“Tempos
Pós-Modernos”: o legado de Charlie Chaplin
Andréa Regina Previati *

Charlie
Chaplin soube retratar com brilhantismo, no filme "Tempos
Modernos", a situação pela qual passava
o homem com o advento da Revolução Industrial.
Sem dúvida, a invenção da máquina
a vapor foi o primeiro passo para uma transformação
assustadora que mais adiante se refletiria na vida do homem.
Essa invenção tão significativa para
a história da humanidade desencadeou não só
uma revolução tecnológica, mas também,
uma revolução de hábitos, costumes e
valores humanos.
A
busca incessante de acúmulo de bens e valores financeiros
pelos homens de negócio, aliada aos benefícios
da ciência e da técnica, fez com que tudo se
transformasse como num passe de mágica. Repentinamente,
o homem deixou de ser artesão para tornar-se operário
de fábrica. Isto significou a perda de seu poder (ou
direito) sobre o trabalho: ele deixou de ser livre para ser
explorado. Como artesão, o homem podia entender todo
o processo de fabricação de um produto. Além
disso, o artesão tinha a vantagem de trabalhar em sua
própria casa, fazendo seu trabalho de acordo com a
vontade e os desejos de seus "clientes". O trabalho
não era estressante, era recompensador e digno. Poderia-se
dizer que o inconveniente era a demora na execução
do trabalho pelo artesão, que trabalhava geralmente
sozinho.
Não
podemos negar que a Revolução Industrial provocou
igualmente mudanças importantes para a sociedade e
para o homem. As relações de vida e trabalho
das pessoas transformaram-se significativamente. E foram muitas!.
Com a descoberta do excedente pelo homem, teve início
todo o processo de transformações sociais. A
partir desse momento, o homem começou a viver sem fronteiras
e sem limites, como se tudo justificasse a obtenção
de mais e mais dinheiro. Aliás, o lema, desde então,
passou a ser: ter, seja o que for, a qualquer preço.
No
início da Revolução Industrial do século
XIX, acreditava-se que a abundância produziria a igualdade
social, mas, ao contrário, a abundância ficou
restrita há poucos e a tecnologia surgida com ela impediu
que todos usufruíssem, igualmente, de seus benefícios.
A segunda Revolução Industrial, iniciada no
século XX, parece ter mudado de rumo: o capitalista
continua produzindo com abundância, só que agora
com menos trabalho e, o que é mais importante, de forma
consumista e não produtiva. É a partir desse
momento que a humanidade deixa valores étnicos e sociais
de lado para, então, priorizar valores como a posse
e o poder, às custas da desigualdade social. Neste
sentido, parece que a humanidade está ameaçada.
É
importante ressaltar que, com a Revolução Industrial
e, conseqüentemente, com o surgimento da automação,
a humanidade vem usufruindo de benefícios antes inimagináveis,
que criaram novos hábitos e costumes na sociedade.
Pode-se dizer que Chaplin, artista dotado de grande sensibilidade
para retratar a realidade, anteviu, através desse filme,
o futuro da humanidade. Com a concretização
dessa antevisão, o futuro tornou-se presente. Nos últimos
tempos, iniciamos um processo de desenvolvimento tão
avançado que nos comportamos exatamente como o personagem
vivido por Charlie Chaplin. Hoje,
os poucos operários de fábricas inseridos no
mercado de trabalho apertam tantos parafusos e são
tão estressados quanto os do filme.
Entretanto,
o foco de análise hoje é outro. Ao contrário
do que é demonstrado no filme, enfrentamos o problema
da falta de emprego e não o excesso dele. A máquina,
considerada por muitos como a "grande vilã",
reduziu paulatinamente postos de trabalho, ocupando espaços
em nossas vidas, tão vertiginosamente, que nem nos
apercebemos da rapidez com que se deu essa invasão.
Primeiramente,
nosso local de trabalho, com a aposentadoria da máquina
de escrever. Em seguida, nossa casa foi invadida por aparelhos
de todo tipo: liquidificador, espremedor de frutas, batedeira,
máquina de lavar e secar roupas, forno de microondas,
televisor, vídeo-cassete e uma infinidade de produtos
para se apertar botões. Agora, a máquina invadiu
um espaço precioso para o homem: o lazer. Precioso
porque, parafraseando Marx, o lazer é o espaço
reservado à liberdade individual, no qual poderemos
nos dedicar ao desenvolvimento intelectual. Infelizmente,
isso pouco acontece; por comodidade e facilidade, preferimos
nos restringir apenas a assistir um programa na TV, jogar
vídeo game ou navegar horas a fio pela internet. É
claro que todas essas vantagens advindas com a tecnologia
sugiram como uma evolução "natural",
em benefício da humanidade. O problema está
na direção que essa evolução está
caminhando. Tudo nos é apresentado como se fosse muito
rápido, fácil e vantajoso, mas temos que refletir
continuamente sobre as facilidades e comodidades promovidas
pelo capitalismo moderno.
Quanto
à produção do saber, podemos dizer que
há dois tipos de cientistas: aquele realmente preocupado
com o progresso e desenvolvimento do saber humano, e aquele
que se apropria da ciência para condicionar o comportamento
humano à aceitação de uma idéia.
Devemos ficar atentos a este último, pois seu objetivo
não é mais do que obscurecer a verdade, persuadindo-nos
a tomar atitudes e praticar ações impensadas.
Neste caso, há que se pensar numa democratização
da ciência, para que todos, indistintivamente, possam
ter condições de distinguir o real do simbolicamente
colocado em nossas mentes.
Sobre
essa discussão, segundo Marilena Chauí, existe
outra forma mais sutil e perfeita de autoritarismo dos dominantes
(sem considerar o uso da força, da repressão):
a idéia de razão e de racionalidade que legitima
a autoridade. O autoritarismo é favorecido pelo modo
de produção capitalista porque o capital é
dotado de racionalidade própria, conferindo-lhe a aparência
de organização do real e a inteligibilidade.
Neste caso, ainda segundo Chauí, a dominação
não aparece na sua forma "clássica"
(agentes sociais e políticos), mas de forma impessoal,
através de uma razão inscrita nas próprias
coisas. A dominação não é visível
aos olhos do dominados porque há um discurso voltado
para ocultar as contradições da sociedade, utilizando
para isso a falácia da ciência enquanto verdade
absoluta.
"A
finalidade do discurso dominante (científico), enquanto
discurso sábio e culto, é o de uniformizar
e homogeneizar o social e o político, apagando a
existência efetiva das contradições,
dos antagonismos e das diferenças que se exprimem
como luta de classes" (CHAUÍ, s/d, p. 133).
O
progresso técnico, o grande responsável pelos
avanços que presenciamos hoje na sociedade, tornou
possível restringir a centralização de
poder a uma pequena parcela da população. A
ciência, neste caso, foi (e continua sendo) utilizada
para manipular uma população desorientada que
sucumbe a quaisquer tipos de idéias impostas como verdadeiras.
É espantoso verificar que algumas ciências vêm
sendo utilizadas de forma negativa, através da manipulação
do comportamento humano.
Muitos
estudiosos afirmam que o problema mais sério trazido
pelo saber científico à humanidade foi o de
procurar ordem em tudo, até no sistema de idéias.
Isso é perigoso, pois leva ao despotismo. A organização
é indispensável, sabemos disso, mas dentro de
uma sociedade regida por princípios de cooperação.
Os
efeitos desumanizadores da superorganização
advindos dos princípios científicos são
observados na busca incessante por previsibilidade de atitudes
e comportamentos, o que demonstra que o homem vem sendo comparado
a uma máquina. Muitos grupos sociais dominantes já
estão construindo uma "sociedade controlada",
composta por indivíduos uniformes, individualistas
e consumistas. Ciências que ganham muito prestígio
hoje na sociedade são aquelas ligadas ao comportamento
humano, como a Psicologia, a Neurolingüística
e o Marketing, que, utilizadas por grupos com interesses puramente
econômicos, desenvolvem estudos que decifram nossas
emoções e atitudes. Ajudados por profissionais
desonestos, esses grupos almejam um comportamento previsível
da população, como acontece com uma máquina.
Somos condicionados, através da mídia, principalmente
a televisão, a nos comportar da forma como "eles"
desejam. A eficiência dos profissionais de Marketing
faz com que compremos tudo que é exposto na televisão;
os símbolos, cuidadosamente colocados em nossas mentes
através da persuasão psicológica, levam-nos
a consumir moda, gostos, hábitos, marcas e sonhos.
Um
bom exemplo desse processo manipulatório pode ser observado
em datas comemorativas importantes para o homem, datas essas
que atuam profundamente na psique das pessoas. Em dezembro,
mês de comemoração do Natal e um dos mais
lucrativos para o comércio mundial, observamos propagandas
maravilhosas na TV, carregadas de sentimentalismo e espírito
de bondade. Essas propagandas são, na realidade, cuidadosamente
estudas por profissionais de Marketing, ansiosos por ouvirem
o barulho da caixa registradora soar loucamente, dispostos
a tudo para que isso aconteça.
Vale
tudo neste jogo. Sendo assim, recebemos uma enxurrada de símbolos
de beleza, brilho, felicidade e harmonia, ligados a mercadorias
fúteis e, muitas vezes, sem propósitos e sem
utilidade. Em busca de felicidade e harmonia, compramos tudo
que vemos pela frente, numa compulsão frenética.
Na verdade, compramos ilusão. Em meio a uma ceia farta
e uma belíssima árvore de natal colorida, famílias
felizes trocam presentes e se cumprimentam, harmoniosamente,
em comemoração à data especial. Não
é de se estranhar que os consultórios de psicologia
clínica fiquem abarrotados na passagem de ano: as pessoas,
vendo tanta felicidade e harmonia na TV, frustram-se ao observarem
que a realidade é bem diferente daquela que lhe é
apresentada.
Devemos
estar atentos a todo tipo de mensagem transmitida; devemos
buscar a compreensão dos fatos de forma clara e completa,
pois a manipulação de nossos espíritos
é poderosa a ponto de fazer com que acreditemos que
agimos por conta própria, dando a impressão
de uma ação democratizada. Na verdade, o que
falta é uma mudança de comportamento das pessoas,
a fim de que haja o desenvolvimento de suas capacidades de
perceber as condições de existência e
os antagonismos existentes na sociedade.
Com
o século XXI batendo à porta, é hora
de repensar nossas atitudes, de ficar atentos às influências
e distrações divulgadas pelos meios de comunicação.
Devemos buscar valores perdidos pela humanidade como amor,
afeto, amizade, bondade, paciência, honestidade, únicos
bens realmente importantes para nós e que, infelizmente,
parecem estar esquecidos. Só assim poderemos alcançar
o sonho de sermos felizes de verdade, porque, como preconizou
Charlie Chaplin, "mais do que máquinas, precisamos
de humanidade".
* Pós-graduanda
em Ciências Sociais - Universidade Estadual de Maringá
(UEM); formada em Administração.