RAFAEL CHAVES SANTOS

Mestrando em lingüística aplicada na UFRJ

 

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Os viajantes e o negro no Rio de Janeiro do século XIX

Rafael Chaves Santos

 

Resumo: Os viajantes alemães que vieram ao Brasil no século XIX produziram relatos a respeito da população brasileira baseados na ideologia iluminista e, fundamentalmente, no conceito de Bildung (formação). Estes relatos continuam sendo fontes históricas fundamentais para a compreensão de nosso passado colonial e imperial e certamente vão contribuir, direta ou indiretamente, para as construções identitárias veiculadas pela própria elite letrada no Brasil, após interagirem com estes discursos. O presente artigo os analisa do ponto de vista da ideologia e das práticas sociais de seus enunciadores.

Palavras-chave: Iluminismo, negros, viajantes, ideologia

 

Travelers and black people in Rio de Janeiro in the XIX century

Abstract: German travellers that came to Brazil in the XIX century had produced documents about the brazilian population based on the illuminist ideology and, fundamentally, in the Bildung concept. These reports are still essential historic sources for the comprehension of our colonial and imperial past that will certainly contribute, direct or indirectly, to identity constructions related to our own literate elite in Brazil, after they interact with these speeches. The present paper analyses them by the ideology point of view and by the social practices of their enunciators.

Keywords: Enlightenment, blacks, travelers, ideology

Navio Negreiro (Rugendas)Introdução

No século XIX são incontáveis os viajantes, principalmente europeus, que, por uma razão ou por outra, desembarcaram em nosso país. Dentre estes encontramos um grande número de alemães, os quais, em sua maioria, são cientistas das mais diversas áreas. Na verdade o número de alemães que vêem ao Brasil só é ultrapassado pelo número de viajantes ingleses.

Estes pesquisadores produzem obras sobre suas áreas ocupacionais e suas obram, de maneira direta ou mesmo indireta, se referem aos habitantes do Brasil, brancos portugueses ou descendentes, mulatos, negros e índios, assim como a questões nacionais, como a escravidão.

Este artigo terá como foco apenas os viajantes alemães que no século XIX vieram ao Rio de Janeiro e que, de alguma forma, se ocuparam com as questões da população desta cidade.

É necessário ressaltar aqui que estes viajantes alemães viviam ainda sobre a influência do Iluminismo, movimento que influenciou as mais diversas áreas de atuação, como por exemplo, a política, economia, artes etc. O Iluminismo iniciou-se no século XVIII e atingiu seu ápice em 1789 com a Revolução Francesa e, em cada nação européia apresentou características diferenciadas.

Na Alemanha, o Iluminismo teve forte influencia na literatura e na área político-econômica. Esta influencia sempre foi regida por um conceito fundamental, que diferenciou por completo o Iluminismo alemão dos demais, o conceito de Bildung. Esta palavra, que tem difícil tradução por abranger várias nuances, pode ser de certa forma entendida como “formação cultural” ou nas palavras de Maas (2000, 27):

a tendência dos dicionários e do uso lingüístico moderno é de atribuir ao termo “Bildung” (formação) o sentido de um resultado de um processo que não pode ser atingido apenas pela atividade metódica da educação; a “Bildung” pressupõe a atividade espontânea do indivíduo, ocorrendo ao longo do processo de auto-aperfeiçoamento.

O conceito propõe a transformação humanista do homem a partir da cultura, do conhecimento, e, centralmente, a partir da linguagem, um conceito cunhado pela intelectualidade alemã no sentido da superação dos valores feudais do velho regime e da introdução de valores republicanos, em substituição à violência de massas e à ação política direta, coisa então impossível no Império Germânico de então.

É essencial ter esta noção do significado do termo Bildung para analisar a visão destes viajantes alemães, influenciados pelo Iluminismo, e concluir até que ponto seus discursos são, na verdade, racionais[1] ou limitados.

Este artigo, contudo, é apenas uma pequena parte de um projeto de pesquisa mais amplo que pretende discutir também, a partir da análise de discursos dos viajantes alemães que no século XIX estiveram no Rio de Janeiro, a questão da formação identitária do Brasil e, desta forma, demonstrar em que medida práticas discursivas de então se relacionaram com os discursos nacionais da época, gerando os discursos da atualidade a respeito da população nacional.

Esta pesquisa propõe uma análise interdisciplinar que aciona as disciplinas da história e da antropologia e tem como base a análise crítica do discurso, que entende o texto e sua linguagem como práticas sociais e, sem abandonar o contexto, discute a relação existente entre linguagem e poder. Segundo Wodak (2003: 19-20)

a ACD trata de evitar o postulado de uma simples relação determinista entre os textos e o social. Tendo em consideração as intuições de que o discurso se estrutura por dominação, de que todo discurso é um objeto historicamente produzido e interpretado, isto é, que se acha situado no tempo e no espaço, e de que as estruturas de dominação estão legitimadas pela ideologia de grupos poderosos, o complexo enfoque que defendem os proponentes.

Para este artigo foram selecionados, entretanto, apenas dois viajantes. A visão destes viajantes foi abordada em relação a uma parte da população do Brasil de então: os negros (escravos). Desta forma, este artigo limita o seu campo de abordagem a uma parte da população retratada pelos autores, contudo, sem perder, por este motivo, a raiz do pensamento presente nestes autores selecionados.

Os viajantes alemães

O primeiro viajante escolhido é Carl Hermann Conrad Burmeister, nascido em 1807 na cidade de Stralsund e falecido em 1892 em Buenos Aires, um dos mais importantes representantes desta época e, em seu relato, encontramos valiosas informações, o que torna a análise bastante significativa.

Alexander Von Humboldt, que se impressionou com a obra “Geschichte der Schöpfung” (História da criação) de 1843, escrita por Burmeister, obteve para este junto à universidade de Halle uma autorização especial para que ele pudesse realizar, então, no ano de 1850 uma viagem de caráter científico ao Brasil. No dia 12 de setembro de 1850 iniciou-se a viagem que só terminaria em 6 de abril de 1852.

O resultado desta viagem pode ser considerado de extrema relevância, já que Burmeister catalogou 800 espécies de pássaros, 90 espécies de anfíbios, 70 de mamíferos e aproximadamente 8 mil espécies de insetos. Além disso, publicou nos anos seguintes 5 obras sobre a viagem: Bericht über eine Reise nach Brasilien (Relato sobre uma viagem ao Brasil) em 1853, Landschaftliche Bilder Brasiliens (Imagens paisagísticas do Brasil) no mesmo ano, Reise nach Brasilien (viagem ao Brasil) também em 1853, Systematische Uebersicht der Thiere Brasiliens -3 Bände (Resumo sistemático dos animais do Brasil em 3 volumes, entre 1854 e 1856, e Erläuterungen zur Fauna Brasiliens (Comentário sobre a fauna brasileira) em 1856.

Destas cinco obras publicadas sobre a viagem, a que será utilizada neste artigo é a obra Reise nach Brasilien (viagem ao Brasil) de 1853, onde se encontram relatos do autor sobre a população do Brasil.

Este autor é, sem dúvida, um verdadeiro representante da época da razão, pois além de professor catedrático da universidade de Halle, foi botânico, zoólogo, geógrafo, geólogo, biólogo marinho, palenteólogo, etc e publicou cerca de 300 trabalhos em diversas áreas científicas.

O segundo viajante escolhido é Ernst Ebel[2], cujas datas de nascimento e morte permanecem ocultas para os pesquisadores brasileiros. O que se sabe sobre este viajante é que ele nasceu na cidade de Riga, capital da Letônia, que ficou sobre influência alemã até fins do século XIX, quando em 1891 a língua russa foi imposta como oficial. À época de Ernst Ebel a maioria da população, cerca de 42,5%, falava alemão e, sabe-se que todos os registros de nascimento, casamento e mortes foram mantidos em alemão até 1891.

Em 1824 Ernst Ebel vem ao Brasil a princípio como “turista” e escreve uma espécie de diário para seus amigos. Estes insistem para que Ebel publique suas anotações por acharem que elas serviriam como fonte de informações úteis a outros possíveis viajantes que resolvessem visitar o país. Desta forma, Ebel decide por reunir suas breves cartas e, após organizá-las, resolve publicá-las em 1828. O seu livro é intitulado Rio de Janeiro und seine umgebungen im Jahr 1824 (O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824)

Também é interessante relatar que Ernst Ebel no prefácio de sua obra pede desculpas ao leitor por não ser escritor de profissão e diz que o valor de seu “livrinho”, assim chamado por ele, reside no fato de conter somente a verdade, “o tanto quanto nos seja possível, criaturas sujeitas a equívocos, vislumbrar essa deusa.”

Esta temática sobre a verdade das palavras ou relatos de viajantes já tinha sido anteriormente polemizada de forma mais objetiva por Maximiano de Wied-Neuwied[3] em sua obra Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817 (Viagem ao Brasil nos anos de 1815 e 1817), na qual este viajante afirma:

Faz-se geralmente na Europa uma idéia bastante inexata desses longínquos países. Pode-se atribuir esse erro a certos viajantes, que não se limitam a tratar somente do que viram e a escritores que fizeram descrições elaboradas nos gabinetes e compostas sobre tema escolhido, com as mais interessantes citações de autores conhecidos, e arranjados pela fantasia, sem nenhum conhecimento da matéria, que podem agradar pelo primor do estilo e a forma atraente com que são apresentados, mas não possuem nenhum valor intrínseco, pois estão repletos de erros. Como evitar os erros e as inexatidões, quando não se tem presente, aos olhos, o objeto de que se deseja traçar a imagem? Aplicam-se ao conjunto traços que só convém às partes de um país tão grande como o Brasil, se pareçam umas com as outras, quando cada província apresenta sua particularidade distinta? Assim é que se lê em mais de um livro que, em todo o Brasil, se encontram fetos arborescentes; exagera-se em geral a beleza do país; fala-se de macacos que riem e tagarelam; de pássaros canoros que chilreiam; de laranjeiras que crescem nas florestas; de Agave fatida em cima das árvores; de toda sorte de propriedades absurdas atribuídas às serpentes; fazem-se descrições exageradas das florestas. O fato é que raramente se encontram reunidas todas as coisas agradáveis e interessantes como o imagina um autor sentado em sua poltrona, depois de haver retirado suas descrições de viajantes acostumados a representar tudo com exagerada beleza. (Wied-Neuwied, 1820, 399)

Com base no que afirma Wied-Neuwied torna-se necessário refletir acerca do que é relatado por um viajante. Por um lado àquele que esteve em contato com determinada situação, pode vir já previamente carregado de conceitos e ter um olhar e opinião direcionados e prontos sobre algo e; da mesma forma, o fato de não ser um escritor de gabinete, ou seja, ter vivenciado fatos não torna necessariamente suas palavras verdade, estas são apenas a visão deste autor (viajante) que podem ou não ter uma relação direta ou indireta com a realidade, que em tese é a sua verdade, a verdade para seus olhos e que devem ser muito bem analisadas e criticadas por seus leitores.

O que devemos levar em conta não é somente se os relatos são ou não fontes fidedignas, mas que são documentos que, como os demais, devem ser tratados criticamente e que, em geral, acusam um alto grau de veracidade subjetiva, isto é, descrevem experiências individuais que estão ligadas à personalidade do escritor, ao seu grau de escolarização, ao seu nível social e à vivência que teve neste seu novo hábitat.

O objetivo maior da pesquisa em andamento que é relativizado neste artigo é, portanto, analisar até que ponto estas palavras destes viajantes se concretizaram em realidade (verdades) e foram então assimiladas pelos receptores europeus assim como pelos brasileiros à época.

Burmeister e o negro

Feitas estas ressalvas preliminares, passemos então a examinar os textos em questão, concentrando a analise na questão do negro na visão dos autores.

O negro é, a vista da grande maioria dos viajantes alemães, retratado como um ser inferior ao branco (brasileiro[4] ou europeu) e a escravidão, como algo necessário ou até mesmo positivo para este “ser inferior” que em sua nação de origem, na visão dos viajantes, estaria em condições piores.

Burmeister, se olharmos superficialmente, caracteriza o negro positivamente em alguns trechos de sua obra. Em alguns momentos de seu texto ele nos apresenta características positivas e um olhar também positivo sobre o negro, podendo enganar um leitor distraído, levando-o até a pensar numa espécie de simpatia do autor para com aquele. Nos trechos abaixo selecionados, vemos o nosso viajante em questão eufemizando[5] o que ele posteriormente vai criticar abertamente com um leque de adjetivos:

O negro, no Brasil, nunca é chamado por tal, mas sim de ‘preto’, que é o nome da própria cor. A palavra negro é termo carinhoso, especialmente para crianças, sendo freqüente o pai chamar o filho de ‘meu negro’. (1853, 72)

Seus modos para com os brancos sempre me pareceram decentes e respeitosos e nunca notei a mínima descortesia. O mercado da praia dos mineiros, onde se vende grande quantidade de gêneros alimentícios, é o principal ponto de reunião da gente de cor. O negro é, em suma, um indivíduo de bom humor. (1853, 73)

Mas para o leitor mais atento o texto de Burmeister vai pouco a pouco se deslocando da eufemização para a naturalização[6] do negro.

Embora convencido, por observação própria, de que é exata a afirmação da inferioridade física e mental do preto em relação ao branco e que jamais passará de sua posição servil na vida em comum com este, sempre lhe tive grande simpatia, contemplando-o com interesse, como produto exótico da natureza (1853, 72)

Nesta aproximação do negro com a natureza, Burmeister vai construindo um discurso que justifica a posição inferior do negro em relação ao branco na escala social. E deixa clara sua visão da inferioridade mental (Bildung) do negro em relação ao branco, como um ser que nunca vai evoluir intelectualmente. A alternância constante entre a eufemização e a naturalização, como representações ideológicas, entra, então, em choque quando Burmeister se refere à convivência direta com o negro.

Amava-os, se assim posso dizer, teoricamente, à distância, enquanto não fui forçado a conviver, mas desde que tal aconteceu, este sentimento transformou-se em repugnância. O preto tem algo de desagradável, que é menos de seus costumes que de sua pessoa física. (1853, 73)

Nota-se com clareza que do “amor” (amava-os), a simpatia do autor pelo negro, passou rapidamente a repugnância e logo em seguida o autor nos justifica esta mesma repugnância novamente com a aproximação do negro à natureza, ou seja, utilizando-se de uma justificativa “natural” para isso. Na situação aqui descrita trata-se apenas do cheiro do negro, algo natural a qualquer ser humano, como o próprio autor nos diz, e que no caso do negro é tratado como algo diferenciado.

A catinga provém das exalações e da transpiração do corpo, sendo agravada ainda pela falta de asseio da maioria deles, mas, como não é esta a causa, nem limpeza, nem banhos adiantam. Assemelha-se ao cheiro de suor de gente comum, porém mais penetrante e ascoroso. Há indivíduos que o tem em grau mínimo; outros, entretanto exalam-no de modo a sentir-se a grande distância (1853, 73)

Em outro momento quando Burmeister fala sobre as habilidades físicas dos negros novamente os aproxima da natureza, ao compará-los a macacos e, da mesma forma, os desqualifica como seres que possam ter traços intelectuais:

Em suas obrigações, não se destacará pelo zelo, mas será sempre pontual; precisa entretanto, ser vigiado para não se tornar preguiçoso. Adquire facilmente certa agilidade e habilidades manuais que fazem lembrar o dom de imitação do macaco, mas falta-lhe, por completo o gênio de invenção e a iniciativa própria.(1853, 73)

E o autor segue na sua qualificação, agora aberta, sobre os negros e o modo como eles devem ser tratados:

Alguns são extremamente falsos e unicamente por meio de contínuos castigos podem ser conduzidos. Em breve, porém, acostumam-se de tal forma às punições que perdem o receio ao chicote, recalcitrando nos seus erros e vícios antigos por pura maldade. (1853, 74)

Burmeister deixa clara sua visão de que o negro, como escravo, deve acima de tudo ser obediente, e qualifica sua atitude quando não está sobre vigilância de seu ‘dono’ como algo próximo a uma atitude infantil ou mesmo animalesca, algo que segue a força da natureza, e que para ser obtida pode-se recorrer a qualquer tipo de recurso, inclusive, ou principalmente, o castigo físico, através de chicotadas.

... se a obediência é devida unicamente ao medo, fará tudo que lhe passar na cabeça sempre que não for vigiado. Em regra, porém, consegue-se menos pela bondade ou mesmo pela camaradagem do que pela severidade (1853, 74)

Em seguida, após falar sobre a obediência ou desobediência do negro (escravo), Burmeister refere-se aos momentos em que os negros se encontram sozinhos e, da mesma forma, os aproxima da natureza comparando-os novamente aos macacos.

Quando entregues a si próprios, os negros têm algo de ridículo, que faz pensar na sua inegável aproximação da natureza do macaco. Falam consigo mesmos, em voz alta enquanto passeiam ou carregam seus fardos.(1853, 74)

Se tomarmos como base o pensamento de Lakoff e Johnson que afirmam que “na cultura ocidental, as pessoas se vêem como tendo controle sobre os animais, e é a capacidade especificamente humana de atividade racional que coloca os seres humanos acima dos outros animais e lhes propicia esse controle” (2002, 65), podemos entender onde Burmeister quer colocar o negro no quadro social, ou seja, como um ser que deve, por sua irracionalidade e incapacidade, ser controlado pelo branco. Essa tentativa constante do autor de aproximar o negro, por suas características físicas, seja por sua aparência ou mesmo pelo seu cheiro (de suor) ao macaco (natureza - entendida como algo que o homem controla) leva-nos a concluir que, para ele, o negro é definitivamente um ser inferior ao branco (europeu) e deve estar não só sob o julgo deste, mas também ser tratado de maneira diferenciada, ou seja, como ser inferior que é.

Inegável também é, na verdade, notar o quanto Burmeister, por ser um cientista renomado, através de seus relatos, conseguiu que alguns de seus conceitos, no caso sobre o negro, fossem assimilados, após interagirem com outros de sua época e que assim, permanecessem na ideologia difundida não somente na Alemanha, ou na Europa, mas também aqui, no Brasil.

Antes de concluir, contudo, é preciso se ater ainda à questão do modo de construção do texto (estilo) para reafirmar o que foi dito acima.

Segundo Fairclough (2003, 168) “a questão da modalidade pode ser vista como a questão de quanto às pessoas se comprometem quando fazem afirmações, perguntas, demandas ou ofertas.” Essa questão de estilo se torna complexa para ser analisada quando se trata de um texto traduzido, podendo, assim, gerar imperfeições e falsas conclusões, já que em algumas passagens há uma mudança significativa no que se refere à modalidade do texto. Não entro aqui no mérito da tradução, ressalto apenas que para esta análise será utilizado, então, o texto no original, ou seja, em alemão.

Para, de certa forma, não prolongar demais a análise utilizarei apenas um pequeno parágrafo que, contudo, exemplifica claramente a questão da modalidade neste autor:

Obwohl ich nach meiner ganzen Erfahrungen mich für die Richtigkeit der Ansicht entscheiden muss, dass der schwarze Mensch körperlich wie geistig unter dem Weissen steht. (1853, 88)

Neste parágrafo nota-se, primeiramente, a utilização de um verbo modal. O verbo em questão aqui é o müssen, utilizado na primeira pessoa do singular, muss, significando a voz do autor. Este verbo é comumente traduzido por “ter que” e enfatiza a idéia que algo que foi dito só pode ser verdade.

Quando recorremos a um dicionário monolíngue[7] para buscar o significado deste verbo vemos as seguintes definições: (1) expressa algo que necessariamente é, ou (2) expressa algo em que o falante necessariamente acredita. (2007, 302)

Outro verbo importante para a análise presente neste parágrafo é o verbo sich entscheiden (decidir-se por) e, no caso, o autor decidiu-se pela certeza (Richtigkeit) de que o negro é (tem que ser/ muss) inferior ao branco, não só fisicamente (körperlich), mas também mentalmente (geistig).

Em seguida percebe-se a utilização de palavras que deixam claro que aquela é a visão do autor: nach meiner Erfahrungen (segundo minha própria observação). Desta maneira ao delimitar que a afirmação é sua, por ser um homem da razão, um cientista renomado, e utilizar construções expressivas, ricas de sentido e significado, aquilo que afirma (a inferioridade do negro em relação ao branco) passa, então, a ser visto como verdade.

Ebel e o negro

Ernst Ebel, de outra forma, no que diz respeito à sua descrição do negro é, desde o princípio, categórico em afirmar que este é inferior ao branco e, da mesma forma que Burmeister, o aproxima da natureza. É, portanto, importante frisar aqui a afirmação de Lakoff e Johnson (2002) de que o homem acreditava que controlava a natureza e, assim sendo, ele poderia fazer o que bem entendesse com ela para obter benefícios.

Logo que chega ao Rio de Janeiro Ebel se depara com um enorme número de negros. Sua primeira impressão já qualifica sua visão do “exótico” e igualmente a Burmeister se refere ao cheiro do negro como algo desagradável:

Estranha é a sensação do desembarque. Ao invés de brancos só vi negros seminus a fazerem um barulho infernal e exalarem um cheiro altamente ofensivo ao olfato. (1828, 12)

Porém, o que mais se destaca no relato de Ernst Ebel, e que, por um lado, também justifica a sua escolha para esta análise, é o fato dele abordar, mesmo que não se aprofundando no tema, a questão econômica da escravidão. Dentre os viajantes de língua alemã estudados até aqui na pesquisa em andamento, apenas Ernst Ebel e Ina Binzer[8] abordam esta questão até certo ponto objetivamente. Porém Ina Binzer trata a questão de maneira mais clara, talvez por ter estado no Brasil numa outra conjuntura, já após a promulgação de leis relativas à escravidão como a Lei do Ventre Livre (1871), e as vésperas da abolição (1888).

Ernst Ebel, que esteve no Brasil em 1824, defende a escravidão, que para ele deveria ser mais branda no trato com o escravo, através de dois argumentos.

Primeiramente para Ebel a situação do negro (escravo) no Brasil era infinitamente melhor do que se ele estivesse em seu país de origem sob o julgo de um governo arbitrário:

O tratamento aqui dispensado aos escravos é, de modo geral, bom, seus senhores sendo severamente proibidos de puni-los com mais de quarenta chibatadas e, nos casos de crimes graves, devem ser entregues às autoridades. (1828, 44)

...vê-los submetidos em sua própria terra a um arbítrio revoltante e ilegal, a ponto de, em comparação, parecer humano o duro tratamento que sofrem às mãos dos europeus enquanto assim for, será contribuir para o bem dos mesmos afastá-los de sua pátria. Já datam aqui de largo tempo, as leis adotadas em seu favor, graças às quais os escravos são até certo ponto protegidos do arbítrio de seus senhores.(1828, 49)

Na visão deste viajante, a escravidão não é entendida ou considerada como um castigo ou um ato de privação de liberdade, já que o negro é aproximado ou mesmo visto como um ser da natureza, qual um macaco, e que poderia e deveria ser, então, assim como qualquer elemento da natureza, controlado e subjugado pelo homem (branco) superior. Desta forma é possível concluir porque Ernst Ebel em momento algum questiona a ausência de liberdade como algo fundamental no que diz respeito à escravidão:

Há dias fundeou um (navio negreiro) com 250 negros, na maioria crianças de dez a quatorze anos que, acocorados nesses galpões em filas de três, pelo chão assemelham-se mais a macacos, dando mostra, por sinal de bom humor e satisfação, embora repelentes no aspecto e depauperados. (1828, 42)

Conquanto, não vá contestar que entre eles possa haver gênios e os tem havido, qual um Toussaint (Louverture), um Christoph (rei do Haiti) etc. nenhum observador de espírito aberto poderá negar que esta raça se encontra como que na meninice e se caracteriza por uma típica apatia que a inabilita para qualquer alto sentimento moral... (1828, 48)[9]

Remetendo esta última afirmação de Ebel ao conceito de Bildung (atividade espontânea do indivíduo ocorrendo ao longo do processo de auto-aperfeiçoamento) é possível perceber que, para o autor, o negro não está ainda apto para este desenvolvimento e necessita também de muito tempo para esta ‘evolução’. E Ebel conclui seu raciocínio desta forma:

...nunca pensam no dia seguinte, sendo incapazes de qualquer vocação duradoura; na realidade só querem comer, dormir e amar. Isto se observa sobretudo entre os negros nascidos na África, mesmo quando chegados novos. Os nascidos no país já são mais aculturáveis, mas quanto aos primeiros, pouco adianta tratá-los bem, como já disse.(1828, 48)

Para Ebel, como para (quase) todos os viajantes europeus, se desenvolver significa agir de maneira semelhante aos padrões europeus, ou seja, se ‘europeizar’. Desta forma, o negro, que só quer ‘comer, dormir e amar’, embora seja a mola propulsora do desenvolvimento econômico do país, não está pronto para esta transformação, para este desenvolvimento ‘intelectual’.

O segundo argumento referente à defesa da escravidão por Ebel é a questão econômica. Para ele o desenvolvimento do Brasil está diretamente ligado à escravidão, sem esta o país correria o risco de desandar. Segundo o autor, a economia nacional dependeria diretamente do escravo.

Em vez de apoiar os desígnios secretos da Inglaterra que, na abolição do tráfico negreiro, vê o próprio benefício, ao passo que tolera os vergonhosos seqüestros humanos pelos barbarescos, deveriam as potências unir-se...(1828, 48)

É certo que o tráfico não terá como resultado paradeiro imediato, somente os escravos sairão um tanto mais caros. Com isso não serão servidos os ingleses que, já os possuindo em excesso nas suas colônias, visam, com a total repressão do tráfico, dificultar aos demais países americanos a prosperidade de seus estabelecimentos; as belas palavras ‘direitos humanos’ são apenas pretexto para seu benefício. (1828, 50)

Por um lado a primeira lei inglesa em relação a escravidão, chamada Lei Bill Aberdeen, de 1845, que concedia à Marinha Real Britânica poderes de apreensão de qualquer navio envolvido no tráfico negreiro em qualquer parte do mundo, foi promulgada somente vinte anos após a vinda de Ebel ao Brasil. Por outro, sociedades abolicionistas na Europa já existiam desde o fim do século XVII, como a Sociedade abolicionista na Inglaterra (1783) e a Sociedade dos amigos nos negros na França (1788). Está claro também que, ao citar Toussaint L’Ouverture (líder da revolta negra no Haiti), Ebel tinha em mente o perigo de uma revolta nas proporções ocorridas no Haiti e defendia então um forte abrandamento da escravidão no Brasil. Estes fatos, se acrescidos aqui também que obras referentes ao fim da escravidão já haviam sido publicadas no século anterior, como Riqueza das nações de Adam Smith (1776), História filosófica e política dos estabelecimentos e do comércio dos europeus nas Índias de Thomas Raynal (1770) e também O Espírito das Leis de Montesquieu dentre outras, caracterizam uma visão limitada de Ebel como um representante do século das luzes (Iluminismo).

Relevante se destacar aqui que Ernst Ebel diferentemente de Burmeister, que esteve no Brasil como pesquisador e retornou como várias obras prontas para publicar, veio ao Brasil como ‘observador’ e não tinha pretensão de publicar seus escritos. Entretanto ao publicar e, principalmente, ao tratar da questão econômica da escravidão, que é, na verdade, o seu elemento chave, torna seu texto de uma importância particular para o entendimento desta questão, o que, para muitos, passou desapercebido, ou talvez tenha sido até mesmo conscientemente omitido. E, da mesma forma, ao se posicionar de maneira tolerante perante a escravidão afirmando a necessidade desta como algo positivo para o ser inferior (ao branco), assim como o fez Burmeister, demonstra a fragilidade do discurso e da visão iluminista alemã.

Conclusão

Os autores e suas obras utilizados nesta análise assim como outros viajantes e suas obras são parte da história nacional que permanece para muitos como uma realidade distante e dialeticamente presente. Distante, pois grande parte destes textos de viajantes se encontra apenas na língua materna dos mesmos e são também de difícil localização e acesso, e, ao mesmo tempo, presente, pois o conteúdo e conceitos dos mesmos (a ideologia) foram de alguma forma assimilados e são ainda hoje reproduzidos por parte da população européia e também brasileira.

Contudo diversas áreas do conhecimento — história, antropologia, lingüística, entre outras — começaram recentemente a (re)tomar estas obras como fonte de informações fundamentais para o melhor conhecimento da nossa história, da origem de nossa população e de ideologias que permanecem reinantes até hoje.

 

Referências

BURMEISTER, Carl H. C. Viajem ao Brasil pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais Editora Itatiaia , SP, 1980.

––––––. Reise nach Brasilien durch die Provinzen von Rio de Janeiro und Minas Gerais. Verlag von Georg Reimer, Berlin, 1853

CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. 3a. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.

EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824 ; trad. e notas de Joaquim de Sousa Leão Filho. São Paulo, Ed. Nacional, 1972.

FAIRCLOUGH, Norman. El análisis crítico del discurso como método para la investigación en ciencias sociales. In: WODAK, Ruth; MEYER, Michel (eds.). Métodos de análisis crítico del discurso. Barcelona: Gedisa, 2003, p. 179-203.

LANGENSCHEIDT, Taschenwörterbuch Deutsch als Fremdsprache, Langenscheidt Verlag, Berlin 2007

LAKOFF, G.; Johnson, M. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado de Letras. São Paulo: Educ, 2002

MAAS, Wilma Patrícia. O Cânone mínino: o Bildungsroman na história da literatura. Editora UNESP, 2000

THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995

Wied-Neuwied, M. de. Viagem ao Brasil nos anos de 1815 e 1817. Trad. Sussekind de Mendonça, Edgar e Poppede Figueiredo, Flávio; notas: Olivério Pinto. São Paulo: Editora Nacional, 1940.

WODAK, Ruth. De qué trata el análisis crítico del discurso. Resumen de su historia, sus conceptos fundamentales y sus desarrollos. In: –––; MEYER, Michel (orgs.). Métodos de Análisis Crítico del Discurso. Barcelona: Gedisa, 2003, p. 17-34.


__________

[1] O termo racional aqui foi usado em referência à razão, pois a época do Iluminismo ficou conhecida também como a era da razão, onde tudo poderia ser resolvido pelo uso da razão.

[2] Ernst Ebel é um escritor de língua alemã, porém não é alemão de nascença. Na pesquisa em andamento os viajantes utilizados são aqueles que fazem uso da Língua alemã, mas não necessariamente são alemães.

[3] O príncipe Maximilian Alexander Phillip  zu Wied-Neuwied (1782-1867) foi naturalista e etnólogo. Esteve no Brasil entre 1815 e 1817. Sua obra foi publicada em 1820.

[4] O termo branco brasileiro deve ser entendido como descendente de português ou outra nação européia , mas aquele que mora no Brasil.

[5] Eufemização, valorização positiva de instituições, ações ou relações. Thompson (1995, 81-9)

[6] Naturalização, criação social e histórica tratada como acontecimento natural. Idem

[7] Ver bibliografia.

[8] Ina von Binzer esteve no Brasil entre os anos de 1881 e 1882.

[9] Toussaint Louverture, nascido na então colônia francesa de Santo Domingo (atual Haiti) entre 1791 e 1794, tornou-se um símbolo da liberdade dos negros nas Américas ao se tornar da revolta dos negros que culminou com a independência de sua terra natal. (Henri Christopher, rei do Haiti entre 1804 e 1820).

 

 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 22 abril, 2008.