Ano I - Nº 03 - Dezembro de 2001 -
Quadrimestral - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178
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Uma Análise Critica
do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado
Eduardo Alves*
Introdução Ao analisar criticamente a publicação
do Extinto MARE (Ministério da Administração e Reforma do Estado) –
Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado - pretendemos oferecer uma leitura com base em uma perspectiva marxista.
Nesse sentido, pretendemos demonstrar o quanto tais teorias apresentadas
sustentam-se nas bases teóricas da literatura comprometida com o capital
e desnudar as idéias que tem como fundamento a ampliação do lucro e
da exploração. Como conseqüência, sugerimos algumas alternativas de
ação para a classe trabalhadora (principalmente o setor dos servidores)
que consideramos coerente com a concepção que expressamos. O texto, portanto dedica-se em
situar a análise sem restringi-la a critica da publicação do MARE. Ao
contrário, temos como ponto de partida a realidade. Não são as críticas
que transformam o mundo real, mas sim a prática, ou seja, a ação coletiva,
consciente e organizada da principal classe explorada no sistema capitalista:
os trabalhadores. Buscamos então deixar isso claro, tentando combinar
a análise do texto ao momento político no qual vivemos. Por isso, optamos
por uma organização que pressupõem o desenvolvimento mínimo de seis
subtítulos (sem contar com a introdução e a bibliografia básica), entre
os quais, o último – “Sugestão de Alternativas para os Trabalhadores”
– assume a responsabilidade de indicar caminhos mínimos e fundamentais
para a luta dos trabalhadores (principalmente o setor dos servidores)
na implementação do neoliberalismo no Brasil. Esperamos assim estar
contribuindo com a reflexão crítica coletiva, com a produção de conhecimento
comprometido com a luta contra o capital e com o avanço dos setores
explorados.
A crise da crise do Estado O texto do antigo extinto MARE
(Ministério da Administração e Reforma do Estado) intitulado Plano Diretor
da Reforma do Aparelho do Estado, no prefácio assinado por FHC, inicia
dizendo que “a crise brasileira da última década foi também uma crise
de Estado”. Ou seja, para o Presidente da República, os governos
passados desviaram o Estado de suas funções básicas “para ampliar sua
presença no setor produtivo”. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que
o Estado Capitalista sempre estará em crise, pois, as contradições causadas
pelas relações sociais de produção, baseadas na exploração da força
de trabalho que é operada pelos detentores da propriedade privada do
capital, tendem a crescer com o desenvolvimento das forças produtivas.
As contradições existentes no modo de produção capitalista geram crises
que são aprofundadas ou estendidas de acordo com a luta de classes e
as condições reais de desenvolvimento do capitalismo, em nível internacional
e nacional. Entretanto, ressaltar a crise do Estado desta forma pode
dar a entender que o Estado está em crise, que vivemos um período de
transição do Estado e isso não é verdade (por enquanto). A crise que
se aprofunda é a do capital, crise essa que não foi resolvida com os
remédios da guerra, foi estancada com modelos de “Bem Estar Social”
(como na Europa e nos Estados Unidos – durante o Governo Roosevelt)
e se aprofunda vertiginosamente com o neoliberalismo. Há vários aspectos que devem chamar
nossa atenção na identificação da profundidade da crise do capital.
Um deles diz respeito a realidade das relações de produção. O Século
XX foi marcado pelo avanço das forças produtivas e das relações sociais
de produção, nos apresentando, dessa forma, um mundo praticamente capitalista,
com algumas poucas exceções
[1]
. Outro elemento é o fim da bipolaridade, com a extinção
da União Soviética e a tomada capitalista no Leste Europeu. Tal movimento
coincide com advento neoliberal e com a formação do blocos imperialistas
dessa etapa imperial ainda mais elevada. Apesar de ter havido um reenquadramento
das polaridades – destacadas na disputa do imperialismo entre EUA e
Comunidade Européia – os Estados Unidos assumiram, nos últimos anos,
uma posição de super potência (algo que podemos chamar de “super-imperialismo”).
A contradição reside que o país centro da dominação do capital amargue
uma aguda crise que apareça no seu crescimento pife de cerca de 2% ao
ano. Por sua vez, paralelo a essa realidade, há um evidente apodrecimento
progressivo do modelo neoliberal, que já se esgotou na crise de vários
países, entre as quais destacamos: a crise do México, do Sul Asiático
e da Argentina. No Brasil o fantasma da crise que
assolou outros países (como os apresentados acima) tem nos rondado mais
do que nunca. A coalizão conservadora formada para garantir o neoliberalismo
possui, entre seus conteúdos básicos de sustentação, as privatizações,
as terceirizações, a precarização, a desregulamentação e a flexibilização.
Não é por menos que temos um Brasil mais miserável, com 50 milhões de
pessoas a baixo da linha da pobreza e uma concentração de renda absurda,
na qual 12,2 % da população (composta pelos capitalistas e pelo setor
mais bem pago de gerentes, administradores, advogados, economistas,
etc) detêm 33,8% da renda, enquanto os setores mais empobrecidos da
classe trabalhadora (25,7% da população) representam apenas 6,9% da
renda nacional (pesquisa divulgada pela Folha de São Paulo). Como vemos,
o empobrecimento, a proletarização, a lupem-proletarização, o sub-emprego
(com a ampliação do fenômeno das terceirizações) são características
dessa fase do Estado (no Brasil) e atinge todos os trabalhadores. As saídas buscadas pelos Estados
Nacionais, através de suas classes dominantes, para encontrar um remédio
que dê sobrevida ao capital exigiu adequações que respondessem às exigências
dos capitalistas, principalmente do setor imperialista, monopolista
e financeiro. Essa crise ficou conhecida, popularmente, como “crise
fiscal”, mas na verdade constitui-se como uma crise por conta do avanço
das forças produtivas, da ampliação das contradições entre capital e
trabalho e impôs rebaixamento nas margens de lucro da burguesia. Para
ampliar o espaço da margem de lucro foi necessário operar mudanças nos
orçamentos nacionais e no papel que os Estados Nacionais vinham assumindo
na prestação de serviços e na participação direta em alguns campos da
produção – com maior ou menor potência de acordo com o grau de desenvolvimento
nacional e com peso na economia internacional. Por sua vez, tais remédios,
que em geral (com menor ou maior grau): viraram os investimentos sociais para a propriedade
privada, inclusive alterando a forma de propriedade e fazendo avançar
empresas capitalistas no lugar de empresas estatais; ampliaram a dependência;
retiraram a ação de executor de políticas sociais do Estado, transformando-o
em regulador e rebaixaram direitos sociais; e modificaram as relações
trabalhistas desregulamentando direitos, marcaram a caracterização do
neoliberalismo e são responsáveis por crises que já vieram ou estão
chegando. Essa realidade, não caracteriza,
no entanto, que o Brasil passa por uma crise de Estado. Uma verdadeira
crise de Estado coloca em xeque o poder político, seguido da possibilidade
real da tomada e construção de um novo poder. Para isso, no entanto,
fazem-se necessárias condições objetivas e subjetivas
[2]
. Vivemos um momento em que afloram ricas condições
objetivas a partir das quais é possível construir situações de superação
da ordem burguesa: o capitalismo, em nível mundial, já desenvolveu satisfatoriamente
as relações sociais de produção; temos um planeta, predominantemente,
regido pela ordem do capital; há sinais de apodrecimento das forças
produtivas; o neoliberalismo desde a crise do Sul Asiático e do México,
para não citar as crises brasileira e argentina, demonstra claros sinais
de instabilidade e fragilidade econômica. Certamente que não é dessa
crise que fala FHC, mas sim de uma “crise” administrativa, a qual exige
alterações superficiais nos aparelhos do Estado para prolongar a dominação
burguesa e adequar o Brasil à nova (velha) ordem. Um Estado que se torna
empecilho para a maximização do lucro é um obstáculo para os capitalistas.
Cabe ao Estado, apenas, cumprir seu rumo fundamental em uma sociedade
de classes: garantir a reprodução e manutenção da exploração e o poder
político da burguesia, mantendo-a como classe dominante. É claro que a desconstituição dos
aparelhos de propriedade estatal e a ampliação dos Aparelhos Privados
de Hegemonia
[3]
das classes dominantes passam, necessariamente, pelo
redimensionamento de todas as áreas que exigem um papel de intervenção
direta nos problemas sociais assim como no setor econômico. Os dois
casos, apesar de representarem gastos e investimentos necessários, são
obstáculos para a ampliação do lucro dos capitalistas – e essa questão
está no centro de todas as mudanças. No entanto, a ampliação desse lucro,
por conta de um modelo de Estado (amplo e conservador – nos países em
desenvolvimento – ou amplo com forte investimento social – nos países
desenvolvidos), encontra-se parcialmente limitada. A crise do capital,
acentuada pelo fim da guerra fria, impõe novos modelos de dominação
imperialista. O caminho das privatizações e das terceirizações é um
caminho evidente, frente tal realidade, para a burguesia buscar fôlego
em sua crise.
O Estado e a Sociedade no Brasil No Brasil, particularmente, o processo
de estatização dos setores produtivos, envolvendo a transformação de
matéria bruta, a prestação de serviços em energia, água, produção siderúrgica
e outras, foi o próprio caminho de desenvolvimento e formação de uma
sociedade capitalista. Ou seja, isso foi um investimento dos setores
dominantes e era necessário criar um Estado com capacidade de dirigir
o processo de formação capitalista da sociedade brasileira. Nesse sentido
é inverossímil que os próprios capitalistas hoje façam críticas sobre
esse processo, como se não tivessem responsabilidade nenhuma sobre ele.
Assim parece que as coisas ocorreram por escolha, por uma simples vontade
humana de alguns dirigentes, ou mesmo por dádiva sobrenatural. Mas sabemos
que não foi assim que ocorreu o movimento de construção do Estado e
da Sociedade brasileira. Foi feita a política necessária, sob a lógica
burguesa, para o desenvolvimento. Esse era o caminho possível frente
às condições reais do Brasil. Os Governos de Getúlio, Dutra, (de novo)
o de Getúlio e depois de JK, apostaram, com todas as diferenças constitucionais,
políticas e sociais, no mesmo caminho de desenvolvimento econômico,
encontrando maior ou menor êxito em suas táticas por conta do acúmulo
de forças existente na sociedade. Assim podemos afirmar que a reforma
que está sendo feita não é ponto indispensável para o desenvolvimento,
mas sim para o aprofundamento do subdesenvolvimento, da dependência
e da inserção do Brasil na ordem mundial hegemônica. Novamente insistem no absurdo.
Esse não é um movimento entre sociedade e governo, pois, colocados dessa
forma, não são nada, são caóticos, não explicam as condições reais e
as contradições existentes. A sociedade é uma abstração, “se desprezarmos,
por exemplo, as classes que a compõem”
[4]
. Uma sociedade divida em classes possui idéias distintas,
representações distintas e governos de diferentes posições políticas.
Cada governo tem uma ligação orgânica a uma ou outra classe, ou mesmo
a outras que não são fundamentais, como é o caso em uma situação bonapartista
[5]
. Não existe, portanto, tal movimento que cita FHC.
O que ocorre é que o Estado, através dos aparelhos repressivos e ideológicos,
busca transformar em universal aquilo que é particular, fazendo parecer
que as idéias da burguesia são idéias de toda a sociedade. Os trabalhadores
organizados, representados por entidades classistas, já deixaram claro
que não concordam com as mudanças do Governo. Setores importantes de
várias organizações como OAB, ABI, CNBB e outras já mostraram que não
concordam com as alterações governamentais. Movimentos de massas como
o MST, UNE, UBES, já declararam suas diferenças. Os partidos de esquerda
fazem uma oposição cotidiana ao modelo imposto ao Brasil. Logo, cabe
perguntar: de que sociedade fala FHC? Com certeza não é a sociedade
real, diversas em determinações, em idéias e representações, mas a sociedade
que os capitalistas querem que exista, mesmo que não seja a sociedade
existente. Todo esse discurso, entretanto,
é para justificar a importância da economia de mercado e de marcá-la
como a forma mais desenvolvida para fazer avançar o país. “O grande
desafio histórico.é o de articular um novo modelo de desenvolvimento
que possa trazer para o conjunto da sociedade brasileira a perspectiva
de um futuro melhor” ou seja, “o fortalecimento do Estado para
que sejam eficazes sua ação reguladora, no quadro de uma economia de
mercado”. Com essa afirmação presente no Plano Diretor da Reforma
do Aparelho do Estado, demonstra-se claramente a superação de um modelo
desenvolvimentista implementado no Brasil e a adoção do projeto de ampliação
da margem de lucro e diminuição da capacidade de ação social do Estado.
A ação reguladora é a marca da desconstrução progressiva dos serviços
públicos, aliada ao processo de privatização, contratualização e terceirização.
Tais marcas são determinantes na Reforma Administrativa proposta pelo
PDRAE (Plano Diretor da Reforma do Aparelho
de Estado) e implementada pelo Governo.
Mesmo identificando que a implementação do modelo, muitas vezes, foge
de sua arquitetura inicial, esse desvio não é no mérito, continua com
todo o conteúdo fundamental apresentado desde 1995. É por isso que nossa análise deve
se deter na pedra angular do sistema e mesmo das mudanças: a alteração
das formas de propriedade. A mudança para um modelo gerencial de funcionamento
do Estado não é uma mudança apenas de cunho administrativo. Essa é a
superficialidade da mudança e não seu conteúdo fundamental. O elemento
central encontra-se na alteração da propriedade e na relação entre propriedade
privada e propriedade estatal. No prefácio de FHC o discurso que justifica
a alteração da administração baseia-se no atendimento ao “cliente” ou
“cidadão cliente”. Mas isso não passa de um discurso ideológico para
falsear as alterações reais e manter o processo hegemônico no subconsciente
dos explorados. Por isso era necessário pautar o serviço público como
debate central em 1995 e tirá-lo do centro em 1999, quando os efeitos
das mudanças começavam a aparecer. Essa é uma das razões pelas quais
insistimos em que devemos situar novamente o serviço público como tema
central de debate na sociedade. Do ponto de vista da propriedade,
que é o centro de todo o nosso debate, o que está em jogo é repassar
o patrimônio público acumulado para os setores privados, aumentando
assim a concentração do lucro, ao mesmo tempo em que se desobstruem
as barreiras que impossibilitam o aumento da margem do lucro. Do nosso
lado isso também é um grande desafio. Temos pela frente a grandiosa
tarefa de promover mudanças radicais que alterem a forma de propriedade,
mas o caminho é totalmente inverso do que vem fazendo o Governo. É nesse
esfera de entendimento que aparece um equívoco muitas vezes repetidos
por setores de esquerda, populares ou democráticos. Há uma idéia, aparentemente
predominante, de que o processo imposto diminui o Estado e, portanto,
como pregamos o fim do Estado, ou de seu cunho autoritário, ou mesmo
de seu poder quase absoluto sobre a individualidade, tal movimento não
é tão ruim para a política que defendemos. Ledo engano, pois isso nos
levaria a um processo de aumento desregulado da concentração do poder
e do lucro, repassando para os aparelhos privados, ou seja, para a propriedade
privada do capital, uma arena central de disputa política. Por exemplo:
não é possível disputar política de comunicação, de grande vulto, hoje,
com possibilidade de uma disputa hegemônica real em nível nacional,
que possa alterar a correlação de forças, sem quebrar o monopólio privado
dos meios de comunicação. Na esfera do Estado, entretanto, temos maiores
condições, pela própria característica do Estado de Direito, criado
pela burguesia, de operar a disputa hegemônica. Certamente que para
a classe trabalhadora isso só pode ter conseqüência se tiver calcado
em uma organização classista, com capacidade de mobilização e organização,
que trave na sociedade a disputa ideológica e sirva como base real para
a construção de mudanças. Sem isso, ficamos no administrativismo e não
conseguimos alterar as condições reais que exigem mudança na forma de
propriedade. Sem dúvida, analisar o prefácio
escrito pelo presidente tem uma importância central: saber qual a orientação
que se mantém, independente de ministérios e ministros, e qual o discurso
central que a justifica. Por isso não nos cansaremos de afirmar que
as bases do PDRAE continuam presentes na implementação das mudanças.
O que houve foi um desvio tático para implementar o núcleo central das
adaptações neoliberais, nada mais que isso. Para tanto vamos analisar
três pontos centrais do Plano Diretor da Reforma do Estado: 1. As bases
teóricas; 2. O objetivo da Reforma Administrativa; 3. O Aparelho de
Estado e as Formas de Propriedade. É na análise desses três elementos
que encontraremos indicativos
[6]
para nossa ação contra a reforma, no momento político
em que vivemos.
As bases teóricas do PDRAE A diferença que guarda nossa análise
sobre o Estado em relação àquela que consta no Plano Diretor da Reforma
do Aparelho de Estado, editado pelo MARE em 1995, é de cunho epistemológico
e conceitual. Epistemológico porque o trabalho do antigo Ministério
da Administração e Reforma do Estado utiliza conteúdos fundamentais
do positivismo: a neutralidade, a
desistorização, a ilusão de partir do dado imediato. Conceitual porque
apresentam conceitos que são verdadeiras totalidades caóticas, que não
explicam e não podem dar conta do movimento histórico que engendrou
o capitalismo brasileiro no final do século passado, além de apresentarem
bases conceituais “jus naturalistas” ou “liberais” de política (por
mais que neguem tal vínculo). Certamente que tal diferença é determinada,
em última instância, pelo caráter de classe que tem cada uma das concepções
(a do Governo e a nossa). Tal diferenciação cria uma barreira intransponível
que só pode ser superada através da própria luta de classes. Vamos procurar
identificar tais diferenças lançando mão da “arma da crítica” e buscar
contribuir, dessa forma, para reforçar a ação dos trabalhadores. Se começarmos pela caracterização
do Estado, um dos conceitos centrais tratados nessa contribuição, identificaremos
diferenças intransponíveis e insuperáveis. Segundo o Governo “o Estado
é a organização burocrática que tem o monopólio da violência legal,
é o aparelho que tem o poder de legislar e tributar a população de um
determinado território”. Esse conceito é vazio, não explica nem situa
o papel que cumpre o Estado. Certamente não passa de uma constatação
e se apropria apenas da aparência e do funcionamento deixando de lado
sua caracterização fundamental. O Estado é um instrumento de dominação
de uma classe sobre a outra. Isso serve tanto para o modelo restrito
analisado por Marx, quanto pelo modelo amplo analisado por Gramsci.
Em nenhum dos casos, fruto de momentos históricos e formações sociais
distintas, o Estado perde sua principal característica que, por sua
vez, não é determinada por ele mesmo, mas pelas relações sociais de
produção, ou seja, pelos diferentes papéis desempenhados pelas classes
fundamentais do capitalismo. Mas o Governo não pode admitir isso, pois
tal posição o levaria a dar organicidade ao seu propósito, ligando-o
a uma das classes fundamentais, coisa que a neutralidade não permite.
A totalidade das relações de produção
forma “a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica
e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência.
O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da
vida social, político e espiritual”
[7]
. Tal compreensão é fundamental para o debate, já
que parte de determinações diferenciadas das que são propostas pelo
Plano Diretor. Mesmo que as mudanças sejam, no Estado (na superestrutura),
apresentadas como elementos fundamentais, elas não são, diferentes do
que afirmam, a saída para a superação da crise atual. Isto porque tais
mudanças decorrem, necessariamente, de uma alteração nas formas de propriedade.
Na verdade, as alterações que são propostas no PDRAE se justificam porque,
para as classes dominantes, é. necessário aumentar o arco de poder econômico
da burguesia, ampliar a margem de lucro, incrementar a ocupação de espaço
na propriedade privada do capital, de forma a expandir a participação
dos capitalistas nos setores de serviços ou mesmo de produção de matéria-prima.
Isso é o que está por trás das privatizações, coisa que o conceito colocado
pelos “intelectuais” do antigo MARE não permite identificar. No entanto,
identificar o movimento real operado pelo neoliberalismo é, necessariamente,
superar epistemologicamente o conceito de Estado apresentado e assumir
um conceito histórico e materialista, que dê conta da análise das condições
atuais. Se essa é uma das mais importantes
rupturas teóricas que devemos fazer, há outras que são decorrentes de
tal pensamento. Então vejamos, a conseqüência da atitude dos governistas
é propor uma reforma administrativa e não poderia ser diferente, pelo
menos no discurso. O problema é que o grau de ideologização e politização
que tem uma reforma administrativa, mesmo que escondido pela retórica
escrita, torna inverossímil tal proposição. O Estado nunca está acima
da sociedade, mesmo quando bonapartista, pois é sempre fruto da luta
de classes, da correlação real entre as duas classes fundamentais (trabalhadores
e burgueses), das disputas entre agentes e representações fundamentais
das classes sociais fundamentais. Nessa fase (bem trabalhada por Marx
no 18 Brumário) há uma aparência maior de autonomia estatal, porque
há uma condição na luta de classes, entre os setores fundamentais, que
permite a elevação de uma classe intermediária ao Governo ou à parte
do poder político. Abstraem dessa forma o papel do Governo, do Imperialismo,
dos proprietários da propriedade privada do capital, dos trabalhadores,
dos partidos, dos movimentos, e apresentam uma visão típica do “contrato
social’, que facilmente pode oscilar entre fascista e liberal. É claro
que o centro do contrato, aquilo que o representa, principalmente na
sociedade moderna, é a Constituição. E o é também para os governistas,
uma Constituição que, para eles, está acima do bem e do mal, e não impregnada
de conflitos, ideologias, visões de classes distintas, de acordo com
a correlação de forças em que é produzida socialmente. Ou seja, antes
de um instrumento legal ou jurídico, a Constituição é, fundamentalmente,
um instrumento político que dá o corpus
necessário para um processo de dominação entre as classes. É claro que tal inspiração teórica
dos palacianos os levará a afirmações históricas, no mínimo questionáveis,
para não dizer comprometidas com o processo de dominação que defendem.
Por exemplo, o texto afirma que “a desordem econômica expressava agora
a dificuldade do Estado em continuar a administrar as crescentes expectativas
em relação à política de bem-estar aplicada com relativo sucesso no
pós-guerra”. Como se a ordem ou a desordem econômica, existente nas
várias flutuações ou momentos históricos do capitalismo, fosse decorrente
de ações naturais (ou quem sabe sobrenaturais). Além do mais, ao afirmarem
isso, incorporam outro problema que é o de dizer que nesse momento devem-se
destituir as políticas de bem-estar, e junto com elas destruir os direitos
conquistados. É certo que isso não é dito, mas fica bem entendido na
afirmação colocada, pois o momento do pós-guerra, foi, sem sombra de
dúvidas, um período de conquistas de direitos sociais, tanto para os
países desenvolvidos, como para os não desenvolvidos. A margem desses
direitos foi determinada pela formação social de cada um deles, com
elevações maiores ou menores. É certo que nem todos os países viveram
o modelo de bem-estar, como é o caso do Brasil, em que o modelo desenvolvimentista
não poderia dar essa qualidade nas políticas executadas. Porém, o mundo
não se dividia entre desenvolvidos e não desenvolvidos, mas entre socialistas
[8]
e capitalistas, o que foi marcante após a segunda
guerra mundial – em 1945 – com o início de uma guerra fria, que só acaba
com a derrota final do socialismo nos países do leste e na União Soviética. Contudo, se isso não bastasse,
continuam os palacianos em sua viagem, ora racionalista, ora positivista.
“Não obstante, nos últimos 20 anos esse modelo” - de bem-estar social
– “mostrou-se superado, vítima de distorções decorrentes...de empresários
e de funcionários que buscaram utilizar o Estado em seu próprio benefício...também
do desenvolvimento tecnológico e da globalização, que tornaram a competição
entre as nações muito mais aguçada”. Sobre os argumentos baseados no desenvolvimento tecnológico
e na globalização, Petras nos mostra os seus pés de barro, ao afirmar
que nada tem a ver desenvolvimento tecnológico e globalização, pois
a política de “globalização vem
ocorrendo há vários séculos”
[9]
. Além disso, corrobora a visão aqui expressa, pois
afirma que “a política estatal é uma função da correlação
de forças sociais: a capacidade de diferentes classes mobilizarem recursos
para influenciar a política econômica do Estado”
[10]
. Ou seja, “não
são forças econômicas globais impessoais que estão operando aqui, mas
uma estratégia econômica enraizada nos interesses da classe alta e das
corporações”
[11]
. Portanto, não são ajustes necessários a um desequilíbrio
casual que força a superação da política promovida pelo capital, mas
sim a necessidade de responder às exigências da burguesia e das grandes
corporações monopolistas e oligopolistas em nível internacional e não
apenas de problemas localizados nacionalmente. Por conseguinte, podemos
afirmar que movimentar uma oposição coerente e que tenha conseqüências
favoráveis contra a aplicação do neoliberalismo exige, além de outras
coisas, uma ruptura conceitual ao modelo expresso pelo Plano Diretor
da Reforma do Aparelho do Estado. Não se pode ficar apenas nas críticas
às implementações, por mais que sejam importantes e necessárias. É imprescindível
uma crítica global ao conjunto teórico que as inspira, por mais que
seja progressivamente invisível. Assim, se o fizermos, daremos um salto
de qualidade substantivo para o processo de disputa hegemônica que demanda
essa luta.
O objetivo da Reforma Administrativa:
um percurso parcialmente cumprido O processo da reforma administrativa,
que é o núcleo central da chamada reforma do Estado, atingiu parcialmente
seus objetivos, mas continua fazendo o seu percurso. Esse percurso tem
que ser obstaculizado para podermos impedir sua implementação ao mesmo
tempo em que colocamos em prática medidas que possam resgatar conquistas
perdidas e avançar para uma construção que seja coerente com os interesses
dos trabalhadores. Para isso, no entanto, é necessário barrar o trânsito
para essa quarta fase do Estado brasileiro inaugurado pelo neoliberalismo,
que foi desastrosamente iniciado por Collor e sistemática, organizada
e organicamente continuado por FHC (nos seus dois governos). Do ponto
de vista legal, a Emenda Constitucional agrupa as medidas fundamentais
que dão escopo para o processo em curso no Brasil. Uma medida de mudança
da Constituição é, desde sempre, inverossímil, pois acumula uma série
de inconstitucionalidade no seu conjunto. Entretanto, foi aprovada e
conseqüentemente: se mudou a estabilidade, instituíram-se os contratos
de gestão, introduziram-se os contratos trabalhistas por emprego público,
alterou-se a revisão salarial dos servidores, estabeleceu a terceirização
como permanente, criou formas legais para demissões, esvaziaram-se os
serviços públicos, legalizou as privatizações. Há uma série de Leis
complementares no meio do caminho, mas é a análise dos recuos e avanços
que o PDRAE fez, em relação à EC 19/98, o que nos interessa nesse estudo. Já havia, no texto do ex MARE,
uma anunciação do objetivo das emendas a serem apresentadas: fim da
obrigatoriedade do RJU, permitindo-se a volta de contração de servidores
celetistas; processo seletivo público para contratação de celetistas
e concurso público para a de estatutários; flexibilizar a estabilidade
através da possibilidade de demissões por falta grave, por insuficiência
de desempenho ou por excesso de quadros; criar a possibilidade da disponibilidade;
permitir a contratação de estrangeiros no serviço público; limitação
rígida da remuneração dos servidores; limitação rígida dos proventos
da aposentadoria e das pensões; facilitação de transferência de pessoal
e de encargos entre pessoas políticas; eliminar a isonomia como direito
subjetivo; descentralização e fixação dos servidores dos três poderes.
Esses seriam os objetivos das emendas constitucionais, significativamente
cumpridos pela EC 19/98. Cumpriram legalmente e hoje ainda existe a
guerra da implementação e mesmo da edição de Leis complementares que
possam regulamentar todo o processo de mudança ao qual foram expostos
os servidores. No fundamental, podemos ver que
tais modificações não mudam em nada a crítica feita pelo próprio documento
governista. Continuam, progressivamente, incentivando uma administração
patrimonialista e em nada avançam para superar essa característica do
Estado brasileiro que foi determinado pelo modelo de colonização e pela
formação tardia, conservadora e autoritária que teve o capitalismo.
Dizem que o patrimonialismo é uma “excrescência
inaceitável”, pois existe como conseqüência inerente “à corrupção e ao nepotismo”. E afirmam que, “no momento em que o capitalismo e a democracia se tornam dominantes,
o mercado e a sociedade civil passam a se distinguir do Estado”.
Ou seja, seria essa própria distinção, fruto de um desenvolvimento capitalista,
que exige que o Estado e a Sociedade Civil se unifiquem para superar
um modelo que é obstáculo ao próprio desenvolvimento do capitalismo.
Isso sim é uma excrescência que aparece de variadas formas e por diversificadas
razões: 1. lançam mão da tese criticada pelos mesmos que é o desenvolvimentismo,
para eles o desenvolvimento do capitalismo gera a necessidade de superação
de um modelo administrativo e tal mudança é forçada pela unidade entre
sociedade civil e pelo Estado; 2. fazem a sociedade civil ganhar o caráter
de neutro, de uma totalidade caótica – teoria já criticada por nós nesse
texto – que unificada adere ao processo de apoio ao capitalismo e ao
desenvolvimento; 3. decidem privatizar e repassar patrimônio público
para o setor privado e migrar o setor privado para a administração,
confundindo mais ainda o mercado com o Estado e aprofundando o patrimonialismo;
4. trabalham o conceito de democracia dentro do capital, deixando claro
seus limites e não explicitando aquilo que seria democrático
[12]
. Mas isso não dá conta ainda do
conjunto de questões que envolvem o debate sobre administração, do ponto
de vista político e conceitual. Apresentam dois modelos que são alternativos
ao modelo brasileiro: a administração pública burocrática e a administração
pública gerencial. Afirmam que como conseqüência do modelo burocrático,
“o Estado volta-se para si mesmo, perdendo
a noção de sua missão básica, que é servir à sociedade”. Embora
esta nunca tenha sido a missão básica do Estado. No formato liberal,
predominante até a primeira guerra, mantinha-se uma estrutura mínima
segundo a lógica do individualismo, considerando que os interesses individuais
livremente desenvolvidos seriam harmonizados por uma
mão invisível, que garantiria também a livre concorrência. Nesse
período havia uma forte rejeição a qualquer tipo de intervenção estatal
na vida econômica. A política do laissez-faire
era garantir a livre concorrência e a propriedade privada do capital,
assim como o legítimo direito ao lucro e à exploração, sem que existisse
qualquer grau de ação estatal. Essa etapa do Estado capitalista na história
da humanidade tem seu predomínio no século XIX, mas persistiu até o
início do século passado. Não há uma relação direta, portanto, com o
modelo administrativo burocrático, que é uma visão weberiana
[13]
, um tipo ideal e não um formato real de organização
ou de sociedade. O mais estranho é que os estudiosos
do antigo MARE não conseguem firmar qual era o modelo predominante no
Brasil, se o patrimonial ou o burocrático. Mas vejam, tinha que ser
assim, pois a concepção metodológica e conceitual desses estudiosos
não permite a contradição como elemento chave de análise. Não há proponentes
nem defensores do modelo patrimonial. O que há, nesse caso, são visões
que podem ser aproximadas a partir de uma defesa de excesso de poder,
postura inclusive muito parecida com a que tem hoje o Governo de FHC.
É claro que o Brasil vive tanto um modelo quanto outro. O desenvolvimento
do capitalismo, principalmente a partir da década de 30 e depois nas
décadas de 50 e 60, trouxe contradições de toda a ordem, inclusive no
formato administrativo. Colocado na forma do texto o que ocorre é a
expressão de uma aparência de escolha entre um ou outro. Mas isso não
é possível nos limites do capitalismo brasileiro. Enquanto em nível
internacional podemos mostrar os vários regimes capitalistas, datá-los,
demonstrar o modelo estatal de forma mais precisa, no Brasil isso não
é possível. Houve uma mistura permanente, pela própria condição de formação
do capitalismo e das classes fundamentais, que alternou e fez simbioses
entre concepções liberais e marginalistas
[14]
. Portanto, do ponto de vista administrativo, cultural,
de posturas, o Estado era e é predominantemente patrimonialista e a
superação desse modelo, no país, demanda rupturas e não medidas disfarçadas
em discursos teóricos que têm como verdadeiro objetivo concentrar a
propriedade e ampliar o lucro dos capitalistas
[15]
. É claro que restará como “modelo
perfeito”, segundo a ótica do Governo, a imposição do modelo gerencial. Dizem
que tal formato “emerge na segunda
metade do século XX, como resposta,
de um lado, à expansão das funções econômicas e sociais do Estado e,
de outro, ao desenvolvimento tecnológico e à globalização da economia
mundial, uma vez que ambos deixaram à mostra os problemas associados
à adoção do modelo anterior”. O modelo anterior ao qual fazem referência
é o welfare state, mais conhecido
como Estado de Bem-Estar Social. Abramos parênteses para melhor explicitar
esse ponto. Esse modelo de Estado surge para
administrar a insuficiência do capitalismo e assim dar conta de uma
crise detonada em 1929. Representa também uma resposta, como alternativa,
ao modelo socialista que consegue uma grande expressão real, com capacidade
de disputa internacional, a partir da revolução Russa de 1917. Todavia,
tanto o Welfare State na Europa, quanto o New
Deal de Roosevelt, que teve
menor tempo de vida, não conseguiram resolver a crise do capital, que
recrudesceu pela exigência de aumento da margem de lucro dos próprios
capitalistas. Mas sem dúvida, tais políticas, pelo forte investimento
do Estado em setores sociais e sua significativa abrangência na área
econômica, acabaram firmando-se como um dos elementos de uma crise que
teve como resposta o modelo neoliberal. Conhecida como crise fiscal,
na verdade, essa crise alcançou grandes proporções, por estar implicada
ao desenvolvimento das forças produtivas e a uma nova disputa internacional
que redimensiona as potências centrais, também por dar um novo sentido
à multipolaridade
[16]
e recolocar a questão do lucro em um mundo predominantemente
(quase totalmente) capitalista. O paradoxo é que o modelo para superar
a crise do capital já nasce em crise e promove seu desenvolvimento em
um processo de genocídio internacional que reedita a possibilidade da
barbárie se os setores socialistas não colocarem a necessidade do socialismo
na ordem do dia. Fechando os nossos parênteses,
podemos voltar a nos questionar sobre o que é o modelo gerencial e suas
alternativas “milagrosas” para a sociedade. Segundo o PDRAE, o modelo
gerencial “deixa de se basear
no processo para se concentrar nos resultados”. Ou seja, metas,
números, quantidade, e como não poderia ser diferente, a lógica da produtividade.
Os serviços públicos devem ser sempre em grande escala, mas sempre com
qualidade, isso para nós é fundamental, pois reforça nossa
luta de hegemonia na sociedade. Entretanto, o Governo prefere a produtividade,
isto é, os resultados finais, independente do processo. Vamos e convenhamos,
isso é claramente uma discussão com o modelo Taylorista de administração.
A tentativa de superação do FORDISMO/TAYLORISMO se deu fundamentalmente
pelas montadoras, que representam o lugar privilegiado do operariado
industrial moderno. Nesse sentido, podemos dizer que a afirmação de
que eles importam racionalmente um modelo de administração distante
da realidade brasileira é incompleto, se não firmarmos que a origem
de tal formato se deu na fábrica, na linha de montagem, na produção,
ou seja, na propriedade privada do capital, onde a produção, o lucro
e a concentração são elementos constituintes fundamentais. Mas, talvez, o maior dos absurdos
é a idéia de que, através de um tal modelo gerencial de administração
pública, o Brasil sofrerá qualquer grau de desenvolvimento. Para haver
desenvolvimento, deve haver rupturas, saltos e superações, não é possível
um desenvolvimento apenas por continuidade. Mesmo que o modelo posterior
tenha elementos do modelo ulterior, isso não significa que a necessidade
de ruptura seja desconsiderada. Contudo, o Governo não apresentar esse
elemento, não deixar cair a máscara, é de se esperar tendo em vista
o seu compromisso com o FMI; o que, entretanto, causa estranheza é setores
da esquerda insistirem na defesa de teses que acabam não se diferenciando
qualitativamente do modelo apresentado por FHC. Isto ocasiona, como
estamos presenciando, uma onda de cooptação, aberta ou velada, resultante
dessa proximidade de visões. A maior parte da esquerda encontra-se
na defensiva ideológica, reduzindo seu programa ao combate ao neoliberalismo
e/ou à defesa de um “desenvolvimento com soberania nacional”. A base
teórica do desvio nacionalista está em não perceber que a “questão nacional”
é uma questão “burguesa” de per si. A defesa da Nação contra o imperialismo
pode ser algo extremamente progressista e revolucionário. Mas o mundo
pelo qual os socialistas lutam não é o de “nações-Estado”. Nesse sentido,
a “defesa da Nação” por parte dos socialistas sempre será uma missão
espinhosa e cheia de contradições. Além disso, há sempre o risco da
própria burguesia --mesmo essa burguesia entreguista e integrada que
temos no Brasil-- assumir arroubos nacionalistas e neutralizar a esquerda.
Isso aconteceu diversas vezes na história do Brasil e pode voltar a
acontecer. Para que isto não ocorra e para que possamos dar um salto
de qualidade, a esquerda brasileira deve romper com sua tradição programática
nacional-desenvolvimentista e adotar, programaticamente, o socialismo. As revoluções, em países periféricos
e/ou pré-capitalistas, foram, na verdade, assim como diz Gramsci sobre
a Revolução Russa, revoluções contra “O Capital”. Embora tenham adotado
muitas vezes um processo de revolução capitalista: longas jornadas;
trabalho infantil; remunerações baixas; controles intensos sobre a mão-de-obra;
proletarização forçada de camponeses, etc. Com isso se desenvolveram,
mas não conseguiram suplantar as potências centrais do capitalismo. Observamos então um processo de
cooptação progressiva da esquerda pelo capital, visto que esta não conseguiu,
entre as década de 50 e 70, na América e na Europa, impor uma luta política
no mínimo reformista, e acabou sendo protagonista do neoliberalismo. Boa parte dos socialistas vive
a polaridade entre o esquerdismo e o reformismo. De um lado, os esquerdistas
acham que cada conquista que os trabalhadores alcancem sob o capitalismo
constitui um estímulo a menos para a luta revolucionária. Já os reformistas,
com raciocínio similar, acham que a luta cotidiana pode impedir a revolução,
mas não o socialismo, que poderá ser produto dos pequenos acúmulos das
conquistas conjunturais. Parece que acreditam que os capitalistas ficarão
paralisados frente à perda progressiva da propriedade. Setores da esquerda
brasileira buscam ainda encontrar o lugar dos trabalhadores na ordem
neoliberal, como fizeram nas décadas de 50 e 60. No mínimo não identificaram
as mudanças.
O Aparelho de Estado e as Formas
de Propriedade: quando cai a máscara É nesse ponto que a máscara do
Governo cai. Ou seja, quando se reforça a argumentação que fizemos no
sentido de afirmar que o objetivo central está no aumento da taxa de
lucro e na alteração na forma de propriedade, que gerará uma maior concentração
da propriedade privada do capital.
Ao afirmar que o “Estado
é, portanto,.o poder de constituir unilateralmente obrigações para terceiros,
com extravasamento dos seus próprios limites”, fica claro que o
objetivo, na busca pela eficiência, eficácia e modernidade, de que tanto
falam, é o repasse das ações, serviços, responsabilidades e, junto com
tudo isso, do patrimônio e do pessoal originalmente estatal. Não há
outro nome para isso a não ser privatização. As diversas nomenclaturas
que vão surgindo no processo – publicização, contratualização, etc –
na verdade dizem respeito a tramites distintos para privatizar aquilo
que é público. No debate conceitual, as coisas
são mais difíceis de serem enxergadas, mas quando chegamos à proposta
concreta, que envolve a relação entre administração, ação do Estado,
prestação de serviços e formas de propriedades, fica mais fácil de constatar
o conjunto de argumentações colocadas aqui nessa contribuição. Segundo
o Governo há três formas de propriedades: a estatal, a pública e a privada.
As empresas estatais, todas, sem exceção, devem ser privatizadas como
no novo modelo. Já instituições como Universidades, Hospitais, Museus,
Centros de Pesquisa, devem ser movimentadas para o setor público não
estatal. Caberia à propriedade estatal, portanto, apenas o núcleo burocrático
(Legislativo, Judiciário, Presidência, Cúpula dos Ministérios e Ministério
Público) e as atividades exclusivas (Regulamentação, Fiscalização, Fomento,
Segurança Pública, Seguridade Social Básica). A ressalva é que as atividades
exclusivas terão o modelo administrativo gerencial e por isso transferirão
as modificações para Agências Executivas, mesmo sendo de propriedade
estatal, pois todo serviço auxiliar, em qualquer esfera, será terceirizado
e, em alguns casos, repassado através do contrato de gestão. O contrato
de gestão assume então uma forma estratégica de repasse do patrimônio
e de pessoal para um setor paralelo chamado, no Plano Diretor, ou de
Agência Executiva (no que diz respeita as atividades exclusivas) ou
Organizações Sociais ( no que diz respeito aos serviços não exclusivos),
além de induzir à modificação é claro o contrato de trabalho. Trata-se, decerto, de um processo
de privatização. Aquilo que não é estatal, que é chamado de público,
que tem estatuto próprio de formato privado, mesmo “sem fins lucrativos”,
faz parte do setor privado. Vide os modelos de ONG’s. Esses modelos
de Organização Não Governamentais não são
outra coisa que propriedades privadas, as quais acabam ocupando
o vazio e a insuficiência do Estado e contribuindo, com todas as contradições,
para as mudanças principais que vêm ocorrendo nesse período. De qualquer forma, o mais importante
para nós era mostrar a argumentação teórica e política que justifica
um processo progressivo, velado ou não, de transferência da ação do
Estado para o setor privado. Tal movimentação é chamada de privatização,
mas apenas no que diz respeito às estatais. No campo dos serviços, o
objetivo é esvaziar o estado, diminuir os investimentos sociais, repassar
o que interessa para iniciativas privadas e, em outros setores, trazer
a iniciativa privada, na lógica ou na pessoa física dos capitalistas
que podem ser responsáveis pelo contrato de gestão, para dentro da esfera
estatal. Nesse sentido, afirmamos que o contrato de gestão assume papel-chave,
fundamental, principal, na destruição dos serviços públicos e na constituição
de uma Administração Pública cada vez mais patrimonialista, concentrada,
e que esvazia, também pela lógica do orçamento, a ação do Estado nas
esferas sociais.
Sugestão de Alternativas para os
Trabalhadores É claro que: uma superestrutura
recheada amplamente de aparelhos privados de hegemonia e profundamente
mínima em propriedades estatais; uma superestrutura com profissionais
precarizados, terceirizados, desqualificados (propositalmente) e sustentada
na ideologia do voluntariado (portanto, intensamente diminuída de profissionais
qualificados); uma superestrutura voltada para circulação dos valores
de troca, que impõe uma burocracia estatal que se confunde com um “balcão
de negócios” e voltada para a ação dos aparelhos repressivos (voltada
para a prática da vigilância, da regulamentação, do controle, da intermediação
e esvaziada em sua capacidade de ação); tem como conseqüências, ao mesmo
tempo, a profunda retirada de direitos sociais (rebaixamento da qualidade
de vida) e o enfraquecimento a capacidade de disputa de hegemonia da
classe. A substituição da qualidade (uma das caracterizações do valor
de uso) pela quantidade (uma das caracterizações do valor de troca)
impõe a mercantilização e a supremacia máxima do lucro. A compreensão do exposto acima,
nos leva ao entendimento de que não é possível discutir as mudanças
no setor público, sem debater as marcas fundamentais do capital: a propriedade
privada, o lucro, a mercadoria, as relações sociais de produção e as
forças produtivas. Apenas um debate administrativista, burocrático,
não é suficiente para cumprirmos dois desafios centrais: a) superar
as bases teóricas da literatura acumulada sobre o tema em questão, principalmente
no que diz respeito ao serviço público e a administração pública e b)
oferecer bases de reflexão que sirvam como guia para as mudanças da
realidade social, sob a ótica dos trabalhadores. O diálogo sobre serviço
público não pode acomodar-se nas águas das teorias liberais, jus naturalistas,
positivistas, que se respaldam nas idéias de neutralidade estatal e
sustentam-se no conceito de Estado de Direito. Seria profundamente equivocado,
tanto do ponto de vista da teoria, quando do ponto de vista da prática
– que se pretende transformadora – desenvolver a discussão da classe
apoiada em formulações antagônicas. Por outro lado, não podemos cair
no equívoco, muitas vezes repetidos, das simplificações. A práxis simplificadora
nos leva na repetição de ações que se afastam da autocrítica, pois confortam-se
em formulações principistas. Tal equívoco nos leva a desprezar as diferenças,
a correlação de forças, as especificidades, a tende fazer-nos reproduzir
os mesmos equívocos positivistas. Nesse sentido, sugerimos três elementos
fundamentais para compor uma estratégia de luta: a) Numa perspectiva mais geral,
o estabelecimento de um arco de aliança com a esquerda brasileira na
resistência ao neoliberalismo. Os servidores precisam se firmar como
um dos agentes fundamentais de luta nesse período e participar ativamente
das diversificadas ações da classe trabalhadora, resistindo ao neoliberalismo,
assumindo bandeiras gerais e de outros setores explorados e denunciando,
permanentemente, o que ocorre nos serviços públicos e na Administração
Pública, apresentando assim suas bandeiras específicas; b) A disputa de hegemonia na sociedade.
Principalmente se levamos em conta que o projeto apresentado pelo Governo
em 1995 e aqui discutido já cumpriu, duas das suas etapas estratégicas
que diziam respeito a preparação das bases para alterações legais e
institucionais e as próprias Reformas Constitucionais. Além disso, avançaram
em muitas mudanças através de Medidas Provisórias, Decretos Leis e Leis.
Nesse momento, no entanto, havia uma razoável sustentação social para
ocorrer as transformações. Entretanto, após as greves de 2000 e 2001
iniciou-se uma movimentação social, na qual, foi fragilizado em muito
o apoio ao Governo e fortalecido, razoavelmente, o apoio para os servidores.
Isso exige, dos servidores uma ação imediata que combine dois movimentos:
de um lado, a construção do projeto e, de outro, o convencimento da
maioria da população. O projeto não pode se resumir ao debate administrativista,
deve, necessariamente, indicar mudanças na forma de propriedade no Brasil,
questão fundamental para alterar as condições e o papel do Estado a
favor dos setores explorados. Para isso, no entanto, é necessário pautar
novamente, como prioridade, o debate sobre o Estado e o Serviço Público
em nível nacional. O primeiro passo seria a criação de um fórum permanente
sobre Serviço Público na Câmara Federal
[17]
, atraindo os partidos de esquerda, organizações de
tradição democrática (OAB, CNBB, ABI, DIAP etc), entidades organizativas
de luta (UNE, UBES, MST, etc) e parlamentares que apóiem o debate. Para
ter êxito, tal fórum deve ser convocado pela CUT e CNESF além de assimilar,
em sua organização e coordenação, os Partidos de esquerda e o Fórum
de Lutas. c) Retomar a capacidade de mobilização
e luta sindical, operando a organização por local de trabalho de forma
permanente e convocando uma grande greve do setor que possa ter conseqüência
em uma grande greve geral (ou no mínimo ser combinada com uma grande
greve geral). O debate sobre organização sindical deve ocorrer com capacidade
de aprofundar diferenças que há no setor. Aparentemente, há compreensões
distintas sobre a caracterização dos servidores como um setor da classe
trabalhadora (tanto pelos que acham que os servidores compõem vários
setores da classe trabalhadora, quanto para os que acham que há vértices
mais fortes de unidade não pelo vínculo de trabalho, mas, mais precisamente,
pela função que desempenham ou ocupam). No fundamental, o pacote antigreves
editado em 13 de novembro de 2001, pelo Governo Federal, exige uma resposta
imediata, que do nosso ver, deve apresentar-se através da radicalização
da luta de massas e do movimento grevista.
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