Ano I - Nº 02 - Julho de 2001 - Bimensal - Maringá - PR - Brasil - ISSN 1519.6178

 

A Gíria Como Participante da Língua Portuguesa

O Falar Brasileiro

Leo Marcos José da Silva*

Resumo:
A formação da língua portuguesa, no Brasil, passou por diversos processos, os quais contribuíram para a criação de um acervo bastante amplo de expressões que nos possibilitam a comunicação diária. Um dos principais grupos de palavras que compõem a nossa língua são as gírias, objeto da nossa apresentação.

A língua portuguesa, no Brasil, é provida de alguns tipos de linguagem praticados pelas diversas classes sociais que compõem a sociedade brasileira. Entre estes tipos, para a composição deste artigo, tomamos como destaque as gírias, que se traduzem como linguagem usual participante do cotidiano das pessoas, e também como modismos lingüísticos e linguagem das ruas. Esta forma de comunicação abriga termos que nascem de solecismos, vícios de linguagem, neologismos, bordões, palavrões e calões.

Por apresentar uma grande praticidade quando da comunicação informal, a gíria tem crescido no “falar brasileiro”, chegando ao ponto, segundo pesquisas, de ser a segunda língua do país. Esta grande propagação se deve, principalmente, à prática constante desta linguagem por diversas “tribos urbanas”, que a utilizam como sendo uma das armas da comunidade a que pertencem.

Muitas gírias são comuns a toda sociedade, porém outras são mais específicas de cada grupo. Procuraremos, ao longo deste trabalho, estabelecer uma separação entre estas e aquelas para que se torne mais compreensível qual a importância de cada uma para o “falar brasileiro”.

A gíria, no Brasil, tem um acervo de mais de 50 mil palavras, e a cada dia recebe um número maior, devido às diversas criações feitas pelas “tribos” que a difundem. Vários escritores se preocuparam em criar dicionários específicos deste tipo de linguagem. Entre eles, destacam-se Manuel Viotti (1957), Amadeu Amaral (1922) e Elysio de Carvalho (1912).

As referências sobre gírias percorrem os anos. Em Portugal, temos, no século XVI, Gil Vicente e Jorge Ferreira de Vasconcelos que se preocuparam com elas. Depois, no século XVII, Dom Francisco Manuel de Melo; no século XVIII Pe. Rafael Bluteau e Manoel Joseph Paiva.

O primeiro Dicionário de Gíria publicado no Brasil foi o Dicionário Moderno, em 1903, com 1.700 verbetes, de José Ângelo Vieira de Brito, o Bock, que entre tantas atividades exercidas foi Senador da República. Permaneceu desconhecido do grande público e dos estudiosos até 1984, quando foi resgatado pelo prof. Dino Pretti, da USP, que o incluiu no seu livro. Não tem o nome de Dicionário de Gíria, mas serve de referência, por conter a gíria falada no Rio de Janeiro, então Capital da República. Há quem, afirme, entretanto, que o primeiro Dicionário de Gíria publicado no Brasil foi o de Romanguera, sob o título Vocabulário Sul Riograndense, de 1898, que tende mais a ser um Dicionário de Regionalismos.

O Dicionário Moderno antecedeu à Geringonça Carioca, de Raul Perdeneiras, de 1910, embora lançado em 1922, e Gíria dos Gatunos Cariocas, de Elysio de Carvalho, de 1912 mencionado no Jornal da Gíria, Edição 006, de Maio de 2000. Os primeiros verbetes de Bock foram publicados em 1902, em O Coió, que era um hebdomadário ilustrado e humorístico que circulou em 1901 e 1902, no Rio de Janeiro.

Vejamos algumas gírias de 1903, gírias próximas do centenário, o que comprova que esta é uma linguagem bastante viva: abundância (nádegas); babão (boquiaberto); brocha (sem disposição sexual); bolachas (nádegas); cantar (tentar conquistar com galanteios); canudo (diploma); divina (linda); embandeirado (ornamentação adulterina); enfeite (ornamentação adulterina); enrabichar (ter paixão); galho (ornamentação adulterina); gostosa (mulher de alta cotação); lábia (astúcia); lesar (prejudicar); luneta (óculos); maciota (devagar para não doer); notório (conhecido); ostra (mulher velha); patroa (dona de casa); pingolão (mulher grande); protuberâncias (nádegas); quarentona (mulher velha); sapeca (namoradeira); trepar (fazer sexo); vaca (mulher de altas qualidades); xadrez (cadeia); zona (prostíbulo); zorra (confusão).

Estas são algumas das gírias usadas num passado não muito distante e que se perpetuaram até os dias de hoje. É comum, por exemplo, usarmos vocábulos como zorra para indicar uma certa confusão. Ou então zona para nos referirmos a um lugar onde se pratica o sexo livre. Percebe-se, a partir de então, que a gíria é uma linguagem comum a todo e qualquer cidadão, lembrando, é claro, que se trata de linguagem informal.

Neste trabalho, apoiamo-nos em um dos mais recentes dicionários de gírias, escrito por Raimundo Magalhães, o Dicionário de Curiosidades Verbais, e também coletamos algumas das gírias mais usadas pela sociedade, as quais seguem numa relação contendo a gíria, seu conceito original e seu conceito como gíria. [1]

a.za.ra.ção [de ‘azar’ = acaso, sorte] s.f. 1. Ato de azarar, paquera; 2. Situação ou lugar propícios para paquera; 3. Reunião de pessoas dispostas a paquerar e serem paqueradas. § a.za.rar v.t.dir. e a.za.ra.dor adj.

ba.ba.ca [or. inc., prov. de ‘babão’ ou ‘babar’] adj. e s.m. 1. (Indivíduo) bobo, tolo, crédulo; mané; otário; pato; 2. (Indivíduo) Estúpido, truculento, antipático; escroto; péla-saco; otário; vacilão; 3. (Indivíduo, coisa) infantil, bobo, sem propósito, sem graça; escroto; Interj. 4. Ofensa de conotação altamente depreciativa. § ba.ba.qui.ce s.f.

bar.ro [de ‘barro’] s.m. 1. Excremento, fezes; 2. Lugar lamacento. 3. sol.tar ou li.be.rar um bar.ro: Defecar, excretar, sujar a porcelana.

ca.ra [rosto, face, roupa cara] s.m. Tratamento dado a um colega de turma ou a qualquer outra pessoa.

ca.va.la [de ‘cavala’ = certo peixe] s.f. Mulher imponente e atraente; peixão. Aum. cavalão ou cavalona.

ca.ver.no.so [de ‘cavernoso’ = profundo, cavo] adj. 1. Antigo ou esquecido; das trevas; do limbo; 2. Longínquo ou de difícil acesso; 3. Desconhecido, estranho, medonho; sinistro; trash; lombrado.

chu.pa.do [de ‘chupar’ = sugar, sorver] adj. 1. Magérrimo, esquelético; raio-x; 2. Que emagreceu bruscamente.

dar [de ‘dar’ = ceder, entregar] v.t.indir. e int. 1. Entregar-se sexualmente; 2. dar em bola: (fut.) tocar na bola; 3. dar com os burros n’água: Fracassar; 4. dar com a cara na porta: encontrar fechada determinada entrada; ser barrado; 5. dar em gol: (fut.) chutar para o gol; 6. dar uma ou umazinha:: fazer amor em um curto espaço de tempo; 7. dar uma de: fazer as vezes de, passar por.

des.mu.vu.car [de ‘muvuca’ = confraternização] v.int. 1. Dispersar; 2. Organizar(-se).

es.pa.da [de ‘espada’ = arma branca com um ou dois gumes] adj. Macho, viril.

fa.ro.fa [de ‘farofa’ = alimento acompanhante] adj. 1. Que está sempre por perto da moça pretendida, sem nunca conquistá-la; arame; liso; 2. Parente ou amigo que acompanha a moça, impedindo ou dificultando que seja galanteada; arroz; 3. (praia) Reunião de farofeiros; 4. Confusão, falatório; muvuca.

ga.le.ra [de ‘galera’ = embarcação de guerra a remo] s.f. 1. Grupo de pessoas; negada; mulão. 2. Grupo de funkeiros de uma mesma comunidade, em especial no RJ, que se reúnem nos fins de semana para ir aos bailes se divertir ou brigar com galeras rivais. Dim. galerinha. Aum. galerão.

gi.le.te [de ‘gilete’ = lâmina para barbear] adj. s.m e f. Aquele que se relaciona com ambos os sexos, bissexual. Aum. masc. e fem. giletão e giletona.

i.ra.do [de ‘irado’ = que tem ira, enraivecido] adj. 1. Bom ou de boa qualidade; sinistro; maneiro; demais; show; dez, do mal. 2. Que é bom naquilo que se propõe a fazer. Aum. iradaço.

li.so [de ‘liso’ = sem asperezas] adj. 1. Sem dinheiro ou objetos de valor; duro; na lona; 2. (crim.) Desarmado; 3. (crim.) Sem objetos comprometedores; 4. Que não consegue conquistar as mulheres; pega-ninguém; 5. (fut.) Que é rápido e se livra com facilidade da marcação adversária; ensaboado.

ma.né [apelido de Manoel] adj. 1. (Indivíduo) bobo, tolo, crédulo; babaca; otário; pato. 2. (Indivíduo) covarde, fraco; furingo; bundão; 3. Tratamento que se dá a quem cujo nome é ignorado; cara; fulano; coisinha. 4. Tratamento entre amigos; choque; irmão. Dim. manezinho. Aum. manezão.

ma.nei.ro [provém de ‘mano’] adj. 1. Bom ou de boa qualidade; sinistro; irado; demais; show; dez; do mal. 2. Que faz coisas impecáveis, quase perfeitas.

man.jar [de ‘manjar’ = comer] v.t.dir. 1. Prestar atenção, dar importância; sacar; 2. Vigiar, bisbilhotar; 3. Verificar, avaliar. Indir. ou int. 4. Entender, compreender; sacar. 5. Conhecer, dominar (assunto, esporte etc.); sacar. Int. 6. Ficar vulgar, cafona, sem graça (vestuário, piada, novidade); ficar batido. § man.ja.do adj.

ma.no [do hisp. ‘hermano’ = irmão] adj. 1. Amigo fraterno, companheiro. Adj. e s.m. 2. (black) Indivíduo digno de respeito ou confiança. 3. (black) Negro ou filho de negros em relação a indivíduo de mesma raça ou mestiçagem. É comum usar em SP no dim. maninho. Fem. mana.

ma.rom.bei.ro [de ‘marombar’] adj. e s.m. 1. Afixionado em fisicultura. 2. Musculoso, malhado; sarado; parrudo; marombado. 3. Freqüentador de academia.

mas.sa [de ‘massa’ = pasta; mistura] s.f. 1. Músculos. 2. Indivíduo musculoso. 3. (constr.) Mistura dosada de cimento, areia (e/ou barro) e água, de múltipla utilidade em construções de alvenaria. Adj. 4. (Bras./SP) Expressão comum em SP, MG, DF e capitais do NE, equivalente a sinistro, no RJ. 5. virar massa: Misturar, utilizando uma enxada, cimento, areia (e/ou barro) e água, até obter uma pasta consistente.

on.da [de ‘onda’ = variação periódica de intensidade] s.f. 1. Corrente, tendência, moda. 2. Jactância, gabação, ostentação; marra; banca; graça. 3. Zombaria, menosprezo, desrespeito. 4. A melhor coisa a se fazer. 5. Preferência, gosto, graças (usado no pl.). 6. Aparência, fachada. 7. Debilidade provocada por embriaguês ou consumo de drogas; maresia; marola. 8. fazer onda: Fingir. 9. nas ondas: Nas graças, no gosto, na preferência. 10. tirar (uma) onda: Ostentar superioridade ou riqueza; gabar-se, jactar-se, vangloriar-se; fazer graça; botar banca; zombar, desrespeitar ou rebaixar alguém; fazer-se parecer com algo ou alguém que não é.

pe.da.ço [de ‘pedaço’ = parte, fragmento] s.m. 1. Local, lugar, ambiente. 2. Hora, período, situação. 3. Este lugar. 4. pedaço de mau caminho: mulher muito bonita e atraente. 5. Dificuldade, flagelo. 6. carne nova no pedaço: Mulher bonita que é novidade no local.

pei.dar [de ‘peidar’ = expelir gases flatulentos] v.t.indir. ou int. 1. Hesitar, desistir, render-se; arregar; foringar. 2. Amedrontar-se, acovardar-se, fugir, escapar; arregar; furingar. 3. Vacilar.

po.po.zu.da [de ‘popô’ = nádegas] adj. (Mulher) de belas e generosas nádegas; tanajura; raimunda.

quei.mar [de ‘queimar’ = incendiar] v.t.dir. 1. queimar o filme: prejudicar moralmente. 2. (crim.) Matar a tiros; sentar o dedo. Int. 3. (crim.) Atirar com arma de fogo, disparar. 4. (crim.) queimar uma erva ou queimar uma pedra: fumar cigarro de maconha ou cachimbo de crack. 5. (fut.) Chutar para o gol; disparar. 6. queimar a largada: em alguns esportes (atletismo, natação, automobilismo etc.), antecipar-se ao sinal da largada. 7. queimar a cara: Dizer ou fazer qualquer coisa que prejudique a própria imagem.

ra.la-e-ro.la [de ‘ralar’] s.comp. Coito, transa, ato sexual; deita-e-rola; ralação.

ra.lar [de ‘ralar’ = fragmentar usando ralador] v.t.dir. 1. Sofrer ferimento em determinada parte do corpo friccionando esta parte em superfície áspera [Ralou o joelho na calçada]. 2. Pressionar e roçar o corpo no da parceira e acariciá-la com beijos e toques, provocando prazer; dar um(uns) amasso(s) em. 3. Possuir sexualmente a parceira; furar; socar; comer. 4. Trabalhar pesado. 5. ralar peito: partir, ir embora; vazar; chegar. 6. (crim.) Fugir, correr, escapar. 7. Red. de ralar o pinto, roçar a região genital (em outra região genital); sarrar. 8. Manter relações sexuais. § ra.la.ção s.m, ra.la.do adj. e ra.la.dor adj. e s.m.

ro.lar [de ‘rolar’ = fazer girar] v.int. 1. Acontecer, ocorrer. 2. Ser possível. 3. Ser ideal ou recomendável. 4. Ser dito, comentado. 5. deitar e rolar: Aproveitar(-se) (de) algo; Divertir-se. 6. deixar rolar: Não se preocupar, relaxar, entregar-se.

sa.ra.do [de ‘sarar’ = curar] adj. 1. Com o corpo bem definido. 2. Musculoso, malhado; anabolizado; bombado; marombado. 3. Aparentemente saudável, com excelente aspecto. Aum. saradão ou saradaço.

se.car [de ‘secar’ = enxugar] v.t.dir. 1. Invejar. 2. Agourar. 3. Lançar olhares em direção de, sentir-se atraído por. 4. Cobiçar, desejar. 5. Emagrecer brusca ou exageradamente.

show [xou] [apresentação] adj. 1. Bom ou de boa qualidade; sinistro; maneiro; irado; demais; dez; do mal. 2. Que age ou realiza bem; 3. (funk) Amigo, simpático, respeitador; sangue bom; irmão. 4. (funk) Tratamento destinado a amigos; sangue bom; choque; irmão. 5. show de bola: muito bom; sinistro; S.m. 6. Ação ou realização irretocável; baile. 7. Vexame, constrangimento; queimação de filme. Dim. showzinho. Aum. showzão; 8.dar show: atuar de forma irretocável; dar baile ou dar um baile; dar vexame, passar ou causar constrangimento; perder a linha; se queimar.

si.nis.tro [de ‘sinistro’ = funesto, agourento] adj. 1. Bom ou de boa qualidade; maneiro; irado; demais; show, dez, do mal. 2. Que age ou realiza bem; 3. Desconhecido, estranho, medonho; lombrado; cavernoso; trash. 4. Perigoso, difícil, complicado; 5. Esquisito, nebuloso, incompreensível; 6. Impressionante, fascinante. 7. Exagerado ou em grande quantidade.

trash [do ang. ‘trash’ = lixo] adj. 1. Desconhecido, estranho, medonho; lombrado; sinistro; cavernoso. 2. Perigoso, difícil, complicado; sujo; 3. Esquisito, nebuloso, incompreensível; 4. Ruim, de má qualidade; escroto.

va.ci.lão [de ‘vacilo’] adj. 1. (funk.) Tratamento que se dá a aliado ou simpatizante da galera rival; alemão. 2. Que bobeou. Adj. e s.m. 3. (Aquele) que vacila, sacana; escroto; otário; xis-nove. 4. (funk.) (Indivíduo) antipático, desagradável; otário. 5. (funk.) Nos bailes, o simpatizante ou aliado da galera rival; alemão. Ant. sangue bom. Fem. vacilona.

A partir desta apresentação, não há como negar que o nosso “falar brasileiro” é bastante recheado destes vocábulos informais, que a cada dia crescem de forma estupenda. As ruas é o lugar mais propício para a propagação desta língua específica das “tribos urbanas”.

Essa criação exagerada de gírias se dá devido à grande necessidade que a sociedade tem de se comunicar de forma mais fácil e prática, sem agregar formalidades em ambientes informais. E para cada ambiente, emprega-se um tipo de gíria, o que explica o número extraordinário delas.

É assim que se constrói a nossa linguagem. Não somente através da língua portuguesa, a última flor do Lácio, em sua apresentação formal, mas também de regionalismos, estrangeirismo (importações vocabulares de outras línguas), expressões do cotidiano e, principalmente, de gírias, esta linguagem informal que é característica do “falar brasileiro”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GURGEL, J. B. Serra e. Dicionário de Gíria - Modismo Lingüístico, o equipamento falado do brasileiro, 6ª edição. Belo Horizonte, Saraiva, 1998.

MAGALHÃES JR., Raimundo. Dicionário de Curiosidades Verbais. São Paulo, Ediouro.

PINTO, Edith Pimentel. O Português Popular Escrito. São Paulo, Contexto, 1996.



* Acadêmico do 5º Ano do curso de Graduação em Letras Português/Francês, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de Maringá.

[1] O leitor perceberá, no decorrer da explanação de cada gíria, que esta é feita utilizando vocábulos próprios da língua portuguesa e também vocábulos próprios desta linguagem. Isto contribui para que se faça a associação entre as palavras componentes deste tipo de linguagem e a linguagem formal.