Fabrizio, sua decadência e a de sua família; o enlace de Tancredi com Angelica, filha do burguês ascendente; a solidão da filha Concetta, tudo isso tem enquadramento num momento determinado. Esse momento é o da adesão siciliana à unificação da Itália na segunda metade do século XIX, descritas as condições em que se inicia a ação de Garibaldi, desembarcando na ilha com seus revoltosos camisas vermelhas e sendo depois afastado de um governo que interrompe diversas das reformas a que se propunha o movimento, quando assume a dinastia dos Savóia.

Como texto histórico, para além da prosa de ficção, o livro do príncipe de Lampedusa pode ser também estudado sob o ângulo político. Na leitura de “O Leopardo” observaram-se conceitos apresentados por Norberto Bobbio em “O Significado de Política”. Mais do que procurar a semântica da palavra, Bobbio apresenta os elementos de constituição do que vem a ser política. E o estudo do poder e dos fins da política dão o tom à análise de personagens e fatos no texto do romancista.  De um lado temos uma classe política em transição e ajustamento, de outro o estudo da atividade política voltado para certos objetivos. Aliás, a ordem e a estabilidade estão no centro dos acontecimentos do romance, onde tudo muda para que nada mude, buscada no caso uma determinada ordem em especial, aquela que garante a sobrevivência imediata da aristocracia.

Política e leopardos

O termo “política” é na Idade Moderna ligado a ações como “conquistar, manter, defender, ampliar, reforçar, abater, derrubar o poder estatal etc.” (Bobbio, O Significado..., p.6). Maquiavel é exemplo dessa nova disposição. Entendida assim como realização humana, a política está intimamente ligada ao poder, compreendido este como a posse dos meios, seja o domínio sobre outros ou sobre a natureza, para que na relação entre as pessoas se possa obter os efeitos desejados. É, assim, o poder de um homem sobre outro homem, possível em diversas formas; algo que na história dos Salina se evidencia. Na verdade o poder político é só uma das formas de poder. Na tradição clássica destacam-se o poder paterno, o despótico e o político. No jusnaturalismo de Locke apresentam-se o poder paterno, o poder despótico e poder civil. No entanto, mais científico é buscar a classificação usando por critério o meio usado pelo “sujeito ativo da relação para condicionar o comportamento do sujeito passivo”, de onde surgem três principais classes de poder. O primeiro é o poder econômico, que se pauta na posse de certos bens que, por sua escassez, induz outrem ao trabalho como condição de obtê-los. Outro é o poder ideológico, baseado na influência de alguém revestido de autoridade suficiente (sacerdotes, cientistas, intelectuais) para inculcar com eficiência suas idéias. Diferente destes é o poder político, que se apóia sobre a posse dos meios para o exercício da força física, poder de coação no seu sentido mais estrito. São as três formas juntas que normalmente fundam o poder num grupo social, advindas de subsistemas ao sistema social, respectivamente a organização das forças produtivas, a organização do consenso e a organização da coação. Prima o poder político, pois a ameaça de violência é sabidamente o derradeiro recurso da dominação.

Mas a atividade política não é orientada somente pela busca maquiavélica de poder. O poder pelo poder é a forma degenerada daquilo que, na realidade, tem tantos fins quantas são as metas definidas por um grupo específico. Se Lampedusa apresenta senhores ávidos por interromper o progresso “excessivo” das revoltas que se viam, então vemos claro o objetivo da manutenção de uma ordem, a saber, a ordem que tradicionalmente existe. Mas é clara a má-vontade do príncipe Salina quanto a qualquer tipo de mudança, pois qualquer alteração interfere inevitavelmente na sua condição aristocrática já tão ofendida. Situação em que o príncipe vê-se alijado de decisões que lhe dizem respeito, atividade política na qual o maior objetivo de sua classe é conservar-se. A previsão de um espaço acanhado no novo governo gera essa grande indisposição. Faz lembrar as diversas invasões que a ilha já sofreu. E talvez agora o destino de um Salina seja pior, entendido que não lhe será deixado seu pequeno domínio particular, formado por seus privilégios postos sobre suas terras. Essa indisposição que Dom Fabrizio externa, atribui mesmo a todos os sicilianos ao falar da natural imobilidade de seu povo. Nesse sentido é significativa a visita de Aimone Chevalley di Monterzuolo, secretário da prefeitura, a convidar o príncipe para o cargo de senador do novo Reino da Itália. O príncipe não o aceita porque, como explica,

“nós, os sicilianos, habituamo-nos durante uma longa, muito longa hegemonia de governantes que não eram da nossa religião, que não falavam a nossa língua, a mil sutilezas. Quem não fazia isto não podia escapar aos exatores bizantinos, aos emires berberes, aos vice-reis espanhóis. Agora fomos dobrados de novo, somos assim feitos. Disse adesão, não disse ‘participação’. Nestes seis últimos meses, desde que o Garibaldi dos senhores pôs o pé em Marsala, foram feitas demasiadas coisas sem nos consultarem para que se possa agora vir pedir a um membro da velha classe dirigente que as tome em mãos e as tome em bom termo. Não quero discutir neste momento se o que se fez foi mal ou bom; por minha conta, acho que muitas coisas foram más; (...) Na Sicília não importa fazer mal ou fazer bem: o pecado que nós, sicilianos, não perdoamos nunca é simplesmente o de ‘fazer’. Somos velhos, Chevalley, terrivelmente velhos. (...) Não o digo para lamentar-me: a culpa é nossa. Mas, de qualquer maneira, estamos cansados e vazios.” (LAMPEDUSA:1963, p.109).

E ainda diria :  “o sono (...) é o que os sicilianos querem, e eles odiarão sempre a quem quiser despertá-los, nem que seja  para lhes trazer os mais belos presentes; e, aqui entre nós, tenho fortes dúvidas de que o novo regime tenha muitos presentes para nós em sua bagagem” (LAMPEDUSA:1963, p.110).

E aí o fim da articulação política entre burguesia e aristocracia é a manutenção da ordem econômica, primordialmente dos grandes patrimônios. É o elo que une nova e antiga classes dominantes, no momento determinado. A despeito de instantes específicos, Bobbio ensina que a segurança interna e externa e a ordem pública são o fim mínimo de qualquer política; ao qual se integra como instrumento o monopólio da força.

Ao acatarmos a definição de política de Schmit, relação amigo-inimigo, destacam-se as relações de antagonismo entre homens e grupos sociais. No romance em questão a oposição formadora da política é basicamente entre burguesia e velha nobreza, mas, ainda observando sobre o ponto de vista de amizade e inimizade, podemos apontar que a união entre esses grupos na instalação do novo governo responde a interesses conjunturais, do momento. As classes mais fortes compõem-se para afastar um inimigo comum: as camadas mais baixas e suas aspirações. Por isso as propostas mais corajosas no campo social não são concretizadas ao fim de tudo. Não devemos aceitar a existência das ditas “necessidades históricas”, onde não sobra ao homem o arbítrio político, mas na naquele instante o príncipe tinha apenas duas prováveis conclusões dos fatos, garantir algum espaço junto à burguesia ou arriscar-se à República. Quando cabe ao príncipe escolher, a escolha já está feita, é ineficaz evitar que a burguesia avance. É possível, porém, evitar que os fatos desemboquem numa República, demasiadamente popular, algo ainda mais repulsivo para a nobreza que a aliança com os capitalistas. 

A política e o social, ou Estado e sociedade civil, como diz Bobbio, são mais apartados à medida que a atividade mercantil burguesa se desenvolve. Em “O Leopardo”, estamos vivendo já a consolidação de uma nova realidade estabelecida pela Revolução Industrial, em outros países da Europa e mesmo em alguns Estados italianos continentais. Os liberais do texto do príncipe de Lampedusa estão integrados nessa nova concepção de Estado. Onde a liberdade de iniciativa requer menor interferência, e onde já não cabem privilégios de nobreza feudal. Os Salina serão igualados a Dom Calógero na sua capacidade de juntar a si os fatores de poder.  Ao mesmo tempo se completa o impedimento da interferência desmedida da Moral junto ao governo. É de se lembrar que o principal alvo dos liberais são as terras da Santa Madre Igreja, o que não pareceria justo aos mais religiosos. Em nome da sobrevivência, podem-se ver nobres como Salina manifestarem vontade contrária à sua consciência, votando diferente do que diria a fidelidade ao rei. Mesmo os males de uma guerra são justificados porque “em contrapartida, teremos liberdade, segurança, menores impostos, facilidades, comércio, todos ficaremos melhor; só os padres vão perder”(LAMPEDUSA:1963, p.36).

Unificação italiana: a Política à época de Dom Fabrizio

A Sicília é a maior ilha do Mediterrâneo, separada da Itália continental pelo estreito de Messina. Sua localização incitou a cobiça estrategista estrangeira desde as mais antigas datas. Houve invasões gregas, cartaginesas, romanas e sarracenas (de muçulmanos norte-africanos). O clima mediterrâneo é ameno mas o solo siciliano é em geral pobre e no verão torna-se ressecado pela falta de chuvas, quando até mesmo os rios secam. Esta situação, que as modernas técnicas de irrigação só começam a alterar a partir de meados deste século XX, é bem evidenciada na obra de Lampedusa, principalmente nas descrições de Donnafugata, propriedade familiar do príncipe, onde a falta de água é patente e os poços servem tanto como fonte como cemitério de animais.

Vários foram os momentos de prosperidade na história da ilha, mas longo foi seu subdesenvolvimento. Desde o século XV as terras foram divididas em grandes propriedades que pertenciam a poucas famílias. As indústrias sempre foram, até a Segunda Guerra, raras, quase não as havia. Os fazendeiros praticavam uma agricultura sob métodos antiquados e faziam poucos esforços para evitar a erosão do solo. Daí a pobreza ser um dos males mais inquietantes entre a maioria da população, reforçando o poder econômico dos proprietários. Dom Fabrizio é um desses grandes proprietários, e seu poder, nas formas do texto de Bobbio, vem diretamente da propriedade, em pleno acordo com a tradição feudal, em que o proprietário tem direito até sobre aqueles que sobre suas terras se instalam.

Em 1848 diversas revoltas despontaram na Áustria, França, vários Estados germânicos e todas as cidades importantes da Itália.  Sardenha e Nápoles ganharam Constituições, Milão expulsou os exércitos austríacos, novas Repúblicas surgiram em Veneza, Roma e Toscana. No ano seguinte a Áustria controlou as rebeliões. Vítor Emanuel II assume o trono da Sardenha. E o rei de Nápoles, Fernando II da Casa Bourbon, então fugido para a Sicília, parte integrante do Reino das Duas Sicílias, cancela a Constituição e tenta restabelecer seu absolutismo. Com a ajuda da França o Papa retoma para si Roma. As revoluções parecem terminadas. Mas a Sardenha manteve sua Constituição e a bandeira tricolor, símbolo do patriotismo italiano. Ao que parece é bandeira essa que Tancredi de “O Leopardo” promete trazer de suas campanhas junto aos liberais.

O primeiro-ministro Cavour da Sardenha trabalhou para projetar a imagem de um Estado progressista e independente, tomando a posição de porta-voz da Itália contra a Áustria. Essa liderança irritou os austríacos que abriram guerra, cedendo, porém, à resistência dos soldados italianos unidos aos franceses. Porém, Napoleão III da França estava descontente pelo que julgava excessivo poder da Sardenha afinal, e retira seu apoio. E quando Garibaldi, veterano da Guerra dos Farrapos, aqui no Brasil, avançou por mar sobre a Sicília com seus mil “camisas vermelhas”, vencendo as tropas napolitanas e alcançando o continente, a Sardenha de Cavour temeu que o ataque a Roma trouxesse França e Áustria contra eles. Medo ainda maior era o de que Garibaldi conseguisse estabelecer na Itália uma República, e não a Monarquia que se esperava. Então as tropas garibaldinas foram barradas pelas de Cavour. Vítor Emanuel II, dinastia de Savóia, proclamou o reino da Itália, em 1861. O povo aprovou a unificação através de um plebiscito, descrito no romance de que tratamos. De qualquer modo consumada a anexação do território, e convencido da necessidade de apoiar naquele momento os liberais, Dom Fabrizio havia difundido entre os seus o voto de “sim”.  No entanto a conversa com Dom Ciccio mostra-o que houve votos pelo “não”. Ele mesmo não se sente bem em votar a favor da unificação mas “nem mesmo concebia que se pudesse proceder de outra forma: “quer porque se estava perante um fato consumado, quer por respeito à teatral banalidade do ato; acrescenta-se ainda a necessidade histórica, e o receio pelas desgraças que aconteceriam às pessoas humildes se a sua atitude negativa fosse descoberta.”(LAMPEDUSA:1963, p.88). Se muitas pessoas não votaram o “sim” teria sido porque “havia entrado em jogo o maquiavelismo abstrato dos sicilianos que tantas vezes induzia essa gente (...)”, “Como clínicos muito hábeis que se tivessem baseado em análises de sangue e urina totalmente falseadas, e cuja correção não fizessem por preguiça excessiva, os sicilianos (de então) acabavam por matar o doente, ou seja, a si próprios, precisamente pela sua astúcia, quase nunca apoiada no conhecimento real dos problemas ou dos interlocutores.”(LAMPEDUSA:1963, p.88), “Alguns destes (...) julgavam impossível que um Príncipe de Salina pudesse votar a favor da Revolução (...) e interpretavam os seus raciocínios como ditos irônicos”. Aqueles que acreditaram no voto do príncipe consideraram-no insensato, “convencidos a não lhe dar ouvidos e obedecer, pelo contrário, ao provérbio milenar, que aconselha a preferir um mal já conhecido a um bem não experimentado”(LAMPEDUSA:1963, p.89), votando o “não” por essa razão ou por motivos pessoais de outra ordem.

A situação antes fragmentada da Itália não interessava aos objetivos comerciais dos burgueses italianos. Por isso liberais como Dom Calógero são essenciais na movimentação revolucionária. O continente, a partir de 1830, passa a acompanhar importante desenvolvimento industrial, e os investidores, principalmente dos Estados italianos mais avançados, sentiram necessidade de prover a centralização que expandiria seus negócios. Porém, esta classe sentia-se receosa quanto à instalação dos ideais republicanos. Não tinham ainda força suficiente para tomar para si o comando do governo. Assim, evitando as mudanças estruturais que a ameaçassem como classe proprietária, a burguesia busca a monarquia constitucional que pudesse com mais segurança desenvolver a economia. Ainda é a propriedade, e as rendas, que moldam a política do novo Estado, embora tudo tenha uma nova face. O verdadeiro maquiavelismo, como ação isenta da moral que deveria reger as ações individuais, foi  usar a população mais simples para atingir vitórias sem jamais pensar nas reformas que esta reclamava. Assim é demonstrado quando chegam Tancredi e seu amigo Cavriaghi à casa dos Salina, dirigindo-se ao príncipe: “Não se fala mais em garibaldinos, Tiozão. Nós fomo-lo, mas acabou-se. Cavriaghi e eu, graças a Deus, somos oficiais do exército regular de Sua Majestade, Rei da Sardenha por alguns meses ainda, da Itália dentro de pouco tempo. Quanto ao exército de Garibaldi, foi dissolvido e mandaram-nos escolher: ou voltar para casa, ou ficar nos exércitos do rei. Ele e eu, como muitos outros, entramos no exército, no ‘verdadeiro’ ” (LAMPEDUSA:1963, p. 122).

Marcantes as declarações emocionadas de Dom Ciccio Tumeo: “Há muito pano para manga para traficantes como Sedàra, para quem o lucro é uma lei da natureza. Para nós, a arraia miúda, as coisas ficam na mesma” e continua “Era ‘súdito fiel’, virei um ‘bourbônico sujo’. Agora toda a gente é ‘saboiana’!” (LAMPEDUSA:1963, p.94).

O poder econômico: as Revoluções

A história dos Salina é a todo momento apresentada segundo símbolos. A função de cada representação é elevar o enredo ao seu plano original, a história real da Itália. Assim, o casamento de Tancredi e Angélica quer dizer mais do que o casamento destas personagens, refere-se à articulação entre a antiga nobreza feudal e a burguesia ascendente. A “pílula amarga” que o Príncipe engoliu foi na verdade engolida por muitos nobres contemporâneos seus, e é isso que o autor quer nos trazer. Assim como os burgueses evitam avanços “demasiados” na sua política liberal, apoiando uma unificação monárquica. Também os aristocratas são impulsionados a participarem de uma aliança que sabem ser um duro golpe ao seu poder, mas necessária para evitar uma queda absoluta pelas mãos dos mais entusiásticos liberais. Da mesma forma a submissão do padre Pirrone a Dom Fabrizio não remete a outra coisa senão à relação entre a religião e os grandes senhores, situação que até a última página do livro é alterada, desfecho também mostrado de forma simbólica.

Conforme escreve Bobbio, embora seja o fator político de força o único capaz de, em última instância, fazer resistir um Estado, é de se notar que o fator econômico é muito significativo. O poder ideológico pode ser melhor exercido se acompanhado pela superioridade econômica. A violência poderá ser invocada com maior sucesso se houver recursos financeiros que possibilitem isso. Sendo a conjugação entre eles  que possibilitou e tem possibilitado a dominação por um ou outro grupo, tais fatores estão também presentes na família Salina. Primeiro é de se lembrar que a Sicília, embora tenha prosperado muitas vezes em sua longa história, tornou-se economicamente subdesenvolvida a partir do século XV. A maior parte das terras foi dividida em grandes propriedades, que pertenciam a um pequeno número de pessoas. As pessoas se empregavam no campo. Reforçam-se os laços de dependência entre a população miserável das “villas” e aqueles que têm o poder econômico.

Na Sicília da época a passagem do dinheiro dos aristocratas aos burgueses  representa, portanto, passagem de poder. Dom Calógero é extremamente avarento, mas, “quando é preciso, sabe gastar; e porque cada ‘tari’ que se gasta neste mundo vai parar nos bolsos de alguém, acontece que neste momento muita gente depende dele” (LAMPEDUSA:1963, p.97). Aqui não está outra coisa senão a descrição do poder econômico tratado por Bobbio. E se ao burguês se deve a perda de poder dos nobres, é ao mesmo Dom Calógero , “às suas intrigas obscuras, à sua avareza e avidez tenazes que se devia o sentido de morte que, agora, claramente, ensombrecia estes palácios”. (.P.179). Juntamente com a riqueza crescia também a influência política: “tornara-se chefe dos liberais na povoação e até nos lugares vizinhos; quando se fizessem as eleições tinha a certeza de que seria feito deputado.”(LAMPEDUSA:1963, p.58).  O príncipe chega a ironicamente recomendá-lo ao Senado: “Ele tem mais méritos que eu (...); mais do que aquilo que o senhor chama prestígio, ele tem o poder” (LAMPEDUSA:1963, p.110).  E a idéia de apresentar-se inferior assusta a Dom Fabrizio:  “ Não só ele, o príncipe, não era já o maior proprietário de Donnafugata, como era obrigado a receber em traje de tarde um convidado que se apresentava em traje de cerimônia.” (LAMPEDUSA:1963, p.67).

É essencial considerar a situação de um príncipe como Dom Fabrizio, suas posses são antigas, passaram por aquele reforço do feudalismo no século XV, como dissemos.  Aí se insere o atraso da região em relação às outras áreas da Europa e ainda a cidades italianas como Florença, refúgios de idéias republicanas, destacadando-se ainda nos primórdios do Renascimento. O poder do Príncipe vem de sua propriedade, sobre terras e também sobre pessoas que nelas vivam. Exerce o poder em seu direito de dono. As “villas” pertenciam ao senhor e eram apenas administradas por um síndico. Os principados da ilha não resistiriam às intenções liberais que ideário da República trazia. Já decadentes, os príncipes sabem, contudo, que somente com a manutenção de algumas distinções é que poderão sobreviver. Por isso negam seus laços com o monarca e apóiam os liberais. O trecho que melhor representa essa intenção é a argumentação de Tancredi ao seu tio quando parte para integrar os exércitos liberais, em favor da unificação. “Do lado do rei, com certeza, mas de que rei?” e “Se nós não estivermos lá, eles fazem uma República. Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”(LAMPEDUSA:1963, p.32).  Sobre o grifo que fizemos existe a referência à necessidade de projetar alterações para evitar mudanças significativas, fator maior de interesse político nas classes da obra de Lampedusa. Significa exatamente o reconhecimento do fortalecimento dos liberais. É também o mesmo critério que diferencia “Revoluções” e “revoluções”. As verdadeiras Revoluções alteram a base do sistema, mudam essencialmente as relações que caracterizam a organização social. Pretensiosas revoluções são aquelas que tratam da simples substituição de governos ou relações superficiais, sem interferir naquelas que realmente formam a base da construção social. A idéia de que as coisas não mudam prevê a sobrevivência da aristocracia. Pensamos que a história contada por Lampedusa pode ser entendida tanto por um como por outro ponto de vista. Não é Revolução se considerarmos que já era consagrada a atividade capitalista em desfavor do feudalismo e a unificação não alterará  a relação que as elites têm com a propriedade e a riqueza. Mas será uma Revolução se considerarmos que naquele momento se completa na Sicília o que já ocorrera em outras nações, a longa transição do feudalismo ao capitalismo. Os desgastes são calculados e melhor que deter-se fiel a um rei sem perspectivas é participar da atividade revolucionária e, terminados os confrontos, ter meios para barganhar junto ao novo rei por alguma segurança ao velho patrimônio. Tudo muda, mas na essência tudo fica como antes.  Não é desapercebido, porém, o fato de que os nobres não teriam jamais o poder que já tiveram. Isso porque:

“As riquezas com muitos séculos de existência haviam-se transformado em arrebiques, em luxo, em prazeres, e nada mais; a abolição dos direitos feudais decapitara ao mesmo tempo as obrigações e os privilégios; a riqueza, como um vinho velho, deixava cair no fundo da pipa as bôrras da cobiça, dos cuidados, e mesmo as da prudência, para conservar apenas o calor e a côr. E assim, acabava por se destruir a si própria: esta riqueza, que havia atingido o seu objetivo, compunha-se agora apenas de essências e, como essências, evaporava-se ràpidamente. E já algumas daquelas propriedades de ar festivo haviam levantado vôo e delas restavam apenas telas pintalgadas e os seus nomes. Outras pareciam aquelas andorinhas de setembro que, embora ainda presentes, já estão reunidas em grande gritaria nas árvores, prestes a partir. Mas eram tantas...; parecia que jamais poderiam acabar.” (LAMPEDUSA:1963, p.33).

É a consciência da degradação, aliada a uma boa dose de egoísmo, que proporciona o ajuste com os liberais no novo governo “Para nós, um paliativo que nos garanta mais cem anos de vida equivale à eternidade”.(LAMPEDUSA:1963, p.41). Isso reforçado pela já referida convicção de que nessa disputa ocorrerão “Negociações ao ritmo de descargas inofensivas. Depois tudo ficará na mesma, embora tudo tenha mudado.”(LAMPEDUSA:1963, p.34).

 

“Afinal, esta gente, êstes liberais do campo queriam, apenas, poder enriquecer mais fàcilmente. Era tudo. A andorinhas iriam levantar vôo mais cedo. E nada mais. De resto havia ainda muitas no ninho. (...) Muita coisa iria acontecer mas tudo seria uma comédia; uma ruidosa e romântica comédia com algumas gotas de sangue nas roupas burlescas. A Itália era o país dos reajustamentos, não havia nela a fúria francesa; mas também que havia acontecido de novo em França com exceção do movimento revolucionário de junho de 48?”(LAMPEDUSA:1963, p.37).

O poder político

Luigi Banzini, autor dos textos agrupados em “Os Italianos”, aponta quatro grandes males que caracterizaram, no seu modo de ver, a configuração do povo italiano.

O primeiro deles é a pobreza, marcante a concentração de riquezas. Em segundo temos a ignorância, que afasta o povo comum dos embates pelos rumos da política. Em terceiro vem a injustiça. Por todos os lugares da Itália há marcas de brutalidade e impunidade. Histórias de injustiças na atrasada Sicília são os instrumentos de Tancredi para divertir-se com os temores do secretário da prefeitura, Chevalley di Monterzuolo, quando os visita para convidar o príncipe ao cargo de senador. Em quarto aparece o medo. Cada uma destas mazelas tem seu espaço na sociedade italiana, mas, como escreveu Banzini, o medo é fator mais destacado, tanto mais porque se forma a partir da conjugação dos outros problemas, derivando-se deles.  Do mesmo modo encontramos as colocações de Bobbio aplicada ao texto de Lampedusa. O mal da pobreza é a fonte do poder econômico.  A ignorância é campo fértil ao poder ideológico. Injustiça e medo estão presentes na eficácia da ação violenta, do poder político na acepção de Bobbio. Assim como em “O Significado de Política”, prevalece o “argumento” coativo. A posição social de cada indivíduo é determinada pelo grau de medo que seja capaz de inspirar, em função direta do halo de temor que o circunda. Afora a propriedade de suas terras e a intimidação intelectual, o príncipe Salina detém também influência sobre a força policial, poder decorrente da proximidade da  aristocracia siciliana junto ao governo. Demonstra isso a passagem em que Dom Fabrizio e o padre Pirrone recebem acompanhamento de soldados na viagem até uma casa de prostituição na cidade (LAMPEDUSA:1963, p.27). O trecho que parece melhor simbolizar a decadência do poder político, este no conceito de Bobbio, é aquele em que o empregado Russo apresenta ao patrão o apoio de seus amigos, prometendo tranqüilidade na “villa”. “O príncipe sentia-se humilhado: neste momento via-se descido à categoria de protegido dos amigos de Russo; o seu único mérito, ao que parecia, era ser tio de Tancredi” e também “Dentro de uma semana acabarei por descobrir que vou salvar a vida porque tenho Bendicò aqui em casa”(LAMPEDUSA:1963, p.37).

Salvo o exagero, se as armas de um príncipe consistem em um cão, não há mais príncipe.

O poder ideológico

Acompanhando a perda de riqueza e poder político, desgastam-se as bases para o poder ideológico. Mas ainda por muito tempo a distinção de nobreza é capaz de comover os novos burgueses e tradicionalmente continua a colher alguma estima e admiração dos trabalhadores das “villas”. Porém a detenção de conhecimento e difusão das idéias aristocráticas por si sós não mais podem assegurar a primazia dos príncipes em relação aos homens ricos. Tal distinção se torna, assim, o arrimo em que se escoram senhores como Dom Fabrizio, algumas vezes compensando-se pelas perdas gerais, outras tentando colocar-se ao alto dos adversários, como no episódio em que o Príncipe se compraz do mau-gosto no  corte das roupas de Dom Calógero.

O conhecimento intelectual compõe também o poder ideológico. A astronomia era para o príncipe tal qual a “morfina” (LAMPEDUSA:1963, p.34) usada nos Estados Unidos, uma requintada distração que adormece os sentidos e evita ser mais dolorosa a decadência. Aliás, daí parece ser possível evidenciar uma metáfora que permeia todo o livro: a decadência dos aristocratas, do Príncipe Salina em especial, como uma “doença” que evolui inexoravelmente. A astronomia é morfina, para acalmar a angústia. A união à família de Dom Calógero é uma “pílula amarga”. O voto de “sim” no plebiscito pela unificação é um copinho de “óleo de rícino” (LAMPEDUSA:1963, p.91). Ora, o Príncipe está doente, seu mal é o enfraquecimento dos Salina. Mas esses “tratamentos” não levam à cura; são apenas paliativos. E a morte anda à espreita: “o aspecto do príncipe, seu rosto, tornaram-se tão solenes e sombrios que ele parecia caminhar atrás de um invisível carro fúnebre” (LAMPEDUSA:1963, p.90).  Nas páginas que cercam essa descrição se impõem as palavras luto e remorso pelo abandono à monarquia anterior. De qualquer forma, é logo aí anunciada a “concessão de um subsídio de duas mil liras para os esgotos, obra que terminaria no ano de 1961, como assegurou o síndico, caindo num daqueles ‘lapsus’ de que Freud deveria explicar o mecanismo muitas dezenas de anos depois”. Evidentemente, o erro de datas por esse síndico não foi  resultado de uma sua predisposição positiva. A Itália que nascia em Sicília com aquele plebiscito afastava então para sempre o velho Reino, e, sabia o Príncipe, também seu poder como já fora um dia.

Porém estava clara a grande composição que se faria ali. A burguesia detinha agora o poder econômico, o Estado italiano colocaria a força coativa a favor de quem lhe importasse. No entanto, a idéia de ascensão social inclui o ganho de títulos honoríficos; estes títulos estariam a venda de diversas formas, pelo casamento, pela fraude nas investigações genealógicas ou mesmo pela compra direta. Em sua mente o Príncipe dizia: “Vocês não nos querem aniquilar, a nós, os vossos ‘pais’. Querem apenas tomar o nosso lugar. Com doçura, com boas maneiras, metendo-nos talvez no bôlso alguns milhares de ducados.”(LAMPEDUSA:1963, p.91). Nesse momento os burgueses obterão títulos e Salina já pode ver o chamado Russo dizendo-se descendente de um grão-duque de Moscou, embora o nome russo provavelmente derive é da textura de seu cabelo, russo. Poderíamos dizer que nobres e burgueses realizam uma troca. De um lado burgueses abastados buscam nobreza, de outro aristocratas empobrecidos buscam dinheiro. “Tancredi era para Angelica a promessa de um primeiro lugar na alta sociedade siciliana, mundo que ela imaginava cheio de maravilhas bem diferentes do que na realidade aí existiam.” (LAMPEDUSA:1963, p.117). E “nos bailes de Palermo, afugentados os espectros da expropriação e da violência, as duzentas pessoas que compunham ‘a sociedade’ não se cansavam de encontrar-se, sempre as mesmas, para se congratularem de existir ainda” (LAMPEDUSA:1963, p.171). E, de forma geral, não é tão pesaroso tal encontro de classes porque  nas festas em Palermo “os palermitanos são italianos, tão sensíveis portanto quanto os outros ao fascínio da beleza e ao prestígio do dinheiro”(LAMPEDUSA:1963, p.175). Outros símbolos do poder ideológico dos Salina, como a capela por eles construída, pintada com leopardos, são igualmente perdidos até o final do livro. A perda da influência junto à Igreja é cabal quando se dá a visita do clérigo encarregado de “selecionar” o que é válido na capela da família. “Temos então de nos apresentar diante das pessoas das nossas relações como acusadas; isto de uma inspeção à nossa capela, desculpe-me que lhe diga, monsenhor, não devia sequer ter passado pela cabeça de Sua Eminência”(LAMPEDUSA:1963, p.204). “Esse papa faria melhor se se ocupasse do que lhe diz respeito”(LAMPEDUSA:1963, p.205).

“O prestígio do nome em si mesmo tinha-se desvanecido pouco a pouco. O patrimônio, dividido e redividido, na melhor das hipóteses, equivalia ao de tantas outras casas menos ilustres e era muitíssimo menor que o de alguns opulentos industriais. Mas, no que diz respeito à Igreja, às suas relações com ela, os Salina tinham sempre conservado a sua proeminência (...). Mas agora?” (LAMPEDUSA:1963, p.210).
 
Mesmo as lembranças, guardadas em telas e pequenos objetos, acabam por se esvaziar de sentido. Na consolidada realidade liberal da Itália unificada não há mais espaço para reais privilégios de nobreza e nome. Em “O Leopardo”, juntado esse termo ao fracasso pessoal na vida dos sucessores como Concetta, isso é simbolicamente apresentado no arremesso ao lixo de Bendicò empalhado. É ele a única lembrança forte dos tempos de ainda alguma distinção social e diferenciada dignidade. Na realidade não nesse ponto, mas bem antes disso, já estava a superação da antiga nobreza pela burguesia capitalizada.

Conclusões

“O Leopardo” retrata mais do que o drama da família Salina, mas a história de uma Sicília quase feudal em pleno século dezenove. Sob as lentes de “O Significado de Política”, de Bobbio, o livro se mostra vivo em exemplos e aplicações práticas da exposição sobre as formas de poder, os fins da política, as relações que configuram essa atividade humana, a atividade política. Os Salina tiveram o poder econômico, e com ele juntaram sob si mesmos diversas pessoas em suas “villas”. Fez-se presente o poder político, pois os instrumentos coativos do Estado se põem ao lado da classe mais privilegiada. E também cultivaram o poder ideológico; o príncipe tem perto de si a Igreja, representada tanto pela capela quanto pelo próprio padre Pirrone, trabalha uma ciência e recebeu educação distinta.

Nas dificuldades que o movimento revolucionário impõe é possível observar o ajustamento com os burgueses. Como foi escrito, as coisas teriam de mudar para que nada mudasse de verdade. O fim da política desse tempo, ou seja, os resultados buscados pela atividade política, parecem não ser outros que a manutenção de uma ordem específica e a estabilidade voltadas para o progresso comercial e industrial. As classes mais fortes temem mais que tudo a ameaça a suas vitórias econômicas. Enganados estariam, como sabemos, os grandes proprietários tradicionais de terras, sua decadência não será imediata mas virá certamente. O Príncipe “imaginou ser um imponente leopardo de pelo liso e perfumado que se preparava para despedaçar um chacalzinho amedrontado; mas, por uma daquelas involuntárias associações de idéias que são o flagelo das naturezas como a sua, veio-lhe à memória a imagem de um daqueles quadros históricos franceses nos quais desfilam marechais e generais austríacos, no ato da rendição, carregados de condecorações e penachos, perante um Napoleão irônico; eram mais elegantes que ele, sem dúvida, mas, seja como for, o vitorioso é o homenzinho de capote cinzento.” (LAMPEDUSA:1963, p.101).

Contrariando a dinamicidade que caberia à posição de mando, tal como Maquiavel teria exortado aos governantes, Dom Fabrizio não se rebela contra sua decadência. Se em algum momento se irrita, procura antes esquecer de tudo através da caça ou de viagens a suas propriedades. Cabe-lhe a pergunta de Tancredi “Cortejas a morte?” (LAMPEDUSA:1963, p.182). Resta-nos concluir que está contada a história de uma classe que se perde e sabe disso, e que com a monarquia savoiana apenas ganha tempo. Lembre-se que o cão empalhado Bendicò é o último vestígio do passado aristocrático. Extremamente significativo que a lembrança mais viva da nobreza dos Salina estivesse morta há várias décadas.

[i] Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Maringá

 


Bibliografia

BANZINI, Luigi. Os Italianos. Tradução de Newlands Neto. Rio de Janeiro: Civlização Brasileira, 1966.

BOBBIO, N.  Curso de Introdução à Ciência Política. O Significado de Política. s.n.

LAMPEDUSA, Tomasi di. O Leopardo. Tradução de Rui Cabeçadas. 3.Ed. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1963.

MAQUIAVEL. O Príncipe. Tradução Antonio Caruccio-Caporale. Porto Alegre: L & PM Pocket, 1999.