Ano I - Nº 04 - Maio de 2002 - Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

Narcorede institucional pública e o Estado paralelo ilícito: propondo a construção de novos conceitos e discutindo o Estado de Direito Democrático no Brasil

 

Adriano Oliveira [1]

No nosso país (Brasil), campeão mundial de má distribuição de renda, o narcotráfico prosperou e avança devido à falta de estratégias adequadas para fazer face á agilidade e à destreza dos contraventores. Argemiro Procópio [2]
A ‘cheirada’ de pó e o ‘baseadinho’ são elos de uma corrente de crimes que acaba no bandido viciado e na bala perdida. General Alberto Cardoso [3]
 

Resumo:

Este artigo mostra como o tráfico de drogas no Brasil proporciona o surgimento de um Estado paralelo ilícito e uma narcorede institucional pública. O artigo ainda evidencia como a existência de uma narcorede institucional pública e o desenvolvimento de um Estado paralelo ilícito contribuem para a descaracterização do Estado de Direito Democrático no Brasil. 

Palavras-chave: Narcotráfico; Instituições públicas; Estado de Direito democrático; Accountability.

Introdução:

O tema narcotráfico vem por muito tempo sendo notícia na esfera midiática mundial. A atenção da mídia a esse tema é provocada pelo fato de governos do mundo inteiro, e principalmente dos EUA e de países da América Lática, mas especificamente, Colômbia, Brasil e Bolívia, estarem com o narcotráfico inserido entre os principais problemas do país. No caso da Colômbia afirmo que o narcotráfico é o principal problema.

O narcotráfico surge como problema sério na sociedade contemporânea no instante que o compreendo como uma das variáveis causais para outros problemas. Dentre esses, encontram-se as práticas violentas na sociedade, a corrupção, a saúde pública, e mais recentemente, a partir da minha observação, a formação de uma narcorede institucional pública, caracterizada por práticas e atividades criminais, e o desenvolvimento de um Estado paralelo ilícito.     

O surgimento da narcorede institucional pública e o desenvolvimento de um Estado paralelo ilícito exigem uma definição teórica e a construção de um caminho metodológico, o qual tem como objetivo a coleta de dados que permita a comprovação empírica da existência dos conceitos criados. O caminho metodológico não abordarei neste artigo. Ficarei restrito apenas às definições conceituais.

Contudo, o principal objetivo deste artigo é responder ao seguinte problema: a existência de uma narcorede institucional pública e o desenvolvimento de um Estado paralelo ilícito contribuem para a descaracterização do Estado de Direito democrático no Brasil? 

Portanto, este artigo tem como objetivos definir teoricamente os conceitos de narcorede institucional pública e de Estado paralelo ilícito, responder ao problema proposto, e de também proporcionar uma discussão em torno da atualidade do narcotráfico no Brasil. 

1. Fundamentação teórica do Estado oficial como ordenamento jurídico e poder coercitivo:

Desde os tempos mais antigos a idéia de um poder soberano chefiando determinado território foi concebida [4] . Com o surgimento do Estado moderno, essa idéia se consolidou. Neste Estado, o poder soberano é o sujeito que põe as regras em um determinado território, e conseqüentemente, os membros da sociedade que ali estão estabelecidos, se sujeitam a elas (Bobbio, 1982, p. 25). Devemos compreender o poder soberano como aquele que está acima de qualquer grupo social e que possui o monopólio da força (Ibidem).

O Direito em uma sociedade é advindo do poder soberano. Defino o Direito como um conjunto de regras que se fazem valer por diversos meios, inclusive pela força (Ibidem). Esclareço que a teoria do Direito é explicada pela existência de regras coativas e pela emanação do poder soberano. Ambas explicações são convergentes (Ibidem). As explicações nos permitem entender que o Direito surge a partir do poder soberano, e este permite a existência de regras coativas [5] .

A definição do Direito através do poder soberano me permite afirmar que neste poder não existe apenas uma regra isolada, mas uma pluralidade. Sendo assim, existe um conjunto de regras, isto é, um ordenamento (Ibidem). Nesse sentido, o poder soberano surge como um conjunto de órgãos “através dos quais um ordenamento normativo é posto, conservado e se faz aplicar. E quais são esses órgãos é o próprio ordenamento que o estabelece”. (Ibidem).

Ressalto que se é verdade que um ordenamento jurídico é definido através “da soberania, é também verdade que a soberania em uma determinada sociedade se define através do ordenamento jurídico”. (Ibidem). Poder soberano e ordenamento jurídico são dois conceitos que se referem um ao outro. Portanto,

quando o direito é definido através do conceito de soberania, o que vem em primeiro plano não é a norma isolada, mas o ordenamento; dizer que a norma jurídica é a emanada do poder soberano equivale a dizer que a norma jurídica é aquela que faz parte de um determinado ordenamento. A soberania caracteriza não uma norma, mas um ordenamento; caracteriza a norma apenas enquanto ela é considerada como parte do ordenamento.(Ibidem).

Inerentes a um ordenamento estão presentes as sanções jurídicas. Essas só existem a partir da sua institucionalização e da existência de uma certa organização (Ibidem, p. 27). As sanções jurídicas existentes em um ordenamento correspondem ao poder coercitivo. Nesse sentido defino ordenamento jurídico como sendo um conjunto de normas, com eficácia reforçada (Ibidem, p. 66). Na constituição de um ordenamento devem concorrer mais de uma norma – pelo menos duas [6] (Bobbio, 1982, p. 31). Afirmo que a complexidade social contemporânea exige que normas sejam sempre criadas. 

As regras existentes em um ordenamento jurídico partem de diversas fontes. As fontes do direito são aquelas que produzem normas para o ordenamento presente (Ibidem, p. 45). Explico que o ordenamento jurídico além de regular o comportamento das pessoas, “regula também o modo pelo qual se deve produzir as regras”. (Ibidem).

Em um ordenamento jurídico encontramos a norma fundamental. Essa norma é o termo unificador das normas que compõe um ordenamento jurídico. A não existência de uma norma fundamental permite que o ordenamento jurídico seja um amontoado, e não um ordenamento (Ibidem, p. 49).

Por mais numerosas que sejam as fontes do direito em um ordenamento complexo, tal ordenamento constitui uma unidade pelo fato de que, direta ou indiretamente, com voltas mais ou menos tortuosas, todas as fontes do direito podem ser remontadas a uma única norma. Devido à presença, num ordenamento jurídico, de normas superiores e inferiores, ele tem uma estrutura hierárquica. As normas de um ordenamento são dispostas em ordem hierárquica. (Ibidem).

 

A norma fundamental pode ser compreendida como a lei máxima de um ordenamento jurídico, isto é, não existe outra acima dela (Ibidem, p. 61). Evidencio que a norma fundamental produz o poder constituinte (Ibidem, p. 59). Esclareço que a norma fundamental é singular, e o poder constituinte agrega uma pluralidade de normas. 

Diante da existência de um ordenamento jurídico surge a relação do poder e dever [7] . Em todo ordenamento jurídico existe uma norma que atribui a uma pessoa ou órgão o poder de estabelecer normas jurídicas. E ao mesmo tempo surgem pessoas com o dever de obedecer.

Os conceitos de poder e dever são correlatos; um não pode ficar sem o outro. Defino poder como a capacidade que o ordenamento jurídico atribui a esta ou àquela pessoa de colocar em prática obrigações em relação a outras pessoas; defino obrigação a atitude que é submetido aquele que está sujeito ao poder (Ibidem, p. 51 e 52). 

Devemos compreender que não há obrigação em um sujeito, sem que haja um poder em outro sujeito (Ibidem, p. 52). Isso é típico de uma relação social, a qual pode se desenvolver entre instituições [8] e pessoas; e pessoas com pessoas.  

É útil abordar a validade de uma norma jurídica em um ordenamento. Deve existir uma associação entre os termos validade e pertinência, isto é, uma norma é juridicamente válida, quando ela pertence a determinado ordenamento jurídico estabelecido. A norma jurídica é também tida como válida, quando ela obriga determinado indivíduo a obedecê-la. Caso ele não se conforme, ele receberá uma sanção. Saliento que toda norma válida advém de um poder legitimo estabelecido (Ibidem, p. 61).

Friso que a validade da norma jurídica de um ordenamento decorre da norma fundamental. A norma fundamental é o critério supremo que permite estabelecer se uma norma pertence a um ordenamento, e conseqüentemente se é válida. Ou melhor: a norma fundamental é o fundamento de validade de todas as normas. (Ibidem, p. 62).

A norma fundamental é o pressuposto do ordenamento:

Ela, num sistema normativo, exerce a mesma função que os postulados científicos. Os postulados são aquelas proposições primitivas das quais se deduzem outras, mas que, por sua vez, não são deduzíveis. Os postulados são colocados por convenção ou por uma pretensa evidência destes; o mesmo se pode dizer da norma fundamental: ela é uma convenção, ou, se quisermos, uma proposição evidente que é posta no vértice do sistema para que a ela se possam reconduzir todas as demais normas. (Ibidem).

 

Os dizeres acima permitem a construção da seguinte indagação: sobre o que a norma fundamental se funda? Respondo que a norma fundamental não se funda em outra norma. Caso isso existisse não seria uma norma fundamental. “Todo sistema tem um início. Perguntar o que estaria atrás desse início é problema estéril”. (Ibidem, p. 63).

Faz-se necessário explicar que as normas existentes em um ordenamento jurídico têm que estar num relacionamento de coerência entre si, permitindo a existência de uma unidade sistemática. A não existência da coerência acarreta a descaracterização do ordenamento, e por conseqüência, influencia na norma fundamental. Essa influência deve ser classificada como negativa, pois as normas derivadas do poder constituinte não estão em harmonia com a norma fundamental, e isso é prejudicial para o ordenamento jurídico (Ibidem, p. 71).

Em conformidade com os argumentos expostos, devemos compreender como ordenamentos jurídicos os diversos Estados modernos ocidentais. Neles encontro um poder constituinte ou poder soberano, regras coercitivas, relações de poder e dever, e instituições com funções estabelecidas. Por poder constituinte ou poder soberano cito como exemplo a Constituição Federal.

Compreendo como instituições as estruturas, as quais fazem parte de uma estrutura maior, que no caso seria o Estado, que agem, decidem, possuem interesses, impõem regras e são formadas por indivíduos. Saliento que as instituições podem ser públicas ou privadas (Elster, 1994, p. 174).

O Estado como um ordenamento jurídico se fundamenta no poder da coação. Se não fosse isso, não precisaria o Estado existir. De acordo com Weber (1999), se existissem apenas complexos sociais que desconhecessem o meio da coação, não precisaria existir Estado, pois ter-se-ia produzido “aquilo a que caberia a anarquia (...)” (p. 525).

A afirmação acima me faz chegar a seguinte conclusão: não temos o Direito em um ordenamento jurídico se não existe o poder de coação. Caso o Direito não exista em uma sociedade temos um retorno ao estado hobbesiano, onde as regras não são respeitadas pelos indivíduos.      

Compreendo que o Estado é uma relação de dominação de indivíduos sobre indivíduos, apoiada no meio da coação legitima (Ibidem, p. 526). Baseado nessa definição encontro o Estado racional, o qual corresponde a um grupo de dominação institucional com o monopólio da violência legitima (Ibidem, p. 525). Nesse caso, a coação é classificada como legitima por está fundamentada na legalidade, isto é, na crença dos indivíduos em relação às regras criadas pelo poder constituinte [9] .

A realidade brasileira pode ser fundamentada a partir da denominação de Estado racional. Observamos no Estado brasileiro um ordenamento jurídico detentor do poder da coação. O poder constituinte brasileiro, tomo como referência a Constituição Federal de 1988,  determina uma pluralidade de regras que devem regular a sociedade e as funções das diversas instituições públicas [10] nela existentes. Nessas instituições incluo as de poder coercitivos.

2. O Estado de Direito Democrático estável e as suas instituições:

Inerentes ao Estado brasileiro encontram-se uma pluralidade de instituições responsáveis pelo poder coercitivo. Essas instituições têm as suas funções determinadas pelo poder constituinte originado em 1988. Dentre elas, as quais irão se submeter a minha observação, estão as Policias Militares, as Polícias Civis, a Polícia Federal, o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Fora as instituições evidenciadas acima, as quais classifico como coercitivas, trago o Poder Legislativo, o qual é responsável pela construção de normas jurídicas, nos âmbitos federal, estadual e municipal. É necessária a abordagem dessa instituição por compreender que ela ao ter o poder de criar leis, de constituir CPIs, as quais denomino-as de um poder coercitivo paralelo, e de influenciar nas funções e decisões das instituições coercitivas, passa a fazer parte da construção do conceito de narcorede institucional pública.

As instituições evidenciadas acima são necessárias para o Estado funcionar de maneira estável. A estabilidade do Estado é caracterizada pelo bom funcionamento das instituições. As instituições quando cumprem com as suas funções, legalmente determinadas pelo poder constituinte, proporcionam a estabilidade do Estado. Quando falo em estabilidade tenho que necessariamente associá-la a Estado de Direito Democrático.

A um Estado de Direito Democrático estável [11] são necessárias as seguintes prerrogativas [12] :

  • As instituições inerentes ao Estado funcionam de acordo com a legalidade e contribuem para a existência dela no funcionamento da sociedade [13] ;
  • O Estado legal, através das suas instituições, deve ser absoluto, não existindo nenhum outro ordenamento jurídico que se contraponha a sua legalidade [14] ;
  • Ausência de poderes invisíveis inerentes ao Estado [15] ;
  • Existência de accountability entre instituições públicas estatais e sociedade civil.

A primeira prerrogativa tem como base o cumprimento das instituições de suas funções estabelecidas pelo poder constituinte. No entanto, não fico restrito apenas à função. Os integrantes das instituições estatais devem respeitar as regras inerentes a elas e, claro, as regras do poder constituinte. 

A segunda prerrogativa corresponde à idéia de que em um Estado legal não pode existir mais de um ordenamento jurídico. Isso significa que inerente a um Estado legal não deve ocorrer a concorrência entre regras legais e ilegais. As regras legais estão presentes no ordenamento jurídico oficial. Já as ilegais fazem parte de um ordenamento jurídico não oficial. No Estado de Direito Democrático estável os poderes coercitivos têm como função coibir a presença de regras ilegais [16] .

No que consiste a terceira prerrogativa, a qual denomino de poder invisível, refiro-me às organizações que executam as suas tarefas no cotidiano social de forma ilegal. Isso corresponde à existência de organizações que desafiam os poderes coercitivos do Estado legal usando do “pressuposto” da invisibilidade.

A quarta prerrogativa corresponde ao processo de satisfação [17] que as instituições estatais devem prestar ao público. Esse processo corresponde à responsabilidade pública que cada instituição deve ter a partir do cumprimento das suas funções em conformidade com as regras existentes. A responsabilidade pública de cada instituição corresponde a uma prestação de contas. O processo de satisfação tem como objetivo atingir os componentes do todo da sociedade.

As prerrogativas evidenciadas contribuem para a construção dos conceitos de narcorede institucional pública e de Estado paralelo ilícito e me fornece condições de responder ao problema proposto neste artigo.

3. A narcorede institucional pública e o Estado paralelo ilícito no Brasil:

Para a definição dos conceitos de narcorede institucional pública e Estado paralelo ilícito se faz necessário uma sumária abordagem empírica da realidade do narcotráfico existente no Brasil. Em abril de 1999 é instalada na Câmara dos Deputados a CPI do Narcotráfico. Após um começo discreto, essa CPI passa a ganhar notoriedade na opinião pública no instante em que um avião da Aeronáutica, o qual tinha como destino o exterior, é flagrado com 33 quilos de cocaína. Ressalto, que inerente à aeronave, não estavam apenas militares de baixa patente, mas também oficiais.

A partir da descoberta de narcotráfico envolvendo militares da aeronáutica, a CPI ganha fôlego. Ao passar a investigar com mais ênfase e grande disposição dos seus integrantes [18] , a CPI chega a um fato extremamente doloroso. O Brasil já conhecia diversos tipos de tortura, mas nunca tinha ouvido falar – pressuponho – que existisse tortura praticada por serra elétrica. Esse tipo de tortura ocorreu no estado do Acre. 

O motorista Agilson Santos Firmino, mas conhecido como Baiano, foi torturado e depois morto. A tortura caracterizou-se pelo corte gradual dos seus membros por uma serra elétrica. Após um bom tempo, onde Baiano já implorava para morrer, ele recebe cinco tiros. Dois na cabeça. Nem depois de morto o seu corpo foi deixado em paz. Baiano foi arrastado pela cidade de Rio Branco, capital do Acre e jogado em frente a uma emissora de TV. Acreditem [19] .   

Tanta barbárie foi praticada pelo então deputado estadual do Acre Hildebrando Pascoal (PFL). A barbárie foi motivada pelo fato de que o deputado Hildebrando queria saber onde estava escondido o senhor José Hugo Ferreira Júnior, provável assassino do seu irmão, o vereador Itamar Pascoal. O senhor José Hugo era patrão de Baiano. Baiano durante a tortura confessou por várias vezes que não sabia o paradeiro do seu patrão. No ano de 1997, após o seu filho de 13 anos ter sido morto queimado com óleo e um tiro, José Hugo foi encontrado morto. José Hugo estava decapitado [20] .

Após a descoberta desse fato pela CPI, os seus integrantes descobriram que estavam diante de um cortejo criminoso, que se estrutura em torno do narcotráfico. O estado do Acre estava contaminado. Essa contaminação se estendia por todas as instituições públicas, envolvendo ex-governadores, juízes, parlamentares, policiais e demais autoridades públicas. (Magalhães, 2000, p. 45).

Com o decorrer dos trabalhos da CPI, surge para depor perante os seus componentes, o motorista Jorge Meres Alves de Almeida. Essa testemunha afirmou que uma das principais redes do narcotráfico brasileiro era comanda pelo deputado federal Augusto Farias (AL); pelos dois deputados estaduais maranhenses, José Geraldo de Abreu e Francisco Caíca; por um coronel reformado da Polícia Militar do Piauí, José Viriato de Lima; e por diversos políticos, juízes, policiais e empresários. (Ibidem, p. 47). 

A testemunha Jorge Meres disse que os parlamentares e o policial eram ligados ao deputado federal Hildebrando Pascoal. Todos os nomeados por Meres negaram as acusações. O deputado Hildebrando foi cassado pela Câmara Federal; os deputados estaduais, José Geraldo e Caíca, pela Assembléia Legislativa do Maranhão. Todos foram presos, inclusive o coronel Correia Lima. (Ibidem).

Entre os parlamentares acusados e investigados pela CPI estavam cinco deputados federais. Dois do Rio de Janeiro e os restantes do Acre, de Alagoas e do Amazonas. Por ironia do destino, um dos deputados federais do Rio de Janeiro, Wanderley Martins (PDT), era integrante da CPI. Após as acusações, o deputado teve que se afastar da Comissão Parlamentar de Inquérito. Oito deputados estaduais foram investigados. Esses parlamentares pertenciam aos seguintes estados: Acre, Alagoas, Amapá, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco. (Ibidem, p. 48).

A CPI do Narcotráfico Federal ao chegar a Pernambuco descobriu uma rede de narcotráfico bem estruturada. As principais vitimas da CPI foram o empresário Rinaldo Ferraz, o então deputado estadual Eudo Magalhães (PFL), e o delegado de Policial Civil Roberto Porto [21] . O empresário e o delegado, após os seus depoimentos na Assembléia Legislativa, foram presos.

O interessante é que no decorrer do depoimento do empresário Rinaldo Ferraz, um integrante da CPI perguntou a ele o porque dele ter prestado concurso para a Polícia Civil de Pernambuco há três anos atrás, já que ele era um grande empresário das noites recifenses [22] . O empresário afirmou que fez isso pelo fato de querer uma segurança financeira e humana. No caso da segurança financeira, ele argumentou que era pelo fato de o concurso permitir uma estabilidade no serviço público. No que concerne a segurança humana, essa era motivada por ele achar que estava desprotegido, já que seu irmão fora assassinado e ele estava sendo ameaçado.     

O deputado estadual Eudo Magalhães teve a sua cassação recomendada pela Comissão Parlamentar de Inquérito após ouvir as denuncias de Manoel Soares de Freitas, conhecido como Falcon. Manoel Soares acusou o deputado de prática de pistolagem e de usar a sua influência para controlar as atividades das Polícias Civil e Militar. Após uma sessão secreta, os deputados pernambucanos cassaram Eudo Magalhães por 27 votos a 17 [23] . Ressalto que o deputado estadual Eudo Magalhães é irmão do ex-deputado estadual e delegado da Polícia Civil Enoelino Magalhães.

Após a ida da CPI Federal, a Assembléia Legislativa de Pernambuco instalou a sua própria Comissão Parlamentar de Inquérito. A CPI pernambucana, assim como a federal, descobre que o crime do narcotráfico está associado aos crimes de pistolagem, roubo de cargas, assaltos a bancos e lavagem de dinheiro. O narcotráfico é a variável independente, a qual faz gerar, as variáveis dependentes, isto é, os outros tipos de crime. A partir desse processo causal é formada uma rede institucional criminal.

A testemunha Falcon, através do jornal Diário de Pernambuco, denunciou o envolvimento de vários policiais e políticos pernambucanos com o narcotráfico, com a pistolagem e com o roubo de cargas. As denúncias de Falcon atingiram diretamente Eudo Magalhães, e obrigou o governador Jarbas Vasconcelos a transferir policiais militares da Mata Sul, região considerada reduto eleitoral de Eudo Magalhães e de seu irmão Enoelino, para outras regiões do estado [24] .

Ao final da Comissão Parlamentar de Inquérito, os seus integrantes investigaram, a partir de denúncias envolvendo os crimes de tráfico de drogas, roubo de cargas, pistolagem, assaltos a bancos e lavagem de dinheiro, mais de 159 pessoas. Dentre essas estão diversos políticos e um juiz. Vejamos o quadro abaixo [25] :

Quadro – 1 Autoridades Públicas Envolvidas

Autoridade

Situação quando investigado pela CPI Estadual

Situação atual

Tereza Josino Branes

Vereadora de Palmares

Foi cassada e encontra-se foragida

José Francisco Filho (Didi de Carnaíba).

Candidato a prefeito de Carnaíba

Atual prefeito de Carnaíba. Eleito pelo PFL com mais de 63% dos votos no ano 2000

Valdir Novaes Torres

Candidato a prefeito de Orocó

Eleito pelo PFL prefeito de Orocó

Claudiano Ferreira Martins

Candidato a prefeito de Itaíba

Eleito pelo PMDB prefeito de Itaíba

Nomeriano Martins

Candidato a prefeito de Águas Belas

Eleito pelo PPB prefeito de Águas Belas

Rildo Brás

Vereador pelo PFL de Catende

Reeleito vereador

Cláudio Damasceno

Prefeito pelo PSDB de Agrestina

Não reeleito prefeito

José Maria Corrêa

Juiz estadual da comarca de Caruaru

Desconhecido

Marco Barreto

Prefeito de Joaquim Nabuco

Reeleito prefeito

Carlos Cecílio

Prefeito de Serrita

Reeleito prefeito

Antônio Gago

Ex-prefeito de Palmares

Eleito, em 2000, vereador de Palmares  com 1.158 votos

 

O quadro acima mostra como o cenário político pernambucano está inserido de pessoas que possuem envolvimentos com o narcotráfico e conseqüentemente com os crimes de pistolagem, roubo de cargas, assaltos a bancos e lavagem de dinheiro. Os diversos mandatários do poder público reeleitos estão no aguardo de indiciamento por parte do ministério Público Estadual. De acordo com Clóvis Sodré, coordenador das investigações do Ministério Público, todas as denúncias feitas pela CPI serão apuradas, independente de os acusados serem políticos ou não [26] .  

Após o fim dos trabalhos da CPI estadual do Narcotráfico e da Pistolagem, o seu presidente, deputado estadual Pedro Eurico (PSDB), propôs, através de Projeto, que a comissão se tornasse permanente. A proposta do deputado obteve 18 votos a favor. Porém eram necessários 25 votos. Na avaliação do deputado Pedro Eurico a decisão dos seus colegas foi pusilânime [27] .

As informações anteriores evidenciam a suspeita, pois até agora nada foi comprovado, de que os poderes Legislativos, Executivos, Judiciários e Policiais, estão parcialmente contaminados por pessoas associadas à rede institucional criminal.  No entanto, essa contaminação não se restringe apenas a esses poderes. O Exército, instituição considerada por parcela da opinião pública a reserva moral do Brasil, está também contaminada.

O Comandante Militar do Leste, general Glauber Vieira, admitiu que o crime organizado, representado pelo tráfico de drogas, pode ter chegado às Forças Armadas. Diante dessa possibilidade, o general frisou que a seleção dos recrutas está sendo mais rigorosa com o objetivo de impedir a incorporação de criminosos (Rozowykwiat, 12/1/2001, p. A7).

A deputada federal Laura Carneiro (PFL-RJ), ex-integrante da CPI do narcotráfico Federal, afirmou que o narcotráfico só está tomando uma grande dimensão no Brasil, pelo fato dos poderes constituídos estarem envolvidos por pessoas ligadas ao crime organizado [28] . Essa afirmação da deputada torna-se mais séria a partir do instante em que incluo o Exército, pois essa é a instituição responsável pela guarda das fronteiras brasileiras. Friso isso por saber que uma considerável quantidade de drogas entra e sai pelas fronteiras do nosso país. 

Em paralelo as contaminações parciais das instituições estatais brasileiras encontram-se os territórios sitiados pelos traficantes de drogas. Nesses locais, os quais geralmente são habitados por pessoas de baixa renda, os traficantes impõem regras ao convívio social da população. Essas regras concorrem com as regras oficiais do Estado. 

“Padres ameaçados de morte, toque de recolher em ruas e escolas, creche destruída, salas de alfabetização fechadas [29] ”. Esse é o cenário do Jardim Macedônia, periferia da cidade de São Paulo. Nessa região, no dia 21/11/2000, os traficantes impuseram a população um toque de recolher. Esse toque permitiu que o direito de ir e vir da população, o qual é garantido constitucionalmente, fosse substituído por uma regra determinada por traficantes, a qual exemplificava o horário máximo que a população deveria se recolher às suas residências [30] .   

A existência de territórios sitiados pelo tráfico de drogas não é um fenômeno apenas de São Paulo, mas de diversas regiões do Brasil . No entanto nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e o no Polígono da Maconha em Pernambuco [31] esse fenômeno é muito mais presente. Os traficantes dessas regiões impõem um regime despótico à população local (Soares, 2000, p. 268) [32] . Esse regime caracteriza-se, como já foi dito, pela subordinação de toda a população às regras estabelecidas pelo tráfico. No Rio de Janeiro, através da imposição do tráfico

certas cores de camisas são proibidas; determinadas áreas são vetadas a passagem, mesmo de moradores; toques de recolher regem horários de saída e entrada das casas e da própria favela; telefones públicos são propositadamente avariados ou rigorosamente vigiados, para evitar denúncias e contatos com a polícia; horários de funcionamento do comércio local são regulamentados; conflitos domésticos ou entre vizinhos são mediados, julgados e administrados pelos barões locais do tráfico, que se responsabilizam, inclusive, pela aplicação das penas. As punições variam do ‘susto’, com ameaças e surras, á execução sumária, passando por tortura pública, sessões de humilhação, ou expulsão da favela. (...) Os moradores são obrigados a franquear suas residências para uso como esconderijo dos traficantes ou depósitos de armas e drogras. (Ibidem)

No polígono da maconha ocorre algo similar. Os traficantes, a partir de ameaças físicas e psicológicas, exigem que as pessoas da região permaneçam caladas sem denunciá-los às forças coativas do Estado. Isso permite que ocorra um processo de amenização da delinqüência, isto é, a população faz a popular vista grossa para a atividade criminal.

De acordo com relatório reservado da Polícia Militar de Pernambuco [33] , os traficantes do Polígono sobrevivem com o apoio explícito de pessoas da própria comunidade local. Esse apoio fornece meios de proteção para os traficantes. Em troca, os membros da população também recebem proteção e diversos benefícios, inclusive econômicos e de prática de pistolagem [34] . O mentor da proteção aos traficantes é conhecido na região como “Coronel” ou “Padrinho”. 

Projetos socioeconômicos não podem se tornar realidade no Polígono pelo receio dos potenciais beneficiados. O Banco do Nordeste em parceria com o Governo Federal propõe a desapropriação de terras na região do Polígono com o objetivo de permitir uma reforma agrária e conseqüentemente uma mudança de cultura agrícola, isto é, a substituição do plantio da maconha por uma agricultura lícita. Porém a população tem medo de ocupar as terras concedidas porque os traficantes ameaçam invadi-las e matar os seus ocupantes [35] .  

No Polígono da Maconha o direito à propriedade privada inexiste. A lei dos sujeitos da criminalidade e conseqüentemente o medo são os que predominam. As regras oficiais, como por exemplo, as doações de terras a agricultores com conseqüente legalização por parte do Estado, são ameaçadas pela imposição das regras dos traficantes.

Com a breve contextualização empírica feita adquiro condições de definir os conceitos de narcorede institucional pública e Estado paralelo ilícito. A narcorede institucional pública caracteriza-se pela presença no seu corpo de pessoas envolvidas com a prática do tráfico de drogas. Essas pessoas podem estar envolvidas direta ou indiretamente. De forma direta é quando o próprio membro faz parte da estrutura do tráfico de drogas. A forma indireta é quando o integrante da instituição sofre pressões externas, isto é, ela não participa do tráfico, porém aceita interferência de quem participa.

A partir do envolvimento direto ou indireto do membro da instituição, a função desta na sociedade fica ameaçada. Por exemplo: se a função do juiz de determinada comarca é julgar conforme determina a lei penal o traficante de drogas, a sua atuação no julgamento poderá sofrer interferências externas ou internas, as quais irão permitir o descumprimento da sua função. Um outro exemplo são os dos policiais, pois ao estarem envolvidos direta ou indiretamente com o tráfico de drogas, podem fazer vista grossa com a presença do tráfico de drogas em determinada região. 

As influências externas podem partir também das próprias instituições. Um delegado de polícia pode sofrer pressão de um determinado deputado estadual para fazer vista grossa no que concerne a atuação de determinada pessoa ou grupo com o tráfico de drogas. Pode ocorrer também que um promotor público pode aceitar um pedido de uma grande liderança política regional para retardar a denúncia criminal ao Poder Judiciário, ou  não ser tão rigoroso quanto a esta, pois isto permitiria a absolvição ou a diminuição da pena do réu [36] .     

No que concerne ao Estado paralelo ilícito, este se caracteriza pela existência de dois ordenamentos jurídicos. Um legal e outro ilegal. O ordenamento legal é representado pelo Estado oficial, o qual é estabelecido pelo poder constitucional. Esse poder estabelece direitos e deveres para a população e para as instituições existentes em certo território. Com isso surge o Estado de Direito. Inerente a esse território encontra-se o Estado paralelo ilícito, com as suas regras próprias, as quais concorrem com as oficiais. Nessa relação de concorrência, as regras do Estado paralelo ilícito se sobrepõem as do Estado oficial, ocorrendo uma descaracterização do Estado de Direito democrático.

No Estado paralelo ilícito existe um poder soberano. E onde existe um poder soberano existe o Direito (Bobbio, 1982, p.162). Portanto, esse Direito o denomino de paralelo ao Direito oficial. Como já foi dito, o Direito é um conjunto de regras que se fazem valer por diversos meios, inclusive pela força (Ibidem, p. 25). Nesse sentido, o Estado paralelo ilícito possui as suas regras próprias, e as submete a população de certo território.

Adiante estão presentes dois modelos de análise. No primeiro modelo tento esclarecer ainda mais o conceito narcorede institucional pública. As cores vermelhas representam as instituições. Nesse sentido classifico o narcotráfico como sendo uma instituição. As setas de cores cinzas significam as “zonas de interferências” entre as diversas instituições. Essas interferências são maléficas para o cumprimento das funções das instituições oficiais. As letras cinzas entre as vermelhas supõem que nessas instituições existem pessoas diretamente ou indiretamente envolvidas com o narcotráfico. Atentem para as “zonas de influência” entre as diversas instituições.

No modelo de análise dois encontra-se representado o Estado paralelo ilícito. Tento, através dele, se aproximar da realidade empírica da existência de dois Estados. O quadrado maior corresponde ao Estado oficial. O quadrado menor, o qual está inerente ao quadrado maior, representa o Estado paralelo ilícito.  As setas significam que o Estado paralelo ilícito está atingindo cada vez mais faixas territoriais. 

Modelo de análise 1 – Narcorede institucional pública
NARCOTRÁFICO
ZONA DE INTERFERÊNCIA >>>>> ZONA DE INTERFERÊNCIA >>>>> ZONA DE INTERFERÊNCIA
POLÍCIAS >>>>> MINISTÉRIO PÚBLICO >>>>> PODER JUDICIÁRIO >>>>> FORÇAS ARMADAS >>>>> PODER EXECUTIVO>>>>>PODER LEGISLATIVO
ZONA DE INTERFERÊNCIA >>>>> ZONA DE INTERFERÊNCIA >>>>> ZONA DE INTERFERÊNCIA
NARCOTRÁFICO

 

Modelo de análise 2 –  Estado legal e Estado paralelo ilícito

ESTADO LEGAL

Estado Ilícito Paralelo

 

Conclusão:

Observo que este artigo, mesmo se abstendo de um exaustivo trabalho de campo, permite que eu chegue às diversas conclusões, as quais podem ser encaradas como hipóteses. Essas podem ser comprovadas a partir de uma metodologia que terá como objetivo a coleta de dados empíricos.

Verifico que a relação entre tráfico e sociedade é uma relação de poder e dever. Essa relação, a qual é encontrada em qualquer ordenamento jurídico, está presente no dia a dia das regiões sitiadas pelo tráfico de drogas. Compreendo que a realidade brasileira está diante de dois ordenamentos jurídicos. O oficial e o ilícito. Ambos concorrendo entre si. Em alguns instantes o ordenamento oficial sai vencedor e em outros, quem ganha é o ilícito.

O ordenamento jurídico ilícito é contra o Estado. Portanto ele não é um ordenamento estatal, mas uma organização institucional. Temos que compreender que um ordenamento estatal é unitário e não plural, isto é, em um mesmo território só existe apenas um ordenamento vinculado ao Estado, o qual é o oficial (Bobbio, 1982, p. 163).

Contudo, as afirmações contidas acima me coloca diante de duas problemáticas. O conceito de narcorede institucional pública é construído com base no envolvimento de indivíduos vinculados ao Estado, através de funções laboriais, e que estão ligados direta ou indiretamente com o narcotráfico. Então, o que questiono é: até que ponto dois ordenamentos jurídicos estão em plena concorrência? E até onde está nítida a existência de um único ordenamento estatal, já que neste estão presentes pessoas vinculadas ao ordenamento ilícito?

Bobbio (Ibidem, p. 161) aponta diversos tipos de relacionamentos entre os ordenamentos jurídicos, onde o ordenamento estatal está acima dos demais. Contudo nenhum consegue responder as problemáticas expostas. A que mais permite o início de uma resposta é a relação de recusa.

A relação de recusa é aquela em que um ordenamento considera “proibido aquilo que num outro ordenamento é obrigatório” (Ibidem, p. 169). Contudo, a realidade brasileira está mostrando que o ordenamento oficial não está conseguindo recusar o narcotráfico, e está permitindo um processo de interação entre os membros de ambos ordenamentos em confronto.

Esse processo de interação caracteriza-se pela aparente predominância das atividades criminais, isto é: a atividade ilícita do narcotráfico está conquistando adeptos nas instituições oficiais.  Nesse sentido compreendo que é preocupante o avanço do narcotráfico nas instituições estatais brasileiras, pois se não for retido, o confronto entre os ordenamentos poderá deixar de existir, pois as diferenças entre ambos não vão ser tão nítidas.

O processo de interação frisado, somado a desorganização e a falência das nossas instituições coativas permitem também que o Estado oficial perca gradualmente o seu poder de coação [37] . Como resultado verifico que o narcotráfico está crescendo no Brasil provocando diversas consequências, entre estas, o aumento na taxa de homicídios [38] .

A democracia no Brasil agoniza diante do avanço do narcotráfico. Ao observar as prerrogativas expostas anteriomente, as quais permitem uma avaliação criteriosa da existência de um Estado de Direito democrático estável, verifico que essas não estão sendo respeitadas na realidade brasileira.

De acordo com a primeira prerrogativa, as instituições inerentes ao Estado devem funcionar de acordo com a legalidade, e consequentemente a prática social na sociedade seja caracterizada por esta. Porém os fatos expostos para a construção do conceito de  narcorede institucional pública evidenciam que as instituições do Estado não estão funcionando de acordo com a legalidade, pois inerente a elas existem pessoas que estão envolvidas diretamente ou indiretamente com o narcotráfico. Essas pessoas, como funcionários das instituições estatais, ao praticarem atos ilegais não estão contribuindo para a existência da legalidade no âmbito da função e da prática de cada instituição.

Quando as instituições não exercem as suas funções, a sociedade fica desprovida de árbitros. Ocorre um processo de ilegalidade social, o qual vai atingindo gradativamente as pessoas. As regras que existem no seio da sociedade democrática com o objetivo de regular o convívio social, passam a não ser respeitadas pelo fato de os árbitros constitucionais, no caso as instituições, não estarem cumprindo com as suas funções. Exemplo sobre isso é o crescimento do crime organizado, gerando diversas formas de violência, como os grupos de extermínios, e a corrupção institucional [39] .

A segunda prerrogativa, a qual corresponde a existência de um Estado legal absoluto, vem ininterruptamente deixando de existir motivado pela existência de diversos Estados paralelos. Nesses Estados encontro as regras ilegais, as quais deveriam ser combatidas pelo Estado oficial; porém, por causa da ineficiência deste, as regras ilegais estão avançando cada vez mais no território brasileiro, permitindo a descaracterização do poder absoluto do Estado legal e o surgimento de Estados ilegais/paralelos.

Encontro a existência do poder invisível – terceira prerrogativa – no cotidiano da sociedade brasileira. Quando falo em corrupção institucional, grupos de extermínio e a existência de funcionários do Estado oficial envolvidos direta ou indiretamente com o tráfico de drogas, passo a estar diante do poder invisível. Esse poder, a partir de influências negativas, é que permite a existência dessas mazelas no Estado oficial. Compreendo que a democracia funda-se na convicção de que o regime democrático permite a transparência do poder oficial, fazendo existir um “poder sem máscara” (Bobbio, 1992, p. 29).

O não cumprimento de todas as prerrogativas, já expostas, me permite concluir que a última prerrogativa, existência de accountability entre instituições oficiais e sociedade civil, não esteja presente na democracia brasileira. Afirmo que a inexistência do accountability é conseqüência da não existência na democracia brasileira das três primeiras prerrogativas.

Ao encontrar a prática da ilegalidade por parte de integrantes das instituições estatais, o não cumprimento destas, em relação as suas funções constitucionais, e a existência de poderes invisíveis influenciando o comportamento do Estado oficial, concluo que as instituições oficiais brasileiras não estão prestando contas do seu comportamento à sociedade.

A resposta para o problema exposto no início deste artigo – a narcorede institucional pública e o desenvolvimento de um Estado paralelo ilícito contribuem para a descaracterização do Estado de Direito democrático no Brasil? – é sim. Isso evidencia que a democracia brasileira existe no plano formal, isto é, está presente em uma Constituição, no caso a de 1998; contudo não existe substantivamente, ou seja, na prática social diária dos indivíduos e das instituições oficiais [40] .

 
NOTAS


[1] Cientista Social e Mestre em Ciência Política pela UFPE. Atualmente é professor de Teoria Política e de Sociologia da Universidade Salgado de Oliveira – Universo. É autor do livro “Tiros na democracia – De que lado ficou a imprensa na greve da Polícia Militar de Pernambuco no ano de 1997?”, Editora Bagaço, 2001.  
[2] Procópio, 2000, p. 175.
[3] Cardoso, 2001.
[4] Essa afirmação surge a partir da compreensão da formação do Estado a partir de um contrato social. Uma visão mais detalhada s obre isto ver autores clássicos como Locke e Hobbes.
[5] O poder soberano surge primeiro do que as regras. No entanto, o poder soberano só pode permanecer perene se as suas regras estiverem estabelecidas.
[6] A existência de um ordenamento apenas com uma norma permite surgir os seguintes dilemas: ou tudo é permitido, ou tudo é obrigatório, ou tudo é proibido (Bobbio, 1982, p. 31 e 32). “Na realidade os ordenamentos são compostos por uma infinidade de normas, que, como as estrela no céu, jamais alguém consegue contar. Quantas são as normas jurídicas que compõe o ordenamento jurídico italiano?” (Ibidem, 37). 
[7] A produção jurídica é a expressão de um poder (originário ou derivado), a execução revela o cumprimento de um dever (Bobbio, 1982, p. 51).
[8] Ver o conceito de instituições mais adiante.
[9] Essa minha afirmação está baseada nos argumentos de Weber (1999), com a colaboração de Bobbio (1982), sobre o Estado racional e em relação à legitimidade da dominação.
[10] Para facilitar o entendimento do leitor devemos compreender como instituições públicas àquelas vinculadas ao poder estatal, pois só através desse poder é que elas possuem condições de exercerem as suas funções.
[11] “A democracia resulta de uma aposta institucionalizada. O sistema jurídico (incluindo-se, naturalmente, as constituições) confere a cada indivíduo múltiplos direitos e obrigações. Não é uma de escolha; ao nascer (...) os indivíduos estão imersos em uma trama de direitos e obrigações determinados e respaldados pelo sistema jurídico do Estado-território onde vivem.” (O’Donnel, 1999, p. 15).
[12] Devo a idéia de construção de prerrogativas democrática a Zaverucha, 2000, p. 37.
[13] Devo essa prerrogativa a O’ Donnell, 1999, p. 2.
[14] “(...), sustento que o Estado não deve ser entendido como um conjunto de burocracias; ele também inclui uma dimensão legal, o sistema jurídico que o Estado promulga e normalmente sustenta devido à sua supremacia sobre a coerção no território que delimita.” (O’Donnell,  1999, p. 28). 
[15] “A quinta promessa não cumprida pela democracia real em contraste com a ideal é a da eliminação do poder invisível. Diferentemente da relação entre democracia e poder oligárquico, a respeito da qual a literatura é riquíssima, o tema do poder invisível foi até agora muito pouco explorado (...). Talvez eu esteja particularmente influenciado por aquilo que acontece na Itália, onde a presença do poder invisível (máfia, camorra, maçônicas anômalas, serviços secretos incontroláveis e acobertadorees dos subversivos que deveriam combater) é, permitam-me o jogo de palavras, visibilíssima” (Bobbio, 1992, p. 28 e 29).   
[16] Sobre a construção deste meu raciocínio ver Bobbio, 1982.
[17] O termo accountability é originado dos EUA. Não encontrei uma tradução ao pé da letra desse termo para o português. Por isso, sigo as definições dos autores brasileiros que o interpretam como processo de satisfação. 
[18] Os principais integrantes da CPI eram: PRESIDENTE: MAGNO MALTA (PTB) VICE-PRESIDENTE: ELCIONE BARBALHO (PMDB) 2º VICE-PRESIDENTE: FERNANDO FERRO (PT) 3º VICE-PRESIDENTE: CELSO RUSSOMANNO (PPB) RELATOR: MORONI TORGAN (PFL).
[19] Mais detalhe sobre esse fato, ver Magalhães 2000, p. 44.
[20] Mais detalhe sobre isso, ver Magalhães 2000, p. 45.
[21] O relatório final da CPI do narcotráfico Federal inocentou o delegado Eduardo Porto.
[22] O empresário Rinaldo Ferraz é proprietário da casa de Show Sala de Reboco.
[23] Fonte: Diário de Pernambuco, 19/11/2000, p. A6.
[24] Diário de Pernambuco, 19/11/2000, p. A6.
[25] Diário de Pernambuco, 19/12/2000, p. A7; e Jornal do Commercio, 1/3/2001, p. 11. 
[26] Jornal do Commercio, 1/4/2001.
[27] Diário de Pernambuco, 16/12/2001.
[28] Jornal do Commercio, 30/3/2001, p. 7.
[29] Folha de São Paulo, 23/11/2000.
[30] Folha de São Paulo, 23/11/2000.
[31] O Polígono da maconha em Pernambuco é formado pelas seguintes cidades: Floresta, Carnaubeira da Penha, Belém do São Francisco, Cabrobó, Orocó, Santa Maria da Boa Vista, Tacaratu, Petrolândia, Itacuruba, Caraibeiras, e Lagoa Grande.    
[32] Soares (2000) classifica como regime despótico a realidade do Rio de Janeiro. Porém aplico essa definição à outras realidades territoriais.   
[33] Secretaria de Defesa Social do Estado de Pernambuco – Diretoria de Inteligência. Estudo Continuado, número três, 1999.
[34] Caso um membro da comunidade deseje resolver uma rixa com determinada pessoa com as próprias mãos, ele comunica ao traficante e este orienta uma pessoa ou mesmo extermina a pessoa indicada. A prática de pistolagem é muito comum aos estados do Norte-Nordeste e está associada ao tráfico de drogas. 
[35] Jornal do Commercio, 18/3/2001.
[36] Friso que os exemplos fornecidos sobre o comportamento das instituições e de seus componentes são hipóteses que devem ser comprovadas a partir de uma rígida metodologia. 
[37] “O crescimento da criminalidade é inseparável da desorganização que afetou as instituições responsáveis pela ordem pública, no curso de uma transição democrática longa e difícil. Exacerbou-se a violência policial contra a população civil e acentuo-se o comprometimento da polícia com o crime. A delinqüência de oportunidade foi estimulada pela ausência de políticas eficientes de manutenção da ordem. A segurança privatizou-se e os fenômenos de justiça ilegal ganharam importância”. (Peralva, 2000, p. 87).   
[38] Geralmente os homícídos praticados por traficantes atigem mais de uma pessoa. São as chamadas chacinas. Essas são motivadas, na sua maioria, pelo não pagamento de dívidas. Saliento ainda que o tráfico de drogas permite a existência de grupos de extermínio, os quais estão envolvidos com a força policial  (Peralva, 2000, p. 89 e 95). Sobre números de homicídios por conseqüência do narcotráfico ver Silva, 2000.
[39] Este tipo de corrupção ocorre em instituições públicas.
[40] Segundo Zaverucha (2000), nos países latino-americanos existem tíbias instituições políticas e altos níveis de violência e corrupção, e não encontramos um ethos democrático na sociedade (p. 11). Compreendo que ethos significa a presença de substâncias/princípios democráticos no cotidiano da população brasileira. 
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