NILDO VIANA
Professor da UEG – Universidade Estadual
de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB; Pós-Doutorando em Psicologia da
Educação pela PUC-SP.
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Educação, Sociedade e Autogestão Pedagógica
Nildo Viana
Resumo:
O presente texto discute a autogestão pedagógica no interior de uma
visão da totalidade marcada pela relação entre educação e sociedade.
Neste sentido, faz inicialmente uma discussão breve e preliminar
sobre educação e sociedade, e, posteriormente, discute as teses da
Análise Institucional sobre autogestão pedagógica. Por fim,
apresenta uma breve crítica e algumas considerações sobre a
pedagogia autogestionária e as possibilidades da autogestão
pedagógica, bem como sua relação indissolúvel com a autogestão
social.
Palavras-chave:
Educação, Sociedade e Autogestão Pedagógica
Education, Society
and Pedagogical Self management
Abstract: The present
text argues the pedagogical self management in the interior of a
vision of the totality marked for the relation between education and
society. In this direction, it makes initially a brief quarrel and
preliminary on education and society, and, later, it argues the
teses of the Institucional Analysis on pedagogical self management.
Finally, it presents one critical briefing and some considerations
on the pedagogy managemental and the possibilities of the
pedagogical self management, as well as its indissolvable relation
with the social self management.
Key words:
Education, Society and Pedagogical Self-Management |
O presente trabalho tem como objetivo
inserir a discussão sobre a autogestão pedagógica no interior de uma
análise mais ampla, que é a da relação entre educação e sociedade.
Iremos, inicialmente, para concretizar este objetivo, realizar uma
análise da relação entre educação e sociedade e, posteriormente,
observar como a questão pedagógica se insere neste contexto mais amplo,
até chegar à discussão referente à autogestão pedagógica.
1. Educação e Sociedade
O sociólogo Emile Durkheim (1978) define
educação como o processo de socialização a que os indivíduos são
submetidos. Esta definição de educação nos parece a mais correta, embora
muitos possam considerá-la ampla demais e isto não signifique concordar
com as bases e outras teses deste autor. Entretanto, tal definição
consegue expressar o essencial do fenômeno e a amplitude que muitos vêem
no conceito é apenas o resultado de uma concepção restrita de educação,
que é a da ideologia dominante em nossa sociedade. Embora tal definição
também possa ser assimilável pela ideologia dominante, em cujo seio
brotou, ela também pode ser assimilada por uma concepção crítica, tal
como fazemos aqui Isto, no entanto, não significa concordar com as teses
e valores de Durkheim, ou seja, extraímos apenas a definição de educação
deste autor.
A educação em nossa sociedade é concebida
de forma burocrática, ou seja, como estando indissoluvelmente ligada a
uma instituição (a escola) e aos responsáveis pela “transmissão do
saber” (os professores) e também aos seus “receptores” (os alunos).
Assim, o vocabulário desta concepção de educação apresenta alguns termos
básicos que refletem seu caráter burocrático, tais como os de ensino,
aprendizagem, transmissão, escola, etc. A burocracia é uma relação
social no qual se colocam, frente a frente, dirigentes e dirigidos, numa
relação hierárquica e mediada por um processo de dominação. A idéia de
transmissão expressa uma relação burocrática, no qual existe o
transmissor e o receptor, e cabe a este a aprendizagem, isto é, realizar
o papel de receptor da transmissão daquele. A escola é uma organização
burocrática (TRAGTENBERG, 1988) na qual estas relações se manifestam e
são regularizadas burocraticamente, através da hierarquia funcional.
Para compreendermos o significado da
concepção de educação como socialização, devemos nos remeter à história.
Nas sociedades pré-históricas e nas sociedades indígenas, não existiam
escolas e nem professores, mas o processo de socialização ocorria e para
um indivíduo desenvolver sua consciência (ou “conhecimento”) era
suficiente sua convivência social e sua relação com o meio ambiente,
mediada pelas relações sociais. Nas sociedades de classes
pré-capitalistas (escravismo, feudalismo, modo de produção tributário),
também não existiam instituições especializadas no “ensino” e o processo
de socialização ocorria naturalmente, a não ser em casos bastante
limitados e especializados, atingindo pequenas minorias e de forma
radicalmente diferente das atuais instituições escolares.
É com a sociedade capitalista que surge a
educação formal e, derivada dela, a concepção burocrática da
educação. Nas sociedades de classes, a socialização é uma
socialização repressiva e coercitiva, pois ela prepara o indivíduo
para viver no interior de uma sociedade igualmente repressiva e
coercitiva, buscando formar os estudantes para executar e desejar
determinadas atividades, idéias, valores, etc. (VIANA, 2006. Todo modo
de produção específico cria seu próprio modo de educação. Este
modo de educação faz parte das formas de regularização da vida social,
em todas as sociedades (VIANA, 2007). O modo de educação
capitalista é burocrático, ou seja, se caracteriza por
implantar uma educação formal. Isto é produto das necessidades do modo
de produção capitalista O modo de produção capitalista tem como
fundamento a produção do mais-valor (ou “mais-valia”). O proletariado é
a classe que, através do seu trabalho, acrescenta mais-valor às
mercadorias. A burguesia é a classe social que se apropria desse
mais-valor e que serve à reprodução do capital (MARX, 1988,
trata-se de uma relação de exploração, onde a classe capitalista explora
a classe trabalhadora. Devido a esta exploração, surge a luta de classes
entre a burguesia e o proletariado. Para manter a sua dominação de
classe, a classe capitalista precisa manter o controle do proletariado
através de um conjunto de instituições burguesas, onde se destaca o
estado, a principal forma de regularização das relações sociais no
capitalismo.
O capitalismo aprofunda a divisão social
do trabalho, desenvolve a tecnologia e produz uma burocratização das
relações sociais, bem como sua mercantilização. Isto tudo cria a
necessidade de se criar uma instituição voltada para a preparação da
força de trabalho e para a produção e reprodução da ideologia dominante.
Esta instituição deve atuar desde os níveis mais básicos aos superiores
e seu objetivo é reproduzir as representações ilusórias da realidade e
preparar o indivíduo para a integração na sociedade burguesa e no seu
lugar de classe específico, o que produz diferentes tipos de escolas
para diferentes classes sociais. Tal instituição é a escola. A escola,
como todas as instituições burguesas, é controlada, direta ou
indiretamente, pelo estado capitalista. Os meios que ele utiliza para
isto são vários: legislação educacional, convênios, etc. Nas escolas
estatais (“públicas”), assim como nas escolas privadas, a burocracia
escolar controla a instituição visando manter a ordem estabelecida pelo
estado capitalista.
Portanto, a escola é uma instituição
burguesa que tem como objetivo colaborar com a reprodução do modo de
produção capitalista.
Trata-se de uma instituição burguesa não só em seus objetivos
(reproduzir a sociedade capitalista), mas também no seu próprio
funcionamento: a alienação, a corrupção, a competição e as demais
características da sociabilidade capitalista estão presentes na
escola.
O elemento fundamental da sociabilidade
capitalista que se reproduz na escola é a alienação. Em síntese, pode-se
definir alienação como uma relação social caracterizada pela
heterogestão, ou seja, pelo controle da atividade de um indivíduo por
outro. A alienação, na nossa sociedade, surge nas relações de produção
capitalistas, onde o trabalhador é dirigido pelo não-trabalhador e,
graças a isto, perde o controle do seu trabalho e, conseqüentemente, do
produto do seu trabalho, que é apropriado por aquele que o dirige. Na
escola, existe uma rede complexa de alienação, onde a burocracia escolar
é dirigida pelo capital e pelo estado, os professores e funcionários
pela burocracia escolar e os alunos, na sala de aula, pelos professores,
e fora dela, pela burocracia escolar. Assim, a educação formal vive sob
o signo da alienação.
Os professores são treinados e preparados
não para colaborar com o desenvolvimento da consciência e criatividade
dos alunos e sim para exercer o controle sobre elas. Cabe aos
professores, na sala de aula, formar a força de trabalho e o “cidadão”
desejáveis à sociedade capitalista. Para alcançarem êxito nesta missão,
se cria uma ideologia e um conjunto de técnicas, que é a Pedagogia.
2. Pedagogias Críticas e seus limites
Portanto, é neste contexto social que se
deve compreender a gênese e o papel da pedagogia na sociedade
capitalista. Ela surge juntamente com várias outras disciplinas
(psiquiatria, criminologia, antropologia, sociologia, etc.) que visam
servir à reprodução do modo de produção capitalista. Entretanto, cada
uma dessas disciplinas exerce tal papel de forma especializada,
voltando-se para aspectos parciais da realidade social. A divisão
capitalista do trabalho produz uma divisão no trabalho intelectual. As
conseqüências disso são várias: especialização do profissional em cada
área, o que condiciona a mentalidade deste, que se torna um antropólogo,
um geógrafo, um sociólogo, um economista, um pedagogo, etc., e que
devido a isso passa a ver o mundo com as lentes de sua disciplina e usar
os termos que lhe são próprios; tal como Marx colocou, cada um passa a
ver sua profissão como a “verdadeira profissão” (MARX e ENGELS, 2002); o
profissional se torna um especialista sem percepção da totalidade da
sociedade (ou então submete esta totalidade aos parâmetros de sua
disciplina), elegendo este aspecto parcial da realidade que é o objeto
de sua disciplina como o mais importante da sociedade e como o ponto de
partida para a resolução dos problemas sociais. Assim, estes saberes
parcelares que constituem as disciplinas criam um recorte e isolamento
de aspectos da realidade social e ao fazê-lo, justificam sua existência
e desembocam no tecnicismo e na produção de ideologias, axiologia,
práticas e técnicas visando cumprir o seu papel na divisão social do
trabalho intelectual e geral. Cada disciplina cria os seus valores,
linguagem, etc., perdendo de vista a totalidade das relações sociais
(VIANA, 2002).
Isto tudo é confirmado em nossa vida
cotidiana. Até mesmo nas brincadeiras de estudantes (que ainda não são
profissionais) se observa que os termos da disciplina especializada de
cada um estão presentes. Além disso, é bastante fácil ver um economista
dizer que a resolução dos problemas sociais só ocorrerá através de uma
nova política econômica ou um pedagogo dizer que isto só ocorrerá
através da “educação”.
Entretanto, a sociedade capitalista é
contraditória por natureza e esta contradição se reflete em todos os
campos da vida social (nas universidades, ideologias, disciplinas
científicas, escolas, etc.) e inevitavelmente, estão presentes também
nas “teorias” e práticas pedagógicas. Ao lado das diversas formas de
pedagogias conservadoras surgem as pedagogias consideradas críticas,
como, por exemplo, a pedagogia do oprimido (Paulo Freire), a pedagogia
radical (Giroux), a pedagogia do conflito (Gadotti), a pedagogia
libertária (Ferrer), etc.
Surgem pensadores buscando transformar a
pedagogia e retirar-lhe o seu caráter repressor, tais como Freinet e
Ferrer. Acontece que a maior parte desses pensadores, os mais críticos e
radicais – como não poderia deixar de ser – foram marginalizados nas
academias e instituições burguesas. Na antiga União Soviética houve a
reprodução do modo de educação capitalista e isto confirma, mais uma
vez, o caráter capitalista deste país (VIANA, 1992). Isto fez com que os
partidários da antiga URSS também defendessem uma concepção burocrática
de pedagogia.
Todas as pedagogias críticas, entretanto,
acabam, de uma forma ou de outra, reproduzindo as características
essenciais da pedagogia burocrática, com raras exceções (Freinet,
Ferrer). O exemplo do construtivismo pode colocar em evidência a falha
básica de todas as pedagogias consideradas críticas. O construtivismo
propõe que a criança “construa” seu conhecimento e o professor
construtivista passa a ser o “mediador” da interação do aluno com o
objeto do conhecimento. Ele tem um papel político voltado para a
formação da cidadania (MATUI, 1995; COLL, 1996).
A idéia parece boa, mas um exame mais
aprofundado revela sua limitação: o formalismo. O construtivismo se
revela uma técnica de ensino que oferece uma maior liberdade de escolha
ao aluno no que diz respeito à forma. E o conteúdo? Basta ler os
livros infantis que são trabalhados para vermos o seu caráter
axiológico, moralista e conservador, com raras exceções.
Basta vermos a ideologia e valores do professor, que ele fatalmente
repassa aos alunos, para descobrir que o discurso emancipador do
construtivismo é uma farsa. O construtivismo esquece o fato de que a
criança, o professor, os livros, a escola estão inseridos numa sociedade
de classes e que a classe dominante impõe sua ideologia, seus valores,
etc., a toda a sociedade. O construtivismo possui um método de ensino
– mesmo que diga o contrário e por mais flexível e menos estruturado que
seja – e isto significa que alguém “ensina” (o professor) e
alguém “aprende” e que o primeiro impõe, quer queira ou não, sua
mentalidade ao segundo, assim como dirige o processo de aprendizagem e,
conseqüentemente, os seus resultados e produz, desta forma, a alienação
do aluno. Isto é tão verdadeiro que a idéia de formar para a cidadania
já é uma imposição e que, apesar de alguns construtivistas apresentar
discurso a favor da transformação social – revela apenas que não se
propõe nenhuma mudança social efetiva e sim a integração dos indivíduos
na sociedade tal como existe, pois este é, precisamente, o papel da
cidadania (VIANA, 2003).
Mas, se as pedagogias críticas ou que se
dizem alternativas são uma pseudo-solução, qual é a saída? A autogestão
pedagógica? No entanto, é possível se perguntar: os mesmos problemas
apontados anteriormente não estariam presentes na proposta de autogestão
pedagógica? É isto que veremos a seguir.
3. A Pedagogia Institucional
O movimento de pedagogia institucional
surgiu na França e seus principais representantes são Lapassade, Lourau
e Lobrot. Esta tendência francesa, também conhecida como “Análise
Institucional”, devido seu processo de busca de análise e transformação
das instituições, possui algumas diferenças internas, com tendências
mais voltadas para a psicologia ou sociologia, mais moderada ou mais
radical. Max Pagès, por exemplo, utiliza uma abordagem mais psicológica,
enquanto que Lapassade mais sociológica, apesar de ambas utilizarem
análises de uma ou outra disciplina, sendo que muitos dos representantes
desta corrente trabalham com a idéia de psicossociologia. Alguns
trabalham a análise institucional no sentido da transformação social (Lapassade,
Lobrot, Lourau), outros não possuem esta preocupação (Hess, por
exemplo). Aqui não nos interessa fazer um histórico ou análise desta
corrente, mas tão somente abordar uma de suas principais teses, a da
autogestão pedagógica.
A autogestão é vista sob várias formas,
mas, em nossa perspectiva, ela é uma relação social que surge nas
relações de produção e se generaliza a toda sociedade. É, portanto, um
projeto político de transformação social que abole as classes sociais e
todas as formas de exploração e alienação (VIANA, 2008b). Ela pressupõe
sua generalização para o conjunto das relações sociais, e isto significa
a abolição do Estado e do mercado, bem como das relações sociais
capitalistas em geral. Assim, a autogestão remete à totalidade das
relações sociais. Na autogestão não há o controle da atividade de um
indivíduo por outro, como ocorre na alienação, e sim um controle do
indivíduo por ele mesmo no interior de uma coletividade que se
autogoverna.
Partindo dessa definição de autogestão
podemos explicitar, resumidamente, o que é a autogestão pedagógica
segundo pesquisadores da Análise Institucional:
A autogestão pedagógica é um sistema de educação no qual o mestre
renuncia a transmitir uma mensagem. Os alunos, em nível de classe ou
da escola, dentro dos limites da situação escolar atual, decidem a
respeito dos métodos, das atividades escolares e dos programas de
formação. Na pedagogia institucional ou autogestão pedagógica, o
mestre não é um transmissor de informações, mas analista do processo
de aprendizagem ou perito à disposição da classe que deve encontrar
e desenvolver suas instituições internas próprias. As fórmulas de
autogestão pedagógica podem variar segundo as situações, as idades,
etc..
A superioridade da pedagogia
institucional sobre as demais pedagogias (mesmo as consideradas
“críticas”) é visível, pois nela não se trata de impor nem conteúdo nem
técnicas de “ensino” e “aprendizagem”. Neste sentido, haveria uma
neutralização do papel de controle da pedagogia. Ela se manifestaria
como uma pedagogia não-diretiva, do ponto de vista do professor,
e como autogestão pedagógica, do ponto de vista dos alunos.
Mas como a pedagogia institucional se
posiciona diante da sociedade capitalista? É possível haver autogestão
pedagógica no interior da escola e “dentro dos limites da situação
escolar atual”? Resta perguntar, também, se o que ocorre dentro destes
limites pode ser considerado autogestão pedagógica.
Aí reside o grande problema da pedagogia
institucional: é uma proposta pedagógica que já esboça relações sociais
pós-capitalistas e por isso sua concretização hoje apresenta inúmeras
dificuldades. Na verdade, a autogestão pedagógica é mais fácil se
concretizar fora das instituições burguesas (escolas, universidades,
etc.) através de, por exemplo, grupos de estudos ou de iniciativas
individuais. O movimento francês da pedagogia institucional tem como
grande limitação conceber a autogestão pedagógica nos limites impostos
pela escola. Na verdade, a luta pela autogestão pedagógica deve ocorrer
tanto dentro quanto fora da escola. Acontece que a luta pela autogestão
pedagógica dentro da escola deve contestar os limites que ela impõe e
buscar neutralizar o poder da burocracia escolar, o que leva,
inevitavelmente, ao confronto com o capital e o estado. Isto significa
que a pedagogia institucional deve reavaliar sua teoria e prática, pois
se ela se limitar à sala de aula acaba cedendo aos mesmos erros que ela
critica na “pedagogia tradicional”.
Claro que esta é uma visão mais restrita
de autogestão pedagógica. No interior dos adeptos da pedagogia
institucional existem tendências diferentes. Este é o caso de Lobrot,
Lapassade e Lourau. Lobrot é bastante perspicaz ao relacionar autogestão
pedagógica e autogestão social:
A autogestão pedagógica somente pode ser uma preparação para a
autogestão social. Esta constitui o objetivo final. Por autogestão
social entendemos não aquilo que A. Meister define na sua obra sobre
a autogestão iugoslava, isto é, a autogestão de organismos de
consumo, ainda organismos de habitação, tempos livres, etc., mas uma
autogestão que englobe todos os grupos em todos os níveis da
sociedade, contrariamente à autogestão política que fica confinada à
‘cúpula’, se assim se pode dizer, e visa a modificação de
macrogrupos (LOBROT, 1973, p. 493).
Apesar de certas limitações na concepção
de autogestão social em Lobrot, o mérito de sua discussão está na
articulação entre a autogestão social e a pedagógica. Ele concebe que a
autogestão social é um ideal e que a autogestão pedagógica pode ser um
instrumento para se chegar à ela:
A autogestão social aparece como um ideal. Com efeito, tem como
objetivo resolver o problema humano essencial, a saber: o da
produção, ou, se se prefere, o da transformação do mundo pelo homem.
Com efeito, visa levar os indivíduos a participar ao máximo no
processo de produção, impedi-los de serem alienados, impedi-los de
terem atividades que lhes sejam estranhas. Permite, da melhor forma,
satisfazer as necessidades humanas essenciais que visam a criação, a
invenção, a iniciativa, a investigação, a comunicação humana (LOBROT,
1973, p. 524).
A realização da autogestão pedagógica,
segundo Lobrot, supõe a modificação profunda das instituições. Ele
esclarece que não entende as instituições da forma coisificada que
Durkheim as entende e sim como uma “realidade psicológica”, composta
pela “totalidade dos indivíduos que dela fazem parte” e que a aceitam,
rejeitam, conhecem, utilizam. Assim, toda instituição depende da
mentalidade dos indivíduos que estão presentes nela. Esta mentalidade,
por sua vez, depende da educação:
Por educação, não entendo apenas a escola mas também todo o lugar e
todo o organismo em que se aprende alguma coisa. A escola, contudo,
é um lugar privilegiado, pois estando organizada ‘para a educação’
pode tanto bloquear totalmente todas as possibilidades de
transformação do indivíduo, mesmo no interior da escola, como
permitir uma abertura máxima para o mundo. Isso depende,
naturalmente, ainda aqui, da instituição-escola, concebida, quer
como superestrutura organizacional, quer como vontade coletiva dos
indivíduos (LOBROT, p. 1973, 526).
Assim, o papel da autogestão pedagógica é
preparar o caminho para a autogestão social:
Sem uma autogestão pelo menos em nascimento, sem uma
responsabilização dos alunos por si próprios, sem uma destruição,
pelo menos parcial, da burocracia pedagógica não se pode esperar
nenhuma formação verdadeira, portanto, nenhuma mudança de
mentalidade dos indivíduos. Vê-se imediatamente qual é a repercussão
no plano social. A sociedade afunda-se em problemas e conflitos
insolúveis (LOBROT, 1973, p. 526).
Daí sua afirmação de que “é preciso
começar pela Escola” (com E maiúsculo...). A sociedade de amanhã “será
pela Escola ou negar-se-á a si própria”. É claro que a definição de
instituição está ligada ao problema não superado por Lobrot que é sua
identificação profissional como psicólogo, como especialista da área.
Também sua idéia de que é preciso começar pela escola é problemática e
não consegue perceber que a escola não é uma instituição autônoma e que
possui um desenvolvimento imanente e auto-suficiente. A escola possui
uma estrutura burocrática, tal como reconhece Lapassade, apesar de não
retirar as conclusões necessárias a partir daí:
A escola é uma instituição social regida por normas que dizem
respeito à obrigação escolar, aos horários, ao emprego do tempo,
etc. ... Em conseqüência, a intervenção pedagógica de um professor
(ou de um grupo de professores) sobre alunos situa-se sempre num
quadro institucional: a classe, a escola, o liceu, a faculdade, o
estágio (LAPASSADE, 1989, p. 197).
Ele expressa a existência de uma
burocracia pedagógica:
As decisões fundamentais (programas, nomeações) são tomadas no
sistema hierárquico, mas na cúpula (instruções e circulares
ministeriais). Existe uma hierarquia de decisões, passando do
Ministro ao professor e dispondo esse último de uma certa margem de
decisão no quadro do sistema de normas. Sob o aspecto das decisões
fundamentais, os diferentes graus da hierarquia garantem seja a sua
transmissão, seja a sua execução. Os professores não participam do
sistema de autoridade, que estanca no nível da administração (LAPASSADE,
1989, p. 198-199).
Assim, no caso de Lobrot, e geralmente
dos demais defensores da pedagogia institucional, falta a percepção da
luta de classes. Ao perceber a luta de classes, a relação da sala de
aula com a escola passa a ser vista de forma diferente, bem como as
próprias divergências e diferenças entre os alunos. Além disso, se
percebe que a escola está submetida ao poder coletivo da classe
burguesa, o Estado, e que os valores, idéias, sentimentos, etc.,
desenvolvidos nas famílias dos alunos, nos meios oligopolistas de
comunicação, etc., são os que atendem aos interesses da classe
dominante. Assim, a escola é palco da luta de classes e desta forma é
preciso compreender que o professor não pode ser espectador da turma,
ele deve intervir.
O maior erro de Lobrot, no entanto, é
pensar que “a sociedade de amanhã o será pela escola”, pois isto, apesar
do efeito da rebelião estudantil de maio de 1968, é exagerar o papel da
escola e da própria proposta de pedagogia institucional. A autogestão
social tem seu início no processo de produção, quando os trabalhadores
passam a contestar a produção de mais-valor e o controle capitalista da
produção. É a autogestão das lutas pelo proletariado que é o grande
processo que possibilita a passagem para a autogestão social e manifesta
imediatamente a auto-organização e auto-formação do proletariado (VIANA,
2008; TRAGTENBERG, 1988). Sem dúvida, isto não retira a contribuição que
outras lutas podem fornecer para este processo.
No caso de Lapassade, falta a percepção
de que o que ele denomina “burocracia pedagógica” é um obstáculo para a
autogestão pedagógica, a não ser que fosse recusada em sua totalidade.
Porém, nem ele nem os adeptos da pedagogia institucional fazem tal
proposta, que eliminaria o sistema de exames, o controle do tempo de
estudo, as salas de aula, etc. Somando-se a isso as relações sociais
extra-escolares, tal como a luta de classes externa que se manifesta sob
a forma de sociabilidade, mentalidade, etc., então temos um quadro bem
mais difícil de se pensar uma autogestão pedagógica. Se os alunos
decidem, eles não decidem a partir de nada e sim de sua cultura
anterior, ou seja, da cultura dominante, na maioria dos casos. Logo, a
questão do conteúdo do que é discutido se torna fundamental. A
autogestão pedagógica só tem a possibilidade de se desenvolver
plenamente numa futura sociedade autogerida. Caso contrário, será uma
“autogestão” mutilada, pois limitada pelas exigências escolares
(burocráticas), pela cultura dominante, etc. Se o professor
autogestionário renuncia a propor a autogestão social, por exemplo, ele
apenas incentiva o participacionismo que pode funcionar num sentido
conservador.
4. Autogestão Pedagógica e Pedagogia
Autogestionária
Portanto, a autogestão pedagógica nas
escolas é um projeto político que deve ser acompanhado não pelo
isolamento e sim por outros projetos que envolvem questões como a
democratização da escola, a unificação da luta de estudantes e
professores, etc. Isto tudo, obviamente, junto com um projeto global de
transformação social, buscando instaurar uma sociedade autogerida, onde
a autogestão pedagógica é o modo de educação específico desta sociedade.
A partir disto, concluímos que a proposta
de autogestão pedagógica (desde que seja uma verdadeira autogestão)
é tão radical (ou seja, vai até a raiz) que mesmo sendo um objetivo em
si mesmo, provoca um conjunto de exigências que culmina com a
necessidade de abolição do capitalismo e implantação da autogestão
social. Mas, também, devido sua radicalidade, sua concretização é
extremamente difícil nas escolas, sendo que ela ocorre mais facilmente
em períodos de ascensão da luta dos trabalhadores, tal como no exemplo
da Espanha (TRAGTENBERG, 1986) e com mais facilidade fora da instituição
escolar, através de grupo de estudos autônomos e outras iniciativas,
inclusive individuais, de auto-formação.
Neste sentido, é necessário apresentar o
projeto de autogestão pedagógica, mas com a nítida consciência de que se
trata de um projeto e não de uma realidade. Assim, é preciso não só
propor e exigir a autogestão pedagógica, que é da esfera da luta
cultural, mas também avançar na constituição de novas práticas
pedagógicas, buscando, neste duplo processo, desenvolver uma
pedagogia autogestionária.
A pedagogia autogestionária é aquela que
não é ainda autogestão pedagógica, embora possua elementos dela, mas é
um projeto visando a autogestão, pedagógica e social. A autogestão
pedagógica é a realização de uma pedagogia autogerida, ou seja,
efetivada, enquanto que a pedagogia autogestionária é uma pedagogia que
esboça, busca a autogestão pedagógica, e seu objetivo é a autogestão
social. Aqui a distinção é entre “autogerido”, a autogestão efetivada,
e autogestionário, a autogestão como objetivo.
Uma pedagogia autogestionária seria
aquela que tem como projeto a autogestão pedagógica (efetiva) e que
busca diversas formas de encaminhar a autonomização dos alunos e
bombardear a burocracia escolar, mas, além disso, não abre mão de
participar da luta de classes, de propor a autogestão social, bem como a
pedagógica que lhe acompanha e, assim, realizar a luta cultural
necessária para a transformação social. Não se trata do professor
autogestionário ser um doutrinador, mas um orientador, que visa
incentivar, possibilitar, proporcionar, colaborar, no processo de
ampliação da consciência correta da realidade. Logo, a pedagogia
autogestionária não é omissa e nem defende a neutralidade. O professor
autogestionário não é neutro e faz parte da luta de classes, sendo que
sua omissão apenas serviria para a reprodução do mundo miserável em que
vivemos.
Sem dúvida, todos os adeptos da pedagogia
institucional expressam determinadas concepções, técnicas, práticas,
etc., ou seja, também não são neutros, pois a própria recusa em intervir
é uma intervenção. Num caso, temos a intervenção direta, no outro, uma
intervenção oculta, onde a omissão do conteúdo provoca a manifestação de
determinados conteúdos, bem como a preocupação unilateral com a forma é
uma intervenção que expressa um conteúdo. Mesmo quando se trata de
pensar a “demanda”, no sentido de Robert Pagés e Lourau (LOURAU, 1975),
o que ocorre é uma “demanda induzida” e a “autogestão pedagógica” acaba
sendo algo iniciado pelo professor e não pelo aluno. A pretensa
neutralidade se revela uma produção de algo, que é o “algo” pretendido
pelo professor, um intervencionista oculto. Os exemplos de experiências
de pedagogia institucional mostram muito bem quem é o criador e quem é a
criatura (LOURAU, 1979).
Portanto, é necessário reavaliar as teses
da autogestão pedagógica elaboradas por Lapassade, Lobrot e Lourau e
inseri-las num projeto mais amplo de transformação social, pois é
preciso sempre fazer uma “auto-análise” de nossa prática para ver até
onde ela está em concordância com o nosso discurso. Também é necessário,
percebendo os limites e as dificuldades de uma autogestão pedagógica,
não simplesmente desistir e deixar o campo livre para a pedagogia
burocrática, mas avançar e fazer dela um projeto, uma busca constante,
teórica e prática.
Referências
COLL, César. O Construtivismo na Sala de
Aula. São Paulo, Ática, 1996.
MATUI, Jiron. Construtivismo:
teoria construtivista sócio-histórica aplicada ao ensino.
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