Ano I - Nº 03 - Dezembro de 2001 -
Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178
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CUBA: UM SOCIALISMO EM CONSTRUÇÃO. Emir Sader, Editora Vozes, 2001 |
Marcos Antonio da Silva*
O curto século XX, como diria Eric Hobsbawn, representa um
desafio para aqueles que pensam e lutam por uma alternativa ao capitalismo.
Como a esfinge do mito grego de Édipo, este século lançou o seguinte desafio
aqueles que procuram alternativas: “Decifra-me ou te devoro”. Trata-se
de compreender ( e aprender) com o que efetivamente ocorreu no século
passado, destacando, por um lado, um balanço profundo das experiências
do socialismo realmente existente e suas conseqüências; e por outro, as
modificações do capitalismo neste fim de século, que carecem ainda de
uma análise mais aguda e global por parte da esquerda. O século XX começou com o socialismo na ordem do dia, e tudo
parecia caminhar para a realização desta promessa. Já em 1917 acontece
a Revolução Russa, que assaltando os céus prometia “Paz, Pão e Terra”.
A onda revolucionário se espalhava pela Europa, porém teve de esperar
o desenlace da Segunda Guerra Mundial para que novas repúblicas socialistas
fossem instaladas, agora sob as botas do exército vermelho. Com isto instaura-se
a disputa entre dois blocos antagônicos, o socialista (liderado pela URSS)
e o capitalista (liderado pelos EUA), a famosa Guerra Fria. No entanto
o ideal de libertação, impulsionado pela idéia de construir uma nova (e
justa) sociedade estava latente, e logo ganhou novo impulso com as guerras
de libertação colonial e com revoluções em sociedades subdesenvolvidas.
Dentre elas, duas irão iluminar os céus do mundo todo: A Revolução Chinesa
e a Revolução Cubana. Esta última, talvez o acontecimento mais importante
da segunda metade do século na América Latina, irá inspirar milhares de
revolucionários na América Latina, como já apontava Sader em outro texto,
por vários motivos: por colocar a Revolução novamente na ordem do dia,
sintetizada pela famosa frase do Che “O dever de todo revolucionário é
fazer a Revolução”; por legitimar a heterodoxia política e ideológica,
contra os acomodados PCs latino-americanos; por desenvolver uma estratégia
de tomada do poder, a guerra de guerrilhas; pela solidariedade internacionalista
como parte de sua formação política e ideológica; pelo desenvolvimento
de uma ética da dedicação revolucionária que identificava militância com
a própria vida, cujo grande modelo foi, sem dúvida, o Che; e pela ênfase
no papel de vanguarda, sintetizada na frase de Fidel, pouco antes da partida
do Granma “Se parto, chego; se chego, entro; se entro, venço”. Ao longo das outras três décadas, Cuba se tornará, para a
esquerda o farol da América revolucionária, e a relação do país com a
esquerda brasileira se desenvolverá da seguinte forma. Num primeiro momento,
que vai até o Golpe de 64, ocorrerão diferentes leituras sobre o caráter
e o papel da Revolução, porém, acima de tudo, dentro de um espírito de
solidariedade com as transformações que ocorriam na ilha. Tratava-se de
compreender a radicalização da Revolução, aprender com este processo,
para aplicá-lo ao Brasil, enfatizando acima de tudo, a possibilidade de
ruptura e transformações econômicas e sociais, através de um amplo apoio
e solidariedade as lutas do povo cubano. Em suma, a ilha tornava-se o
modelo de libertação latino-americana, e esta deveria ser apoiada e espalhada
para o restante do continente. Um segundo momento, que cobre a década
de 70 e vai até os anos 80, é caracterizado pela exaltação das conquistas
sociais cubanas, contrapondo-se com o “milagre brasileiro”. Neste período,
influenciada pela idéia de democracia em combate a ditadura militar, se
destacava menos a luta pela tomada do poder, e se enfatizava as conquistas
do regime nos vários campos sociais, particularmente na saúde, educação
e cultura. A partir da metade dos anos 80, a Revolução Cubana, passará
a ter um apoio crítico, quando muito da esquerda brasileira. Nesta fase, os olhos estarão voltados, acima de tudo, para a crítica
a burocratização e a natureza do regime político cubano. A ilha, de farol
da esquerda latino-americana, passará a ser uma pedra no sapato, e o apoio,
antes quase unânime, se transformará em críticas e questionamentos. Finalmente,
a última etapa será marcada pela derrocada do socialismo real e pela conseqüente
reestruturação do socialismo cubano, com dúvidas sobre a manutenção (e
a necessidade) do socialismo, como única forma de superar as desigualdades
sociais brasileiras. Desta forma se desenvolverão uma crítica a suposta
falta de democracia em Cuba (quem diria?), com o questionamento do sistema
de partido único e do planejamento centralizado (REIS, 1991:cap. 6). Tais
mudanças de opinião sobre a Revolução Cubana, além de mostrarem as transformações
pelas quais passou a esquerda brasileira, como a adesão incondicional
a democracia, geralmente são acompanhadas por um profundo desconhecimento
do socialismo cubano, suas características e dificuldades, e pela falta
de compreensão dos processos de transformação que o país teve de adotar
ao longo dos anos 90 e que geralmente resultam em análises equivocadas
ou parciais. que ocorre na Ilha. Disto resulta o grande mérito do livro
de Emir, que sem demonizar ou abonar previamente o regime cubano, chama
a atenção para elementos esquecidos na análise, da direita e da esquerda,
sobre a Revolução e suas perspectivas. De antemão é preciso deixar claro,
que Cuba ainda é efetivamente um país socialista pois “na medida em que
sua lógica é contraditória com a do capitalismo, em que os direitos universais
da população continuam a ser a prioridade fundamental do governo e em
que sua ideologia segue pregando a socialização econômica e social” (SADER,
2001:112). Em primeiro
lugar, o livro aponta que a Revolução, ao contrário do que imaginam inúmeros
historiadores, se inscreve nas lutas de libertação nacional. Desta forma,
toda a primeira parte faz um resgate das lutas de libertação do povo cubano,
primeiro nas guerras pela independência da Espanha e a seguir do pulso
norte-americano. Resgata-se entre outros, a figura central, e muito mal
compreendida no Brasil, de José Martí, figura central e pai intelectual
da Revolução, nome fundamental para se compreender os desejos de igualdade
e soberania do povo cubano e também a relação com os EUA, pois este já
assinalava no fim do século XIX, que o futuro da Ilha (e de resto, de
toda a América Latina) estaria ligado a esta relação. Este resgaste permite
melhor compreensão do processo revolucionário
e seus desdobramentos, que ao contrário do que muitos pensam, não começa
com os guerrilheiros do Granma, não sendo, portanto um raio em céu azul,
mas é antes resultado de um processo amplo que começou com a luta de independência
da Espanha. Além disto, o processo que conduz Fidel e os revolucionários
ao poder foi iniciado antes da guerrilha na Sierra Maestra, com o assalto
ao quartel de Moncada, promovido por Fidel e outros membros do movimento
26 de Júlio. No documento de defesa de Fidel intitulado A História me
absolverá, já podemos perceber a análise que orientará o curso das lutas
posteriores e também das transformações que seriam necessárias para a
libertação cubana, que finalmente serão colocadas em prática com o advento
da revolução, como a reforma agrária, a alfabetização e outras mudanças
econômicas e sociais. Daí resulta
grande parte de seu apoio e legitimidade perante aos Cubanos, pois
tratava-se da afirmação da soberania nacional, interrompida pelos mariners
norte-americanos e de transformações necessárias a uma sociedade desigual
e subdesenvolvida. Em segundo
lugar, o livro chama a atenção para as diferenças entre o regime cubano
e dos demais países do Leste Europeu. Além de inscrever-se na história
cubana, como apontamos acima, as características e o quadro comparativo
eram outros. É preciso atentar para o fato de que a burocracia cubana,
por mais que tenha privilégios, não possuía os benefícios de outras do
socialismo real, e havia uma ligação muito forte entre os líderes e as
massas, bastando para isto citar o carisma de Fidel. Além disto, os cubanos
se comparam, em geral, com os países latino-americanos, onde a qualidade
de vida e a situação econômica, principalmente das camadas populares,
é muitas vezes piores do que na ilha. As conquistas sociais do regime,
independente da posição política, são reconhecidas em todo o mundo, principalmente
nas áreas de saúde e educação. Finalmente, antes da perestroika russa,
o regime cubano já promovia um processo de retificações, que em grande
medida, antecipou e preparou o caminho para as mudanças necessárias dos
anos posteriores. O terceiro
grande aspecto do livro é não demonizar o que ocorre em Cuba, mas, ao
contrário, apontar que na Ilha os processos de adaptação e penetração
do capital internacional são orientados e condicionados pela vontade do
governo. Desta forma, sem ser o paraíso terrestre, os cubanos empunham
bandeiras, há muito esquecidas, porém fundamentais para o socialismo e
a humanidade, ao praticarem o solidarismo Internacionalista, a questão
do humanismo, alternativas ao subdesenvolvimento e a desigualdade, entre
outras. Por mais que tenha ocorrido ao longo dos anos 90 uma diferenciação
social e uma mudança em inúmeros ideais do socialismo cubano, ele resiste,
e tentando preservar as conquistas do socialismo procura se inserir numa
nova ordem e disto resultam sua grandeza e dificuldades. Finalmente,
o livro apresenta uma discussão sobre a relação entre a teoria do socialismo
e sua realização na ilha. Trata-se de perceber, e renovar, os conceitos
fundamentais para a construção de uma sociedade alternativa. Desta forma,
podemos perceber que se o socialismo não foi possível num grande país,
como seria numa pequena ilha do Caribe. Cuba nos coloca diante de questões
como a relação entre socialismo e democracia, a
forma de se alcançar o poder e da possibilidade de construção de uma ordem
socialista numa sociedade subdesenvolvida que apresenta inúmeros desafios
no campo econômico, social e político que não foram tratados pelos clássicos
do marxismo. Estes e outros dilemas e desafios não dizem respeito a Cuba,
mas a própria possibilidade de renovação e intervenção do marxismo no
século XXI. O livro, no
entanto, apresenta algumas lacunas. A primeira diz respeito ao pouco tratamento
dado a herança soviética em Cuba. Apesar de apontar as diferenças entre
estes dois tipos de socialismo, o livro, assim como os cubanos, não realiza
um balanço sério e profundo da influência soviética sobre a ilha, muito
menos sobre as relações entre Rússia e Cuba. Em segundo lugar, não há
uma caracterização profunda de que tipo de sociedade está emergindo em
Cuba, principalmente do impacto do turismo e das remessas de divisas por
familiares cubanos no estrangeiro sobre a diferenciação social. Trata-se
de perceber em que medida estão ocorrendo as diferenciações sociais e
que novos grupos estão surgindo e como eles irão se relacionar com o regime
estabelecido. Além disto, é preciso compreender em que medida estas transformação
afetam a cultura revolucionária e os idéias defendidos pelo socialismo
cubano. Também há um silêncio sobre o pós-Fidel, ou seja, não encontramos
uma análise do que pode ou não ocorrer com a saída de Fidel da frente
do regime, tanto em termos de alternativas políticas, como de maior abertura
ou fechamento do regime, e em que medida o grau de legitimidade social
estará afetado. Finalmente, também é dado pouco tratamento a uma questão
essencial da política externa cubana, a saber, a relação entre Cuba e
os EUA. Além de apontar os efeitos (e a irracionalidade) do bloqueio norte-americano
e a posição do regime, sintetizada num documento disponível na Internet-
Demanda do Povo Cubano -, seria necessário apontar o papel da sociedade
internacional, seja em termos de ligações econômicas ou de política internacional. Desta forma, podemos concluir que trata-se de um livro fundamental que, diante do silêncio e do desconhecimento acadêmico e de grande parte da imprensa sobre o que ocorre na Ilha, aponta elementos fundamentais, e geralmente desconhecidos, para a compreensão do que se passa em Cuba e coloca o socialismo cubano no seu devido lugar, a busca de uma sociedade justa e solidária, tarefa em aberto neste século que se inicia. Para concluir podemos apontar, como Emir, que Cuba representa uma reatualização da revolução e do socialismo no mundo, do humanismo e da solidariedade e que da renovação dos caminhos e modelos de uma sociedade de superação do capitalismo depende o futuro, não apenas da Ilha, mas da própria humanidade no século XXI.
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