Ano I - Nº 04 - Maio de 2002 - Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

 

 

A corrupção em “Conto de escola”¹

 

Milene Vânia Kloss, Pedro Brum Santos e Rosani Umbach²

 

Resumo

Joaquim Maria Machado de Assis (1839 – 1908), grande nome da literatura brasileira, é considerado um autor múltiplo pela maioria dos críticos brasileiros, pois, com vasta produção e de qualidade, atingiu praticamente todas as áreas pertencentes ao conhecimento literário, estando entre eles o romance, o conto, a poesia, a crônica e o teatro. Esse autor apresenta em suas obras, principalmente naquelas consideradas de segunda fase, um humor sutil e permanente, bem como um implacável pessimismo sobre a natureza e as relações humanas. Dessa forma, partindo-se de uma abordagem sociológica, procurou-se neste trabalho, primeiramente, confirmar a presença de traços machadianos, tipicamente característicos de produções da segunda fase, em “Conto de escola”, publicado em 1884 (incluído pelo autor em “Várias Histórias”). Em seguida, foi feita uma análise interpretativa do tema que trata, principalmente, da corrupção. Para tanto, foi levado em consideração o texto “Clientelismo e corrupção no Brasil contemporâneo”, de José de Souza Martins (1994). Ao final, confirmou-se a presença das características machadianas, acima citadas, ditas de segunda fase, na obra “Conto de Escola”, considerada produção de primeira fase.

 

The corruption in “Conto de escola”

Abstract

Joaquim Maria Machado de Assis (1839 – 1908) is a great name in the brazilian literature. He is  considered a multiple author by the majority of brazilian critics because of his enormous and highly qualified production. This author published his works in practically all literary areas, such as novels, short stories, poetry, chronicles and theater. His stories, mainly those that belong to the so called ‘second phase’, are pretty well known because of the author’s humor, and sharp pessimism, when concerning to the nature and the human relations. According to the sociological approach, this work aimed to show the presence of some of the ‘second phase’ characteristics in the short story called “Conto de Escola”, which was published in 1884, and later on included in ‘Várias Histórias’. The tale theme, which talks about corruption, was interpreted taking into consideration the text ‘Clientelismo e corrupção no Brasil contemporâneo’, written by José de Souza Martins (1994). In the end, it was conclude that in spite of being a work from the so called ‘first phase’ of Machado de Assis, the tale ‘Conto de Escola’ presented characteristics of the ‘second phase’, like humor and pessimism for example.

 

O tema corrupção

 

“Conto de escola”, de Machado de Assis, narra o primeiro contato de um menino, Pilar, com a corrupção e a delação. Tudo começa quando Raimundo, o angustiado corruptor, filho do mestre, oferece uma moeda a Pilar, seu colega de classe, em troca de umas lições de sintaxe. Curvelo, o delator que era um pouco levado do diabo (MACHADO, 1997, p.105), os denuncia ao professor e ambos, Raimundo e Pilar, são violentamente castigados com doze bolos de palmatória cada.  

Segundo Ivan Proença (1997, p. 23), “Conto de escola” não é de estilo propriamente machadiano, pois em seu conteúdo destaca-se a esperança. Isto é, existe a possibilidade de que, na inocência das crianças, o rumo ético e político da nação possa ser mudado, seria a representação da idéia de que as gerações seguintes poderiam vir a ser mais honestas e de bom caráter. Ainda conforme Proença (1997, p. 24), o autor demonstra tal posicionamento a partir do instante em que descreve o fato de o som de um tambor, juntamente da marcha militar, se tornar mais importante, aos olhos de Pilar, do que uma moeda de prata, cuido que doze vinténs ou dous tostões (MACHADO, 1997, p. 106). Dessa forma, Machado deu um final puramente lírico ao conto, fazendo com que a batida do tambor induzisse o herói a abandonar a idéia de vingança contra Curvelo e desistir de encontrar a moeda, representando assim a alegria e a inocência da criança. 

Entretanto, discorda-se, neste trabalho, de tão inocente interpretação. Ora, por que então Machado iria se importar em caracterizar o tambor, no final da história, como o diabo do tambor (MACHADO, 1997, p. 110)? Crê-se que nesse termo se faz presente, mais uma vez, bem como nas demais obras da chamada segunda fase, o pessimismo e a ironia do autor. Pois, considerando-se que o conto foi narrado em primeira pessoa do singular, tratando-se, portanto, do relato feito pela personagem sobre suas lembranças em um determinado momento de sua vida. Pode-se afirmar que há a presença do arrependimento de Pilar por não ter pego a moedinha de prata, já que o narrador refere-se ao tambor fazendo uso da palavra diabo, como se o instrumento musical fosse o culpado pela distração da personagem, conseqüentemente da perda do lucro. Tem-se então o ponto de vista de um adulto que, caso a mesma situação se repetisse em dias atuais, provavelmente voltaria para pegar a moeda, o que reforça a idéia da perda da inocência a medida em que o ser humano aproxima-se da fase adulta. Logo, é descoberta, nessa situação, o pessimismo machadiano, em que há o desmoronamento de uma ilusão: a de que as crianças representam a possibilidade de um futuro melhor e mais justo para a humanidade.

O pessimismo irônico de Machado se faz notar fortemente no tema do conto que aborda a corrupção, e o que é pior, a corrupção na infância. Assim, o contista apresenta a idéia de que somos corruptos ou estamos pré-dispostos a tal ato desde criança. No texto, “Clientelismo e corrupção no Brasil contemporâneo”, trabalha-se a corrupção como um fato social, o qual está aliado à política do favor, base e fundamento do Estado brasileiro. Segundo Martins (1994, p. 20), é hábito do brasileiro (principalmente em questões políticas) instituir alianças por meio da política do favor que nada mais seria do que o ato de sentir-se na obrigação de ajudar alguém, não por solidariedade, mas por benefício próprio. Por exemplo, ajudo fulano hoje porque amanhã, talvez, quando precisar, fulano se sentirá na obrigação de me ajudar, retribuindo, assim, o favor anteriormente prestado.

Os mecanismos tradicionais do favor político sempre foram considerados legítimos na sociedade brasileira. Não só o favor dos ricos aos pobres, o que em princípio já era compreendido pela ética católica. Mas o favor como obrigação moral entre pessoas que não mantêm entre si vínculos contratuais ou, se os mantêm, são eles subsumidos pelos deveres envolvidos em relacionamentos que se baseiam antes de tudo na reciprocidade (MARTINS, 1994, p. 35).

Assim, pode-se afirmar que Pilar se sentiu na obrigação de ajudar Raimundo, por ser este seu amigo. Porém deve-se deixar claro que, conforme o próprio Pilar afirma, teria ajudado o filho do mestre de qualquer modo, sem que este precisasse lhe dar algo em troca. Tem-se, neste pensamento, a solidariedade e o senso de companheirismo, considerados pela sociedade, em geral, características de um bom caráter.

Se me tem pedido a cousa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era a lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria (...), mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo (MACHADO, 1997, p. 107).

A corrupção, presente nesse conto de Machado, é representada pelo ato de Raimundo em pagar seu amigo, Pilar, para que este lhe ensinasse, às escondidas, o conteúdo desejado, na implícita condição de que ambos assumissem, frente ao mestre e aos colegas, a melhora das notas do primeiro como sendo único e exclusivo mérito seu. O ciclo da corrupção se completa com o aceite da proposta por Pilar. Mas, então, surge a possível pergunta do leitor perante tal situação: seria Raimundo uma criança de má índole? O que o teria levado a tal ato?

O autor utiliza-se de um realismo sutil que permite ao leitor atento uma interpretação mais detalhada da situação. Ele fornece pistas ao longo da história que ajudam o leitor a formular hipóteses, as quais podem levá-lo a conclusões mais precisas. Por exemplo, no caso de Raimundo, poderia explicar-se a ação do filho do mestre baseando-se na idéia do medo que o mesmo sentia do pai. Medo de levar uma surra de palmatória frente a possíveis notas baixas e, conseqüentemente, medo da humilhação que sentiria perante a classe. Já que, conforme o próprio narrador afirma, Raimundo era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco (MACHADO, 1997, p. 104). Além do medo ao pai, existe a idéia da gratidão ao amigo. Martins (1994, p. 43) assevera que, na sociedade brasileira, tem-se o costume de dar presentinhos frente a um favor como forma de agradecimento. Portanto, não seria incorreto afirmar que Raimundo usou-se da moeda de prata não somente para garantir uma lição bem dada, conforme demonstrado na citação anterior: o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria (...) (MACHADO, 1997, p. 107), mas também para demonstrar ao amigo consideração.

(...) é aparentemente insuportável para a população brasileira estabelecer relações sociais de qualquer natureza, políticas ou não, com base unicamente nos pressupostos racionais do contrato social e com base no pressuposto da igualdade e da reciprocidade como princípios que regulam e sustentam as relações sociais. Sem a mediação do “presentinho”, de alguma forma de retribuição extra-econômica, a relação fica ininteligível e cria um sentimento de ingratidão e culpa que torna a vida insuportável (MARTINS, 1994, p. 43).

Machado descreve assim, com pessimismo e humor irônico, bem como em suas obras de segunda fase, o ato da corrupção. Ele permite que se conclua que o ato corrupto, representado no conto, tenha sido uma conseqüência do medo de Raimundo por seu pai. Portanto, deixa claro que a culpa não pertence somente às crianças envolvidas, mas também ao professor. Machado mostra com isso que as ações individuais podem ser frutos de um convívio social, sendo que não se pode culpar apenas uma ou duas pessoas, mas grande parte delas, por determinadas situações.

Referências Bibliográficas

ASSIS, M. Contos consagrados. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

MARTINS, J. S. O poder do atraso. Ensaios de sociologia da justiça lenta. São Paulo: Hulctec, 1994.

PROENÇA, I. C.  Estudo Introdutivo. In: ASSIS, M.  Contos consagrados. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

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1- Trabalho final elaborado no decorrer da disciplina "Teoria da Literatura", do Curso de Mestrado em LETRAS da Universidade Federal de Santa Maria, no 1º semestre de 2001

2 - Milene V. Kloss, mestranda em Literatura Comparada, pela UFSM; Pedro Brum Santos, professor doutor da disciplina de Teoria da Literatura, na UFSM; Rosani Umbach, professora doutora da disciplina de Literatura Comparada, na UFSM.

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