Ano I - Nº 03 - Dezembro de 2001 - Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

 

Quatro critérios para a classificação das revoluções do século XX: o debate Trotsky/Preobrajensky dos anos 20

 

Valério Arcary [*]

 

 

Resumo

Não é incomum que os historiadores estejam colocados diante da necessidade de usar conceitos de temporalidade, tais como época, etapa, situação, fase ou conjuntura: são critérios de periodização para situar os movimentos de mudança, ou preservação, dos mais diferentes aspectos da vida econômica, social ou política das sociedades que estudam. Mas, é também freqüente que o uso dessas categorias seja, inúmeras vezes, pouco rigoroso, senão descuidado. Os mais perigosos anacronismos, um pecado mortal neste ofício são, então, possíveis. O argumento deste artigo busca demonstrar a importância decisiva destas noções de temporalidade, em especial a de situação revolucionária, para realçar que as medidas dos tempos na luta de classes são, necessariamente, desiguais e diversas, mas decisivas para compreender as condições históricas da mudança social. Invoca o debate Trotsky/Preobrajensky para discutir os critérios de classificação das revoluções do século XX.

 

Abstract

Historians not uncommonly have to face up with the need of using concepts of temporality such as epoch, stage, situation, phase and juncture as criteria for periodization. These concepts are used to situate the movements of change and preservation of the most diverse aspects of the economic, social or political life of the societies they study. Nevertheless, the use of these categories is not quite rigorous. On the contrary, it is rather untidy. The most dangerous anachronisms – a deadly sin in this craft – are therefore possible. The reasoning of this essay tries to demonstrate the paramount importance of these notions of temporality, with the focus in the concept of revolutionary situation, in order to highlight that the measures of times in the class struggle, are necessarily uneven and diverse, although decisive to understand the historical conditions of social change. It reports the Trotsky/Preobrajensky debate on the issue of the nature of  political and social revolution in the XX century.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Enunciemos a questão: como definir uma revolução? Com que recorrência a mudança política no século XX assumiu conteúdos e formas revolucionárias? Com que critérios podemos classificar as revoluções do século XX? Como explicar que as revoluções econômico-sociais ocorreram na periferia da economia mundial capitalista, como na China, Coréia Vietnam e Cuba, e não em algum dos países centrais, como tinha previsto Marx? Quais foram os prognósticos de Leon Trotsky sobre a revolução anti-capitalista depois do Outubro russo e, em que medida,, eles foram ou não confirmados pela história? Quais foram as polêmicas entre os dirigentes da Oposição de Esquerda Internacional e qual é a atualidade do debate Trotsky/Preobrajensky?

Comecemos dividindo o tema nas suas partes constitutivas. Em primeiro lugar, é necessário recordar que uma revolução não se deve confundir com o triunfo de uma insurreição. A História está repleta de exemplos de “putchs” e quarteladas que triunfaram, apesar da indiferença e apatia popular, assim como, inversamente, de autênticas revoluções populares que foram derrotadas. Estamos diante de fenômenos históricos de natureza muito diferente.

Mas sendo diferentes, estão às vezes associados. Não é incomum que golpes militares ou rebeliões de quartel funcionem historicamente como um sinal de que uma tormenta muito maior se aproxima. As operações palacianas podem “abrir uma janela” por onde depois irá entrar o vento da revolução que estava, até então, contido: foi assim, entre inúmeros exemplos, que se iniciou a revolução portuguesa em 1974, com a insurreição militar do MFA (Movimento das Forças Armadas), dirigida por Otelo Saraiva de Carvalho. No espaço de poucos dias, milhões de trabalhadores e jovens já tinham saído às ruas, abrindo a cena para os outros atos da revolução, em especial o “verão vermelho” de 1975.

 

Não há um sismógrafo de revoluções

É muito difícil, senão impossível, prever porque as grandes multidões populares, urbanas ou rurais, que aceitaram com passividade e resignação situações tirânicas durante décadas, depois se colocaram em movimento e despertaram com fúria para a arena política em busca de uma solução para as suas reivindicações. As oscilações das relações de forças entre as classes dependem de uma articulação de causalidades objetivas e subjetivas tão complexa que tem sido até hoje imprevisível. Expliquemo-nos: não por ausência de causas, mas por excesso.

Esta margem de erro muito alta, como veremos adiante, não escapou à atenção dos mais capazes e experimentados revolucionários marxistas que, não poucas vezes, se viram surpreendidos. Ora pelo atraso de uma situação revolucionária que acreditavam iminente, ora pela precipitação dos ritmos da mobilização e da disposição revolucionária que não esperavam tão próxima.  

Não se encontrou até hoje um padrão único e incontroverso de regularidade que permita enquadrar as revoluções políticas e sociais do século XX e explicar qual, na complexidade da cadeia de causas mais distantes e dos fatores mais imediatos, teria sido aquele elemento decisivo que colocou em movimento milhões de pessoas, até então inativas. A preocupação diante do furacão revolucionário atraiu também a atenção da inteligência acadêmica comprometida com a preservação da ordem. Embora tenha sido repetidas vezes ensaiado, o esforço da sociologia e da historiografia conservadora tem fracassado diante de incontáveis exceções: a “teoria da pobreza” sucumbiu diante da evidência histórica que demonstra que, na Índia, por exemplo, onde a fome ainda é endêmica, a miséria não foi uma pré-condição suficiente para que se abrissem uma situação revolucionária, desde a independência.

Já a “teoria reativa”, que afirma que a existência de ditaduras e tiranias é a chave de explicação de situações revolucionárias, fracassou triplamente: (a) diante da longevidade de inúmeras ditaduras como a de Salazar em Portugal, que só foi deslocada depois de mais de uma década de uma guerra colonial africana; (b) diante de uma quantidade considerável de transições não revolucionárias de regimes ditatoriais, como no Uruguai na década de 1980 ou no Chile nos anos 90, que conseguiram realizar com sucesso uma transição controlada “por cima”, sem uma explosão da participação popular; (c) diante da abertura de processos revolucionários em países onde estavam no poder governos eleitos, como na França em 1968, ou mais recentemente no Equador em janeiro de 2000. 

Uma outra questão merece atenção, embora possa parecer um pouco prosaica. É muito comum que se associe a idéia de revolução a um processo violento, ou até sangrento, em que milhares de vidas de pessoas inocentes são sacrificadas. Esses preconceitos políticos são recorrentes, e não devem ser subestimados pelos historiadores e sociólogos que têm nesse terreno uma responsabilidade diante daqueles politicamente desinteressadas. Mas esse mito é historicamente infundado. Na revolução de Outubro, morreram em Petrogrado sete pessoas. Em Moscou, onde as forças militares leais ao governo de Kerensky ofereceram maior resistência, morreram aproximadamente cem. Ou seja, em uma perspectiva histórica, pouquíssimo sangue foi derramado. É, no entanto, verdadeiro que, durante a Guerra Civil, a Rússia sangrou até à exaustão. A violência da contra-revolução foi brutal.

O importante é, todavia, não confundir as formas políticas dos processos com a sua substância social: quanto mais minoritárias foram as bases sociais das quarteladas, mais violentos e sangrentos foram também os combates que elas provocaram. Inversamente, quanto mais radicais as revoluções, portanto massivas e legitimas, mais pacíficas as suas formas, porque mais limitadas as possibilidades da contra-revolução.

 

Revoluções são processos que não se resumem ao triunfo de insurreições

Não é a conquista do poder que define uma revolução. Esbocemos algumas definições preliminares: devemos entender por revolução, o fenômeno político que se define pela entrada em cena da mobilização das massas populares com a disposição de derrubar o governo e o regime. Toda revolução é um processo e não um ato. As grandes revoluções do século XX tiveram muitas inversões de conjuntura, reviravoltas inesperadas do curso dos acontecimentos e guinadas bruscas de direção. As classes em luta medem as suas forças e realizam, de forma concentrada, confrontos e experiências que estavam pendentes durante décadas. As semanas valem por anos e os dias correspondem a meses.

Em uma perspectiva de longa duração, a situação revolucionária consiste na aceleração dos ritmos históricos pela agudização das lutas de classes em momento de máxima tensão. Neste nível de análise é irrelevante o desenlace final dos processos, se vitoriosos ou derrotados, já que estamos focando a intensidade da luta social que se traduziu na forma de colapso, pelo menos parcial, da governabilidade do Estado e em alguma forma, mesmo que inorgânica, de dualidade de poderes.

A revolução espanhola da década dos 30, por exemplo, esteve entre as revoluções mais impressionantes da história, sejam quais forem as medidas ou os critérios das comparações que se façam, embora, por uma série de circunstâncias tenha sido, finalmente, derrotada. O que estamos sugerindo é que a história do século XX ensina que as revoluções se iniciam muito antes de que o problema da insurreição esteja colocado na ordem do dia. Quando afirmamos que uma revolução está em marcha estamos dizendo que se abriu uma situação de crise nacional: uma combinação aguda de crise de governo com crise de regime que coloca em movimento as camadas mais profundas do povo, até então, politicamente apáticas e desinteressadas.

Como se pode concluir, uma revolução tem, portanto, dois elementos definidores fundamentais, sempre mesclados, mas que o esforço de análise tem a necessidade de desmembrar: (a) uma crise terminal do regime político de dominação, com o colapso, pelo menos parcial, da autoridade das instituições; esta crise do regime, é uma refração do que podemos chamar as condições objetivas da situação revolucionária que expressam a decadência do país, a perda de peso da nação dentro mercado mundial, o empobrecimento da sociedade, o impasse histórico a que foi conduzida, ainda que as classes em luta não tenham, ainda, uma percepção clara de que estão sendo arrastadas para uma catástrofe; (b) uma inversão geral da relação de forças entre as classes tão desfavorável às classes proprietárias, pela ação direta das camadas mais exploradas e oprimidas do povo, que se abre um período de pluralidade de poderes, esteja ou não “institucionalizada”, na forma de organismos reconhecidos pelas massas em mobilização, e estejam ou não esses organismos centralizados como uma alternativa de poder.

 

Revoluções políticas e revoluções econômico-sociais: semelhanças e diferenças

A maioria das crises revolucionárias dos últimos vinte e cinco anos se distinguiu do período histórico anterior à Segunda Guerra Mundial, pela inexistência de organismos de poder popular que tenham evoluído para um grau de centralização nacional em alternativa ao poder de Estado. Nenhuma delas radicalizou no sentido de uma revolução econômico-social que fosse além da propriedade privada e do mercado. Depois do Vietnam, só triunfaram revoluções políticas que derrubaram regimes despóticos. Nicarágua e Irã em 1979, Brasil e Argentina na primeira metade dos anos 80, Haiti, Filipinas, Indonésia, e Zaire nos anos 90, Peru, no ano passado: a queda de ditaduras bonapartistas, os Fevereiros das últimas décadas, embora muito desiguais entre si, uns mais radicalizados outros mais fracos, estagnaram sem exceção na estação da derrubada de ditaduras. Em alguns desses processos, a força do impulso revolucionário inicial foi tão poderoso que os atos seguintes da revolução chegaram a ameaçar a estabilidade das classes burguesas durante alguns anos. Mas a revolução se afogou nos limites dos novos regimes democrático-liberais.

Nas quatro vagas revolucionárias anteriores do século XX, as revoluções políticas, os Fevereiros, por analogia com a revolução russa de 1917, foram a ante-sala de uma segunda onda que colocava no horizonte a possibilidade de revoluções econômico-sociais. Depois de 1917 até 1923, a possibilidade de novos Outubros esteve colocadas pelo menos na Hungria, onde um governo operário-camponês chegou ao poder, ainda que de forma efêmera, e na Alemanha. Na segunda vaga, entre 1930 e 37, a possibilidade de Outubros na seqüência de Fevereiros vitoriosos, se abriu na França e na Espanha. Na terceira vaga, depois da derrota do nazi-fascimo ao final da Segunda Guerra Mundial, crises revolucionárias fizeram tremer o edifício da dominação do Capital em quase toda a Europa Mediterrânica e, pela primeira vez, o questionamento da dominação capitalista se estendeu para a periferia do sistema com as revoluções anti-coloniais. Na quarta vaga, aberta pelo 68 francês, e continuada pela década vermelha na Itália, pela revolução dos cravos em Portugal e pelo ascenso espanhol depois da morte de Franco, o perigo da revolução voltou a rondar a Europa ao final de trinta anos de crescimento econômico sustentado. 

A última vaga revolucionária internacional do século XX, protagonizada no início pelo proletariado polonês, e que depois se estendeu pela Alemanha Oriental, Tchecoslováquia e Romênia como um rastilho de pólvora, até atingir o momento de maior dramaticidade histórica com as greves de mineiros na ex-URSS em 1991 contra Gorbatchev, foi exterior ao mercado mundial capitalista e foi derrotada pela contra-revolução restauracionista dirigida pelos Yeltsin’s com o apoio países imperialistas.

à exceção de processos como as comissões de trabalhadores e as assembléias de soldados e baixa oficialidade na revolução portuguesa entre o 11 de Março e o 25 de novembro de 1975, e das regiões sobre controle militar do FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional) nos meses anteriores à queda de Somoza na Nicarágua em 1979, a dualidade de poderes se manifestou de forma atomizada e, ou, inorgânica, pela presença massiva das massas nas ruas em mobilizações. Esse foi o processo na Argentina em 1982 depois da derrota do último governo da ditadura militar na Guerra das Malvinas em 1982 e na mobilização das Diretas no Brasil em 1984.

A existência de organismos de democracia direta e de massas não caracteriza, portanto, a abertura de uma situação revolucionária, mas a passagem para uma fase mais avançada e superior de confronto na luta de classes: já é a expressão da evolução de uma crise revolucionária de tipo de Fevereiro (uma revolução política, que muda o regime, mas não altera a natureza de classe do controle social do estado) para uma crise de tipo de Outubro (uma revolução social). A abrupta irrupção de massas, quase sempre na forma de uma surpresa histórica, exige que a crise econômica e social tenha atingido um grau mais elevado de agudização, na forma de um cataclismo, ao ponto de exasperar as massas até ao limite.

Assim, os dois fatores indispensáveis de uma situação revolucionária têm sido a disposição revolucionária das massas e a crise nacional. Mas embora caminhem em paralelo, eles são desiguais e variáveis, e desenvolvem-se em proporções diferentes e, conforme a situação, um pode estar mais amadurecido do que o outro. Revoluções são, portanto, um fenômeno histórico que tem como característica definidora mais importante, a irrupção multitudinária das classes populares e a intervenção ativa das massas na arena politica: em outras palavras, a abrupta elevação da intensidade das lutas de classes, e bruscas e aceleradas mudanças nas correlações de forças entre as classes.

Por mais aguda que seja a crise econômica, por mais severas as seqüelas das catástrofes econômicas e sociais, por mais dramática que seja a agonia do regime, sem que as massas entrem em cena, não se abre uma situação revolucionária. Apresentamos a seguir um extrato de Trotsky sobre o tema das relações de forças entre as classes, especificamente sobre a Alemanha em 32, pouco antes da chegada de Hitler ao poder. Trotsky toma como ponto de partida a relação de forças eleitoral, uma tradução distorcida, porque na superfície, da verdadeira relação de forças. Esta questão, como sabemos permanece atual. É muito comum que se considere até a representação parlamentar, um indicador ainda mais unilateral, como expressão da relação de forças no país o que, dependendo da legislação eleitoral mais ou menos democrática em vigor, só alimentará conclusões mais deformadas e disparatadas.

Os social-democratas com os comunistas “não poderiam tomar o poder”(...) A social-democracia e o Partido Comunista têm juntos perto de 40% dos votos, se bem que as traições da social-democracia e os erros do Par­tido Comunista joguem milhões no campo do indiferentismo e até no do nacional-socialismo. Bastava o simples fato de ações comuns desses dois partidos, ações que abrem às massas novas perspectivas, para que a força política do proletariado aumen­tasse incomensuravelmente. Mas tomemos por ponto de par­tida os 40%. Bruening ou Hitler têm mais ? E entretanto, só esses três grupos podem governar a Alemanha: o proletariado, o partido do centro ou os fascistas. Mas o pequeno burguês ilustrado assimilou até a medula dos ossos esta verdade: ao representan­te do capital não é preciso mais do que 20% dos votos para governar: não tem a burguesia os bancos, os "trust",(...) as estradas de ferro? Tomamos mais acima a relação de força sob o seu aspecto parlamentar. Mas isso é apenas um espelho curvo.  A repre­sentação parlamentar de uma classe oprimida diminui consi­deravelmente a sua força real, e, inversamente, a representação da burguesia, mesmo na véspera do seu desmoronamento, é sempre mascarada de sua força imaginária.  Só a luta revo­lucionaria põe a nu a relação real de forças. Na luta direta e imediata pelo poder, o proletariado,(...)  desenvolve uma força que ultrapassa de muito sua expressão parlamentar.”(grifo nosso) (TROTSKY, 1979, p.145/6)

A metáfora de Trotsky é um achado: como nos espelhos mágicos dos parques de diversões, que fazem os magros parecerem gordos, e os gordos parecerem magros, o sufrágio universal é sempre um indicador muito parcial das relações de forças. Porque faz o peso social e político das classes populares e das suas organizações aparecer invertido, isto é, muito diminuído e fragilizado, em relação à a força social que realmente possui. Inversamente, a força social da burguesia, tendencialmente, sempre é menor do que o número de votos que seus partidos obtêm, ou de parlamentares eleitos. Mas a força política das classes proprietárias, tampouco se resume ao número de votos que os seus partidos conquistam nas eleições: além de fatores subjetivos, como a herança da tradição e o peso cultural do conservadorismo, ela repousa no controle da riqueza, dos meios de comunicação, e no monopólio das armas nas mãos da polícia e das forças armadas. Por outro lado, a força social real e a força imaginária, são também um terreno de disputa: cada classe precisa de confiança em si mesma para lutar. Esse elemento subjetivo, é um dos maiores obstáculos que as classes dominadas precisam superar, para se colocarem em movimento, isto é, a construção da unidade de ação, e a perda do medo dos exploradores que os oprimem, a crença ou fé, na possibilidade da vitória.

Quatro critérios para definir as revoluções do século XX

Estamos, portanto, diante de pelo menos três problemas teóricos fascinantes: o que é uma revolução; como definir uma situação revolucionária, e como e quando, no interior de uma situação revolucionária se abre uma crise revolucionária. Vejamos um de cada vez, esclarecendo, desde já, que cada um deles, tem uma longa história de debates e polêmicas.

Em primeiro lugar, consideremos um pouco esquematicamente a discussão sobre os critérios para definir o que seria uma revolução: (a) pelos resultados, isto é, pelas transformações efetivas que a revolução foi capaz de realizar, e consolidar, em função das relações de forças sociais nacionais e internacionais em que estava inserida, e do estágio de desenvolvimento econômico-social-cultural, em que estava a nação;(b) pelo sujeito social, ou seja, pelas classes, ou melhor, pelo bloco de classes que se mobilizaram, e se uniram, para derrubar o regime anterior e realizá-la; (c) pelas tarefas político-econômicas que estão colocadas diante da nação, ou seja, o conteúdo histórico-social do programa, que a revolução pretende cumprir, esteja ou não o sujeito social, consciente da necessidade dessas tarefas para satisfazer as suas reivindicações; (d) pela direção política da revolução, o sujeito político, que pode ser um sujeito político colectivo, na forma de partido ou partidos (como na revolução russa), ou clubes (uma forma pré-partidária como na revolução francesa), ou exércitos-partidos (como na revolução chinesa e vietnamita), ou igrejas-partidos (como na revolução iraniana), ou fórmulas híbridas e intermediárias entre essas, “movimentos” armados (o mfa, na revolução portuguesa, uma espécie de fração político-militar no exército, semelhante ao tenentismo), ou civis (os amigos de Durruti, na insurreição catalã) que assumem a confiança das massas em luta; ou até mesmo, mais excepcionalmente, individuais, em sociedades em que o atraso político-cultural é maior. Há, também, a questão interessante das revoluções sem direção política clara e inequívoca. Ou, para sermos exagerados, politicamente “acéfalas”.

Dissemos que todas as revoluções da História foram, em maior ou menor medida, inconscientes. Esta caracterização exige algumas explicações, porque pode ser usada de forma abusiva. Desde sempre, a reação se apóia em uma concepção conspirativa da história, para denunciar que as revoluções seriam a obra de “agitadores extremistas”, que “manipulam” as massas “indefesas”. A “imprudência” das revoluções se explicaria pela ação sabotadora de elementos exaltados, que se aproveitariam das boas e pacatas “massas”, até então, conformadas à dificuldade de conseguir a justiça social, de um dia para o outro. Esta, por sua vez, só poderia vir, da continuidade do desenvolvimento (a promessa do progresso, ontem, e o crescimento econômico, hoje, servem sempre como álibi reacionário), ou seja, enquanto o bolo não cresce não há como reparti-lo, e enquanto isso, o que a sociedade precisa é de mais trabalho, de preferência muito disciplinado, e nunca de aventuras políticas voluntaristas. Tudo isso é um veneno vazio de conteúdo, mas terrívelmente útil para justificar o mal estar social.

Enfrentemos, todavia, a questão das revoluções inconscientes, e a necessidade do conceito. As grandes massas em luta pelas suas reivindicações (terra, paz, pão, liberdade, democracia, independência nacional, etc...) isto é, por uma vida melhor, têm uma compreensão muito parcial das tarefas históricas, ou seja econômico-sociais, necessárias para a sua vitória. As revoluções são impulsionadas pela necessidade de derrubar aquele governo cuja presença se tornou insuportável, mas as multidões em luta se lançam a essa tarefa sem um plano pré-concebido e detalhado do que vão colocar no seu lugar. As revoluções são, portanto, em larga medida um terreno de improvisação política e histórica.

Em condições de estabilidade da dominação política, isto é em situações não-revolucionárias, ou contra-revolucionárias, os trabalhadores vivem “fora da política” a maior parte de suas vidas, e por isso,  a delegação do poder político, seja de forma coercitiva, pela usurpação violenta, seja de forma mascarada, pelo voto em alguém, é uma da forças de inércia histórica mais poderosas. A obra “destrutiva” da revolução, surge sos olhos das multidões em luta, com uma urgência e uma clareza, proporcionalmente inversa, à dificuldade de perspectiva, do que seria o novo poder e o novo regime. Nesse sentido, também, o papel subjetivo da direção revolucionária, o sujeito político coletivo, os milhares de pequenos chefes que emergem de qualquer processo revolucionário mais profundo, é decisivo. Ele pode ser qualitativo para garantir que a revolução não fique estacionada ou congelada na fase política da queda do regime, e para ajudar as massas a procurar a via da sua auto-organização e construção de organismos independentes de democracia direta, a chave para avançar na direção de uma revolução político-social, e de uma revolução econômico-social do tipo Outubro.     

 

O improviso e o espontâneo nas revoluções políticas e o papel das organizações centralizadas nas revoluções econômico-sociais

Dissemos também que ocorreu acefalia de direção política em alguns processos. A metáfora, talvez, não seja a mais apropriada, mas responde à necessidade de descrever o “vazio” relativo de direção em algumas revoluções. Ou, se preferirmos, e sendo mais precisos, os elevados graus de espontaneidade e improvisação da direção, que podem ser encontrados em inúmeras revoluções políticas. A avalanche de mobilização de massas pode ser de tal maneira poderosa e incontrolável, que a vitória da revolução, isto é, a derrocada do governo e do regime pode ocorrer de forma fulminante.

Esse foi o caso da própria revolução russa de fevereiro de 1917, da revolução de Novembro de 1918 na Alemanha e, em grande medida, mais recentemente, do processo da revolução de “veludo” na Tchecoslováquia, do levante na ex-Alemanha Oriental, e da insurreição na Romênia em 89. A força do sujeito social é tamanha, e a fragilidade dos regimes é de tal gravidade, que desmoronam como um “castelo de areia”. Em outras palavras, os fatores objetivos e subjetivos se apresentam desigualmente desenvolvidos em uma proporção tão assombrosa, os primeiros quase apodrecendo, e os segundos quase inexistentes, que essa contradição, não impede a revolução de triunfar. Nessas circunstâncias excepcionais, a ausência do sujeito político revolucionário foi suprida pelo ativismo das massas em movimento.

De qualquer forma, é importante notar, que nas revoluções político-sociais (aquelas em que mudou a natureza social do Estado e ou das relações sociais de produção, ou pelo menos, se alteraram de, forma qualitativa, as relações de propriedade), ocorreu o fenômeno diretamente inverso: só triunfaram, pelo menos até hoje, revoluções dirigidas por sujeitos políticos hiper-centralizados. Donde se pode avançar a conclusão de que as necessidades subjetivas necessárias, como condição para a vitória nas revoluções políticas, são menos severas, comparativamente, que nas revoluções sociais. Evidentemente, por vazio de direção, não se deve concluir que inexistiu qualquer direção política. Não existe vazio absoluto em política: sempre aparece alguma forma, mais ou menos improvisada, de sujeito político coletivo.

Mesmo que disforme, sem maior densidade ou homogeneidade programática, “a necessidade abre o caminho” e exige que surja da luta uma direção política para que as massas tenham um ponto de apoio para as suas ações. É claro que, sendo improvisadas no calor das circunstâncias, a autoridade dessas direções é muito frágil. Mas as massas se apóiam no material humano que encontram disponível. Muito freqüentemente, aqueles que estiveram à frente da revolução, pela sua própria debilidade, mesmo se tendo cumprido um papel heróico no início da revolução, são deslocados rapidamente do caminho e não acedem mesmo ao poder, e outro sujeitos políticos, surpreendidos pelo ascenso de massas, mas com maior enraizamente histórico e maior experiência, mesmo chegando atrasados na luta, acabam por “usurpar”o poder.

O marxismo conheceu velhas discussões sobre o lugar do sujeito político coletivo, sendo a mais famosa, aquela que opunha Lênin a Rosa Luxemburgo, concentrada em diferentes avaliações sobre o lugar da dialética do espontâneo e do consciente no processo revolucionário. Não o retomaremos neste artigo. Aqui só cabe agregar uma consideração: todas as autênticas revoluções populares, despertam as massas, anteriormente resignadas, para a ação política direta. As massas em movimento geram milhares de pequenos chefes políticos: por lugar de trabalho, de moradia, nas cidades e nas vilas, enfim, por toda a parte e, por isso, os graus de espontaneidade serão tanto maiores, quanto maiores forem as energias desbloqueadas. Mas se essa vanguarda ampla, inexperiente e desarticulada, não tiver um ponto de apoio nacional visível e credível, a tendência é que essa vanguarda se disperse, com a mesma velocidade que surgiu. Se a maturidade dos fatores objetivos for excepcionalmente grande, a primeira vaga da revolução pode triunfar, como revolução política, mesmo que a vanguarda ampla não encontre, para dirigi-la, um sujeito político coletivo (como aconteceu, recentemente, no Paraguai e na Indonésia).

As forças espontâneas colocadas em movimento pela revolução, diante de uma regime político apodrecido, podem ser fortes o bastante para derrubar o governo sozinhas, pela disposição revolucionária do sujeito social, e praticamente sem sujeito político, isto é, sem um partido (ou mais de um partido, uma frente política, isso parece ser irrelevante), armados de um programa de mudança social, que queira fazer a revolução e tomar o poder. A História, nesse sentido, deu razão a Rosa. Em outras palavras, e explorando de novo a analogia histórica: as crises revolucionárias de Fevereiro não exigem como condição insubstituível de vitória a presença de um sujeito político. Mas, por outro lado, as revoluções político-sociais, como Outubro, parecem exigir, como uma alavanca imprescindível da luta pelo poder, fatores de subjetividade mais complexos. Sem uma direção política, sem um sujeito coletivo forjado, em décadas, de aprendizado e experiência, nas mais difíceis condições da luta de classes, e que tenha conquistado autoridade e confiança da vanguarda ampla, para o programa socialista, as revoluções político-sociais estariam fadadas à derrota. Nesse sentido a história deu razão a Lênin.     

As revoluções do pós-guerra, confirmaram a centralidade do lugar do sujeito político coletivo nas revoluções político-sociais: em todas as revoluções, pelo menos até hoje, em que o Estado burguês foi derrotado, e em que se cruzou o “rubicão” da propriedade privada foi necessário, como condição insubstituível da vitória, a presença de um partido altamente centralizado e disciplinado, com autoridade sobre a vanguarda ampla engajada. Na verdade, a história confirmou de uma forma exacerbada o prognóstico de Lênin. Porque não só foram necessárias organizações politicamente centralizadas, mas, surpreendentemente, foram sem exceção partidos exércitos (ou exércitos-partidos, para ser mais exatos) que tomaram o poder, militarmente disciplinados. 

Mas voltemos aos quatro critérios que permitem realizar a caracterização de uma revolução. Sendo todos eles necessários para compreender a natureza de classe da revolução e indispensáveis para defini-las politicamente, mas sendo muitas vezes contraditórios uns em relação aos outros, como expressão dos amálgamas históricos mais complexos (velhas tarefas, por tempo demais adiadas, novos sujeitos sociais imaturos, e politicamente precoces), qual seria, entre eles, o critério ordenador?

O debate sobre a natureza da revolução, é um dos mais instigantes da teoria da revolução do marxismo, e remonta, como sabemos à velha polêmica entre a teoria da revolução por etapas e a teoria da revolução permanente. Não pretendemos invocar a história dessa controvérsia: os seus termos são bem conhecidos, e uma ampla bibliografia, com uma discussão “hemorrágica”, está disponível sobre a questão. O que nos interessa é focar a discussão sobre o curso original das revoluções posteriores a Outubro. Queremos dizer que o seu traço comum mais constante foi que se assemelharam mais ao Fevereiro do que ao Outubro russo. A idéia original da utilidade da metáfora histórica Fevereiro/Outubro que estamos reivindicando, foi elaborada por Leon Trotsky à luz dos processos na França em 1936, e retomada por Nahuel Moreno, dirigente trotskista argentino contemporâneo de Ernest Mandel na direção da Quarta Internacional, no início dos anos 80, em uma reflexão inspirada pelos destinos das revolução nicaragüense e iraniana:

Esas secuencias se dan en Octubre y en todas las revoluciones. Se expropia siempre después de febrero. En Rusia se da primero febrero, después octubre, y después la otra revolución, la económico-social]. (...) En las revoluciones de posguerra que expropiaron mientras no se gane la guerra civil, la guerra de guerrillas, no hay febrero. Y si no hay febrero, no hay posibilidad de expropiar a la burguesía(...)  Concretamente, se ha dado una de las más importantes leyes del desarrollo desigual y combinado, que son esas desigualdades, y desgraciadamente Trotsky no la aplicó. Trotsky volvió a pecar de poner un signo igual, y dijo: "Revolución obrera = la hace la clase obrera = la hace un partido marxista revolucionario". Nuevamente cometió ese gravísimo error, que es de lógica formal, de creer que todo es igual a todo, y no es desigual y combinado. No cumplió con una de las más importantes leyes del desarrollo desi­gual y combinado, que dice que sectores de una clase pue­den hacer revoluciones de otra clase. Es decir fijense qué contradicción, no invirtió su propio proceso de razona­miento: Trotsky decía "revolución democrática", y no ponía signo igual; quienes ponían signo igual eran los menches. Los menches decían: "Revolución democrática = la hace la burguesía". Y Trotsky se reía de ellos, diciendo: "Mirá, no son dialécticos. Quien pone signo igual es una catástrofe, es un metafísico.(...) Es su gran descubrimiento, que aplicó contra los menches, cuando dijo: "No: en este siglo, revolución democrático burguesa = revolución hecha por la clase obre­ra". Es decir, una clase que hace la revolución de otra clase. Lo cual obedece a la ley del desarrollo desigual y combina­do: la revolución democrático burguesa, una tarea atrasa­da, del siglo XIX, en el siglo XX la hace una clase antibur­guesa.” (grifo nosso) (Moreno, 1992, p.39)

Nesse sentido, não é irrelevante resgatar como foram pensadas as diferentes hipóteses de dinâmica da engrenagem da revolução entre os marxistas que, seguindo a tradição, refletiam a teoria em termos de analogias históricas. Marx, por exemplo, pensou as revoluções de 1848 à luz da experiência de 1789. Engels pensou a estratégia apresentada no Testamento à luz da derrota da Comuna. Lênin e Trotsky pensaram a revolução russa à luz de 1905, e depois, Trotsky, entre outros, pensou a revolução mundial, a partir da lições de outubro.

Um debate sobre as forças motrizes da revolução

Uma dessas discussões, muito pouco conhecida, mas especialmente interessante, quase visionária, pela lucidez dos argumentos de parte a parte, porque teve como eixo a questão chave da articulação entre as forças motrizes da revolução, a pressão da necessidade histórica, na forma da urgência das tarefas, e o lugar da luta de classes, na forma do substitucionismo social, foi a polêmica epistolar entre Trotsky e Preobrajensky, sobre a natureza da revolução chinesa. Escreveu Preobrajensky:

“Es imposible decir hoy si la pequeña burguesia china podría crear partidos análogos a nuestros socialrevolucionarios, o sí tales partidos serán creados por los comunistas del ala derecha que rompam con el partido,etcétera. Hay una solo una cuestión clara. La hegemonía del futuro movimiento aún per­tenece al proletariado, pero el contenido social de la prirnera etapa de la futura revolución china no puede ser caracterizado como una vuelco socialista. Usted tendrá dificultades para de­monstrar, si es que vamos a recurrir siempre a las analogias, que la actual situación en China es la etapa entre febrero y octubre, sólo que se extiende por años. No ha habido febrero en China, el movimiento fue aplastado en el umbral de Fe­brero aunque en algunas cosas la situaci6n superó a febrero (el espíritu contrarrevolucionario de toda la gran y mcdia burguesía, de los kulaks y del capital mercantil).Su error fundamental yace en el hecho de que usted determina el carácter de una revoludón sobre la base de quién la hace, qué clase, es decir, por el sujeto efectivo, mientras que le asigna impor­tancia secundaria al contenido social objetivo del proceso. La revolución de noviembre en Alemania no fue realizada por la burguesia pero nadie considera que fue proletaria. La revolu­ción de 1789 fue completada por la pequeña burguesía pero nadie ha caracterizado a la gran revolución francesa como una revolución pequeñoburguesa.”(grifo nosso) (Preobrajensky, 1983, p.258)

Preobrajensky discorda de Trotsky porque o autor da teoria da revolução permanente insiste na defesa de que, antes das tarefas históricas, o critério ordenador da natureza de classe de um processo revolucionário é determinado pelo sujeito social. Mas esta citação é especialmente importante, porque ela coloca de forma explicita, os termos de dois problemas inseparáveis: a questão da natureza social da revolução e a possibilidade de um protagonismo revolucionário camponês independente, como expressão do substitucionismo social, elevado à enésima potência. Preobrajensky acerta de forma brilhante a possibilidade de que na China viesse a se dar uma alternativa sui generis, a organização dos camponeses em um partido revolucionário independente. Foi até mais longe, quando se perguntou, se não viria de dentro do partido comunista, até o final dos anos 20, uma organização urbana e proletária, um processo de representação da massa camponesa. Mas errou, ao pensar que a revolução, pelo atraso histórico da nação chinesa, poderia ficar congelada na estação democrática, como uma etapa intermediária.

Ainda sobre esta questão, das diferenças entre Fevereiro e Outubro como analogia história do que poderia vir a ser o futuro curso da revolução chinesa, Preobrajensky acrescenta uma provocação instigante insistindo em que os dois “Fevereiros” Chineses conquistaram menos do que o russo, referindo-se à revolução de 1910 que derrubou a monarquia e à chegada ao poder por Chiang-Kai-chek. Acerta também, por que coloca a impossibilidade de uma transição histórica para a independência da nação e para a resolução da questão agrária por vias não revolucionárias “bismarkistas”. Acerta, também, porque destaca a impossibilidade de uma transição histórica para a independência da nação e para a resolução da questão agrária, por vias não revolucionárias “bismarkistas”, como ocorreu na Alemanha e na Itália no final do século XIX:

Mientras tanto, las dos revoluciones chinas aun no han conseguido lo que nosotros conseguimos sólo en febrero, ni en el sentido de conquistas materiales ni, lo que es más importante, en el sentido de crear las condiciones para la organización de soviets de obreros y campesinos a escala masiva, algo que nosotros obtuvimos inme­diatamente después de la caída del zarismo. Por otra parte  yo no creo que en la China de hoy ningún tipo de movimiento esté asegurado en la dirección burguesa según lineas de evolu­ción, de la misma forma en que se consiguió la desaparición pacífica de los remanentes feudales en Alemania luego de la revolución fracasada de 1848. Resumo: China todavía tiene por delante una lucha colosal, amarga y prolongada por cuestiones elementales como la unificación nacional, y ni qué hablar del problema colosal de la revolución democraticoburguesa agraria”. (grifo nosso) (Preobrajensky, 1983, p.258)

Trotsky responde colocando a ênfase na dinâmica histórico-política indefinida do processo, um cuidado político e uma precaução teórica que, mais tarde, não voltará a ter na redação das teses da revolução permanente, ressaltando dois alertas:(a) as relações das classes “terratenentes” (grandes proprietários de terras) com a burguesia das cidades e desta com as potências imperialistas que subjugavam a China, tornaria a revolução nacional-agrária chinesa, se levada até ao fim, necessariamente uma revolução anti-capitalista; (b) o conteúdo social e o protagonismo de classe é em grande medida indeterminado, e isso se expressará também nas tarefas cumpridas e na obra da revolução, que não se definem à escala nacional, mas sim internacional:

“¿Cómo caracterizar una revolución?. ¿Por la clase que la dirige o por su contenido social? Hay una trampa teórica subyacente al contraponer la primera a la última en forma tan general. EI periodo jacobino de la revolución francesa fue, por supuesto. el periodo de la dictadura pequeñoburguesa, en el cual además, la pequeña burguesía, en armonía total con su  “naturaleza sociológica” abrió el camino para la gran burguesía. La revolución de noviembre en Alemania fue el comienzo de la revolucién proletaria, pero fue detenida en sus primeros pasos por la direccón pequeñoburguesa, y sólo logró unas pocas cuestiones que no fueron cumplidas por la revolución burguesa.¿Cómo llamamos a la revolución de noviembre: burguesa o proletária? Ambas respuestas son incorrectas. El lugar de la revolución dc octubre será restablecido quando establezcamos la rnecanica de esta revolución y determinemos sus resultados. No habrá contradicción en este caso entre la mecanica (poniendo bajo este nombre, por supuesto, no sólo la fuerza motriz, sino también la dirección) y los resultados: ambos poseen un carácter "sociológicamente" indeterminado. Me torno la libertad de plantearle la cuestión: ¿Como llamaría usted a la revolución  hungara de 1919? Usted dirá, proletaria. ,Por qué? ¿Acaso el “contenido” social de la revolución húngara no resultó ser capitalista? Usted contestará; este es el contenido social de la contrarevolución. Correcto. Aplique ahora esto a China. El “contenido social” bajo la dictadura del proletanado (basado en una alianza con el campesinado) puede permanecer durante un periodo como no socialista todavía, pero el camino al desarrollo burgués desde la dictadura del proletariado, sólo puede producirse a través de la contrarrevolución. Por esa razón, en la medida en que concierne al contenido social es necesario decir: “esperar y ver”. (grifo nosso) (Trotsky, 1983, p.258)

Este alerta não é secundário: freqüentemente, análises apressadas, confundem o sentido social dos resultados da revolução, invertendo o signo dos processos e confundindo, ou atribuindo, o que foi obra da contra-revolução, ao que foi obra da revolução. A questão fundamental na análise de uma revolução, todavia, é ficar atento à dinâmica histórica-política do processo, e nesse marco não esquecer que tudo é sempre relativo, e depende do foco de análise: os sujeitos sociais, as tarefas pendentes e as tarefas cumpridas, mas sobretudo, a dinâmica internacional: todas as revoluções nacionais, estão inseridas em um processo que lhes é superior, e que se define na escala mundial. Esse é o sentido do esperar e ver.

 

A natureza social das revoluções se define pela classe protagonista ou pelos resultados?

Mas é curioso como, nesta polêmica com Preobrajensky, por diferentes caminhos, ambos, simultaneamente, acertaram e erraram. Trotsky acertou, na medida em que previu que a revolução chinesa seria socialista, mas errou, com seus excessos, quanto ao sujeito social, por, digamos assim, “obreirismo”. Entretanto, também acertou porque foi capaz de compreender que, pela natureza histórica da época (a fragilidade e atraso da burguesia chinesa, demasiado débil tanto em relação aos impérios, como sobretudo, em relação à massa do povo, para ser capaz de um protagonismo revolucionário) a revolução chinesa, para levar adiante a tarefa da independência nacional e da reforma agrária, não poderia evitar a via da ruptura anti-capitalista, e não poderia existir, na China, um estágio intermediário de república democrática (mesmo que na forma da ditadura democrática do proletariado e do campesinato, a fórmula indefinida de Lênin), de forma perene.

Quando Trotsky discute que a revolução nacional chinesa seria necessariamente anti-capitalista, ou não seria, não estava construindo uma hipótese “engessada” de mão única. Visionária, quando foi formulada (quem pensava que seria possível uma revolução socialista na China, mesmo entre os marxistas, nos anos 20?), ela repousava em um balanço histórico: a libertação nacional chinesa exigiria a mobilização popular, operária e camponesa, e a burguesia chinesa, mesmo que se aventurasse a convocar as massas à luta, não poderia resolver a questão agrária, e seria tragada pelas próprias forças sociais que tinha ajudado a despertar. Mas a discussão dos processos de libertação nacional no pós-guerra, de fato, não é simples. Afinal, a Índia por exemplo, fanfarroneia, ainda hoje, com a propaganda de que é a mais populosa democracia do mundo. Nos primeiros anos da década de 90 todo tipo de basófias foram feitos até ao cansaço para defender que países dependentes (Argentina  e Coréia do Sul, por exemplo), estariam na iminência de serem incorporados ao restrito círculo dos países centrais. O que se demonstrou em pouco tempo uma impostura ideologia.

Mas é importante evitar mal entendidos: Trotsky estava afirmando somente que a independência nacional da China, exigiria uma mudança na natureza social do Estado, que teria de deixar de ser um Estado colonial. Mas essa tarefa seria impossível sem um confronto com a ordem imperialista, logo exigiria uma revolução política. Como hipótese teórica, todavia, a própria burguesia chinesa, poderia, em princípio, estar à cabeça de uma revolução política que alterasse a natureza do Estado, para um Estado independente, sem alterar, pelo menos, não no fundamental, as relações de propriedade e as relações sociais. E, no entanto, Trotsky e Preobrajensky excluíram essa hipótese e essa foi a substância da polêmica que ambos mantiveram então com Stalin. Por quê o fizeram? Pelas mesmas razões, que Lenin tinha invocado para excluir a possibilidade de um protagonismo burguês na revolução contra o Czarismo: essas burguesias, ao contrário da americana, por exemplo, tinham chegado demasiado tarde ao mercado mundial e, portanto, se formaram com uma debilidade intrínseca que as mutilava para uma ação revolucionária.

Mas sejamos mais rigorosos: em que consiste essa fraqueza social crônica das burguesias semi-coloniais? Ela se explicaria por uma “fobia” das massas operárias e camponesas: o medo do povo em mobilização, seria maior do que a aspiração a um papel independente no mercado mundial. Mas tanto esse medo quanto essa ambição são sentimentos sociais relativos, e dependem de relações de forças concretas. Não devem ser interpretados como máximas invioláveis. Se as massas populares não tiverem avançado até o patamar de uma expressão política independente, as burguesias coloniais podem se apoiar parcialmente em uma mobilização controlada, como forma de manobrar na arena mundial. Esse foi o sentido do Cárdenismo no Mexico, do Aprismo no Peru, do Peronismo na Argentina, e do próprio Varguismo no Brasil. Finalmente, a Índia, por exemplo, conseguiu uma “meia-independência” do Império Britânico, mas isso exigiu, não somente, uma revolução política, como o sacrifício de uma solução para o problema agrário. E não impediu, que tanto a Índia como o Paquistão permanecessem como semi-colônias. A hipótese de Trotsky parece ter sobrevivido à prova da história.

Vejamos agora em que medida a história confirmou ou não o vaticínio de Preobrajensky. Ele previu depois da devastadora derrota de Cantão que seria necessário, pelo menos, todo um intervalo histórico para uma recuperação do proletariado, duramente esmagado pelo Kuomintang em 1927. Sugeriu de forma pioneira que a primeira linha do protagonismo revolucionário poderia vir a ser assumida pelos camponeses. Eis um dos mais impressionantes paradoxos históricos imagináveis: a revolução socialista triunfou, como revolução agrária anti-burguesa, em alguns dos países mais pobres e mais atrasados da economia mundial, sem que a classe operária tivesse cumprido qualquer papel mais relevante.

Ou seja, sob a pressão terrível do apodrecimento das condições objetivas, a crise econômica, social e política, histórica enfim, do regime, “a história abre o caminho”, e outras classes, que não o proletariado urbano, assumem um papel revolucionário, e avançam para além do capitalismo. Mais importante, ainda, como a totalidade é maior que a soma das partes, não adianta considerar, unilateralmente, um dos fatores para concluir uma caracterização social de uma revolução: seja ele, o sujeito social, o estágio de desenvolvimento sócio-econômico de uma nação, ou o programa político da direção, nenhum fator é suficiente para  prever ou definir a natureza social da revolução. A todos esses fatores, há que incorporar o estudo da dinâmica político-histórica, ou seja o signo da etapa mundial, uma correlação de forças mais estrutural, exterior ao país em questão, que se define em uma escala internacional.

 

[*] Doutor em História pela USP (Universidade de São Paulo), professor do CEFET/SP (Centro federal de Educação Tecnológica .

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