VERA LÚCIA DO NASCIMENTO
Licenciada em História pelas Faculdades
Integradas de Ciências Humanas, Saúde e Educação de Guarulhos.
Especialista em Docência do Ensino Superior e em Ensino de História pela
Universidade Cândido Mendes.
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Cinema e Ensino de História: em busca de um final feliz
Vera Lúcia do Nascimento
Resumo:
O Ensino de História na sociedade
atual impõe um desafio ao professor, fazendo-o trazer à sala de aula
meios que facilitem o processo de aprendizagem dos alunos. Como uma
possibilidade de recurso didático, estudaremos a utilização do filme
e suas contribuições para o ensino utilizando a bibliografia
existente sobre a relação cinema-História, contextualizando-a com
vários autores da área educacional que tratam do uso de novas
tecnologias na educação. Buscando demonstrar na prática como se deve
usar o filme em sala de aula, utilizaremos o longa-metragem animado
Anastasia, atentando para os cuidados que o professor deve
ter ao empregar esse recurso e fazendo uma análise do conteúdo
ideológico presente no filme.
Palavras-chave:
Educação; Ensino de História; Cinema.
Abstract:
The History teaching in the present society imposes a challenge to
the teacher, making him to bring to the classroom means that to make
easy the apprenticeship process for students. Like a possibility of
didactic resource, we’ll study the employment of the movie and your
contributions to the teaching using the bibliography existent about
the relation between movies and History, confronting these writings
with various riders from educational area that discuss the
employment of the new technologies in the education. Searching to
demonstrate the manner of to employ the movie in the classroom, we
use the cartoon movie Anastasia, mindful the cares that the
teacher need to observe when the teacher employs this resource and
making an analysis of the ideological content existent in the movie.
Key words:
Education; History teaching; Movie. |
O uso do cinema foi durante algum tempo considerado sem valor para os
estudos Históricos. Com o surgimento da Escola dos Analles,
começou-se de forma tímida a introduzi-lo como um documento viável para
analisar um determinado período e a sociedade que o produziu. Sua
aplicabilidade em sala de aula é vista com certa desconfiança, haja
vista o descomprometimento por parte de alguns professores em exibi-lo,
sem contextualizar com a disciplina.
Estamos na “era da tecnologia” em que a rapidez dos acontecimentos nos
remete a uma sociedade da pressa e da emergência, percebemos a
necessidade de uma construção do saber que utilize meios de dinamizar e
contextualizar a aprendizagem.
Na educação podemos e devemos usar todo o tipo de recurso tecnológico no
intuito de auxiliar o processo de ensino-aprendizagem. Vale ressaltar
que o papel do professor é primordial, quando este sabe qual é o
objetivo real de suas aulas e consegue contextualizá-la, o aluno aprende
melhor sendo um agente participativo, ou seja, um protagonista e não
meramente um espectador.
Ensinar História é ir muito além dos fatos, das datas comemorativas ou
até mesmo do uso de questionário. O uso de uma personagem da história ou
de um tema ligado a ela não quer dizer que aquelas imagens sejam um
retrato fiel da verdade. Logo, o uso do cinema só é válido quando
inteirado com a leitura e contextualizado com a sociedade atual e o
conhecimento da historiografia corrente, propiciando o entendimento das
entrelinhas, ou seja, decifrando o que está implícito no filme.
Cinema com História: uma relação ambígua
O filme, imagem ou não da realidade, documento
ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História.
(Marc Ferro)
Antes da revolução causada pelos historiadores participantes da francesa
Escola dos Annales, a ciência histórica utilizava como fonte de
estudo e pesquisa apenas os documentos históricos escritos. Nada mais
era considerado para análise dos acontecimentos e sobre o surgimento da
própria História se não fosse os documentos escritos e, de preferência,
oficiais, onde o historiador pautava toda sua pesquisa em direção ao que
acontecera de fato, considerando esta como a ”verdadeira história”.
A “História Nova”, como ficou conhecida, foi um movimento surgido
inicialmente entre os membros da Revista Annales d’histoire
economique sociale fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch e
que, a partir de 1946 passa a se chamar Annales, Economies, Socités,
Civilizations, que se direcionava a novas abordagens para uma melhor
compreensão da história e para isso estava buscando meios de utilizar
outros métodos e conceitos de outras ciências humanas como, por exemplo,
a Sociologia, a Psicanálise e também a Antropologia, em busca de uma
história universal. (BURKE, 1997)
É nesse momento de assimilação dos novos métodos e novos objetos que
surge o trabalho do francês Marc Ferro em 1971 no artigo “O filme: uma
contra-análise da sociedade?” publicado no livro História: novos
objetos, de Jacques Le Goff e Pierre Nora.[1]
Em sua obra Cinema e História,
Marc Ferro estabelece contatos iniciais para apropriação do cinema como
um documento histórico, apontando alguns caminhos sobre a utilização do
cinema como também um documento e que infelizmente alguns historiadores
mais tradicionais não se dão conta da contribuição que o cinema traz,
alegando que a imagem não tem identidade e, dessa forma, não poderiam
considerá-la, vendo com desconfiança e descrédito as interferências
referentes à montagem e os possíveis truques (trucagens),
desconsiderando o filme como documento. (1992, p. 83)
Ferro aponta para uma crítica: tendo os historiadores tal preconceito em
relação ao filme não seria viável questionar o documento escrito já que
esse também sofre interferências, um recorte, uma montagem, e que passam
por um tipo de “verniz de seriedade” que o atesta como histórico e
verídico? (Ibidem: 84) O autor aponta a seguinte observação sobre a
análise do filme histórico em sua obra:
Ele está sendo observado não como uma obra de arte, mas sim como um
produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são somente
cinematográficas. Ele não vale somente por aquilo que testemunha,
mas também pela abordagem sócio-histórica que autoriza. (Ibidem: 83)
Em outras palavras, ele reconhece a película como um testemunho e está
ciente das intervenções, dos recortes e aponta para o que está explícito
e implícito, diferenciando o que não é filme, e reconhecendo ali
autoria, produção, público e a sociedade que ele (o filme) representa e
sua ideologias. Assim, as imagens em movimento trazem constatações e,
analisar e ter como fonte um único documento, de forma alguma contribui
para a construção do saber histórico.
Para uma análise mais efetiva do cinema como um documento histórico é
necessário que se perceba e reconheça o caráter hipnótico que a grande
tela exerce nos espectadores, respondendo anseios afetivos e
perceptivos. Daí uma necessidade de se distanciar do filme como
entretenimento:
Diante do filme o pesquisador não mais “olha” com recolhimento, nem
mesmo com distração, aborda-o na posição de um observador atento às
associações de imagens e sons, a cada vestígio de significação como se
caçasse um tesouro perdido em meio à experiência perceptiva do cinema. (TOMAIM:
2004)
Entendemos que ao historiador não cabe a função de contemplação às
imagens, mas sim de adentrar os limites que a obra revela, ir à gênese
do fato, tentando, de alguma forma, resgatar o que de fato é histórico.
Em seu artigo “O Cinema o e conhecimento da História”, Cristiane Nova
(2007) aponta que o pesquisador deve dissecar os significados ocultos,
isto é, ir além das imagens, buscar elementos da realidade histórica
através da ficção, indo além do que está sendo apresentado e, assim,
compreender as entrelinhas.
É possível perceber que a sociedade
exerce influência quando tratamos da produção de um filme e que o efeito
causado nos espectadores é inquestionável. Porém, muitas vezes a
produção cinematográfica não aborda o contexto histórico em si, apenas
fazendo uma alusão em cima de um fato histórico, criando outra história,
essa mais comercial e mais atrativa para o grande público. Assim,
podemos reconhecer que “o filme não pode ser visto como uma reprodução
fiel da realidade” (KORNIS, 1992), e quando acontece esse tipo de
intervenção cabe ao pesquisador detectar e diferenciar tais elementos,
levando o espectador a um questionamento, uma reflexão sobre as
alterações no filme e o que os documentos escritos nos apontam.
Mônica Kornis, para definir o que é documento, utiliza-se sabiamente da
definição de Le Goff, quando este afirma que: “O documento não é
qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade
que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o
poder”(Ibidem). Sendo assim, percebemos o filme como um documento
histórico que deve ser analisado e contextualizado desde que se
estude a sociedade produtora deste, e quais as interferências que
esta embute.
Logo, para alcançar êxito na utilização de filmes como documento
histórico, o historiador ou o professor-pesquisador precisará de um
despreendimento na hora de sua leitura sobre a imagem, pois o cinema em
si está preocupado com o espetáculo, em atingir as emoções dos
espectadores, com a bilheteria, com seu público-alvo. Assim, a análise
de um filme histórico é de certa forma desafiadora, pois requer uma
interpretação que dê significados à história, retirando do filme
limitações impostas por seus idealizadores, trazendo à tona uma
discussão sobre o fato histórico, e as intervenções sofridas devido à
sociedade e à época em que foi realizado.
O professor, o filme e a sala de aula
Paulo Freire afirma que ensinar não é transmitir conhecimento, mas
permitir que o educando construa seu próprio saber. Essa é a tarefa de
todo educador (1996, p. 47). Assim, fica claro que a educação hoje no
Brasil carece de maior cuidado e comprometimento por parte de nossos
governantes.
“A alma de qualquer instituição de ensino é o professor” (CHALITA,
2001, p. 148). Nesse sentido, quando abordamos a Educação é
necessário que se pense a escola como um lugar, um terreno de mentes
férteis à espera de um semeador, visto que “Pouca instituição tem a
possibilidade de influir tanto no contexto social, no que se refere à
formação e o exercício de cidadãos quanto a escola.”(ARAÚJO; CARVALHO, 2003, p. 14). Sendo a escola importante para a
formação do indivíduo, ninguém substitui o professor. A ele foi
designada a tarefa de semear o conhecimento entre os alunos. Conscientes
de tal realidade vamos nos direcionar ao ensino de História como forma
de permitir que o aluno crie um senso crítico da sociedade em que vive.
Mariza de Carvalho Soares (1994) menciona que existe uma infinidade de
filmes que podem trazer uma contribuição ao estudo da história em função
do tema que tratam. “O cinema vem sendo visto como uma nova maneira de
fazer e de ensinar história”. Para a autora utilizá-los como recurso
pedagógico é fornecer ao aluno uma imensa e rica fonte para um debate
construtivo e enriquecedor na construção do saber.
Sendo assim, ao professor recai toda a responsabilidade do sucesso ou do
fracasso. Por isso é importante ficar bem claro para o educador que não
importa qual seja sua estratégia, o que realmente importa é levar o
processo de ensino-aprendizagem com seriedade e afeto, já que “A
educação que visa à formação de um ser com autonomia e liberdade não
pode reproduzir qualquer padrão ultrapassado de ensino (CHALITA, 2001,
p. 148). O professor-educador preocupado com a aprendizagem de seus
alunos tende a buscar novas formas de ministrar suas aulas, com o único
objetivo de tornar o ato de aprender cada vez mais agradável e
prazeroso.
A utilização de meios como a televisão e mais precisamente o cinema para
a ilustração de um determinado tema pode enriquecer o aprendizado e
facilitar a compreensão do tema a ser trabalhado. É evidente que a
leitura não deve ser desprezada em hipótese alguma, porém, quando o
professor traz a proposta de um filme, a maioria dos alunos demonstra
interesse em assisti-lo, pois a visualização do que está no livro
didático facilita a compreensão.
Quando trazemos o cinema para a sala de aula, nós devemos estar cientes
da responsabilidade que esta atividade implica. Em hipótese alguma o
professor deve exibir um filme sem antes assisti-lo, confiante na
indicação de um amigo ou pelo motivo do seu aparelho de vídeo estar com
defeito. Assistir ao filme e preparar a aula deve ser a primeira atitude
do professor realmente engajado com a aprendizagem de seus alunos.
Utilizar o recurso filmográfico em sala de aula não é de maneira nenhuma
acreditar que se trata de uma fórmula mágica, que com um piscar de olhos
todos os alunos sairão dali problematizando e questionando o mundo em
que vivem, pois isso requer tempo e habilidade por parte do professor.
Vale ressaltar que, muitas vezes, o professor com enorme boa vontade e
muita dedicação não consegue alcançar bons resultados devido à
instituição de ensino em que trabalham. Com uma administração mais
conservadora (coordenadores e diretores), estes podem coibir o uso de
certos filmes, impedindo, a ação do professor. Tendo isso em vista,
torna-se importante conhecer quais são as normas da instituição em que
se trabalha para que não haja um choque entre direção e professor.
Algumas escolas pedem para assistirem previamente o filme antes que o
mesmo seja exibido aos alunos pelo professor. Essa atitude deve ser
considerada normal, pois há professores que usam o recurso do filme
apenas para preencher suas aulas sem contextualizá-las com o conteúdo de
sua disciplina.
Infelizmente o recurso filmográfico tem como finalidade, em alguns
colégios, tampar aula vaga, ou seja, na falta de professor coloca-se o
filme e a turma fica quieta ou, na maioria dos casos, conversando em voz
baixa, não atrapalhando outras salas. Isto ocasiona um desgaste do
recurso, estigmatizando-o. (MORAN, 1995[2],
pp. 27-35. apud NAPOLITANO, 2003. p. 34). Cabe ao professor
reverter essa situação, preparando um bom roteiro e uma excelente
proposta para a utilização deste recurso.
É imprescindível que o professor esteja atento às condições dos
aparelhos (vídeo-cassete ou DVD), à sala de aula (calor, luz, som), pois
os alunos tendem a reclamar se houver um desconforto excessivo, o que
pode prejudicar o bom aproveitamento da aula. Portanto, deve-se atentar
para alguns aspectos que podem vir a evitar transtornos durante a
exibição do filme como, por exemplo: a sala estar quente e não ter
ventilador ou ar-condicionado; claridade atrapalhando a visualização;
dificuldade por parte dos alunos em assistir filmes legendados, a
televisão é pequena demais; o som é muito baixo, etc.
O professor deve deixar bem claro aos alunos que a exibição em sala de
aula é diferente da exibição do cinema, já que o conforto não é
comparável. Tal explicação não deve ser esquecida, ainda mais porque
muitas escolas não têm sala de vídeo, e a exibição acaba sendo realizada
na própria sala de aula.
“Não há fórmula mágica nem receita teórica que substituam a reflexão e a
perspicácia do professor em relação aos alunos” (NAPOLITANO, 2003, p.
21). Portanto, planejamento é a alma do sucesso para qualquer aula, e
quando há este preparo os alunos percebem. É bom que fique claro que ao
professor não serão permitidas negligências, pois do contrário será
taxado de desorganizado, ou pior ainda, perderá o respeito de seus
alunos.
Atentos a essas condições, a escolha do filme não deve entrar em
conflito com a escola, muito menos com a faixa etária dos alunos, pois
ao exibir um filme que tenha cenas de nudez, violência excessiva e
palavrões pode haver certo desconforto ou constrangimento. Talvez para o
professor não haja nada de mais, mas os alunos podem reagir mal e os
pais sentirem-se agredidos.
Tomados todos os cuidados, o professor deve conversar e preparar a turma
para assistir ao filme e desenvolver um roteiro que direcione o olhar
dos alunos para uma interpretação crítica e contextualizada, pois
Educar pelo cinema ou utilizar o cinema no processo escolar é
ensinar a ver diferente. É decifrar os enigmas da modernidade na
moldura do espaço imagético. Cinéfilos e consumidores de imagens em
geral são espectadores passivos. Na realidade, são consumidos pelas
imagens. Aprender a ver cinema é realizar esse rito de passagem do
espectador passivo para o espectador crítico. (CARMO, 2003).
Os filmes não são feitos por historiadores.
Analisando a filmografia existente e contextualizando com o que afirmam
os estudos historiográficos atuais, compreendemos que há a intervenção
dos roteiristas e diretores para tornar a história mais atrativa
comercialmente, já que os mesmos não são historiadores e não têm como
única responsabilidade abordar os fatos reais (LANGER, 2004).
Logo, o professor ao exibir um filme precisa estar ciente de qual é o
seu objetivo ao usar este recurso pedagógico e aonde pretende chegar, e
para isso deve preparar seus alunos para essa fascinante viagem que o
cinema proporciona, revelando, assim, seus mistérios.
Jorge Nóvoa observa que: “[...] a didática inteligente deve-se apoderar
da motivação provocada pelos filmes para levar os estudantes à polêmica
e ao aprofundamento das leituras.” (NÓVOA, 2007) O professor de História
precisa impregnar sua aula de vida. Ensinar História é conectar o aluno
com o dia-a-dia, trazer à sala de aula os problemas e situações que os
próprios alunos vivenciam quando estão fora do ambiente escolar,
propiciando, assim, um ensino mais dinâmico, uma aprendizagem com mais
qualidade, livre dos ranços da disciplina e inovando seus métodos de
ensino (Ibidem).
Portanto, uma aula bem ministrada consegue atingir resultados
magníficos. Deve-se revolucionar a sala de aula. Não cabe mais ficar na
mesmice, pois aquele que resistir à mudança vai fracassar. O filme não é
o único meio para levar o aluno a uma construção do senso crítico ou
analisar a sociedade em que vivemos. Há uma infinidade de recursos a
serem explorados pelo professor e o uso de filmes é apenas um dentre
inúmeros recursos. Usá-los em sala de aula não seria uma inovação, mas
sim trazer aos bancos escolares uma nova maneira de propiciar a
aprendizagem. Para renovar o ensino da História, basta estar disposto a
romper com o comodismo.
A Revolução Russa em Anastasia
A fragilidade do regime se revelou quando as
tropas do czar, mesmo os leais cossacos de sempre, hesitaram e
depois se recusaram a atacar a multidão, e passaram a confraternizar
com ela.
( Eric Hobsbawm).
Como já mencionamos, no uso pedagógico de filmes em sala de aula se faz
necessário uma interpretação da imagem. Quando utilizamos desenhos
animados que aparentemente são inofensivos e presumivelmente infantis,
não nos preocupamos com mensagens secundárias. Na maioria das vezes nos
direcionamos para o entretenimento e deleitamo-nos com as belas imagens
coloridas, com príncipes e princesas e também com os outros artifícios
da sétima arte que nos encantam: “A história é um mito que
precisamos decifrar. Esse mito se materializa em obras independentes do
caráter da produção. Aliás, quanto mais inocente ou ingênuo é um filme,
tanto mais suspeito.” (CARMO, 2003)
Ao valer-se do uso de filmes, o professor deve direcionar o olhar
de seus alunos a fim de decifrar o mito com o intuito de permitir a
contextualização crítica sobre o que diz a historiografia e o que o
cinema nos aponta. Para essa tarefa, utilizaremos o filme Anastasia
que nos proporcionará uma análise critica acerca de um fato histórico, a
Revolução Russa, e a imagem que procuram passar aos espectadores de hoje
sobre o referido acontecimento.
Por se tratar de um desenho animado onde a personagem principal é uma
princesa, percebemos que Anastasia é um conto de fadas moderno,
pois não há fadas, muito menos cavalos brancos ou príncipes encantados.
O jovem pelo qual a princesa se apaixona vive da aplicação de pequenos
golpes e falsificando documentos, desconstruindo, assim, todo o
imaginário de perfeição em relação à figura do príncipe encantado.
O filme se desenrola na busca de sua avó paterna por sua neta
Anastasia e na busca da jovem por sua família, da qual não se
lembra. Como mote inicial do filme é utilizada a Revolução Russa de
1917. No entanto, a Revolução é usada apenas como pano de fundo, pois
não há uma análise aprofundada sobre o que foi a Revolução. Muito pelo
contrário há uma intervenção por parte dos roteiristas na interpretação
desse acontecimento histórico. Tendo isso em vista, focaremos nossa
análise no início do filme por entender que este trecho sofre
significativas intervenções que vão de encontro ao conhecimento
histórico produzido sobre o assunto.
O filme logo em sua primeira seqüência mostra – a partir de uma
narrativa da mãe de Nicola II – uma bela festa onde a nobreza dançava e
comemorava os trezentos anos de governo da família Romanov. A figura do
czar Nicolau II era de um homem bom e dedicado aos seus súditos,
como se toda a população estivesse feliz em tê-lo como governante. Na
realidade, isso contradiz tudo o que os estudos históricos afirmam, pois
estes nos apontam um czar indiferente aos problemas da população
russa:
Na verdade, o Tzar-autocrata era, sobretudo, um rei preguiçoso que
bocejava no conselho, que qualquer conversação um tanto espiritual
fatigava. Longe de ser o soberano inconstante que seus panegiristas
quiseram descrever, Nicolau II [...] era Tzar-autocrata que Deus
assim o quisera [...] (FERRO, 1974. p. 25).
A imagem de um czar amoroso e dedicado não condiz com os estudos
sobre a Revolução Russa, e fica claro que houve intervenção por parte
dos roteiristas. Ainda sobre o czar Nicolau II, Eric Hobsbawm, em
Era dos Extremos, afirma ao se referir a ele no momento da
Revolução: “[...] indeciso e incompetente como sempre [...]”
(1995, p. 63).
A narrativa do filme nos leva a acreditar que a Rússia de Nicolau era
encantada, elegante e de grandes bailes, onde tudo funcionava e todos
eram felizes, um império verdadeiramente perfeito sob o seu comando. Tal
situação nos remete ao pensamento de Cristiane Nova (2007), quando esta
observa que devemos dissecar os significados ocultos, ir além das
imagens, compreender as entrelinhas.
Na cena em que Nicolau II dança com sua filha Anastasia, surge uma
sombra negra, na pessoa do mago Rasputin, trazendo o caos ao povo
russo. Rasputin é mostrado como inimigo da família imperial e fora
expulso do palácio. No entanto, sabemos que não era bem assim. O filme
distorce a relação entre a família imperial e o místico Rasputin, já que
Alexandra, esposa de Nicolau II, convivia com a censura do povo russo
por ter laços com o mago em questão. Como observa Ferro, havia um elo
entre Rasputin e a família Imperial Russa, diferentemente do que é
exibido.
Censuravam-lhe, sobretudo, viver no meio de uma camarilha, onde
reinava Rasputin, um ‘santo’ devasso que imitava os místicos. Mais
ou menos curandeiro, obtivera o reconhecimento de Alexandra e seu
esposo, salvando a vida do filho de ambos, Aléxis. (FERRO, 1974, p.
25).
Anastasia aborda a existência de dois princípios opostos: o bem,
representado pela família imperial russa, e o mal, na figura de Rasputin,
representando a Revolução como a grande responsável pela miséria e
sofrimento do povo russo. Por se tratar de um desenho animado, explicar
a Revolução e toda sua complexidade, não era o objetivo dos roteiristas,
que usaram de total liberdade em relação aos fatos históricos. Em outro
momento do filme, por exemplo, é apresentado um musical onde os
operários lamentam a chegada da Revolução:
São Petersburgo é triste,
São Petersburgo é frio. [...]
Revolução danada, em vez de melhorar,
Só trouxe desencantos, fez tudo piorar...
O trecho acima nos remete a uma Rússia que lamenta a morte do Czar, como
se o povo estivesse arrependido de ter participado da Revolução. Porém,
a frieza mencionada nos faz pensar na figura de Nicolau II quando
ordenou aos seus soldados que atirassem na população indefesa que, anos
antes, chegou ao Palácio de Inverno, sede do governo, para reivindicar
melhoras nas condições de vida, no episódio que ficou conhecido como
Domingo Sangrento. A situação do povo era precária e após a desastrosa
participação da Rússia na guerra contra o Japão e também na Primeira
Guerra Mundial, o povo responsabilizava o czar pelas derrotas e
criticavam o sistema monárquico.
No decorrer do filme percebemos alguns diálogos soltos, criticando, por
exemplo, o uso da cor vermelha – simbolizando o regime soviético – que
teria sido imposta pelo novo governo, dando a entender que a população
estava insatisfeita com novo governo.
Os estúdios Fox e os roteiristas de Anastasia valeram-se
do direito de criação ao reconstruírem uma história que pudesse se
encaixar em seus moldes, tornando-o um produto rentável. Ignoraram por
completo as condições de vida da população russa à época e “maquiaram” o
processo que culminou com a Revolução Russa
Utilizando o animado Anastasia, diante de todas essas
intervenções nos fatos históricos, o tema Revolução Russa em sala de
aula ganha um novo fôlego, tornando muito interessante a
contextualização do assunto. O interesse dos alunos fica visível e a
aprendizagem ganha outros contornos. Para isso, o professor deve ser o
norteador, despertando em nossos alunos o interesse pela busca do
conhecimento.
Considerações finais
Ensinar História, como ensinar qualquer disciplina, é um desafio para os
educadores, haja vista o caos em que o processo educacional em nosso
país está mergulhado, tendo uma crescente desvalorização do professor e
a mercadorização do ensino, banalizando, dessa forma, o processo de
ensino-aprendizagem.
Com o intuito de possibilitar um questionamento sobre o ensino da
História, trazemos o cinema para a sala de aula e, embora cientes da
existência de infinitos recursos didáticos, nos debruçamos
especificamente no uso de filmes como uma rica e valorosa contribuição
ao entendimento da história.
Através deste trabalho, procuramos demonstrar a inserção do cinema na
História como um documento passível das intervenções da sociedade que o
produziu, e para isso, buscamos fundamentação teórica para dar base a
nossa pesquisa e utilizamos os principais trabalhos daqueles que estudam
o cinema e suas relações com os fatos Históricos.
Direcionamos nossa pesquisa em adotá-lo como uma estratégia didática,
direcionando ao professor a total responsabilidade de mediador, quando
este proporciona a seus alunos uma reflexão sobre o que está contido nos
livros e o que lêem através das imagens reveladas pelo cinema,
permitindo assim uma desconstrução do que é tido como verdade histórica
nos filmes, levando-os a uma nova forma de entender os fatos históricos
e assim contextualizar a sociedade da qual fazem parte.
Utilizamos o filme Anastasia e nos direcionamos ao trecho
inicial, quando aponta a Revolução Russa. As imagens nos levam acreditar
que havia uma monarquia dedicada e preocupada com seus súditos e que a
Revolução veio trazer o caos e o sofrimento. Quando na verdade a
historiografia nos remete a uma Rússia pobre e miserável, o objetivo da
utilização desse filme é de legitimar a idéia de que há uma reconstrução
da história a partir da sociedade que o fabrica. Dessa forma, vemos que
os estúdios Fox não poderiam de maneira alguma colocar em sua
obra o socialismo e tampouco o comunismo como algo bom para a população,
por estar inserida no âmbito de uma sociedade capitalista e, assim
construíram uma história surreal com base nos personagens históricos,
embutindo suas ideologias.
Assim sendo, esperamos ter contribuído para o estudo da utilização do
cinema na sala de aula, que só é válido quando o professor opta por um
filme que venha acrescentar ao conteúdo a ser trabalhado. De forma
alguma o uso de filmes deve ser apresentado aos alunos simplesmente como
entretenimento. Trazer um filme a sala de aula é levar os alunos a uma
nova possibilidade de ver e entender o tema estudado, no
caso, a disciplina de História. Cabe ao professor desempenhar o papel
principal, que é o de permitir que seus alunos decifrem e questionem a
sociedade em que estão inseridos.
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