Ano I - Nº 01 - Maio de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178
Aspectos
políticos de “O Leopardo” de Tomasi di Lampedusa
André Del Grossi Assumpção [i]
RESUMO: “O Leopardo” de Tomasi di Lampedusa é romance histórico-político que ilustra a composição de interesses entre a velha nobreza siciliana e a burguesia nascente. Conceitos usados por Bobbio, como o de poder político, econômico e ideológico são perfeitamente aplicados ao texto. Antes conexas que isoladas, estas formas do poder se completam. O Dom Fabrizio da obra de Lampedusa é o patrão de muitos empregados, é um intelectual próximo à Igreja local, detém apoio armado da monarquia. A passagem destes elementos à burguesia transfere poder e força-o, como a todos os outros nobres de seu tempo, a transigir amargamente.
A obra de Lampedusa
Como texto histórico, para além da prosa de ficção, o livro do príncipe de Lampedusa pode ser também estudado sob o ângulo político. Na leitura de “O Leopardo” observaram-se conceitos apresentados por Norberto Bobbio em “O Significado de Política”. Mais do que procurar a semântica da palavra, Bobbio apresenta os elementos de constituição do que vem a ser política. E o estudo do poder e dos fins da política dão o tom à análise de personagens e fatos no texto do romancista. De um lado temos uma classe política em transição e ajustamento, de outro o estudo da atividade política voltado para certos objetivos. Aliás, a ordem e a estabilidade estão no centro dos acontecimentos do romance, onde tudo muda para que nada mude, buscada no caso uma determinada ordem em especial, aquela que garante a sobrevivência imediata da aristocracia.
Política e leopardos
O termo “política” é na Idade Moderna ligado
a ações como “conquistar, manter, defender, ampliar, reforçar, abater, derrubar
o poder estatal etc.” (Bobbio, O Significado..., p.6). Maquiavel é exemplo
dessa nova disposição. Entendida assim como realização humana, a política
está intimamente ligada ao poder, compreendido este como a posse dos meios,
seja o domínio sobre outros ou sobre a natureza, para que na relação entre
as pessoas se possa obter os efeitos desejados. É, assim, o poder de um homem
sobre outro homem, possível em diversas formas; algo que na história dos Salina
se evidencia. Na verdade o poder político é só uma das formas de poder. Na
tradição clássica destacam-se o poder paterno, o despótico e o político. No
jusnaturalismo de Locke apresentam-se o poder paterno, o poder despótico e
poder civil. No entanto, mais científico é buscar a classificação usando por
critério o meio usado pelo “sujeito ativo da relação para condicionar o comportamento
do sujeito passivo”, de onde surgem três principais classes de poder. O primeiro
é o poder econômico, que se pauta na posse de certos bens que, por sua escassez,
induz outrem ao trabalho como condição de obtê-los. Outro é o poder ideológico,
baseado na influência de alguém revestido de autoridade suficiente (sacerdotes,
cientistas, intelectuais) para inculcar com eficiência suas idéias. Diferente
destes é o poder político, que se apóia sobre a posse dos meios para o exercício
da força física, poder de coação no seu sentido mais estrito. São as três
formas juntas que normalmente fundam o poder num grupo social, advindas de
subsistemas ao sistema social, respectivamente a organização das forças produtivas,
a organização do consenso e a organização da coação. Prima o poder político,
pois a ameaça de violência é sabidamente o derradeiro recurso da dominação.
Mas a atividade política não é orientada somente
pela busca maquiavélica de poder. O poder pelo poder é a forma degenerada
daquilo que, na realidade, tem tantos fins quantas são as metas definidas
por um grupo específico. Se Lampedusa apresenta senhores ávidos por interromper
o progresso “excessivo” das revoltas que se viam, então vemos claro o objetivo
da manutenção de uma ordem, a saber, a ordem que tradicionalmente existe.
Mas é clara a má-vontade do príncipe Salina quanto a qualquer tipo de mudança,
pois qualquer alteração interfere inevitavelmente na sua condição aristocrática
já tão ofendida. Situação em que o príncipe vê-se alijado de decisões que
lhe dizem respeito, atividade política na qual o maior objetivo de sua classe
é conservar-se. A previsão de um espaço acanhado no novo governo gera essa
grande indisposição. Faz lembrar as diversas invasões que a ilha já sofreu.
E talvez agora o destino de um Salina seja pior, entendido que não lhe será
deixado seu pequeno domínio particular, formado por seus privilégios postos
sobre suas terras. Essa indisposição que Dom Fabrizio externa, atribui mesmo
a todos os sicilianos ao falar da natural imobilidade de seu povo. Nesse sentido
é significativa a visita de Aimone Chevalley di Monterzuolo, secretário da
prefeitura, a convidar o príncipe para o cargo de senador do novo Reino da
Itália. O príncipe não o aceita porque, como explica,
“nós, os sicilianos, habituamo-nos durante
uma longa, muito longa hegemonia de governantes que não eram da nossa religião,
que não falavam a nossa língua, a mil sutilezas. Quem não fazia isto não podia
escapar aos exatores bizantinos, aos emires berberes, aos vice-reis espanhóis.
Agora fomos dobrados de novo, somos assim feitos. Disse adesão, não disse
‘participação’. Nestes seis últimos meses, desde que o Garibaldi dos senhores
pôs o pé em Marsala, foram feitas demasiadas coisas sem nos consultarem para
que se possa agora vir pedir a um membro da velha classe dirigente que as
tome em mãos e as tome em bom termo. Não quero discutir neste momento se o
que se fez foi mal ou bom; por minha conta, acho que muitas coisas foram más;
(...) Na Sicília não importa fazer mal ou fazer bem: o pecado que nós, sicilianos,
não perdoamos nunca é simplesmente o de ‘fazer’. Somos velhos, Chevalley,
terrivelmente velhos. (...) Não o digo para lamentar-me: a culpa é nossa.
Mas, de qualquer maneira, estamos cansados e vazios.” (LAMPEDUSA:1963, p.109).
E ainda diria : “o sono (...) é o que os sicilianos querem, e eles odiarão sempre a quem quiser despertá-los, nem que seja para lhes trazer os mais belos presentes; e, aqui entre nós, tenho fortes dúvidas de que o novo regime tenha muitos presentes para nós em sua bagagem” (LAMPEDUSA:1963, p.110).
E aí o fim da articulação política entre burguesia e aristocracia é a manutenção da ordem econômica, primordialmente dos grandes patrimônios. É o elo que une nova e antiga classes dominantes, no momento determinado. A despeito de instantes específicos, Bobbio ensina que a segurança interna e externa e a ordem pública são o fim mínimo de qualquer política; ao qual se integra como instrumento o monopólio da força.
Ao acatarmos a definição de política de Schmit, relação amigo-inimigo, destacam-se as relações de antagonismo entre homens e grupos sociais. No romance em questão a oposição formadora da política é basicamente entre burguesia e velha nobreza, mas, ainda observando sobre o ponto de vista de amizade e inimizade, podemos apontar que a união entre esses grupos na instalação do novo governo responde a interesses conjunturais, do momento. As classes mais fortes compõem-se para afastar um inimigo comum: as camadas mais baixas e suas aspirações. Por isso as propostas mais corajosas no campo social não são concretizadas ao fim de tudo. Não devemos aceitar a existência das ditas “necessidades históricas”, onde não sobra ao homem o arbítrio político, mas na naquele instante o príncipe tinha apenas duas prováveis conclusões dos fatos, garantir algum espaço junto à burguesia ou arriscar-se à República. Quando cabe ao príncipe escolher, a escolha já está feita, é ineficaz evitar que a burguesia avance. É possível, porém, evitar que os fatos desemboquem numa República, demasiadamente popular, algo ainda mais repulsivo para a nobreza que a aliança com os capitalistas.
A política e o social, ou Estado e sociedade
civil, como diz Bobbio, são mais apartados à medida que a atividade mercantil
burguesa se desenvolve. Em “O Leopardo”, estamos vivendo já a consolidação
de uma nova realidade estabelecida pela Revolução Industrial, em outros países
da Europa e mesmo em alguns Estados italianos continentais. Os liberais do
texto do príncipe de Lampedusa estão integrados nessa nova concepção de Estado.
Onde a liberdade de iniciativa requer menor interferência, e onde já não cabem
privilégios de nobreza feudal. Os Salina serão igualados a Dom Calógero na
sua capacidade de juntar a si os fatores de poder. Ao mesmo tempo se completa o impedimento da
interferência desmedida da Moral junto ao governo. É de se lembrar que o principal
alvo dos liberais são as terras da Santa Madre Igreja, o que não pareceria
justo aos mais religiosos. Em nome da sobrevivência, podem-se ver nobres como
Salina manifestarem vontade contrária à sua consciência, votando diferente
do que diria a fidelidade ao rei. Mesmo os males de uma guerra são justificados
porque “em contrapartida, teremos liberdade, segurança, menores impostos,
facilidades, comércio, todos ficaremos melhor; só os padres vão perder”(LAMPEDUSA:1963,
p.36).
Unificação italiana: a Política à época
de
A Sicília é a maior ilha do Mediterrâneo,
separada da Itália continental pelo estreito de Messina. Sua localização incitou
a cobiça estrategista estrangeira desde as mais antigas datas. Houve invasões
gregas, cartaginesas, romanas e sarracenas (de muçulmanos norte-africanos).
O clima mediterrâneo é ameno mas o solo siciliano é em geral pobre e no verão
torna-se ressecado pela falta de chuvas, quando até mesmo os rios secam. Esta
situação, que as modernas técnicas de irrigação só começam a alterar a partir
de meados deste século XX, é bem evidenciada na obra de Lampedusa, principalmente
nas descrições de Donnafugata, propriedade familiar do príncipe, onde a falta
de água é patente e os poços servem tanto como fonte como cemitério de animais.
Vários foram os momentos de prosperidade na
história da ilha, mas longo foi seu subdesenvolvimento. Desde o século XV
as terras foram divididas em grandes propriedades que pertenciam a poucas
famílias. As indústrias sempre foram, até a Segunda Guerra, raras, quase não
as havia. Os fazendeiros praticavam uma agricultura sob métodos antiquados
e faziam poucos esforços para evitar a erosão do solo. Daí a pobreza ser um
dos males mais inquietantes entre a maioria da população, reforçando o poder
econômico dos proprietários. Dom Fabrizio é um desses grandes proprietários,
e seu poder, nas formas do texto de Bobbio, vem diretamente da propriedade,
em pleno acordo com a tradição feudal, em que o proprietário tem direito até
sobre aqueles que sobre suas terras se instalam.
Em 1848 diversas revoltas despontaram na Áustria,
França, vários Estados germânicos e todas as cidades importantes da Itália.
Sardenha e Nápoles ganharam Constituições, Milão expulsou os exércitos
austríacos, novas Repúblicas surgiram em Veneza, Roma e Toscana. No ano seguinte
a Áustria controlou as rebeliões. Vítor Emanuel II assume o trono da Sardenha.
E o rei de Nápoles, Fernando II da Casa Bourbon, então fugido para a Sicília,
parte integrante do Reino das Duas Sicílias, cancela a Constituição e tenta
restabelecer seu absolutismo. Com a ajuda da França o Papa retoma para si
Roma. As revoluções parecem terminadas. Mas a Sardenha manteve sua Constituição
e a bandeira tricolor, símbolo do patriotismo italiano. Ao que parece é bandeira
essa que Tancredi de “O Leopardo” promete trazer de suas campanhas junto aos
liberais.
O primeiro-ministro Cavour da Sardenha trabalhou
para projetar a imagem de um Estado progressista e independente, tomando a
posição de porta-voz da Itália contra a Áustria. Essa liderança irritou os
austríacos que abriram guerra, cedendo, porém, à resistência dos soldados
italianos unidos aos franceses. Porém, Napoleão III da França estava descontente
pelo que julgava excessivo poder da Sardenha afinal, e retira seu apoio. E
quando Garibaldi, veterano da Guerra dos Farrapos, aqui no Brasil, avançou
por mar sobre a Sicília com seus mil “camisas vermelhas”, vencendo as tropas
napolitanas e alcançando o continente, a Sardenha de Cavour temeu que o ataque
a Roma trouxesse França e Áustria contra eles. Medo ainda maior era o de que
Garibaldi conseguisse estabelecer na Itália uma República, e não a Monarquia
que se esperava. Então as tropas garibaldinas foram barradas pelas de Cavour.
Vítor Emanuel II, dinastia de Savóia, proclamou o reino da Itália, em 1861.
O povo aprovou a unificação através de um plebiscito, descrito no romance
de que tratamos. De qualquer modo consumada a anexação do território, e convencido
da necessidade de apoiar naquele momento os liberais, Dom Fabrizio havia difundido
entre os seus o voto de “sim”. No
entanto a conversa com Dom Ciccio mostra-o que houve votos pelo “não”. Ele
mesmo não se sente bem em votar a favor da unificação mas “nem mesmo concebia
que se pudesse proceder de outra forma: “quer porque se estava perante um
fato consumado, quer por respeito à teatral banalidade do ato; acrescenta-se
ainda a necessidade histórica, e o receio pelas desgraças que aconteceriam
às pessoas humildes se a sua atitude negativa fosse descoberta.”(LAMPEDUSA:1963,
p.88). Se muitas pessoas não votaram o “sim” teria sido porque “havia entrado
em jogo o maquiavelismo abstrato dos sicilianos que tantas vezes induzia essa
gente (...)”, “Como clínicos muito hábeis que se tivessem baseado em análises
de sangue e urina totalmente falseadas, e cuja correção não fizessem por preguiça
excessiva, os sicilianos (de então) acabavam por matar o doente, ou seja,
a si próprios, precisamente pela sua astúcia, quase nunca apoiada no conhecimento
real dos problemas ou dos interlocutores.”(LAMPEDUSA:1963, p.88), “Alguns
destes (...) julgavam impossível que um Príncipe de Salina pudesse votar a
favor da Revolução (...) e interpretavam os seus raciocínios como ditos irônicos”.
Aqueles que acreditaram no voto do príncipe consideraram-no insensato, “convencidos
a não lhe dar ouvidos e obedecer, pelo contrário, ao provérbio milenar, que
aconselha a preferir um mal já conhecido a um bem não experimentado”(LAMPEDUSA:1963,
p.89), votando o “não” por essa razão ou por motivos pessoais de outra ordem.
A situação antes fragmentada da Itália não
interessava aos objetivos comerciais dos burgueses italianos. Por isso liberais
como Dom Calógero são essenciais na movimentação revolucionária. O continente,
a partir de 1830, passa a acompanhar importante desenvolvimento industrial,
e os investidores, principalmente dos Estados italianos mais avançados, sentiram
necessidade de prover a centralização que expandiria seus negócios. Porém,
esta classe sentia-se receosa quanto à instalação dos ideais republicanos.
Não tinham ainda força suficiente para tomar para si o comando do governo.
Assim, evitando as mudanças estruturais que a ameaçassem como classe proprietária,
a burguesia busca a monarquia constitucional que pudesse com mais segurança
desenvolver a economia. Ainda é a propriedade, e as rendas, que moldam a política
do novo Estado, embora tudo tenha uma nova face. O verdadeiro maquiavelismo,
como ação isenta da moral que deveria reger as ações individuais, foi
usar a população mais simples para atingir vitórias sem jamais pensar
nas reformas que esta reclamava. Assim é demonstrado quando chegam Tancredi
e seu amigo Cavriaghi à casa dos Salina, dirigindo-se ao príncipe: “Não se
fala mais em garibaldinos, Tiozão. Nós fomo-lo, mas acabou-se. Cavriaghi e
eu, graças a Deus, somos oficiais do exército regular de Sua Majestade, Rei
da Sardenha por alguns meses ainda, da Itália dentro de pouco tempo. Quanto
ao exército de Garibaldi, foi dissolvido e mandaram-nos escolher: ou voltar
para casa, ou ficar nos exércitos do rei. Ele e eu, como muitos outros, entramos
no exército, no ‘verdadeiro’ ” (LAMPEDUSA:1963, p. 122).
Marcantes as declarações emocionadas de Dom
Ciccio Tumeo: “Há muito pano para manga para traficantes como Sedàra, para
quem o lucro é uma lei da natureza. Para nós, a arraia miúda, as coisas ficam
na mesma” e continua “Era ‘súdito fiel’, virei um ‘bourbônico sujo’. Agora
toda a gente é ‘saboiana’!” (LAMPEDUSA:1963, p.94).
O poder econômico: as Revoluções
A história dos Salina é a todo momento apresentada segundo símbolos. A função de cada representação é elevar o enredo ao seu plano original, a história real da Itália. Assim, o casamento de Tancredi e Angélica quer dizer mais do que o casamento destas personagens, refere-se à articulação entre a antiga nobreza feudal e a burguesia ascendente. A “pílula amarga” que o Príncipe engoliu foi na verdade engolida por muitos nobres contemporâneos seus, e é isso que o autor quer nos trazer. Assim como os burgueses evitam avanços “demasiados” na sua política liberal, apoiando uma unificação monárquica. Também os aristocratas são impulsionados a participarem de uma aliança que sabem ser um duro golpe ao seu poder, mas necessária para evitar uma queda absoluta pelas mãos dos mais entusiásticos liberais. Da mesma forma a submissão do padre Pirrone a Dom Fabrizio não remete a outra coisa senão à relação entre a religião e os grandes senhores, situação que até a última página do livro é alterada, desfecho também mostrado de forma simbólica.
Conforme escreve Bobbio, embora seja o fator
político de força o único capaz de, em última instância, fazer resistir um
Estado, é de se notar que o fator econômico é muito significativo. O poder
ideológico pode ser melhor exercido se acompanhado pela superioridade econômica.
A violência poderá ser invocada com maior sucesso se houver recursos financeiros
que possibilitem isso. Sendo a conjugação entre eles que possibilitou e tem possibilitado a dominação
por um ou outro grupo, tais fatores estão também presentes na família Salina.
Primeiro é de se lembrar que a Sicília, embora tenha prosperado muitas vezes
em sua longa história, tornou-se economicamente subdesenvolvida a partir do
século XV. A maior parte das terras foi dividida em grandes propriedades,
que pertenciam a um pequeno número de pessoas. As pessoas se empregavam no
campo. Reforçam-se os laços de dependência entre a população miserável das
“villas” e aqueles que têm o poder econômico.
Na Sicília da época a passagem do dinheiro
dos aristocratas aos burgueses representa,
portanto, passagem de poder. Dom Calógero é extremamente avarento, mas, “quando
é preciso, sabe gastar; e porque cada ‘tari’ que se gasta neste mundo vai
parar nos bolsos de alguém, acontece que neste momento muita gente depende
dele” (LAMPEDUSA:1963, p.97). Aqui não está outra coisa senão a descrição
do poder econômico tratado por Bobbio. E se ao burguês se deve a perda de
poder dos nobres, é ao mesmo Dom Calógero , “às suas intrigas obscuras, à
sua avareza e avidez tenazes que se devia o sentido de morte que, agora, claramente,
ensombrecia estes palácios”. (.P.179). Juntamente com a riqueza crescia também
a influência política: “tornara-se chefe dos liberais na povoação e até nos
lugares vizinhos; quando se fizessem as eleições tinha a certeza de que seria
feito deputado.”(LAMPEDUSA:1963, p.58). O príncipe chega a ironicamente recomendá-lo
ao Senado: “Ele tem mais méritos que eu (...); mais do que aquilo que o senhor
chama prestígio, ele tem o poder” (LAMPEDUSA:1963, p.110). E a idéia de apresentar-se inferior assusta
a Dom Fabrizio: “ Não só ele, o príncipe,
não era já o maior proprietário de Donnafugata, como era obrigado a receber
em traje de tarde um convidado que se apresentava em traje de cerimônia.”
(LAMPEDUSA:1963, p.67).
É essencial considerar a situação de um príncipe
como Dom Fabrizio, suas posses são antigas, passaram por aquele reforço do
feudalismo no século XV, como dissemos. Aí se insere o atraso da região em relação às outras áreas da Europa
e ainda a cidades italianas como Florença, refúgios de idéias republicanas,
destacadando-se ainda nos primórdios do Renascimento. O poder do Príncipe
vem de sua propriedade, sobre terras e também sobre pessoas que nelas vivam.
Exerce o poder em seu direito de dono. As “villas” pertenciam ao senhor e
eram apenas administradas por um síndico. Os principados da ilha não resistiriam
às intenções liberais que ideário da República trazia. Já decadentes, os príncipes
sabem, contudo, que somente com a manutenção de algumas distinções é que poderão
sobreviver. Por isso negam seus laços com o monarca e apóiam os liberais.
O trecho que melhor representa essa intenção é a argumentação de Tancredi
ao seu tio quando parte para integrar os exércitos liberais, em favor da unificação.
“Do lado do rei, com certeza, mas de que rei?” e “Se nós não estivermos lá,
eles fazem uma República. Se quisermos que tudo fique como está, é preciso
que tudo mude”(LAMPEDUSA:1963, p.32).
Sobre o grifo que fizemos existe a referência à necessidade de projetar
alterações para evitar mudanças significativas, fator maior de interesse político
nas classes da obra de Lampedusa. Significa exatamente o reconhecimento do
fortalecimento dos liberais. É também o mesmo critério que diferencia “Revoluções”
e “revoluções”. As verdadeiras Revoluções alteram a base do sistema, mudam
essencialmente as relações que caracterizam a organização social. Pretensiosas
revoluções são aquelas que tratam da simples substituição de governos ou relações
superficiais, sem interferir naquelas que realmente formam a base da construção
social. A idéia de que as coisas não mudam prevê a sobrevivência da aristocracia.
Pensamos que a história contada por Lampedusa pode ser entendida tanto por
um como por outro ponto de vista. Não é Revolução se considerarmos que já
era consagrada a atividade capitalista em desfavor do feudalismo e a unificação
não alterará a relação que as elites
têm com a propriedade e a riqueza. Mas será uma Revolução se considerarmos
que naquele momento se completa na Sicília o que já ocorrera em outras nações,
a longa transição do feudalismo ao capitalismo. Os desgastes são calculados
e melhor que deter-se fiel a um rei sem perspectivas é participar da atividade
revolucionária e, terminados os confrontos, ter meios para barganhar junto
ao novo rei por alguma segurança ao velho patrimônio. Tudo muda, mas na essência
tudo fica como antes. Não é desapercebido,
porém, o fato de que os nobres não teriam jamais o poder que já tiveram. Isso
porque:
“As riquezas com muitos séculos de existência
haviam-se transformado em arrebiques, em luxo, em prazeres, e nada mais; a
abolição dos direitos feudais decapitara ao mesmo tempo as obrigações e os
privilégios; a riqueza, como um vinho velho, deixava cair no fundo da pipa
as bôrras da cobiça, dos cuidados, e mesmo as da prudência, para conservar
apenas o calor e a côr. E assim, acabava por se destruir a si própria: esta
riqueza, que havia atingido o seu objetivo, compunha-se agora apenas de essências
e, como essências, evaporava-se ràpidamente. E já algumas daquelas propriedades
de ar festivo haviam levantado vôo e delas restavam apenas telas pintalgadas
e os seus nomes. Outras pareciam aquelas andorinhas de setembro que, embora
ainda presentes, já estão reunidas em grande gritaria nas árvores, prestes
a partir. Mas eram tantas...; parecia que jamais poderiam acabar.” (LAMPEDUSA:1963,
p.33).
“Afinal, esta gente, êstes liberais do campo queriam, apenas, poder enriquecer mais fàcilmente. Era tudo. A andorinhas iriam levantar vôo mais cedo. E nada mais. De resto havia ainda muitas no ninho. (...) Muita coisa iria acontecer mas tudo seria uma comédia; uma ruidosa e romântica comédia com algumas gotas de sangue nas roupas burlescas. A Itália era o país dos reajustamentos, não havia nela a fúria francesa; mas também que havia acontecido de novo em França com exceção do movimento revolucionário de junho de 48?”(LAMPEDUSA:1963, p.37).
O poder político
Luigi Banzini, autor dos textos agrupados em “Os Italianos”, aponta quatro grandes males que caracterizaram, no seu modo de ver, a configuração do povo italiano.
O primeiro deles é a pobreza, marcante a concentração
de riquezas. Em segundo temos a ignorância, que afasta o povo comum dos embates
pelos rumos da política. Em terceiro vem a injustiça. Por todos os lugares
da Itália há marcas de brutalidade e impunidade. Histórias de injustiças na
atrasada Sicília são os instrumentos de Tancredi para divertir-se com os temores
do secretário da prefeitura, Chevalley di Monterzuolo, quando os visita para
convidar o príncipe ao cargo de senador. Em quarto aparece o medo. Cada uma
destas mazelas tem seu espaço na sociedade italiana, mas, como escreveu Banzini,
o medo é fator mais destacado, tanto mais porque se forma a partir da conjugação
dos outros problemas, derivando-se deles. Do mesmo modo encontramos as colocações de
Bobbio aplicada ao texto de Lampedusa. O mal da pobreza é a fonte do poder
econômico. A ignorância é campo fértil
ao poder ideológico. Injustiça e medo estão presentes na eficácia da ação
violenta, do poder político na acepção de Bobbio. Assim como em “O Significado
de Política”, prevalece o “argumento” coativo. A posição social de cada indivíduo
é determinada pelo grau de medo que seja capaz de inspirar, em função direta
do halo de temor que o circunda. Afora a propriedade de suas terras e a intimidação
intelectual, o príncipe Salina detém também influência sobre a força policial,
poder decorrente da proximidade da aristocracia siciliana junto ao governo. Demonstra isso a passagem
em que Dom Fabrizio e o padre Pirrone recebem acompanhamento de soldados na
viagem até uma casa de prostituição na cidade (LAMPEDUSA:1963, p.27). O trecho
que parece melhor simbolizar a decadência do poder político, este no conceito
de Bobbio, é aquele em que o empregado Russo apresenta ao patrão o apoio de
seus amigos, prometendo tranqüilidade na “villa”. “O príncipe sentia-se humilhado:
neste momento via-se descido à categoria de protegido dos amigos de Russo;
o seu único mérito, ao que parecia, era ser tio de Tancredi” e também “Dentro
de uma semana acabarei por descobrir que vou salvar a vida porque tenho Bendicò
aqui em casa”(LAMPEDUSA:1963, p.37).
Salvo o exagero, se as armas de um príncipe
consistem em um cão, não há mais príncipe.
O poder ideológico
Acompanhando a perda de riqueza e poder político,
desgastam-se as bases para o poder ideológico. Mas ainda por muito tempo a
distinção de nobreza é capaz de comover os novos burgueses e tradicionalmente
continua a colher alguma estima e admiração dos trabalhadores das “villas”.
Porém a detenção de conhecimento e difusão das idéias aristocráticas por si
sós não mais podem assegurar a primazia dos príncipes em relação aos homens
ricos. Tal distinção se torna, assim, o arrimo em que se escoram senhores
como Dom Fabrizio, algumas vezes compensando-se pelas perdas gerais, outras
tentando colocar-se ao alto dos adversários, como no episódio em que o Príncipe
se compraz do mau-gosto no corte das
roupas de Dom Calógero.
O conhecimento intelectual compõe também o
poder ideológico. A astronomia era para o príncipe tal qual a “morfina” (LAMPEDUSA:1963,
p.34) usada nos Estados Unidos, uma requintada distração que adormece os sentidos
e evita ser mais dolorosa a decadência. Aliás, daí parece ser possível evidenciar
uma metáfora que permeia todo o livro: a decadência dos aristocratas, do Príncipe
Salina em especial, como uma “doença” que evolui inexoravelmente. A astronomia
é morfina, para acalmar a angústia. A união à família de Dom Calógero é uma
“pílula amarga”. O voto de “sim” no plebiscito pela unificação é um copinho
de “óleo de rícino” (LAMPEDUSA:1963, p.91). Ora, o Príncipe está doente, seu
mal é o enfraquecimento dos Salina. Mas esses “tratamentos” não levam à cura;
são apenas paliativos. E a morte anda à espreita: “o aspecto do príncipe,
seu rosto, tornaram-se tão solenes e sombrios que ele parecia caminhar atrás
de um invisível carro fúnebre” (LAMPEDUSA:1963, p.90).
Nas páginas que cercam essa descrição se impõem as palavras luto e
remorso pelo abandono à monarquia anterior. De qualquer forma, é logo aí anunciada
a “concessão de um subsídio de duas mil liras para os esgotos, obra que terminaria
no ano de 1961, como assegurou o síndico, caindo num daqueles ‘lapsus’ de
que Freud deveria explicar o mecanismo muitas dezenas de anos depois”. Evidentemente,
o erro de datas por esse síndico não foi
resultado de uma sua predisposição positiva. A Itália que nascia em
Sicília com aquele plebiscito afastava então para sempre o velho Reino, e,
sabia o Príncipe, também seu poder como já fora um dia.
Porém estava clara a grande composição que
se faria ali. A burguesia detinha agora o poder econômico, o Estado italiano
colocaria a força coativa a favor de quem lhe importasse. No entanto, a idéia
de ascensão social inclui o ganho de títulos honoríficos; estes títulos estariam
a venda de diversas formas, pelo casamento, pela fraude nas investigações
genealógicas ou mesmo pela compra direta. Em sua mente o Príncipe dizia: “Vocês
não nos querem aniquilar, a nós, os vossos ‘pais’. Querem apenas tomar o nosso
lugar. Com doçura, com boas maneiras, metendo-nos talvez no bôlso alguns milhares
de ducados.”(LAMPEDUSA:1963, p.91). Nesse momento os burgueses obterão títulos
e Salina já pode ver o chamado Russo dizendo-se descendente de um grão-duque
de Moscou, embora o nome russo provavelmente derive é da textura de seu cabelo,
russo. Poderíamos dizer que nobres e burgueses realizam uma troca. De um lado
burgueses abastados buscam nobreza, de outro aristocratas empobrecidos buscam
dinheiro. “Tancredi era para Angelica a promessa de um primeiro lugar na alta
sociedade siciliana, mundo que ela imaginava cheio de maravilhas bem diferentes
do que na realidade aí existiam.” (LAMPEDUSA:1963, p.117). E “nos bailes de
Palermo, afugentados os espectros da expropriação e da violência, as duzentas
pessoas que compunham ‘a sociedade’ não se cansavam de encontrar-se, sempre
as mesmas, para se congratularem de existir ainda” (LAMPEDUSA:1963, p.171).
E, de forma geral, não é tão pesaroso tal encontro de classes porque
nas festas em Palermo “os palermitanos são italianos, tão sensíveis
portanto quanto os outros ao fascínio da beleza e ao prestígio do dinheiro”(LAMPEDUSA:1963,
p.175). Outros símbolos do poder ideológico dos Salina, como a capela por
eles construída, pintada com leopardos, são igualmente perdidos até o final
do livro. A perda da influência junto à Igreja é cabal quando se dá a visita
do clérigo encarregado de “selecionar” o que é válido na capela da família.
“Temos então de nos apresentar diante das pessoas das nossas relações como
acusadas; isto de uma inspeção à nossa capela, desculpe-me que lhe diga, monsenhor,
não devia sequer ter passado pela cabeça de Sua Eminência”(LAMPEDUSA:1963,
p.204). “Esse papa faria melhor se se ocupasse do que lhe diz respeito”(LAMPEDUSA:1963,
p.205).
“O prestígio do nome em si mesmo tinha-se desvanecido pouco a pouco. O patrimônio, dividido e redividido, na melhor das hipóteses, equivalia ao de tantas outras casas menos ilustres e era muitíssimo menor que o de alguns opulentos industriais. Mas, no que diz respeito à Igreja, às suas relações com ela, os Salina tinham sempre conservado a sua proeminência (...). Mas agora?” (LAMPEDUSA:1963, p.210).
Conclusões
“O Leopardo” retrata mais do que o drama da
família Salina, mas a história de uma Sicília quase feudal em pleno século
dezenove. Sob as lentes de “O Significado de Política”, de Bobbio, o livro
se mostra vivo em exemplos e aplicações práticas da exposição sobre as formas
de poder, os fins da política, as relações que configuram essa atividade humana,
a atividade política. Os Salina tiveram o poder econômico, e com ele juntaram
sob si mesmos diversas pessoas em suas “villas”. Fez-se presente o poder político,
pois os instrumentos coativos do Estado se põem ao lado da classe mais privilegiada.
E também cultivaram o poder ideológico; o príncipe tem perto de si a Igreja,
representada tanto pela capela quanto pelo próprio padre Pirrone, trabalha
uma ciência e recebeu educação distinta.
Nas dificuldades que o movimento revolucionário impõe é possível observar o ajustamento com os burgueses. Como foi escrito, as coisas teriam de mudar para que nada mudasse de verdade. O fim da política desse tempo, ou seja, os resultados buscados pela atividade política, parecem não ser outros que a manutenção de uma ordem específica e a estabilidade voltadas para o progresso comercial e industrial. As classes mais fortes temem mais que tudo a ameaça a suas vitórias econômicas. Enganados estariam, como sabemos, os grandes proprietários tradicionais de terras, sua decadência não será imediata mas virá certamente. O Príncipe “imaginou ser um imponente leopardo de pelo liso e perfumado que se preparava para despedaçar um chacalzinho amedrontado; mas, por uma daquelas involuntárias associações de idéias que são o flagelo das naturezas como a sua, veio-lhe à memória a imagem de um daqueles quadros históricos franceses nos quais desfilam marechais e generais austríacos, no ato da rendição, carregados de condecorações e penachos, perante um Napoleão irônico; eram mais elegantes que ele, sem dúvida, mas, seja como for, o vitorioso é o homenzinho de capote cinzento.” (LAMPEDUSA:1963, p.101).
Contrariando
a dinamicidade que caberia à posição de mando, tal como Maquiavel teria exortado
aos governantes, Dom Fabrizio não se rebela contra sua decadência. Se em algum
momento se irrita, procura antes esquecer de tudo através da caça ou de viagens
a suas propriedades. Cabe-lhe a pergunta de Tancredi “Cortejas a morte?” (LAMPEDUSA:1963,
p.182). Resta-nos concluir que está contada a história de uma classe que se
perde e sabe disso, e que com a monarquia savoiana apenas ganha tempo. Lembre-se
que o cão empalhado Bendicò é o último vestígio do passado aristocrático.
Extremamente significativo que a lembrança mais viva da nobreza dos Salina
estivesse morta há várias décadas.
[i] Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Maringá
Bibliografia
BANZINI, Luigi. Os Italianos. Tradução
de Newlands Neto. Rio de Janeiro:
BOBBIO, N. Curso de Introdução à Ciência Política. O Significado de
Política. s.n.
LAMPEDUSA, Tomasi di. O Leopardo. Tradução
de Rui Cabeçadas. 3.Ed. São
MAQUIAVEL. O Príncipe. Tradução Antonio
Caruccio-Caporale. Porto Alegre: L &