Ano I - Nº 04 - Maio de 2002 - Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

 

 

A filosofia dusseliana da libertação e sua ética

The Enrique Dussel’s philosophy of liberation and its ethic

 

Daniel Pansarelli [1]

 

RESUMO

O artigo é uma análise da re-construção do conceito de metafísica, feita pelo filósofo da libertação Enrique D. Dussel. Apresentamos nele a gênese do problema posto pelo pensador argentino, mostrando a impossibilidade da razão ontológica como sendo a metafísica (filosofia primeira) de uma filosofia própria da América Latina. Toda filosofia construída sobre uma metafísica ontológica, afirma Dussel, será necessariamente excludente ou, para utilizar termos mais próprios desta filosofia da libertação, totalitária (da totalidade) e opressora. Vemos, assim, a necessidade de se re-pensar (ou recriar) a metafísica e com isso toda a filosofia, partindo, para tanto, da realidade opressiva do continente latino-americano. Em substituição à metafísica ontológica, esta nova, que deve ser re-criada, conforme indicado na própria obra de Enrique Dussel e no presente artigo, será uma metafísica fundada na ética como filosofia primeira. Apresentamos, na conclusão de nosso texto, essa nova metafísica ética.

Unitermos: filosofia da libertação; Enrique Dussel; ética; metafísica.

 

ABSTRACT

The article is an analysis of the re-construction of the metaphysic’s concept, which was done by philosopher of  liberation Enrique Dussel. We present in this text the genesis of the problem identified by the Argentine thinker, showing the impossibility of the ontological reason as being the metaphysic (first philosophy) of an own America Latin’s philosophy. All philosophy that starts from a ontological metaphysic, affirms Dussel, will be necessarily totalitarian (totality) and oppressive. We think is needed to re-think (or redo) the metaphysic and, with that, all the philosophy, starting from the Latin-American continent’ oppression. In substitution of the ontological metaphysic, this new, that should be re-created, like is showed in the own Enrique Dussel’s texts and in the present article, will be a metaphysic founded in the ethics as first philosophy. We present, in the conclusion of our text, that new ethical metaphysic.

Keywords: philosophy of liberation; Enrique Dussel; ethic; metaphysic.

 

A Filosofia Dusseliana da Libertação e sua Ética

 

O tema que abordaremos aqui, tal qual enunciado no título deste artigo, nos fornece elementos para uma reflexão prévia necessária ao seu próprio desenvolvimento. Referimo-nos à indicação de que tratar-se-á de uma filosofia em particular, específica, e não aquela filosofia clássica, que fora tradicionalmente européia na maior parte de sua história e, hoje, é também norte-americana. Durante a pesquisa que fizemos, nosso ponto central de localização foi a América Latina, de modo que, as considerações que faremos sobre a filosofia clássica, que convencionaremos chamar por européia, são considerações de um observador desta filosofia a partir de sua exterioridade irrelevante, a partir de um ponto além dos seus limites ontológico e geográfico ou, numa palavra, da periferia excluída. Se falaremos do centro da filosofia com a distorção e a limitação que nos são impostos por estarmos fora dele, falaremos, em contra partida, da periferia ou dos excluídos da filosofia com a máxima propriedade, possível apenas àqueles que optam por tratar dos problemas da realidade onde estão inseridos – no nosso caso a América Latina.

Em se tratando de uma filosofia periférica e, ainda mais, que forma-se fora dos limites da filosofia clássica, poderíamos aqui nos arriscar afirmando que trata-se de uma filosofia nova. Vemos e reconhecemos em Enrique Dussel um esforço em criar uma filosofia, uma linha de pensamento e não limitar-se a meras interpretações dos clássicos – o que é algo bastante raro nos dias atuais, sobretudo em nosso continente. Radicalizando a questão, o pensador argentino afirma que, na tentativa de elaborar um pensamento próprio latino-americano, não podemos sequer contar com aqueles que “imitam” os filósofos europeus na América Latina, “porque é filosofia inautêntica. Tampouco poderíamos partir dos imitadores latino-americanos dos críticos de Hegel [e da filosofia preponderante], porque igualmente eram inautênticos” (Dussel, 1986, p. 190). Podemos, então, ter claro que a filosofia intencionada por Enrique Dussel é uma filosofia ativa, criadora (e não copista ou comentadora), e com as características sócio-antropológicas dos povos latino-americanos.

 

A pré-história da filosofia da libertação

Enrique Dussel, ao teorizar uma filosofia da libertação distinta da européia, não o fez sem motivo. Embora bastante óbvio, preferimos começar nossa construção deste ponto. O fato é que, ao pensar seu continente sob o prisma da filosofia clássica, percebeu a presença de elementos opressores nos fundamentos desta filosofia, elementos estes que impossibilitavam uma identidade entre ela e o continente latino-americano. A necessidade de uma nova filosofia, com características latino-americanas, provém da falta de identidade entre a América Latina e a filosofia clássica. Ao mais fundamental destes elementos incompatíveis dedicaremos as próximas linhas.

Na história da filosofia, cronologicamente falando, o último nome indicado por Dussel como sendo o de um representante da filosofia preponderante é o de Martin Heidegger (cf. DUSSEL, 1986, p. 190). Partiremos do pensamento heideggeriano, tal qual destacado pelo filósofo argentino, para o prosseguimento de nossos estudos. Heidegger nos apresenta a ontologia como filosofia primeira enquanto fundamentação da metafísica [2] . “A revelação do ser-aí é ontologia. Esta última se chama ontologia fundamental enquanto estabelece o fundamento da possibilidade da metafísica...” (HEIDEGGER, 1996, p. 195). A filosofia, assim, funda-se na ontologia, no sistema ontológico do pensamento e do conhecimento.

Contra esta filosofia fundada na ontologia é que levanta-se a filosofia da libertação. Considerando a condição de opressão dos povos latinos, Dussel aponta como contraditória a estes povos uma filosofia centrada num sujeito, em um só ser que é o único possibilitado a possibilitar os outros (entes). É contra a totalidade necessária à unidade do ser ontológico que o filósofo argentino argumenta, em busca de um pensamento não-opressor. Utilizando-se do pensamento de Emanuel Levinas, crítico europeu de Heidegger, Euclides Mance aponta este mesmo problema quando afirma que “ao [lhe] conferir sentidos, o Eu reduz o Outro a um terceiro que é o conceito sob o domínio do ser” (MANCE, 1994, p. 24). Entendemos aqui o “Eu” como o ser.

Dentro dos horizontes do sentido do ser-no-mundo, do ser heideggeriano – que é expressão do ser segundo a filosofia européia – não há lugar para outro ser, para mais que um sujeito. O outro, ao relacionar-se com o ser ontológico é objetivado, isto é, torna-se objeto do sentido do ser, potencial objeto do conhecimento do ser, mas sempre objeto de um ser. É isso que afirma Mance quando diz, na citação acima, que o Eu dá sentido ao Outro, tornando-o outro ou objeto de si-mesmo. O ser, nesta condição ontológica, é uno dentro do mundo constituído por sua totalidade, e ela, por sua vez, confina o ser, isolando-o em si-mesmo. Nesse sentido, em uma obra que segundo ele mesmo é introdutória, Dussel já afirma categoricamente que, “como totalidade espacial, o mundo sempre situa o eu, o homem ou o sujeito como centro; a partir de tal centro se organizam espacialmente os entes desde os mais próximos e com maior sentido até os mais distantes e com menor sentido” (DUSSEL, 1976, p. 30). Utilizando esta mesma terminologia, vale ressaltar que há um ser: os demais são entes.

Em nível internacional e intercontinental, não teremos aqui muitos problemas para demonstrar quais países e continentes são o ser, o centro (seja político, financeiro, bélico ou intelectual) e quais são entes objetivados e percebidos apenas dentro das qualidades relevantes para aqueles do primeiro grupo. Numa palavra, a colonização e neo-colonização têm respaldo numa filosofia fundada na ontologia visto que, neste contexto, o ser pode dar o sentido que quiser, e se quiser, ao ente, ao periférico, bem como pode simplesmente exclui-lo negando-lhe qualquer sentido.

Segundo Enrique Dussel, estes pensadores que compõem a filosofia preponderante, a saber, sobretudo Kant, Hegel e Heidegger, bem como seus críticos, dentre os quais Feuerbach, Marx, Kierkegaard, não podem servir de base a um pensamento que se pretenda da libertação latino-americana. No caso dos primeiros, por serem eles os criadores e formadores deste pensamento ontológico excludente; no caso dos seus críticos, por não serem tão radicalmente críticos ao ponto de romperem com a ontologia. Mesmo Levinas, crítico hedeggeriano, é ainda europeu e não fundador da filosofia latina. É o próprio Dussel quem escreve (1986, p. 190):

Eles são a pré-história da filosofia latino-americana e o antecedente imediato de nosso pensar latino-americano. Não podíamos contar nem com o pensar europeu preponderante (de Kant, Hegel ou Heidegger), porque nos incluem como “objeto” ou “coisa” em seu mundo; não podíamos partir daqueles que os imitaram na América Latina, porque é filosofia inautêntica. Tampouco podíamos partir dos imitadores latino-americanos dos críticos de Hegel, porque igualmente eram inautênticos. Os únicos críticos reais do pensar dominador europeu foram os autênticos críticos europeus acima nomeados, ou os movimentos históricos de libertação na América Latina, África ou Ásia.

 

Podemos definir assim que a filosofia clássica, seus críticos e comentadores compõem a pré-história da filosofia da libertação, o período lógico imediatamente anterior ao início de sua história. Poderemos abordar agora o nosso objeto maior neste estudo.

 

O princípio da filosofia da libertação

Como dissemos no início, terminada breve reflexão que antecedeu este ponto, podemos agora iniciar nosso caminho em territórios mais pertinentes ao campo da filosofia da libertação. O faremos analisando os principais elementos do momento de libertação, tal qual enunciado por Dussel.

Partiremos agora da história propriamente dita desta filosofia por nós estudada, buscando assim não basear nossa argumentação na filosofia européia (pré-histórica da latina), embora tenhamos clara consciência sobre o quanto uma pré-história influencia a história – seja de um povo, de uma civilização ou mesmo de uma filosofia. Fazemos esta advertência quanto à distinção entre a história e seu período prévio visando explicitar que não é intenção da filosofia da libertação ter no pensamento clássico seu parâmetro, seu objeto ou o reconhecimento quanto a sua relevância: trata-se de uma filosofia tão filosofia quanto aquela clássica, mas com a característica de ser própria dos povos oprimidos, e não sua opressora.

Embora já o tenhamos dito, reforçamos nossa interpretação de que a maior incompatibilidade entre o pensamento clássico e o povo oprimido está na questão da totalidade exigida pela filosofia fundamentada na ontologia. Lembramos que tal totalidade impossibilita a presença de mais que um ser dentro de seus limites, objetivando (tornando objetos) os sujeitos que entram no universo da totalidade daquele ser em questão. Contra esta agressão, de tornar objetos homens e mulheres, apresenta-se esta filosofia da libertação.

 

Superação da dialética negativa: o momento analético

Seguindo o método proposto por Enrique Dussel para a filosofia da libertação, numa obra editada em 1974, em coerência com outras obras dusselianas, chegamos à analética, ao momento analético no rompimento, ou melhor, no irrompimento da totalidade. Curiosamente o método (momento) proposto como possibilitador da superação da totalidade ontológica é expresso por um termo ausente nos dicionários de língua e de filosofia [3] , de modo que fomos buscar uma explanação sobre ele na própria obra do filósofo argentino (DUSSEL, 1986, p.196-7):

A passagem da totalidade a um novo momento de si mesma é sempre dia-lética; tinha, porém, razão Feuerbach ao dizer que “a verdadeira dialética” (há, pois, uma falsa) parte do diálogo do outro e não do “pensador solitário consigo mesmo”. A verdadeira dia-lética tem um ponto de apoio ana-lético (é um movimento ana-dia-lético); enquanto a falsa, a dominadora e imoral dialética é simplesmente um movimento conquistador: dia-lético.

 

Apontando que os limites da dialética são os limites da totalidade, Dussel vem propor que pela superação da dialética, pela analética, pode-se superar também a totalidade rumo ao outro sujeito. Passaremos, pois, à explicação sobre como pode a analética superar a dialética e abrir caminho para a exterioridade da totalidade.

Segundo o filósofo argentino, o movimento ontológico dialético tem seu primeiro momento no caminho que leva da cotidianidade ôntica para o fundamento; o segundo momento é a demonstração da relação fundante do ontológico sobre o ôntico (cf. DUSSEL, 1986, p.197-8). Quanto a estes dois primeiros momentos, Dussel sugere o primeiro como discurso filosófico que parte do cotidiano rumo ao universal, e o segundo como filosofia científica. Há porém, na verdadeira dialética, um terceiro momento que é a percepção de um ente “que é irredutível a uma de-dução ou de-monstração a partir do fundamento [ontológico]: o ‘rosto’ [4] ôntico do outro que, em sua visibilidade, permanece presente como tran-ontológico...” (DUSSEL, 1986, p.198).

A impossibilidade de redução do rosto ôntico ao ontológico, isto é, a revelação de um ente (outro) que não pode ser reduzido ao ser (mesmo) de uma totalidade constitui o elemento natural para o questionamento cujo a ontologia não é capaz de responder. Põe-se assim em crise todo o sistema ontológico por conta de sua negatividade quanto a presença de mais-que-um ser dentro de sua totalidade: tudo deveria reduzir-se a ôntica, a entes, cuja dedução é possível a partir do ser, mas o rosto ôntico do outro não é passível de dedução. Esta impossibilidade, segundo Dussel, constitui um quarto momento do movimento que agora é ana-dia-lético, ao ponto que exige a substituição da ontologia ante sua insuficiência em atender a continuidade natural deste movimento (cf. Ibid.).

Não havendo mais a categoria ontológica, segue em sua construção o filósofo da libertação, o nível ôntico não mais se justifica. Será, pois, redimensionado de acordo com o elemento que substituirá a ontologia no fundamento do movimento, constituindo-se assim o derradeiro quinto movimento (cf. Ibid.).

Sobre a importância constituída por estes dois últimos passos no complexo do movimento, afirma Dussel (1976, p. 164-5):

O momento analético é por isso crítico e superação do método dialético negativo, não o nega, como a dialética não nega a ciência, simplesmente o assume, o completa, lhe dá seu justo e real valor [...]. É a afirmação da exterioridade: não é somente negação da negação do sistema deste a afirmação da totalidade. É superação da totalidade, mas não só como atualidade do que está em potência no sistema. É a superação da totalidade desde a transcendntalidade interna ou da exterioridade, o que nunca esteve dentro. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema (não havia potência para isso), é realizar o novo, o imprevisível para a totalidade, o que surge a partir da liberdade incondicionada, revolucionária, inovadora.

 

Embora seja inicialmente sugerido como um método, o que pode levar à subestimada caracterização como algo meramente formal, a analética na filosofia da libertação garante, com a existência de mais que um sujeito, uma dimensão de práxis ao movimento, posto que o ser não é mais uno na totalidade, mas está em constante relação com outro sujeito, não havendo mais um “senhor” da situação, do mundo enquanto totalidade.

 

Ouço algo. Que é – Quem é?

Apresentada a possibilidade de caminhar para além da totalidade,  dedicaremos as próximas linhas ao estudo daquele elemento (que então era) ôntico e que, com sua presença, nos levou à impossibilidade da ontologia: falaremos do outro, de quem vimos o rosto e não pudemos reduzi-lo a um ser ontológico, mas de quem, antes, ouvimos um grito, uma palavra, que tampouco pode reduzir-se ao ser. Ainda caminhando pelos princípios da filosofia da libertação, vejamos que Dussel (1986, p. 190) afirma que

empunhando (e superando) as críticas européias a Hegel e Heidegger e, escutando a palavra pro-vocante do outro, que é o latino-americano oprimido na totalidade norte-atlântica como futuro, pode nascer a filosofia latino-americana que será, analogicamente, africana e asiática

 

Considerando este trecho acima, podemos afirmar que, para transcender a totalidade ontológica, tivemos que conhecer (ou empunhar) a filosofia de Hegel e Heidegger, e a de seus críticos. No ato de transcendência desta totalidade ontológica, superamos estas filosofias, de modo que os dois primeiros pontos necessários – e os únicos acadêmicos, por assim dizer – ao surgimento da filosofia da libertação foram alcançados e contemplados em nosso trabalho. O que falta abordarmos agora, nessa introdução ao pensamento dusseliano, é do escutar a voz do outro, e sobre isso trataremos aqui. Comecemos pelos dizeres do próprio Dussel (1995, p. 19)

O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam, clamando por justiça:
– Tenho fome! Não me mates! Tem compaixão de mim! – é o que exclamam esses infelizes.
[...] Estamos na presença do escravo que nasceu escravo e que nem sabe que é uma pessoa. Ele simplesmente grita. O grito – enquanto ruído, rugido, clamor, protopalavra ainda não articulada, interpretada de acordo com o seu sentido apenas por quem “tem ouvidos para ouvir” – indica simplesmente que alguém está sofrendo e que do íntimo de sua dor nos lança um grito, um pranto, uma súplica. É a “interpelação primitiva”

 

A revelação do outro por seu grito desesperado em busca de justiça, depois por sua palavra que parte de si e não de um ser alheio é o momento em que somos despertados para a existência desse outro, que é outro e não o mesmo. Justamente por ser uma palavra através da qual o outro diz-se, partindo de si-mesmo, ela é uma pro-vocação ao ouvinte que, impossibilitado de justificar tal palavra de outrem no interior de sua totalidade busca superar esta última rumo ao emissor da palavra. Nessa sua busca, que é uma resposta à pro-vocação sofrida, o ser é obrigado a transcender sua totalidade a fim de encontrar o que é que grita de mais-além. E encontra, ao transcender, não o que, mas quem grita. Encontra uma pessoa, um “outro como sujeito autônomo, livre e distinto (não só igual ou diferente)” (DUSSEL, 2000, p. 374).

O outro, que é um ser vivo e está próximo de nós, que não é uma mera categorização vazia, a criança faminta, o índio explorado, o proletário oprimido. Quando fala de outro, Dussel não categoriza, mas refere-se a homens e mulheres que vivem ao nosso lado. Refere-se “À mulher camponesa e proletária que suporta o uxoricídio. À juventude do mundo inteiro que se rebela contra o filicídio. Aos anciãos sepultados vivos nos asilos pela sociedade de consumo” (DUSSEL, 1976, p. 5). Este outro grita por estar excluído da sociedade e por ser agredido invariavelmente ao ser objetivado por um ser qualquer. Quando, todavia, esse ser qualquer rompe a sua totalidade, não mais pode objetivar. Agora, e só agora, ele pode relacionar-se com este outro, de modo que também para ele o irrompimento da totalidade é a possibilidade de liberdade.

Mantendo ainda em evidência esta abordagem que vimos fazendo nos últimos parágrafos, sobre o outro – ser vivo – que grita por justiça interpretemos algumas linhas escritas por Paulo Freire, primeiro ao afirmar que “os oprimidos como objetos, como “quase coisas”, não têm finalidades. As suas, são as finalidades que lhes prescrevem os opressores” (FREIRE, 1987, p. 47). Mas, coisificados, os oprimidos, os sujeitos objetivados gritam por seu lugar no mundo, por sua condição de dignidade humana, gritam. E quando afirma que “só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para liberar a ambos [opressores e oprimidos]” (FREIRE, 1987, p. 31), Freire refere-se, inclusive, ao poder de gritar para fazer-se ouvir. “É um dizer-se” (DUSSEL, 1986, p. 196). É provocar o ser, de modo a fazer com que ele irrompa de sua totalidade possibilitando a relação entre outros em superação à entificação por um ser.

Chegamos, agora, ao outro como outro, e não como ente. Este outro possui um rosto, que não pode ser reduzido ao ser, e possui sua palavra, seu grito, que por incomodar provoca. Aceitando essa pro-vocação é que chegamos ao outro e, com isso, podemos concluir a possibilidade e, mais, necessidade de uma filosofia da libertação. Fazemos esta afirmação por considerar que temos a quem libertar através da não-objetivação. Instaurada esta filosofia de que tratamos, poderemos agora abordar suas características, em uma etapa do trabalho que, cremos, será menos densa que esta – não por ser menos relevante, mas por apenas concluir o que já temos levantado.

 

Características da filosofia da libertação

Quando apresentamos a necessidade de superação da dialética negativa pelo seu momento analético ou ana-dia-lético positivo (2.1), demonstramos também que a ontologia, junto à dialética, teve que ser superada. Superada no sentido expresso por Dussel (1976, p. 164), qual seja, de ter ultrapassadas as suas possibilidades, ser extrapolada em seus limites. Não negada ou ignorada, diante do questionamento que não pode responder – a impossibilidade da redução do rosto do outro e do grito alheio ao ser – a ontologia deixou de ser suficiente à questão do ser ante ao surgimento do outro.

Abordaremos agora mais cuidadosamente esta questão dos limites e da superação da ontologia, analisando-a de modo a obtermos o instrumental necessário para, com mais propriedade, abordarmos o objeto mesmo de nossa pesquisa.

 

Limites da ontologia

Comecemos este tópico com uma breve síntese dos pontos que serão relevantes para nosso estudo, acerca do sistema ontológico. Advertimos desde já que este estudo visa estritamente levantar as premissas de nossa argumentação, não sendo portanto um trabalho sobre ontologia, senão um trabalho sobre ontologia para explicação da filosofia dusseliana da libertação.

Poderíamos começar aqui, sem prejuízo de nosso estudo, pela ousia aristotélica, pelo eu cartesiano, pelo sujeito kantiano, pelo ser hegeliano, pelo indivíduo freudiano – apenas para citar alguns das possibilidades de um estudo que parta da ontologia. Escolheremos, todavia, o já citado Martin Heidegger e seu dasein, o ser-aí, o ser-no-mundo. Fazemos esta escolha para mantermos concordância com a obra dusseliana, de modo a evitarmos maiores complicações aos que se dispuserem a estudar esta filosofia da libertação.

Expressando um momento bastante atual da filosofia que Enrique Dussel chama por preponderante européia, Heidegger problematiza constantemente, ao longo de sua obra, a própria filosofia. Mesmo quando trata da questão do ser, dista em muito de uma antropologia: faz filosofia da filosofia, afinal, segundo ele a própria filosofia como um todo “está a caminho do ser” (HEIDEGGER, 1979, p. 18). Age, assim, como ontólogo, ou, noutros termos, faz ontologia.

Correndo o risco de sermos demasiadamente simples, resumiremos a ontologia heideggeriana como sendo aquela segundo a qual o homem, o ser-no-mundo, é limitado pelos seus próprios horizontes, estando neste intra-horizonte suas únicas possibilidades. Certamente não estamos reduzindo este horizonte à categorias, tais quais às kantianas de espaço e tempo. Também não significamos como horizonte os limites impostos pelas possibilidades físicas de contato do homem com o mundo no qual está inserido. A questão aqui levantada é que, ainda que viva sob as lentes do espaço e do tempo, ainda que tenha por limites sua própria condição física, o ser humano não pode bastar-se a si mesmo, isto é, as explicações que podemos encontrar dentro dos limites ontológicos, e continuamos com a referência da ontologia heideggeriana, são suficientes para que o homem, por si-só e em si-só explique quase todas as relações existentes no seu espaço intra-horizontal. Destacamos: quase, mas não todas.

Lembremos a já clássica distinção, tão ressaltada por Heidegger, entre ser e ente, e que dentro dos horizontes de um ser não pode haver outro a este semelhante, ou seja, que mesmo quando um ser percebe outra pessoa, a percebe como ente e não como ser, pois o limite ontológico não permitiria, devido a seus próprios limites, que fosse de outra maneira. Ainda melhor, atentos ao apresentado neste tópico de nosso trabalho, leiamos algumas breves e reveladoras linhas do próprio Martin Heidegger (1979, p. 17-8):

Todo ente é no ser. Dito mais precisamente: o ser é o ente. Nessa locução o ‘é’ traz uma carga transitiva e designa algo assim como ‘recolhe’. O ser recolhe o ente pelo fato de que é o ente [...]

Todo ente é no ser.

Ouvir tal coisa soa de modo trivial em nosso ouvido, quando não de modo ofensivo. Pois pelo fato de o ente ter seu lugar no ser, ninguém precisa preocupar-se. Todo mundo sabe: ente é aquilo que é. Qual outra solução para o ente a não ser esta: ser?

 

E qual a possibilidade de o ser não ser só, dele não ser única e exclusivamente ser-no-meu-mundo em prejuízo de ser-no-mundo, havendo apenas um único ser, a quem pertence todos os entes? Mas a questão que nos motiva nesse trabalho é ainda outra, mais relevante: qual a possibilidade do ente ser?

Não retomaremos aqui a explicação sobre como o rosto se impõe como impossibilidade de redução ôntica, isto é, como o rosto do outro não pode ser recolhido pelo ser, ainda que esteja presente e relacione-se com outros entes nos limites intra-horizontais de um ser. Este é o ente que o ser não pode recolher, pois não é sua pertença.

Se essa ontologia, filosofia primeira ou filosofia da filosofia, não é suficiente para fundar a filosofia frente às críticas do filósofo da libertação, certamente não poderemos falar dela (a ontologia) como fundadora de uma filosofia universal e, principalmente, como fundadora da filosofia da libertação. Não é objeto deste trabalho analisar a validade da ontologia no fundamento da filosofia preponderante européia, mas ainda assim temos que afirmar aqui, para atingir nossos objetivos, que a hegemonia da ontologia como filosofia primeira está quebrada. Do mesmo modo, se é válida a seguinte afirmação de Heidegger: “a filosofia propura o que é o ente enquanto é. A filosofia está a caminho do ser do ente, que dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser” (HEIDEGGER, 1979, p.18), podemos, em contra partida, afirmar que a filosofia da libertação pretendida é outra – não igual e nem oposta, mas distinta desta européia.

 

Superação da ontologia

Falando em uma filosofia distinta da européia, a filosofia da libertação, falamos da superação da ontologia. Falamos de uma filosofia que se funde além dos limites intra-horizontais do ser, ou, numa palavra, além dos limites da ontologia. Mas o que significa fundar-se além da ontologia, além de seus limites?

Quando utilizamos o termo “uma filosofia fundar-se em”, referimo-nos justamente à questão da filosofia primeira ou da metafísica desta filosofia. Superar a ontologia, então, é redimensionar a metafísica, proporcionando uma nova filosofia fundante da filosofia, no nosso caso, latino-americana.

Devemos atentar para a utilização dos termos e conceitos enquanto tratarmos desta questão, vista a milenar con-fusão que tradicionalmente faz-se entre ontologia e metafísica. Seguindo o pensamento de Enrique Dussel, com o qual concordamos no tocante a este tema, a metafísica é, por natureza, a filosofia primeira [5] – tal qual o é em toda a filosofia ocidental. A grande distinção encontra-se naquilo que se entende por metafísica. A filosofia européia, da qual escolhemos Heidegger como representante, ainda que poderiam ter sido outros, conforme esclarecemos no tópico anterior a este, entendeu e entende a ontologia como única possibilidade de metafísica. Poderíamos citar aqui inúmeros trechos dos mais diversos autores confirmando nossa afirmação sobre esta con-fusão  entre metafísica e ontologia. Haja visto a citação de Heidegger (1996, p. 195) feita neste trabalho (Pré-história da filosofia da libertação), ou Kant, afirmando que a ontologia “insere-se nesta [na metafísica] só como propedêutica, como o vestíbulo ou a antecâmara da metafísica propriamente dita; e chama-se filosofia transcendental, porque contêm as condições e os primeiros elementos de todo o nosso conhecimento a priori” (KANT, 1995, p. 13).

É essa ontologia, porém, que mostramos insuficiente enquanto fundamentação metafísica. O ser desta ontologia tem que transcender para ser transcendido e só assim ter rompido o isolamento ontológico em que estava confinado. Faz-se necessário ressaltar que este termo transcender tal qual utilizado aqui, assim como o termo metafísica, não têm características de supra-realidade: são absolutamente reais por serem antropológicos, no sentido de partir do homem e da mulher oprimidos como princípio da filosofia da libertação, na qual estes termos inserem-se nessa nossa análise. É justamente no tocante a esse “romper a totalidade ontológica” que Dussel se refere quando explica que “se trata de ir mais-além do ser como compreensão, como sistema, como fundamento do mundo, do horizonte do sentido. Este ir mais-além é expresso na partícula meta de metafísica” [6] (DUSSEL, 1984, p. 135). O papel da filosofia da libertação é permitir ao sujeito ir mais além dos limites intra-horizontais da sua totalidade ontológica, de modo a não ser o sujeito dos objetos, mas um sujeito entre sujeitos também.

Mas pautada em que uma filosofia pode propor semelhante superação da ontologia?

Lembremos que no desenvolvimento deste trabalho, o motivo inicial da problematização da ontologia foi a impossibilidade de reduzir ou recolher o rosto ôntico do outro ao ser-mesmo. Escutamos também o grito desesperado deste outro por justiça: é com ele, com o outro que estamos preocupados na filosofia da libertação – se não o fosse, poderíamos continuar ontologicamente isolados. Para ver um rosto e reconhecê-lo como sendo de outro e não do mesmo, para ouvir um grito ou uma palavra pro-vocante e respondê-la como se responde a outro e não a si-mesmo, deve-se ser fundamentalmente ético. Ético como quem opta por sair do interior de seu caracol para aventurar-se num mundo comum, seu e de outros, e só assim poder experimentar a não-opressão. Junto a esta, o sujeito, com os outros, poderá desfrutar da liberdade de não ser isolado, de permitir ao outro que conheça o seu intra-horizonte e conhecer também sem opressão este intra-horizonte do outro. Trata-se de uma relação desarmada, se é que podemos assim chamá-la, mas não entre ingênuos: entre oprimidos, o que é bastante diferente.

Referências

DUSSEL, Enrique D. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000.
________. Filosofia da libertação. São Paulo/Piracicaba: Loyola/UNIMEP, 1976.
________. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.
________. La filosofía de la liberación en Argentina: irrupción de una nueva generación filosófica. In: ARGOTE, German M. ¿Que es eso de filosofía latinoamericana? Bogotá: El Buho, 1984.
________. Método para uma filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1986.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
HEIDEGGER, Martin. Kant y el problema de la metafisica. 2.ed. México: Fonde de Cultura Económica, 1996.
________. O que é isso – a filosofia? In: Conferências e escritos filosóficos. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (col. Os pensadores)
KANT, Immanuel. Os progressos da metafísica. Lisboa/Rio de Janeiro: Edições 70/Elfos, 1995.
MANCE, Euclides A. Emmanuel Levinas e a alteridade. Revista Filosofia, Curitiba, v. 7, n. 8, p. 23-30, 1994. (PUC-PR)


[1] Licenciando em Filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).
[2] Cf., por exemplo, Repetición de la fundamentación de la metafísica, em Heidegger, 1996.
[3] Consultamos o Dicionário de Filosofia, de José Ferrater Mora, a obra homônima de Nicola Abbagnano e vários dicionários de língua portuguesa, não encontrando referências à analético, analética, método analético ou termos afins. Entendemos que a não utilização de uma terminologia clássica seja bastante justa a uma filosofia não clássica, bem como o é a criação de seus próprios métodos. Não entraremos aqui na questão da necessidades de tais métodos.
[4] Rosto é um termo técnico da filosofia dusseliana, sobre o qual falaremos mais adiante. Basta neste momento percebermos a passagem construída pelo movimento analético rumo ao além da totalidade, que se dará na continuação imediata do texto.
[5] Encontramos referências diretas e indiretas sobre esta questão em diversos momentos de várias obras de Enrique Dussel. Poderíamos mencionar aqui quaisquer destas obras, mas optamos por uma pela clareza com que trata do assunto (ainda que não seja precisamente este o objeto de tal obra). Assim, ver sobre isso em Dussel, 1984.
[6] Os grifos são todos do próprio autor.