Ano
I - Nº 04 - Maio de 2002 - Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN
1519.6178
|
|
A filosofia dusseliana da libertação e sua
ética The Enrique
Dussel’s philosophy of liberation and its ethic
Daniel Pansarelli
[1]
|
|
RESUMO O artigo é uma análise da re-construção do
conceito de metafísica, feita pelo filósofo da libertação Enrique D.
Dussel. Apresentamos nele a gênese do problema posto pelo pensador argentino,
mostrando a impossibilidade da razão ontológica como sendo a metafísica (filosofia primeira) de uma filosofia própria da América
Latina. Toda filosofia construída sobre uma metafísica ontológica, afirma
Dussel, será necessariamente excludente ou, para utilizar termos mais
próprios desta filosofia da libertação, totalitária (da totalidade)
e opressora. Vemos, assim, a necessidade de se re-pensar (ou recriar)
a metafísica e com isso toda a filosofia, partindo, para tanto, da realidade
opressiva do continente latino-americano. Em substituição à metafísica
ontológica, esta nova, que deve ser re-criada, conforme indicado na
própria obra de Enrique Dussel e no presente artigo, será uma metafísica
fundada na ética como filosofia primeira. Apresentamos, na conclusão
de nosso texto, essa nova metafísica ética. Unitermos: filosofia da libertação;
Enrique Dussel; ética; metafísica.
ABSTRACT The
article is an analysis of the re-construction of the metaphysic’s concept,
which was done by philosopher of liberation
Enrique Dussel. We present in this text the genesis of the problem identified
by the Argentine thinker, showing the impossibility of the ontological
reason as being the metaphysic (first philosophy) of an own America
Latin’s philosophy. All philosophy that starts from a ontological metaphysic,
affirms Dussel, will be necessarily totalitarian (totality) and oppressive.
We think is needed to re-think (or redo) the metaphysic and, with that,
all the philosophy, starting from the Latin-American continent’ oppression.
In substitution of the ontological metaphysic, this new, that should
be re-created, like is showed in the own Enrique Dussel’s texts and
in the present article, will be a metaphysic founded in the ethics as
first philosophy. We present, in the conclusion of our text, that new
ethical metaphysic. Keywords: philosophy
of liberation; Enrique Dussel; ethic; metaphysic. |
|
A Filosofia Dusseliana da Libertação e sua Ética
O tema que abordaremos aqui, tal qual enunciado no título
deste artigo, nos fornece elementos para uma reflexão prévia necessária
ao seu próprio desenvolvimento. Referimo-nos à indicação de que tratar-se-á
de uma filosofia em particular, específica, e não aquela filosofia
clássica, que fora tradicionalmente européia na maior parte de sua
história e, hoje, é também norte-americana. Durante a pesquisa que
fizemos, nosso ponto central de localização foi a América Latina,
de modo que, as considerações que faremos sobre a filosofia clássica,
que convencionaremos chamar por européia, são considerações de um
observador desta filosofia a partir de sua exterioridade irrelevante,
a partir de um ponto além dos seus limites ontológico e geográfico
ou, numa palavra, da periferia excluída. Se falaremos do centro da
filosofia com a distorção e a limitação que nos são impostos por estarmos
fora dele, falaremos, em contra partida, da periferia ou dos excluídos da filosofia com a máxima propriedade, possível apenas àqueles
que optam por tratar dos problemas da realidade onde estão inseridos
– no nosso caso a América Latina. Em se tratando de uma filosofia periférica e, ainda mais,
que forma-se fora dos limites da filosofia clássica, poderíamos aqui
nos arriscar afirmando que trata-se de uma filosofia nova. Vemos e reconhecemos em Enrique Dussel um esforço em criar uma filosofia, uma linha de pensamento
e não limitar-se a meras interpretações dos clássicos – o que é algo
bastante raro nos dias atuais, sobretudo em nosso continente. Radicalizando
a questão, o pensador argentino afirma que, na tentativa de elaborar
um pensamento próprio latino-americano, não podemos sequer contar
com aqueles que “imitam” os filósofos europeus na América Latina,
“porque é filosofia inautêntica. Tampouco poderíamos partir dos imitadores
latino-americanos dos críticos de Hegel [e da filosofia preponderante],
porque igualmente eram inautênticos” (Dussel, 1986, p. 190). Podemos,
então, ter claro que a filosofia intencionada por Enrique Dussel é
uma filosofia ativa, criadora (e não copista ou comentadora), e com
as características sócio-antropológicas dos povos latino-americanos.
A pré-história da filosofia da
libertação Enrique Dussel, ao teorizar uma filosofia da libertação distinta
da européia, não o fez sem motivo. Embora bastante óbvio, preferimos
começar nossa construção deste ponto. O fato é que, ao pensar seu
continente sob o prisma da filosofia clássica, percebeu a presença
de elementos opressores nos fundamentos desta filosofia, elementos
estes que impossibilitavam uma identidade entre ela e o continente
latino-americano. A necessidade de uma nova filosofia, com características
latino-americanas, provém da falta de identidade entre a América Latina
e a filosofia clássica. Ao mais fundamental destes elementos incompatíveis
dedicaremos as próximas linhas. Na história da filosofia, cronologicamente falando, o último
nome indicado por Dussel como sendo o de um representante da filosofia
preponderante é o de Martin Heidegger (cf. DUSSEL, 1986, p. 190).
Partiremos do pensamento heideggeriano, tal qual destacado pelo filósofo
argentino, para o prosseguimento de nossos estudos. Heidegger nos
apresenta a ontologia como filosofia primeira enquanto fundamentação
da metafísica
[2]
. “A revelação
do ser-aí é ontologia. Esta última se chama ontologia fundamental
enquanto estabelece o fundamento da possibilidade da metafísica...”
(HEIDEGGER, 1996, p. 195). A filosofia, assim, funda-se na ontologia,
no sistema ontológico do pensamento e do conhecimento. Contra esta filosofia fundada na ontologia é que levanta-se
a filosofia da libertação. Considerando a condição de opressão dos
povos latinos, Dussel aponta como contraditória a estes povos uma
filosofia centrada num sujeito, em um só ser que é o único possibilitado
a possibilitar os outros (entes). É contra a totalidade necessária
à unidade do ser ontológico que o filósofo argentino argumenta, em
busca de um pensamento não-opressor. Utilizando-se do pensamento de
Emanuel Levinas, crítico europeu de Heidegger, Euclides Mance aponta
este mesmo problema quando afirma que “ao [lhe] conferir sentidos,
o Eu reduz o Outro a um terceiro que é o conceito sob o domínio do
ser” (MANCE, 1994, p. 24). Entendemos aqui o “Eu” como o ser. Dentro dos horizontes do sentido do ser-no-mundo, do ser
heideggeriano – que é expressão do ser segundo a filosofia européia
– não há lugar para outro ser,
para mais que um sujeito. O outro, ao relacionar-se com o ser ontológico
é objetivado, isto é, torna-se objeto do sentido do ser, potencial
objeto do conhecimento do ser, mas sempre objeto de um ser. É isso
que afirma Mance quando diz, na citação acima, que o Eu dá sentido
ao Outro, tornando-o outro ou objeto de si-mesmo. O ser, nesta condição
ontológica, é uno dentro do mundo constituído por sua totalidade,
e ela, por sua vez, confina o ser, isolando-o em si-mesmo. Nesse sentido,
em uma obra que segundo ele mesmo é introdutória, Dussel já afirma
categoricamente que, “como totalidade espacial, o mundo sempre situa
o eu, o homem ou o sujeito como centro; a partir de tal centro se
organizam espacialmente os entes desde os mais próximos e com maior
sentido até os mais distantes e com menor sentido” (DUSSEL, 1976,
p. 30). Utilizando esta mesma terminologia, vale ressaltar que há
um ser: os demais são entes. Em nível internacional e intercontinental, não teremos aqui
muitos problemas para demonstrar quais países e continentes são o
ser, o centro (seja político, financeiro, bélico ou intelectual) e
quais são entes objetivados e percebidos apenas dentro das qualidades
relevantes para aqueles do primeiro grupo. Numa palavra, a colonização
e neo-colonização têm respaldo numa filosofia fundada na ontologia
visto que, neste contexto, o ser pode dar o sentido que quiser, e
se quiser, ao ente, ao periférico, bem como pode simplesmente exclui-lo
negando-lhe qualquer sentido. Segundo Enrique Dussel, estes pensadores que compõem a filosofia
preponderante, a saber, sobretudo Kant, Hegel e Heidegger, bem como
seus críticos, dentre os quais Feuerbach, Marx, Kierkegaard, não podem
servir de base a um pensamento que se pretenda da libertação latino-americana.
No caso dos primeiros, por serem eles os criadores e formadores deste
pensamento ontológico excludente; no caso dos seus críticos, por não
serem tão radicalmente críticos ao ponto de romperem com a ontologia.
Mesmo Levinas, crítico hedeggeriano, é ainda europeu e não fundador
da filosofia latina. É o próprio Dussel quem escreve (1986, p. 190):
Podemos definir assim que a filosofia clássica, seus críticos
e comentadores compõem a pré-história da filosofia da libertação,
o período lógico imediatamente anterior ao início de sua história.
Poderemos abordar agora o nosso objeto maior neste estudo.
O princípio da filosofia da libertação Como dissemos no início, terminada breve reflexão que antecedeu
este ponto, podemos agora iniciar nosso caminho em territórios mais
pertinentes ao campo da filosofia da libertação. O faremos analisando
os principais elementos do momento de libertação, tal qual enunciado
por Dussel. Partiremos agora da história propriamente dita desta filosofia
por nós estudada, buscando assim não basear nossa argumentação na
filosofia européia (pré-histórica da latina), embora tenhamos clara
consciência sobre o quanto uma pré-história influencia a história
– seja de um povo, de uma civilização ou mesmo de uma filosofia. Fazemos
esta advertência quanto à distinção entre a história e seu período
prévio visando explicitar que não é intenção da filosofia da libertação
ter no pensamento clássico seu parâmetro, seu objeto ou o reconhecimento
quanto a sua relevância: trata-se de uma filosofia tão filosofia quanto
aquela clássica, mas com a característica de ser própria dos povos
oprimidos, e não sua opressora. Embora já o tenhamos dito, reforçamos nossa interpretação
de que a maior incompatibilidade entre o pensamento clássico e o povo
oprimido está na questão da totalidade exigida pela filosofia fundamentada
na ontologia. Lembramos que tal totalidade impossibilita a presença
de mais que um ser dentro de seus limites, objetivando (tornando objetos)
os sujeitos que entram no universo da totalidade daquele ser em questão.
Contra esta agressão, de tornar objetos homens e mulheres, apresenta-se
esta filosofia da libertação.
Superação da dialética
negativa: o momento analético Seguindo o método proposto por Enrique Dussel para a filosofia
da libertação, numa obra editada em 1974, em coerência com outras
obras dusselianas, chegamos à analética, ao momento analético no rompimento,
ou melhor, no irrompimento da totalidade. Curiosamente o método (momento)
proposto como possibilitador da superação da totalidade ontológica
é expresso por um termo ausente nos dicionários de língua e de filosofia
[3]
, de modo que fomos buscar uma explanação sobre
ele na própria obra do filósofo argentino (DUSSEL, 1986, p.196-7): A passagem da totalidade a um novo momento de si mesma é
sempre dia-lética; tinha, porém, razão Feuerbach ao dizer que “a verdadeira dialética” (há, pois, uma falsa) parte do diálogo do outro e não
do “pensador solitário consigo mesmo”. A verdadeira dia-lética tem
um ponto de apoio ana-lético (é um movimento ana-dia-lético);
enquanto a falsa, a dominadora e imoral dialética é simplesmente um
movimento conquistador: dia-lético.
Apontando que os limites da dialética são os limites da totalidade,
Dussel vem propor que pela superação da dialética, pela analética,
pode-se superar também a totalidade rumo ao outro sujeito. Passaremos,
pois, à explicação sobre como pode a analética superar a dialética
e abrir caminho para a exterioridade da totalidade. Segundo o filósofo argentino, o movimento ontológico dialético
tem seu primeiro momento no caminho que leva da cotidianidade ôntica
para o fundamento; o segundo momento é a demonstração da relação fundante
do ontológico sobre o ôntico (cf. DUSSEL, 1986, p.197-8). Quanto a
estes dois primeiros momentos, Dussel sugere o primeiro como discurso
filosófico que parte do cotidiano rumo ao universal, e o segundo como
filosofia científica. Há porém, na verdadeira dialética, um terceiro
momento que é a percepção de um ente “que é irredutível a uma de-dução
ou de-monstração a partir do fundamento [ontológico]: o ‘rosto’
[4]
ôntico do outro que, em sua visibilidade, permanece
presente como tran-ontológico...” (DUSSEL, 1986, p.198). A impossibilidade de redução do rosto ôntico ao ontológico,
isto é, a revelação de um ente (outro) que não pode ser reduzido ao
ser (mesmo) de uma totalidade constitui o elemento natural para o
questionamento cujo a ontologia não é capaz de responder. Põe-se assim
em crise todo o sistema ontológico por conta de sua negatividade quanto
a presença de mais-que-um ser dentro de sua totalidade: tudo deveria
reduzir-se a ôntica, a entes, cuja dedução é possível a partir do
ser, mas o rosto ôntico do outro não é passível de dedução. Esta impossibilidade,
segundo Dussel, constitui um quarto momento do movimento que agora
é ana-dia-lético, ao ponto que exige a substituição da ontologia ante
sua insuficiência em atender a continuidade natural deste movimento
(cf. Ibid.). Não havendo mais a categoria ontológica, segue em sua construção
o filósofo da libertação, o nível ôntico não mais se justifica. Será,
pois, redimensionado de acordo com o elemento que substituirá a ontologia
no fundamento do movimento, constituindo-se assim o derradeiro quinto
movimento (cf. Ibid.). Sobre a importância constituída por estes dois últimos passos
no complexo do movimento, afirma Dussel (1976, p. 164-5):
Embora seja inicialmente sugerido como um método, o que pode
levar à subestimada caracterização como algo meramente formal, a analética
na filosofia da libertação garante, com a existência de mais que um
sujeito, uma dimensão de práxis ao movimento, posto que o ser não
é mais uno na totalidade, mas está em constante relação com outro
sujeito, não havendo mais um “senhor” da situação, do mundo enquanto
totalidade.
Ouço algo. Que é –
Quem é? Apresentada a possibilidade de caminhar para além da totalidade,
dedicaremos as próximas linhas ao estudo daquele elemento (que
então era) ôntico e que, com sua presença, nos levou à impossibilidade
da ontologia: falaremos do outro, de quem vimos o rosto e não pudemos
reduzi-lo a um ser ontológico, mas de quem, antes, ouvimos um grito,
uma palavra, que tampouco pode reduzir-se ao ser. Ainda caminhando
pelos princípios da filosofia da libertação, vejamos que Dussel (1986,
p. 190) afirma que empunhando (e superando) as críticas européias a Hegel e
Heidegger e, escutando a palavra pro-vocante do outro, que é o latino-americano
oprimido na totalidade norte-atlântica como futuro, pode nascer a
filosofia latino-americana que será, analogicamente, africana e asiática
Considerando este trecho acima, podemos afirmar que, para
transcender a totalidade ontológica, tivemos que conhecer (ou empunhar)
a filosofia de Hegel e Heidegger, e a de seus críticos. No ato de
transcendência desta totalidade ontológica, superamos estas filosofias,
de modo que os dois primeiros pontos necessários – e os únicos acadêmicos,
por assim dizer – ao surgimento da filosofia da libertação foram alcançados
e contemplados em nosso trabalho. O que falta abordarmos agora, nessa
introdução ao pensamento dusseliano, é do escutar a voz do outro,
e sobre isso trataremos aqui. Comecemos pelos dizeres do próprio Dussel
(1995, p. 19)
A revelação do outro por seu grito desesperado em busca de
justiça, depois por sua palavra que parte de si e não de um ser alheio
é o momento em que somos despertados para a existência desse outro,
que é outro e não o mesmo. Justamente por ser uma palavra através
da qual o outro diz-se, partindo de si-mesmo, ela é uma pro-vocação
ao ouvinte que, impossibilitado de justificar tal palavra de outrem
no interior de sua totalidade busca superar esta última rumo ao emissor
da palavra. Nessa sua busca, que é uma resposta à pro-vocação sofrida,
o ser é obrigado a transcender sua totalidade a fim de encontrar o
que é que grita de mais-além. E encontra, ao transcender, não
o que, mas quem
grita. Encontra uma pessoa, um “outro como sujeito autônomo, livre
e distinto (não só igual ou diferente)” (DUSSEL, 2000, p. 374). O outro, que é um ser vivo e está próximo de nós, que não
é uma mera categorização vazia, a criança faminta, o índio explorado,
o proletário oprimido. Quando fala de outro, Dussel não categoriza,
mas refere-se a homens e mulheres que vivem ao nosso lado. Refere-se
“À mulher camponesa e proletária que suporta o uxoricídio. À juventude
do mundo inteiro que se rebela contra o filicídio. Aos anciãos sepultados
vivos nos asilos pela sociedade de consumo” (DUSSEL, 1976, p. 5).
Este outro grita por estar excluído da sociedade e por ser agredido
invariavelmente ao ser objetivado por um ser qualquer. Quando, todavia,
esse ser qualquer rompe a sua totalidade, não mais pode objetivar.
Agora, e só agora, ele pode relacionar-se com este outro, de modo
que também para ele o irrompimento da totalidade é a possibilidade
de liberdade. Mantendo ainda em evidência esta abordagem que vimos fazendo
nos últimos parágrafos, sobre o outro – ser vivo – que grita por justiça
interpretemos algumas linhas escritas por Paulo Freire, primeiro ao
afirmar que “os oprimidos como objetos, como “quase coisas”, não têm
finalidades. As suas, são as finalidades que lhes prescrevem os opressores”
(FREIRE, 1987, p. 47). Mas, coisificados, os oprimidos, os sujeitos
objetivados gritam por seu lugar no mundo, por sua condição de dignidade
humana, gritam. E quando afirma que “só o poder que nasça da debilidade
dos oprimidos será suficientemente forte para liberar a ambos [opressores
e oprimidos]” (FREIRE, 1987, p. 31), Freire refere-se, inclusive,
ao poder de gritar para fazer-se ouvir. “É um dizer-se” (DUSSEL, 1986,
p. 196). É provocar o ser, de modo a fazer com que ele irrompa de
sua totalidade possibilitando a relação entre outros em superação
à entificação por um ser. Chegamos, agora, ao outro como outro, e não como ente. Este
outro possui um rosto, que
não pode ser reduzido ao ser, e possui sua palavra,
seu grito, que por incomodar
provoca. Aceitando essa pro-vocação é que chegamos ao outro e, com
isso, podemos concluir a possibilidade e, mais, necessidade de uma
filosofia da libertação. Fazemos esta afirmação por considerar que
temos a quem libertar através da não-objetivação. Instaurada esta
filosofia de que tratamos, poderemos agora abordar suas características,
em uma etapa do trabalho que, cremos, será menos densa que esta –
não por ser menos relevante, mas por apenas concluir o que já temos
levantado.
Características da filosofia
da libertação Quando apresentamos a necessidade de superação da dialética
negativa pelo seu momento analético ou ana-dia-lético positivo (2.1),
demonstramos também que a ontologia, junto à dialética, teve que ser
superada. Superada no sentido expresso por Dussel (1976, p. 164),
qual seja, de ter ultrapassadas as suas possibilidades, ser extrapolada
em seus limites. Não negada ou ignorada, diante do questionamento
que não pode responder – a impossibilidade da redução do rosto do
outro e do grito alheio ao ser – a ontologia deixou de ser suficiente
à questão do ser ante ao surgimento do outro. Abordaremos agora mais cuidadosamente esta questão dos limites
e da superação da ontologia, analisando-a de modo a obtermos o instrumental
necessário para, com mais propriedade, abordarmos o objeto mesmo de
nossa pesquisa.
Limites da ontologia Comecemos este tópico com uma breve síntese dos pontos que
serão relevantes para nosso estudo, acerca do sistema ontológico.
Advertimos desde já que este estudo visa estritamente levantar as
premissas de nossa argumentação, não sendo portanto um trabalho sobre
ontologia, senão um trabalho sobre ontologia para explicação da filosofia
dusseliana da libertação. Poderíamos começar aqui, sem prejuízo de nosso estudo, pela
ousia aristotélica, pelo
eu cartesiano, pelo sujeito kantiano, pelo ser
hegeliano, pelo indivíduo
freudiano – apenas para citar alguns das possibilidades de um estudo
que parta da ontologia. Escolheremos, todavia, o já citado Martin
Heidegger e seu dasein, o ser-aí, o ser-no-mundo. Fazemos
esta escolha para mantermos concordância com a obra dusseliana, de
modo a evitarmos maiores complicações aos que se dispuserem a estudar
esta filosofia da libertação. Expressando um momento bastante atual da filosofia que Enrique
Dussel chama por preponderante européia, Heidegger problematiza constantemente,
ao longo de sua obra, a própria filosofia. Mesmo quando trata da questão
do ser, dista em muito de uma antropologia: faz filosofia da filosofia,
afinal, segundo ele a própria filosofia como um todo “está a caminho
do ser” (HEIDEGGER, 1979, p. 18). Age, assim, como ontólogo, ou, noutros
termos, faz ontologia. Correndo o risco de sermos demasiadamente simples, resumiremos
a ontologia heideggeriana como sendo aquela segundo a qual o homem,
o ser-no-mundo, é limitado pelos seus próprios horizontes, estando
neste intra-horizonte suas únicas possibilidades. Certamente não estamos
reduzindo este horizonte
à categorias, tais quais às kantianas de espaço e tempo. Também não
significamos como horizonte os limites impostos pelas possibilidades
físicas de contato do homem com o mundo no qual está inserido. A questão
aqui levantada é que, ainda que viva sob as lentes do espaço e do
tempo, ainda que tenha por limites sua própria condição física, o
ser humano não pode bastar-se a si mesmo, isto é, as explicações que
podemos encontrar dentro dos limites ontológicos, e continuamos com
a referência da ontologia heideggeriana, são suficientes para que
o homem, por si-só e em si-só explique quase todas as relações existentes
no seu espaço intra-horizontal. Destacamos: quase, mas não todas. Lembremos a já clássica distinção, tão ressaltada por Heidegger,
entre ser e ente, e que dentro dos horizontes de um
ser não pode haver outro a este semelhante, ou seja, que mesmo quando
um ser percebe outra pessoa, a percebe como ente e não como ser, pois
o limite ontológico não permitiria, devido a seus
próprios limites, que fosse de outra maneira. Ainda melhor, atentos
ao apresentado neste tópico de nosso trabalho, leiamos algumas breves
e reveladoras linhas do próprio Martin Heidegger (1979, p. 17-8):
E qual a possibilidade de o ser não ser só, dele não ser
única e exclusivamente ser-no-meu-mundo
em prejuízo de ser-no-mundo, havendo apenas um único ser, a quem pertence
todos os entes? Mas a questão que nos motiva nesse trabalho é ainda
outra, mais relevante: qual a possibilidade do ente ser? Não retomaremos aqui a explicação sobre como o rosto se impõe
como impossibilidade de redução ôntica, isto é, como o rosto do outro
não pode ser recolhido pelo
ser, ainda que esteja presente e relacione-se com outros entes nos
limites intra-horizontais de um ser. Este é o ente que o ser não pode
recolher, pois não é sua pertença. Se essa ontologia, filosofia primeira ou filosofia da filosofia,
não é suficiente para fundar a filosofia frente às críticas do filósofo
da libertação, certamente não poderemos falar dela (a ontologia) como
fundadora de uma filosofia universal e, principalmente, como fundadora
da filosofia da libertação. Não é objeto deste trabalho analisar a
validade da ontologia no fundamento da filosofia preponderante européia,
mas ainda assim temos que afirmar aqui, para atingir nossos objetivos,
que a hegemonia da ontologia como filosofia primeira está quebrada.
Do mesmo modo, se é válida a seguinte afirmação de Heidegger: “a filosofia
propura o que é o ente enquanto é. A filosofia está a caminho do ser
do ente, que dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser”
(HEIDEGGER, 1979, p.18), podemos, em contra partida, afirmar que a
filosofia da libertação pretendida é outra – não igual e nem oposta,
mas distinta desta européia.
Superação da ontologia Falando em uma filosofia distinta da européia, a filosofia
da libertação, falamos da superação da ontologia. Falamos de uma filosofia
que se funde além dos limites intra-horizontais do ser, ou, numa palavra,
além dos limites da ontologia. Mas o que significa fundar-se além
da ontologia, além de seus limites? Quando utilizamos o termo “uma filosofia fundar-se em”, referimo-nos
justamente à questão da filosofia primeira ou da metafísica desta
filosofia. Superar a ontologia, então, é redimensionar a metafísica,
proporcionando uma nova filosofia fundante da filosofia, no nosso
caso, latino-americana. Devemos atentar para a utilização dos termos e conceitos
enquanto tratarmos desta questão, vista a milenar con-fusão que tradicionalmente
faz-se entre ontologia e metafísica. Seguindo o pensamento de Enrique
Dussel, com o qual concordamos no tocante a este tema, a metafísica
é, por natureza, a filosofia primeira
[5]
– tal qual o é em toda a filosofia ocidental. A
grande distinção encontra-se naquilo que se entende por metafísica.
A filosofia européia, da qual escolhemos Heidegger como representante,
ainda que poderiam ter sido outros, conforme esclarecemos no tópico
anterior a este, entendeu e entende a ontologia como única possibilidade
de metafísica. Poderíamos citar aqui inúmeros trechos dos mais diversos
autores confirmando nossa afirmação sobre esta con-fusão entre metafísica e ontologia. Haja visto a
citação de Heidegger (1996, p. 195) feita neste trabalho (Pré-história
da filosofia da libertação), ou Kant, afirmando que a ontologia “insere-se
nesta [na metafísica] só como propedêutica, como o vestíbulo ou a
antecâmara da metafísica propriamente dita; e chama-se filosofia transcendental,
porque contêm as condições e os primeiros elementos de todo o nosso
conhecimento a priori” (KANT, 1995, p. 13). É essa ontologia, porém, que mostramos insuficiente enquanto
fundamentação metafísica. O ser desta ontologia tem que transcender
para ser transcendido e só assim ter rompido o isolamento ontológico
em que estava confinado. Faz-se necessário ressaltar que este termo
transcender tal qual utilizado aqui, assim
como o termo metafísica,
não têm características de supra-realidade: são absolutamente reais
por serem antropológicos, no sentido de partir do homem e da mulher
oprimidos como princípio da filosofia da libertação, na qual estes
termos inserem-se nessa nossa análise. É justamente no tocante a esse
“romper a totalidade ontológica” que Dussel se refere quando explica
que “se trata de ir mais-além do ser como compreensão, como sistema,
como fundamento do mundo, do horizonte do sentido. Este ir mais-além
é expresso na partícula meta
de metafísica”
[6]
(DUSSEL, 1984, p. 135). O papel da filosofia da
libertação é permitir ao sujeito ir mais além dos limites intra-horizontais
da sua totalidade ontológica, de modo a não ser o sujeito dos objetos,
mas um sujeito entre sujeitos também. Mas pautada em que uma filosofia pode propor semelhante superação
da ontologia? Lembremos que no desenvolvimento deste trabalho, o motivo
inicial da problematização da ontologia foi a impossibilidade de reduzir
ou recolher o rosto ôntico do outro ao ser-mesmo. Escutamos também
o grito desesperado deste outro por justiça: é com ele, com o outro
que estamos preocupados na filosofia da libertação – se não o fosse,
poderíamos continuar ontologicamente isolados. Para ver um rosto e
reconhecê-lo como sendo de outro e não do mesmo, para ouvir um grito
ou uma palavra pro-vocante e respondê-la como se responde a outro
e não a si-mesmo, deve-se ser fundamentalmente ético. Ético como quem
opta por sair do interior de seu caracol para aventurar-se num mundo
comum, seu e de outros,
e só assim poder experimentar a não-opressão. Junto a esta, o sujeito,
com os outros, poderá desfrutar da liberdade de não ser isolado, de
permitir ao outro que conheça o seu intra-horizonte e conhecer também
sem opressão este intra-horizonte do outro. Trata-se de uma relação
desarmada, se é que podemos assim chamá-la, mas não entre ingênuos:
entre oprimidos, o que é bastante diferente.
|
|