IRINEU MARCIO DA SILVA

Graduando de História do Centro Universitário Geraldo Di Biase

 

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A exasperante poesia na Inconfidência exasperada

Irineu Marcio da Silva

 

O que será que será/ Que andam suspirando pelas alcovas/ Que andam sussurrando em versos e trovas/ Que andam combinando no breu das tocas/ Que anda nas cabeças, anda nas bocas (...) Que vive nas idéias desses amantes/ Que cantam os poetas mais delirantes/ Que juram os profetas embriagados” (Chico Buarque de Holanda)

 

Resumo: Neste artigo, proponho-me a uma análise da produção poética dos árcades que participaram da malograda Inconfidência Mineira, procurando situar a relação entre seus versos e o momento histórico. Para tanto, desconstruo a versão tradicional que imputa à poesia dos árcades inconfidentes o signo de veículo revolucionário e perscruto em suas entrelinhas uma relação razoável com o episódio da Inconfidência.

Palavras-chave: Arcadismo; Inconfidência Mineira; Iluminismo.  

Abstract: This article discusses the poetics production of the arcades who took part in inglorious Minas’s Unfaith, seeking to understand the relationship between his verses and the historical moment. Thus, unmake the ordinary explanation which attach to poetry of unfaithful arcades the sign of vehicle revolutionary and identify in their interlineations a reasonable connection with the Unfaith’s episode.

Keywords: Arcadism; Minas’s Unfaith; Enlightenment.

O raciocínio apodíctico desobriga-nos da essência das coisas. Por muito tempo ventilou-se, tanto na historiografia quanto na literatura, que a pena dos jograis inconfidentes[1] esteve a serviço da malograda experiência sediciosa da qual foram quadros. Esta “verdade” enraizou-se nos versos dos infortunados poetas e por muito tempo os empestou. Inventariando a Inconfidência na literatura brasileira, Fábio Lucas nos diz que

quer os historiadores, quer os intérpretes do episódio são forçados a cobrir os claros da informação através da fantasia ou dos caminhos induzidos pela natureza dos fatos. Nessa atividade, o fator pessoal, movido por sensibilização política ou ideológica, haverá de pesar na configuração do discurso narrativo ou interpretativo. (LUCAS, 1993: 138)

Destarte as deturpações imagísticas manifestas em peças, romances e versos posteriores à Inconfidência[2], o tratamento historiográfico tradicionalmente dispensado a esta “sedição de palavras” toldou de tal maneira a poesia dos árcades[3] mineiros, que versos abertamente reacionários foram sublinhados como subversivos, premente as Cartas Chilenas[4], cuja autoria de Tomás Antônio Gonzaga parece ser hoje consenso entre os estudiosos do tema[5]. É sintomática neste sentido a conclusão a que chega Delson Gonçalves Ferreira acerca das “Cartas”, o pressuposto manifesto duma iminente revolução. Para o autor “as Cartas Chilenas fariam parte dessa literatura de clamores e súplicas que vinha do começo do século XVIII. Consciente ou inconscientemente, Critilo repetia, nas suas sátiras, um aviso que, mais tempo, menos tempo, o povo estouraria numa grande revolução”. (FERREIRA, 1986: 186)

O autor prossegue em sua análise ponderando que o discurso das cartas é inconfidente, pondo num só balaio a arguta sátira e a conspiração desmantelada pelo Visconde de Barbacena meses depois:

E só o mau governo de Luís da Cunha Meneses, o Fanfarrão das Cartas, já seria suficiente para a revolta da Capitania. E Critilo, de certo modo, mantidas as diferenças, repete, com suas sátiras, também um discurso inconfidente parecido com o dos conspiradores, entre os quais estava Tomás Antônio Gonzaga... (FERREIRA, 1986: 191)

Arremata seu raciocínio constatando que as “Cartas” eram um rebento das idéias de liberdade inspiradas no Iluminismo e que “Critilo pode apenas atacar um mau funcionário, um mal vassalo da Metrópole. Mas as idéias iluministas de suas Cartas estão cheias de liberdade.” (FERREIRA, 1983: 196)

A interpretação de Delson Gonçalves é uma amostra ilustrativa de como as “Cartas” passaram equivocadamente à posteridade como um libelo da Inconfidência, inspirado nos iluministas franceses e na independência das colônias inglesas do norte. Uma análise mais acurada da conjuntura histórica em que o missivista se expressa, ou seja, da Vila Rica do último quartel dos setecentos bem como da rede de relações sociais que a sustinha, quiçá nos aproxime um pouco mais da mensagem intrínseca aos versos de Critilo. Ademais, cumpre amarrar a função da retórica[6] e da sátira na época, em especial do poema herói-cômico; visitar o conjunto da obra de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto; e escalpelar as convenções estéticas as quais os três poetas acusados de conspirarem contra a imperante D. Maria I filiaram seus versos.

Parece ser consensual que a Vila Rica de Ouro Preto em que viveram aqueles poetas e o parlapatão alferes, que passou à História como bode expiatório dos primeiros, padecia do esgotamento dos veios dos cobiçados metais preciosos que outorgaram à Capitania de Minas a centralidade de que gozara nos idos dos setecentos. A tentativa de Pombal de dotar a colônia de um corpo burocrático que garantisse uma rigorosa arrecadação do ouro tão caro a Portugal esboroou por obra da rainha que lhe sucedera, a qual deu provas de sua imperícia no trato com as coisas do Império português ao baixar o famigerado alvará que suspendia a tímida atividade fabril em Minas, em janeiro de 1785, gravame que catalisou a crise econômica da outrora opulente capitania.        

Chiavenato registra que

Entre 1735 e 1744 os mineiros conseguiram 20.684 quilos de ouro. A produção caiu para 8.395 quilos de 1780 a 1789. Para Portugal isso representa roubo: o governo acha que os mineiros estão sonegando e contrabandeando. Os mineiros desesperam-se: ficam mais pobres, não podem pagar suas dívidas e as autoridades começam a cobrar os impostos com rigor. (CHIAVENATO, 1989: 20)

Não é apropriado imputar exclusivamente à “Rainha louca” os imbróglios que agastaram a elite[7] de Vila Rica. É cediço que o extrativismo mineral predatório praticado na capitania e o afluxo do ouro da colônia americana para a Inglaterra em razão dos disparatados acordos firmados entre esta e Portugal, foram, a longo prazo, as causas precípuas da precoce bancarrota da alvissareira região.

O sucinto resumo nas últimas linhas alinhavado a respeito da vertiginosa decadência da capitania de Minas é imprescindível se se quer conhecer as razões fundamentais que levaram a elite de Vila Rica a questionar o estatuto colonial. Ao que parece, a Inconfidência representava uma panacéia para os endividados conspiradores, que na contingência de terem seus bens confiscados[8], intentaram tropegamente proclamar uma república em Minas[9]. Por esse meandro passa a tentativa de cortar o cordão umbilical que ligava Metrópole e colônia. Esta constatação, todavia, não justifica a sedutora hipótese de que os inconfidentes pavonearam a República que não houve em seus versos. Qual teria sido, portanto, o papel da poesia na consumação das idéias anticoloniais que levaram Tiradentes ao cadafalso? Critilo seria um iluminista? Cláudio Manuel, Gonzaga e Alvarenga Peixoto versejaram embalados por idéias que configuravam crime de lesa-majestade?

Alguns esclarecimentos quanto às convenções literárias da época são necessários a priori. O gênero herói-cômico[10], paródia do épico, de que são exemplos as “Cartas”, exercia um papel moralizador. As orientações da retórica da época previam que os diversos gêneros poéticos deveriam ser úteis, ou seja, que a poesia deveria instruir, ensinar, educar, dar lições morais. Para Joaci Pereira “nisso as Cartas Chilenas são explícitas desde a ‘Dedicatória’: ‘Dois são os meios por que nos instruímos: um, quando vemos ações gloriosas, que nos despertam o desejo da imitação; outro, quando vemos ações indignas que nos incitam o seu aborrecimento.’”  (FURTADO, 2006: 82)

O que Critilo pretendia ensinar? Que lição trazia as Cartas que dedicara a Doroteu? O real sentido das “Cartas” passa essencialmente por uma polêmica personalidade: o governador Luís da Cunha Meneses. A indisposição[11] que tivera com Tomás Antônio Gonzaga teria inspirado Critilo a compor os difamatórios versos, que tornariam Meneses o paradigma do governante corrupto. As desavenças eram tamanhas entre o atroz governador e o desembargador, que chegaram a fazer acusações mútuas em representação à Rainha (FERREIRA, 1986: 182). As fontes históricas que falam de Meneses são desabonadoras e testemunham que ele já havia incorrido em ações deletérias quando governava a capitania de Goiás. Encontrou em Minas, todavia, o dedicado magistrado, que tão logo presenciou os seus desmandos, não hesitou em delatá-lo à Coroa e espezinhá-lo em público. Tomás demonstra ser com seus impecáveis e mordazes decassílabos

um defensor da Justiça e do Direito, um homem cioso do seu cargo e competência, que não tolera as intromissões indevidas e atentatórias à sua autoridade de juiz. Demonstra também que é um cumpridor de seus deveres, um funcionário correto e sem medo. E não era fácil enfrentar, na época, o poderoso e prepotente Governador. (FERREIRA, 1986: 182)

O achincalhe não foi olvidado, passando à posteridade consoante os vaticínios do satirista:

Pois eu também já vou contar verdades

em que possam falar os homens sérios

inda daqui a mais de um cento de anos. (Carta XI, v. 54 a 56)[12]

 

previsões que Doroteu com entusiasmo reitera em sua “Epístola a Critilo”:

Devo pois confessar, Critilo amado,

que teus escritos de uma idade a outra,

passarão sempre de esplendor cingidos. (Epístola a Critilo, v.55 a 57)

 

Minésio, ou Meneses, era o leitmotiv das sátiras, por duas fortes razões: acredita-se que as “Cartas” circularam veladamente e em reduzido número[13], servindo de deleite à minguada elite letrada de Vila Rica, que assim como Gonzaga, abominava o vassalo régio, excetuados, é claro, os seus sequazes; Critilo escreve ao sabor das circunstâncias e da inspiração satírica, a qual expira pouco após a partida de Minésio, em meados de 1788. Na primeira constatação sou acompanhando por Antônio Cândido:

Afirmam alguns, sem maior prova, que o poema circulava largamente por Vila Rica, em cópias manuscritas. É possível; mas na devassa da Inconfidência não se lhe faz qualquer menção; no entanto, seria peça de primeira ordem para delatores, acusadores e juízes. Parece, neste caso, que as cópias tiveram curso pequeno e sigiloso. Nem teriam tempo de divulgar-se, visto como a repressão foi imediata a sua composição, que deve datar do fim do governo de Cunha Meneses, 1788, prolongando-se com certeza até o ano seguinte. (MELLO E SOUZA, 1997: 161)

Quanto à contemporaneidade das “Cartas” a Cunha Meneses, referendo-me nas palavras de Rodrigues Lapa:

Não pode haver dúvida de que Cartas até certa altura, pelo menos até quase ao fim, foram escritas, como deviam ser, com Cunha Meneses presente. E a prova disso está no próprio texto (...) A maneira direta, violenta, como Critilo increpa Fanfarrão, não pode ser explicada pelo presente histórico e só se justifica na presença do atacado (LAPA apud FERREIRA, 1986: 195)

Só com alguma reserva poderíamos falar que um incipiente nativismo, no sentido político da palavra, bafejava Tomás Antônio Gonzaga em sua empresa. Isto porque os versos de Critilo falam diretamente contra o nefando preposto reinól, que concitara Vila Rica com sua prepotência e sustentara algumas refregas com Tomás. Não é inapropriado dizer que as “Cartas” nutrem certa indignação com a Coroa, na medida em que esta havia nomeado Fanfarrão para o seu “desgoverno”. Entretanto, da parte do missivista, em seu horizonte intelectual, não há qualquer pensamento autonomista, ainda que receasse que o poder real na colônia degringolasse. Há, em verdade, desvelo pela ordem e anseio por respeito às leis advindas de Lisboa. Como prefere Sérgio Buarque de Hollanda, a revolta de Critilo não é contra “as instituições que podem abrigar a justiça, mas contra a injustiça que deturpa as instituições.” (HOLLANDA apud FERREIRA, 1986: 203)

Se Critilo falou em insurreição, certamente o fez como conservador, temerário da subversão da hierarquia, a qual não queria ver soçobrada.

Virá dia em que a mão robusta e santa,

depois de castigar-nos, se condoa

e lance na fogueira as varas torpes.

Então rirão aqueles que choraram,

então talvez que chores, mas debalde,

que suspiros e prantos nada lucram

a quem os guarda para muito tarde. (Carta VI, v. 428 a 434)

 

Aqui, como quem prenuncia o pior, Critilo admoesta a Coroa sobre “as varas torpes” (leia-se as truanices de Meneses) a serem lançadas na fogueira por ação “da mão robusta e santa” contra a qual “suspiros e prantos nada lucram”. Alguns rirão, outros chorarão, pondera o satirista, certamente em exortação à Coroa.

Redobrada reserva seria necessária à associação dos decassílabos ao Iluminismo, como fez Delson Gonçalves Ferreira algumas linhas acima. Isto porque nas Cartas encontramos “passagens reconhecendo que o súdito jamais pode resistir ao poder, mesmo quando esse é exercido por um tirano. Para o satirista, a opressão da tirania é um castigo divino. No caso de Minas, motivado pelos primeiros colonizadores, que ‘Espalharam na terra tanto sangue!’” (FURTADO, 2006: 83)

A idéia de que a administração tortuosa do Fanfarrão era um desígnio de Deus contra o qual seria impossível lutar, ou seja, de que a mão do Divino pesaria no leme da História, vai de encontro às premissas axiais do Iluminismo: contratualismo, soberania popular, direito natural dos indivíduos, atenuação do clericalismo. De iluminista em Minas por aquela época quiçá encontremos apenas o acervo da biblioteca do Cônego Luís Vieira[14] e o “Recueil”[15], catecismo político de Tiradentes.

A inexistência de um substrato iluminista nas “Cartas” não significa que a literatura praticada na América portuguesa não tenha sido plasmada do ideário de Voltaire e seus pares. Antônio Cândido elenca as características da ilustração na literatura colonial, que em meados do século XVIII recebe as influências do Classicismo de inspiração francesa e do Arcadismo italiano:

a confiança na razão procurou, senão substituir, ao menos alargar a visão religiosa; (...) o ponto de vista exclusivamente moral se completou – sobretudo nas interpretações sociais – pela fé no princípio do progresso; (...) em lugar da transfiguração da natureza e dos sentimentos, acentuou-se a fidelidade ao real. Em suma, formou-se uma camada mais ou menos neoclássica, rompida a cada passo pelos afloramentos do forte sentimento barroco. (MELLO E FRANCO, 2000: 88)

Para ele o Iluminismo no Brasil historicamente

se liga ao pombalismo, muito propício ao Brasil e aos brasileiros, e exemplo do ideal setecentista de bom governo, desabusado e reformador. Para uma colônia habituada à tirania e carência de liberdade, pouco pesaria o despotismo de Pombal; em compensação avultaram a sua simpatia pessoal pelos colonos, que utilizou e protegeu em grande número, assim como os planos e medidas para o nosso desenvolvimento. (MELLO E FRANCO, 2000: 88)

O mesmo autor situa o momento a partir do qual o Iluminismo efetivamente passa a exercer forte influência e concorrer para a emancipação política da colônia portuguesa nas Américas, o que só aconteceria aproximadamente duas décadas após a Inconfidência, quando aquelas experiências inspiradas nas “luzes”, quais sejam,

as revoluções norte-americana e francesa, o exemplo das instituições inglesas, o nascente liberalismo oriundo de certas tendências ilustradas, completariam o impacto do pombalismo, formando um ambiente receptivo para as idéias e medidas de modernização político-econômica e cultural, logo esboçadas aqui com a presença da Corte, a partir de 1808. No Brasil joanino conjugaram-se as tendências e circunstâncias, tornando inevitável a autonomia política. (MELLO E FRANCO, 2000: 89)

Não pretendo circunscrever o que chamo de poesia mineira do último quartel dos setencentos às contundentes “Cartas” de Critilo. Por essa época houve em Minas rica produção artística no campo das letras e das artes plásticas[16]. Logo, faz-se necessário visitar alguns outros versos neoclássicos[17], geralmente soterrados pela euforia em torno do pseudo-libelo, inquirindo-os enquanto formas artísticas inseridas no contexto de um tempo histórico circunstanciado e como produto de processos mentais em cuja base esteve a sociedade que os engendrou, sendo o quilate dos versos, aqui, uma preocupação de segunda ordem[18]. O panorama da literatura em Minas no período recortado reforça as ilações por ora aduzidas, na medida em que não encontramos nos versos dos inconfidentes, mesmo num esforço hercúleo, qualquer menção à emancipação da colônia. Pelo contrário, há ditirâmbicas exaltações à Casa de Bragança e ternas evocações à D. Maria I.

Comecemos pelo mais experiente dos inconfidentes: Cláudio Manuel da Costa. Personalidade ambivalente, o poeta nascido na Vila de Ribeirão do Carmo, sexagenário à época da Inconfidência, recebeu de Antônio Cândido duas pechas: “bairrista mineiro” e “afetado coimbrão”. Deveras, há na poesia de Cláudio um pungente dilema, que talvez seja explicada pelo

contraste entre o rústico berço mineiro e a experiência intelectual e social da Metrópole, onde fez os estudos superiores e se tornou escritor. Intelectualmente propenso a esposar as normas estéticas e os temas líricos sugeridos pela Europa, sentia-se não obstante muito preso ao Brasil, cuja realidade devia por vezes fazê-los parecer inadequados, fazendo parecer inadequado ele próprio. Daí uma ambivalência que se manifesta de duas maneiras. Primeiro pelas desculpas que pede de sua rusticidade, da ‘grosseria das gentes’ de sua terra, indigna de pretender ombrear com a Metrópole (...) Mas (insinua na entrelinha) a sua obra é contribuição que traz para alinhar com as produções dos poetas portugueses, embora se origine dum filho da rude América. (MELLO E FRANCO, 1997: 90)

É representativo desta ambivalência o soneto LXII das “Obras”[19]:

Torno a ver-vos, ó montes; o destino

Aqui me torna a pôr nestes oiteiros,

Onde um tempo os gabões deixei grosseiros

Pelo traje da Côrte rico e fino.

Aqui estou entre Almendro, entre Corino,

Os meus fiéis, meus doces companheiros.

Vendo correr os míseros vaqueiros

Atrás de seu cansado desatino

 

Se o bem desta choupana pode tanto

Que chega a ter mais preço e mais valia,

Que da cidade o lisonjeiro encanto

 

Aqui descanse a louca fantasia;

E o que té agora se tornava em pranto,

Se converta em afetos de alegria.[20]

 

Antônio Cândido ressalta que, para além dos particularismos, Cláudio quis ser também homem de seu tempo, exercitando-se na busca da verdade e da natureza por meio da dicção simples. Em sua obra “é notória a preocupação com os efeitos que ampliam a civilização e constroem o fundamento da vida racional, racionalmente ordenada.” (MELLO E FRANCO, 1997: 102)

Para Cláudio a maiúscula de seu tempo era o progresso de Minas, não cogitando na consecução deste fito, em nenhum momento, a separação de seu “berço rústico” (a colônia) de sua pátria intelectual (a Metrópole ibérica). Nele vibrará sensivelmente, como indício eloqüente do futuro inconfidente (o homem preocupado com a Virtude, a Justiça), um sentimento profundo que “rompe a frieza do gênero e do conceitismo, mostrando o papel da justiça como requisito para a aceitação dum governo e o papel do mérito como critério de eminência social.” (MELLO E FRANCO, 1997: 101)

Estes rasgos ilustrados transparecem em seu “Epicédio I”, preparado na ocasião da morte do 1º Conde de Bobadela,

Não te faz grande o Rei: a ti tu deves

A glória de ser grande: tu te atreves

Somente a te exceder: outro ao monarca

Deva o título egrégio, que o demarca

Entre os Grandes por Grande: em ti, louvado

Só pode ser o haver-te declarado. 

(...) 

 

Epígono do autor do célebre poema “Vila Rica”, o carioca Inácio José de Alvarenga Peixoto, quem Antônio Cândido diz ter sido “mineiro na sensibilidade”, posto que se dedicou, a exemplo de seu númem tutelar, aos problemas da terra, morreria em Ambaca (Angola) cumprindo pena de desterro. Muitas composições de Alvarenga Peixoto perderam-se, herdando-nos o poeta pouco mais de vinte sonetos. 

Comentando o legado poético de Eureste Fenício (nome pastoral de Alvarenga Peixoto), Antônio Cândido pondera que o que restou de sua obra suscita a

impressão de que o conspirador só invocava as “canoras Musas” para celebrar poderosos e amigos, numa demonstração compacta da sociabilidade da literatura setecentista. (...) quero falar da utilização que os poetas fizeram do louvor a reis e governantes para, através dele, chegar à meditação sobre os problemas locais, cumprindo assim um dos objetivos da literatura ilustrada, em busca da verdade social. A homenagem tornava-se pretexto, tanto mais seguro quanto o poeta se escudava no homenageado e mesclava habilmente lisonja e reivindicação. (MELLO E FRANCO, 1997: 110)

É demonstrativo desse decoro de Alvarenga Peixoto para com as autoridades, a “Ode” que entoa à Rainha D. Maria I

Fidelíssima Augusta,

Desentranhe riquíssimo tesouro,

Do cofre americano a mão robusta

(...)

Para nós só queremos

Os pobres dons da natureza,

E seja vosso tudo quanto temos

(...)

Ah! Chegue o feliz dia

Em que do novo mundo a parte inteira

Aclame o nome Augusto de Maria.

 

“Real, real, primeira!”

Só esta voz na América se escute;

Veja-se tremular uma bandeira.

(...)

 

Há em seu “Canto Genetlíaco” mais que louvor a autoridades. Nele encontramos elementos de um peculiar nativismo, de uma identificação com as coisas da terra, que, conforme assinalado[21], constituiu-se como um dos pilares do Arcadismo mineiro. Contudo, não há nesta parca consciência dos valores da colônia qualquer alusão a sua emancipação.

Êsses partidos morros e escalvados,

Que enchem de horror a vista delicada

Em soberbos palácios levantados

Desde os primeiros anos empregada,

Negros e extensos bosques tão fechados,

Que até ao mesmo sol negam a entrada,

É do agreste país habitadores

Bárbaros homens de diversas côres,

Isto, que Europa barbaria chama,

Do seio de delícias tão diverso,

Quão diferente é para quem ama

Os ternos laços do seu pátrio berço!

O pastor louro, que meu peito inflama,

Dará novos alentos ao meu verso,

Para mostrar do nosso herói na bôca

Como em grandezas tanto horror se troca.

 

Aquelas serras na aparência feias

Dirá José, “Oh! quanto são formosas!

Elas conservam nas ocultas veias

A fôrça das potências majestosas;

Têm as ricas entranhas tôdas cheias

De prata e ouro, e pedras preciosas;

Aquelas brutas escalvadas serras

Fazem as pazes, dão calor às guerras.

 

Voltemo-nos agora para Gonzaga, magistrado nascido na cidade do Porto, que, ainda que não tenha participado ativamente da Inconfidência, era tido em grande conta pelos insurrectos, haja vista que por eles lhe foi reservada a presidência da malograda República da qual se enfatuou Tiradentes em face dos seus inquiridores. Sob o pseudônimo de Dirceu, escreveu a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas[22], Marília, pupila que conheceu já quarentão, versos que se consagrariam pelo refinado lirismo. Seus versos decerto deram longa vida à Marília, a quem nos faz conhecer enlevada por ser estro:

É melhor, minha amada, ser lembrada

Por quantos hão de vir sábios humanos

Que ter urcos, ter coches, e tesouros,

Que morrem com os anos. [23]

 

A presença da pastora Marília é permanente em suas Liras, nas quais fala do seu temor à decrepitude, da imortalização pelos versos, da exaltação da beleza, dos seus méritos, de Glauceste (ou Alceste, pseudônimos de Cláudio Manuel da Costa), da sua inocência no episódio da Inconfidência e do seu amor a Portugal (em especial nas 2ª e 3ª partes), do infortunado degredo que o afastou de Dorotéia de Seixas.

Sobre Dorotéia, é interessante notar que “se desindividualizou para ser absorvida na convenção arcádica: é a pastora Marília, objeto ideal de poesia, sem existência concreta. Pois isso, ora loura, ora morena; ora compassiva, ora cruel: em qualquer caso, sem nervo nem sangue.” (MELLO E FRANCO, 1997: 117)

São também traços marcantes na poesia de Gonzaga a preservação de sua individualidade, manifesta no pundonor de um homem cioso de suas atribuições, preocupado em preservar sua dignidade e integridade espiritual, cônscio de sua valia, como nas rusgas com o governador Luís da Cunha Meneses; a observação da beleza e da regularidade das coisas a ela inerentes (aquela busca pela ordem que caracterizou nossos árcades); e um merencório fatalismo, característico das “Cartas”, como se o seu destino estivesse nas mãos da Providência, como nas 6ª e 7ª estrofes da Lira XXVI da 2ª parte:

Mas ah! minha Marília que esta queixa,

Co’a sólida razão se não coaduna;

Como me queixo da Fortuna tanto

Se sei não há Fortuna?

 

Os Fados, Os Destinos, essa Deusa

Que os sábios Fingem, que uma roda move,

É só a oculta mão da Providência,

A sábia mão de Jové.

 

Esta pequena totalidade da obra dos poetas inconfidentes é uma prova crível de que só com esmerada reserva poderíamos falar em uma agenda anticolonial no seio do Arcadismo literário em Minas. Quero acreditar que, não obstante não tenham suspirado em versos e trovas e não tenham sido poetas delirantes, os inconfidentes Cláudio Manuel da Costa, Inácio José de Alvarenga Peixoto e Tomás Antônio Gonzaga, membros da elite intelectual daquela esbatida Vila Rica, podem ter arrazoadas as ações que os levaram a serem acusados de conspirarem contra a Coroa pelos versos que compuseram, ou seja, que a experiência literária que tiveram propiciou uma aplicação social da literatura, ainda que, per si, a poesia destes versejadores não testemunhe qualquer sentimento de independência política.

Antônio Cândido acredita que a experiência literária dos três poetas inconfidentes, reconhecidamente afiliados a uma mesma convenção estética, tenha propiciado o que chama de “sociabilidade literária” [24], meandro pelo qual de uma forma sutil, mas não menos importante, também teria passado a conspiração. A convivência ensejada pela literatura teria extravasado os quadros associativos da Arcádia Ultramarina[25] e desembocado em rebeldia política. Para ele

esta questão da sociabilidade literária (...) foi elemento de grande significado estético e social na história da nossa literatura. Além disso, manifesta um hábito de debate e circulação de idéias que com certeza contribuiu para difundir os pontos de vista da Ilustração e assim favoreceu a passagem das preocupações literárias para as políticas, desfechadas nas Inconfidências Mineira e Carioca. (MELLO E FRANCO, 1993: 133)

É notório quando Antônio Cândido discerne “preocupações literárias” de “preocupações políticas”. O nativismo da Arcádia, tendência da literatura da época, e o nativismo da Inconfidência, tentativa frustrada de emancipação política, não são concêntricos. À Arcádia, não obstante, estava subjacente a participação numa vida cultural mais prestigiosa do que a portuguesa, sendo a convenção pastoral uma espécie de “certificado de civilidade”, que ligava Minas ao principal centro cultural da época. Em outras palavras, a consciência de comunidade estética garantiu mais que escorreitos sonetos, serenas liras e laudatórias odes: ela ensejou, sobremaneira, uma consciência de equivalência entre Metrópole e colônia. Com efeito,

ser membro da Arcádia Romana, diretamente ou pela mediação da Ultramarina, significa ser reconhecido como participante em pé de igualdade da alta cultura do Ocidente, isto é, a cultura de que participava também o colonizador. Deste modo, o Brasil se equiparava a ele, pois praticava o mesmo tipo de literatura e podia ser identificado pela mesma convenção pastoral, que valia por um certificado de civilização. Ser membro da comunidade arcádica era ter status cultural e social equivalente, em princípio, ao do colonizador e, por extensão, ao de toda Europa culta. (MELLO E FRANCO, 1993: 133)

Ademais, algumas dessas concepções estéticas que levaram os colonos a ombrearem com os metropolitanos, favoreceram a articulação da literatura com o momento histórico. Um dos traços do discurso arcádico é a estética do lugar comum, signo de autenticidade e identidade. Na maioria das vezes os árcades são pastores bucólicos às voltas com seus afazeres campestres e em geral deslumbrados com suas canoras musas. O mérito de nossos árcades foi aclimatar o temário e a linguagem padrões do discurso literário arcádico à terra em que nasceram. Exemplo disso é a passagem do pastor a índio em Basílio da Gama ou representação da natureza local em termos da mitologia clássica, como fez Cláudio Manuel da Costa. Assim, gradualmente a linguagem convencionalizada era ambientada e desviada para uma aspiração embebida da realidade local, das aspirações locais.

Há que se considerar também que a convenção pastoral pressupunha

a dignificação do pastor, isto é, o homem rústico, o homem apartado da civilização urbana. Ora, sendo Minas Gerais em particular, o Brasil em geral, lugares rústicos e atrasados, a convenção pastoral permitia transformar a falha em mérito, valorizando esteticamente a rusticidade. Ao deixar implícito que o poeta brasileiro podia se equiparar ao europeu por meio da rusticidade (mesmo teórica), pois eram ambos árcades, isto é, pastores, a convenção arcádica foi fator de consciência e afirmação social. Por outro lado, graças a uma transferência sutil, permitiu que eles efetuassem o aproveitamento ilustrado do mito da idade de ouro, usando estrategicamente o conceito de rusticidade como correspondendo a um estado que devia ser redimido pela civilização, no plano real da vida econômica e política. (MELLO E FRANCO, 1993: 135)

Portanto, a expressão idealizada da moda pastoral concorreu para uma tomada de consciência dos valores e dos problemas do Brasil. O exercício poético a que se propunham no intento de se equipararem à cultura européia os colocou cara-a-cara com a rusticidade real da terra em que nasceram, a qual poderia ser transformada. Isto explica a exaltação a Pombal e outras personalidades cujas medidas lançaram luzes sobre a colônia.

De tudo que ficou dito, depreende-se que a ligação entre poesia e anticolonialismo na escola arcádica é sutil, distante daquela interpretação que insiste em apreender a poesia a serviço da Inconfidência. Essa ligação não está à flor da terra; ela é subterrânea, repousa em detalhes ao largo dos quais passa o historiador afoito. A poesia daquela elite aculturada que intentou contra o estatuto colonial não é, a meu juízo, exasperada: ela é exasperante.

 

Referências

ARAÚJO SANTOS, Ângelo Oswaldo. Arte e Exasperação. In: Análise & Conjuntura. Anais do Seminário “Inconfidência Mineira e Revolução Francesa – Bicentenário: 1789/1989”. Mesa Redonda “Panorama da Produção Artística em Minas Gerais no Século XVIII”. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1986.

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SACCONI, Luiz Antônio. Dicionário Essencial da Língua Portuguesa. São Paulo: Atual, 2001.


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 [1] Por “jograis inconfidentes” entenda-se Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744-1793) e Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), ou seja, os três poetas que foram implicados nos Autos da Devassa como conspiradores. Estes três, ao lado de Basílio da Gama, Silva Alvarenga (um dos próceres da Inconfidência Carioca) e Santa Rita Durão, formaram o que se convencionou chamar de Escola Mineira, pois estavam todos ligados, de alguma maneira, à capitania de Minas.

[2] Fábio Lucas esquadrinha notavelmente o tema em nossa literatura, joeirando-o em peças – “Gonzaga e a revolução de Minas”, de Antônio de Castro Alves; Tiradentes: Poema lírico em 4 atos, de Augusto de Lima; “Dirceu e Marília”, de Afonso Arinos de Melo Franco; “Retábulo do Alferes-Mor”, de Edmundo Lys; “Liberdade embora tarde”, de Domingos Carvalho da Silva – romances – “O Mascarado de Vila Rica”, de Martins de Oliveira; “Tal dia é o batizado - O romance de Tiradentes”, de Gilberto de Alencar; “Naquele natal”, de Geraldo França de Lima; “Em liberdade”, de Silviano Santiago; “Joaquina, filha de Tiradentes”, de Maria José de Queiroz; “Boca de chafariz”, de Rui Mourão – e versos – “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles; “Contemplação de Ouro Preto”, de Murilo Mendes; “Epístolas de Tiradentes”, de Dantas Mota. (LUCAS, 1993)

[3] No que diz respeito ao Arcadismo, expressão do Iluminismo no campo das letras, julgo importante o mapeamento feito por Antônio Cândido das características que adquire o estilo entre os poetas mineiros (com exceção de Cláudio Manuel da Costa, quem Antônio Cândido considera estar preso ao Cultismo Barroco e, por extensão, situar-se no limiar do novo estilo forjado no bojo das luzes): “louvor do governo forte que promove a civilização; preeminência da paz sobre a guerra; necessidade de civilizar o Brasil por uma administração adequada; desejo que o soberano viesse efetivamente tomar conhecimento da nossa realidade; aspiração de sermos governados por brasileiros, que compreendessem os caracteres originais do país, marcado pela fusão das raças e a aclimatação da cultura européia. É a mistura, típica dos nossos ilustrados, de pombalismo, nativismo e confiança nas Luzes.” (MELLO E SOUZA, 1997: 111) Noutra obra, o mesmo autor alinha as características universais do Iluminismo: “o culto da natureza, que favoreceu a busca da naturalidade de expressão e sinceridade de emoção, contrabalançando a sua eventual secura; o desejo de investigar o mundo, conhecer a lei da sua ordem, que a razão aprendia; finalmente, a aspiração à verdade, como descoberta intelectual, como fidelidade consciente ao natural, como sentimento de justiça na sociedade”. (MELLO E SOUZA, 2000: 89)

[4] As “Cartas Chilenas”, escritas por Critilo a Doroteu da Espanha, são compostas de 4268 versos decassílabos não rimados. Divididas em 13 cartas propriamente ditas, a “Dedicatória”, o “Prólogo” e a “Epístola a Critilo”, as Cartas narram os desmandos do governador Fanfarrão Minésio, General do Chile. As 7ª e 13ª cartas ainda hoje continuam incompletas, tendo a última apenas 29 versos. Delson Gonçalves nos informa que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) guarda quatro manuscritos das cartas: somente um traz todas as treze, estando sempre a 7ª e a última incompletas. O mesmo autor menciona ainda um quinto manuscrito das sátiras, descoberto por Vital Pacífico Passos, na Biblioteca de Belém do Pará. (FERREIRA, 1986: 181)  

[5] Antônio Cândido enumera alguns estudos realizados com riqueza de detalhes acerca da autoria dos decassílabos brancos, os quais levam em consideração os criptônimos, o estilo dos versos (imagens, recursos poéticos, número de palavras por período), correspondências e traços morais dos vilariquenses. (MELLO E FRANCO, 1997: 162-164)

[6] Dentre as muitas acepções da palavra, utilizo a primeira das definições de Sacconi: “arte de persuadir pelo discurso”.  (SACCONI, 2001: 819)

[7] No que tange ao conceito de elite, referendo-me aqui na teoria postulada por Gaetano Mosca nos “Elementi di scienza política” (1896), no qual escreve: “Entre as tendências e os fatos constantes que se acham em todos os organismos políticos, um existe cuja evidência pode ser a todos facilmente manifesta: em todas as sociedades, a começar por aquelas mais mediocremente desenvolvidas e que são apenas chegadas aos primórdios da civilização, até as mais cultas e fortes, existem duas classes de pessoas: a dos governantes e a dos governados. A primeira, que é sempre menos numerosa, cumpre todas as funções públicas, monopoliza o poder e goza as vantagens que a ela estão anexas; enquanto que a segunda, mais numerosa, é dirigida e regulada pela primeira, de modo mais ou menos legal ou de modo mais ou menos arbitrário e violento, fornecendo a ela, ao menos aparentemente, os meios materiais de subsistência e os que são necessários à vitalidade do organismo político.” (Gaetano Mosca apud BOBBIO, 2000: 385) Não obstante o eurocentrismo patente, o que aqui entendo por “elite da Vila Rica do último quartel dos setecentos” converge satisfatoriamente para o postulado de Mosca.     

[8] Segundo Chiavenato, em 1788 corria em Lisboa contra o falido e perdulário Alvarenga Peixoto uma ação executiva de cobrança. (CHIAVENATO, 1989: 23)

[9] Quanto à instauração duma república em Minas, Delson Gonçalves Ferreira rompe os domínios da Capitania ao afirmar que “as colônias inglesas eram modelo para a criação de uma nova república, livre e democrática e também confederada, a começar de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro.” (FERREIRA, 1986: 193). O autor baseia-se aqui no fato de Tiradentes trazer sempre consigo uma tradução em francês da Constituição das ex-colônias inglesas do norte - Recueil des Loix constitutives des Colonies Angloises confédérées sous la denómination des États-Unis de l’Amérique Septentrionale – e arengar pelas ruas de Vila Rica em apologia à república. O mesmo autor diz que este intento ficou registrado nos autos da Inconfidência.

[10] Sobre a sátira dos setecentos, Antônio Cândido escreveu: “Para compreendermos hoje uma sátira escrita há duzentos anos é preciso lembrar a função que exercia, de tendência moralizadora muito próxima ao que é o jornalismo. Dos pequenos sonetos de maledicência ou debique aos poemas longos, ajustados à norma do gênero; uns arredondando-se no riso, outros encrespados pela indignação; uns visando as pessoas na sua singularidade, outros querendo abranger princípios e idéias, - todos assumiam atitude crítica e manifestavam desejo de orientar e corrigir; como a imprensa moderna.” (MELLO E FRANCO, 1997: 153)

[11] Na historiografia da Inconfidência, as querelas entre Meneses e Gonzaga vão do público ao privado. Com efeito, além da versão corrente de que Gonzaga se levantara contra “Fanfarrão” por sentir-se desautorado e consternar-se, como súdito fiel da Coroa, com a desordem, o sacrilégio, a quebra de hierarquia, as frivolidades, a contravenção, enfim, a venal corrupção ativa do “General Minésio”, alguns autores, como o consagrado Tarquínio J. B. de Oliveira, justificam-na aduzindo alguns motivos pitorescos, como a suposta desavença entre Gonzaga e Meneses por este ter tomado ao primeiro a amante, a loura Maria Joaquina Anselma de Fiqueiredo. Cabe ressaltar que Tarquínio não esgota a sua discussão acerca das “Cartas” por esse viés. (FERREIRA, 1986: 183)

[12] Os versos das “Cartas Chilenas” aqui reproduzidos foram extraídos da edição crítica de 1972 de Tarquínio J. B. de Oliveira. (OLIVEIRA, 1972)

[13] Na contramão desta afirmação, Delson Gonçalves Ferreira escreve que as “Cartas” “deviam sair em forma de pasquins, afixados em alguns lugares da cidade ou volantins distribuídos de mão em mão, manuscritos. Francisco Luís Saturnino da Veiga, que morava em Vila Rica na época, foi um cuidadoso colecionador e copiador desses manuscritos. Podiam ser numerosas as cópias dessas ‘Cartas’ para serem espalhadas pela cidade, mas se perderam, em geral, porque foram escondidas, rasgadas, queimadas, destruídas de qualquer modo, nos dias de pavor de 1789.” (FERREIRA, 1986: 196)

[14] Chiavenato nos diz que a biblioteca do clérigo estava recheada de grandes pensadores, destacando obras de Montesquieu, Bierfiel, Diderot, D’Alembert e do abade Raynal, além de “dicionários, enciclopédias, compêndios de ciências, a constituição de vários países, inclusive a dos Estados Unidos, em várias línguas.” Salvaguarda, todavia, que “a sua influência como difusor de idéias não deveria ser tão grande como parece. Primeiro, pelos poucos aptos a apreender os textos da sua biblioteca. E também porque não há muita coisa na ação dos inconfidentes a indicar um rigor maior identificando-se com as idéias iluministas da época.”. (CHIAVENATO, 1989: 24) 

[15] Consultar a este respeito nota 7.

[16] A relação entre artes plásticas e literatura em Minas no período é comentada por Myriam Adrade: “Se houvesse ocorrido identificação dos artistas, oficiais mecânicos e mestres-de-obras que construíram e ornamentaram as igrejas mineiras com o ideário iluminista da Inconfidência Mineira, certamente a história da arquitetura e das artes plásticas na região seria hoje contada de outra forma. Com efeito, historicamente, o verdadeiro produto da estética iluminista, que tem em sua base uma nova concepção da vida, baseada na natureza e na razão, sob o signo da liberdade política e da tolerância religiosa, são os classicismos e neoclassicismos diversos, como acentuou Pierre Francastel. No contexto cultural e artístico de Minas Gerais, esses conceitos só atingiram a literatura dos poetas, reunidos no grupo da Arcádia mineira, que coincidentemente, também tiveram participação ativa no movimento da Inconfidência. (...) A um mundo diferente e ainda sob diversos aspectos ligados à mentalidade do Antigo Regime, aqui perpetuado principalmente pela ação dos organismos religiosos e sócio-profissionais conhecidos pelo nome de confrarias e irmandades, pertenciam os artistas, oficiais mecânicos e artífices do rococó mineiro.” (RIBEIRO DE OLIVEIRA, 1986: 177)

[17] A expressão “neoclássico” também designa o movimento artístico que algures definimos como arcadismo.

[18] Sobre o papel do historiador da literatura, Hans Robert Jauss escreveu: “não é apenas raro, mas francamente malvisto, que um historiador da literatura profira veredictos qualitativos acerca de obras de épocas passadas. Muito pelo contrário, o historiador costuma, antes, apoiar-se no ideal de objetividade da historiografia, a qual cabe apenas descrever como as coisas efetivamente aconteceram. Sua abstinência estética  funda-se em boas razões. Afinal, a qualidade e a categoria de uma obra literária não resulta nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão somente de seu posicionamento no contexto sucessório do desenvolvimento de um gênero,  mas sim dos critérios da recepção, do efeito provocado pela obra e de sua fama junto à posteridade, critérios estes de mais difícil apreensão.” Mas adverte: “se comprometido com o ideal da objetividade, o historiador da literatura limita-se à apresentação de um passado acabado, deixando ao crítico competente o juízo acerca da literatura do presente inacabado e apegando-se ao cânone seguro das obras ‘obras- primas’, permanecerá ele o mais das vezes, em sua distância histórica, uma ou duas gerações atrasado em relação ao estágio mais recente do desenvolvimento da literatura. Na melhor das hipóteses, participará, pois, como leitor passivo da discussão presente sobre os fenômenos literários contemporâneos, tornando-se, assim, na construção de seu juízo, um parasita de uma crítica que, em segredo, ele desdenha como não-científica.” (JAUSS, 1994: 7-8)

[19] Os versos de Cláudio Manuel da Costa e Inácio José de Alvarenga Peixoto aqui reproduzidos foram extraídos da antologia dos poetas coloniais feita por Sérgio Buarque de Hollanda. (HOLLANDA, 1952)  

[20] Convém dizer que são preservadas aqui ortografia e sintaxe da época.

[21] Vide nota 2.

[22] Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, a incensada musa de Gonzaga, não preservou sua castidade na ausência do desterrado que a louvara em versos, ao contrário de algumas versões idílicas a seu respeito. Pelo contrário: Manuel Teixeira de Queiroga, o Roquério das maledicentes “Cartas”, teria consolado a jovem Marília quando esta soube que Tomás havia se casado com Juliana Mascarenhas em Moçambique. Da condescendência de Manuel Teixeira nasceria Anacleto Teixeira de Queiroga, filho enjeitado de Maria Dorotéia. Roquério se vingava do satirista. Estes e outros curiosos detalhes da biografia de Tomás Antônio Gonzaga quem nos conta é Tarquínio J. B. de Oliveira, aplicado pesquisador da Inconfidência que impressiona pela riqueza documental de seus textos. (OLIVEIRA, 1978)

[23] Os versos de Gonzaga que se seguem a partir daqui foram extraídos de uma edição de Marília de Dirceu preparada por M. Cavalcanti Proença. No prefácio Proença faz a seguinte ressalva: “o texto dessa edição corresponde ao que foi estabelecido pelo professor Rodrigues Lapa, na edição do Instituto Nacional do Livro, e a disposição dos poemas, à que se deveu a Afonso Arinos de Melo Franco na edição da Livraria Martins”.

[24] Este é o tema central da palestra “Os poetas da Inconfidência”, proferida por Antônio Cândido em 1993 e publicada no IX Anuário do Museu da Inconfidência. (MELLO E FRANCO, 1993)

[25] Por muito tempo a “Arcádia Ultramarina”, galho da Arcádia Romana na Colônia portuguesa das Américas, foi objeto de debates que se estenderam por mais de um século. A ausência de provas documentais fez com que muitos historiadores duvidassem da existência dessa agremiação,  e pensassem se tratar, as esporádicas alusões a ela feitas nos escritos dos árcades mineiros,  de um modo de indicar orientação estética. Todavia, alguns documentos encontrados por pesquisadores dedicados ao tema sugerem que de fato ele teria sido instalada no Brasil por volta de 1768. Antônio Cândido, que por muito tempo julgou ser a Arcádia uma especulação, teria reconhecido a sua existência, colocando a questão acima de qualquer suspeita. (MELLO E FRANCO, 1993).

 

 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 22 abril, 2008.