IVAN TIAGO MACHADO OLIVEIRA

Mestrando em Estudos Contemporâneos da América Latina pela Universidad Compultense de Madrid, Mestrando/Doutorando em Administração pelo Núcleo de Pós-Graduação em Administração da UFBA e pesquisador do Laboratório de Análise Política Mundial (LABMUNDO) da mesma instituição

 

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Imaginação geográfica, território e identidade nacional no Brasil

Ivan Tiago Machado Oliveira

 

Resumo: Este trabalho visa a discutir a “invenção do Brasil”, identificando elementos imaginativos forjados pela elite imperial brasileira e que se encontraram fundados em mitos territoriais e ideologias geográficas que afirmavam a existência ‘pré-histórica’ de um espaço delimitado a ser conquistado e ocupado. Neste sentido, o mito da Ilha-Brasil, baseado em concepções teóricas advindas da doutrina das fronteiras naturais, é aqui apresentado como aspecto central para a análise acerca da imaginação geográfica e territorial e suas interfaces com a construção da identidade nacional no Brasil. Além disso, observar-se-á como essa identidade nacional foi influenciada por renovadas ideologias geográficas, que foram apresentadas a partir da visão das elites políticas acerca do espaço nacional nos distintos períodos históricos, desvelando os elementos de criação da ‘pátria imaginária’ e seus vínculos identitários.

Palavras-chave: Brasil, território, identidade nacional, mito, geografia.

Abstract: This work aims to discuss the "invention of Brazil" by identifying imaginative elements that have been forged by the Brazilian imperial elite based on territorial myths and geographic ideologies that affirmed the prehistoric existence of a delimited space to be conquered and occupied. In this sense, the myth of ‘Island-Brazil, which is based on theoretical conceptions of the doctrine of natural borders, will be analyzed here as a central territorial myth. Furthermore, the elements of creation of ‘national imaginary’ and its importance to the construction of the national identity in Brazil will also be discussed in this work. At last, I analyze how the national identity has been influenced by renewed geographic ideologies forged by the leading elites according to its views concerning the national space in distinct historical periods.

Key words: Brazil, territory, national identity, myth, geography.

1. Introdução

No processo de construção social de identidades políticas[1], observamos uma interação de diversos elementos, dentre os quais cabe destacar o tripé capital: cultura, história e território, tendo este último desempenhado um papel basilar na construção de identidades nacionais na América Latina, mais particularmente no Brasil. Em sendo as identidades socialmente construídas, elas são, em geral, baseadas em narrativas históricas fundadas em mitos coletivos escolhidos propositadamente por aqueles que buscam forjá-las. Vale ainda ressaltar que ‘inventar’ uma identidade significa situar o que está dentro e o que está fora, isto é, o estabelecimento do ‘outro’ com o qual a auto-afirmação é possível, tendo a territorialidade um papel importante nesse processo. Essa relação dialética entre o ‘dentro’ e o ‘fora’, entre o ‘nós’ e o ‘outro’, faz parte da essência da construção de identidades; são, por assim dizer, duas partes de um todo coerente que traz consigo significado e coesão.

O objetivo do presente trabalho é discutir os elementos imaginativos de “invenção do Brasil”, que foram sistematizados pela elite imperial brasileira e fundados em mitos territoriais e ideologias geográficas que afirmavam a existência ‘pré-histórica’ de um espaço delimitado a ser conquistado e ocupado. Trabalharemos aqui com um mito territorial central: o mito da Ilha-Brasil, o qual se encontra fundamentado em concepções teóricas advindas da doutrina das fronteiras naturais. Ademais de desvelar os elementos de criação da ‘pátria imaginária’ e sua importância na construção da identidade nacional no Brasil, vamos observar como essa identidade nacional veio sendo influenciada, ao longo do século XX, por renovadas ideologias geográficas, as quais foram forjadas pelas elites dirigentes segundo suas visões acerca do espaço nacional nos distintos períodos político-históricos.

2. A “invenção do Brasil”: mitos territoriais e formação da identidade nacional

Ao se falar na “invenção do Brasil”, é mister salientar o papel de imaginações geográficas na construção da identidade nacional e a importância da doutrina das fronteiras naturais nesse processo. Antes de adentrar a história-geográfica de imaginação/construção da identidade nacional brasileira propriamente dita, cabe aqui apresentarmos, mesmo que de forma sucinta, subsídios elucidativos acerca dos elementos teóricos que embasam a análise.

Benedict Anderson (1991 apud MAGNOLI, 1997) coloca que: “de fato, qualquer comunidade maior que povoados primordiais de contato pessoal direto (e talvez mesmo eles) é imaginada.” (ANDERSON, 1991, p. 6 apud MAGNOLI, 1997, p. 7). Para o autor o sentimento de pertencimento a uma comunidade política é formado a partir de “comunidades imaginadas”, pensadas no coração administrativo da nação. Seguindo o pensamento de Anderson (1991), Magnoli (1997) relata:

A nação, essa “comunidade imaginária”, é uma criação do nacionalismo, no sentido pleno. Ela se ergue sobre o chão da cultura: uma língua difundida pela palavra impressa, um mercado integrado e circunscrito no território, a crença num passado compartilhado e um sentimento de comum destino. A sua forja é a imaginação material, promovida pelo Estado: leis, moeda, sistema educacional, administração, recenseamento, cartografia. (MAGNOLI, 1997, p. 7).

Ainda numa perspectiva andersoniana, Baud (1999) afirma que “las fronteras nacionales son construcciones políticas, proyecciones imaginadas del poder territorial” (BAUD, 1999, p. 42). Portanto, a imaginação e construção das fronteiras são vistas em si como uma prática da própria identidade nacional, tendo em vista a centralidade do elemento territorial na definição da mesma.

Criticando as propostas de Anderson, Rowe e Schelling colocam que “la debilidad del esquema propuesto por Anderson radica precisamente en su omisión del papel que cumple la cultura popular” (ROWE e SCHELLING, 1991, p. 25 apud RADCLIFFE e WESTWOOD, 1999, p. 30). Radcliffe e Westwood (1999) reiteram a crítica afirmando que: “Mientras las historias nacionalistas oficiales suelen suponer de antemano el esquema territorial del país (al estilo de las geografías nacionalistas), esto contrasta con la contingencia de otros espacios de pertenencia que se expresan en las geografías ‘populares’ de identidad” (RADCLIFFE e WESTWOOD, 1999, p. 247).

Embora as críticas ao esquema andersoniano de pensamento acerca da construção de “comunidades imaginárias” e do seu papel na configuração de identidades nacionais sejam válidas e incitem a reflexão acerca do tema, é fato que, na América Latina, o território e o Estado presidem a idéia de nação de cima para baixo, da elite para o povo. Em sendo assim, a construção de maquinarias imaginárias fundadas no território que forjam a identidade nacional a partir de geografias nacionais é fundamental para compreender o fenômeno identitário no Brasil, como se verá a seguir.

Um outro aspecto teórico de relevância quanto da análise da “invenção do Brasil” diz respeito à doutrina das fronteiras naturais. Embora saibamos que as fronteiras são, em essência, políticas e, portanto, artificiais, não sendo nunca naturais, a concepção da doutrina das fronteiras naturais foi um elemento importante para construção da ideologia geográfica que viria a fundamentar a criação da identidade nacional brasileira.

A doutrina das fronteiras naturais emergiu do Direito e da Geografia, na França iluminista, no século XVIII, e baseia-se na noção de que as nações estavam predestinadas a ocupar determinado território, circundado por “fronteiras naturais”. O geógrafo alemão Karl Ritter, em particular, sob influência de Alexandre von Humbolt, concebeu a Terra como um organismo vivo, no qual estaria materializada a vontade divina. O curso dos rios e a morfologia do relevo obedeciam a tal princípio, e à ciência geográfica corresponderia a tarefa de compreender a obra do Criador por meio da razão. De acordo com essa concepção de mundo, as fronteiras existiriam antes de sua efetiva definição e delimitação, cabendo aos homens ‘descobri-las’ na trama da natureza.

Ao criticar a concepção naturalista das fronteiras, Magnoli (1997) assevera que “o apelo à ‘natureza’ implica sublimação da história, a abstração da condição de ‘construções geopolíticas datadas’ – ou seja, de ‘tempos inscritos nos espaços’ – que confere conteúdo político às fronteiras e freqüentemente revela sua precária legitimidade.” (MAGNOLI, 1997, p. 21). É ainda interessante notar que, embora a doutrina das fronteiras nacionais surja em plena França iluminista, ela contém em si elementos definidores de percepções românticas acerca do processo histórico-geográfico. Sobre o romantismo, presente na concepção natural das fronteiras, Magnoli (1997) escreve:

O romantismo enraíza nas tradições imemoriais – num passado tão remoto e misterioso que só pode ser apreendido pelos sentimentos, pela afetividade, pela emoção – a comunidade de destino sobre a qual se ergue a nacionalidade. Nesse terreno fértil, inventaram-se as tradições e floresceram as mitologias e as mistificações nacionais. (MAGNOLI, 1997, p. 17).

A doutrina das fronteiras naturais funcionou como elemento organizador da narrativa de construção do território nacional brasileiro. Essa narrativa foi obra coletiva da elite imperial a partir de um olhar romântico dirigido para o passado colonial. A intelectualidade do Império entregou-se à fabricação de uma tradição nacional, cortando e montando peças de um quebra-cabeça da pátria imaginária. Destarte, o passado colonial foi submetido a uma completa releitura, no intuito de iluminar os vultos anunciadores do destino nacional e de definir, por oposição aos estrangeiros, uma nação brasileira.

Uma idéia seminal que inspirou a concepção imaginária da nacionalidade foi a de Ilha-Brasil, a qual seria definida geograficamente pelos cursos dos rios Paraguai, Uruguai, Guaporé e Mamoré e pelo vale drenado pelos afluentes do rio Amazonas. É a idéia da existência, na América do Sul, de um todo geográfico e geometricamente defino e quase insulado, o qual comporia o território natural do Brasil. Tal narrativa, inspirada em relatos e mapas de viajantes, funcionou como mito de origem da nação. Segundo ela, o Brasil seria uma unidade natural, herdada pela colonização portuguesa e consagrada pela Independência. Dessa forma, o conceito de território brasileiro antecipou-se à emergência do próprio Estado nacional.

A idéia acerca da Ilha-Brasil se inseriria num contexto de transformação de relatos lendários em mito territorial orientado por um desígnio geopolítico. Como afirma Magnoli (1997):

a Ilha-Brasil teria operado na construção de uma ‘razão geográfica de Estado’ e na definição de um ‘imperativo geopolítico para os três primeiros séculos de formação territorial do Brasil. (...) A unicidade do território colonial lusitano, fruto de segregação insular, emanava da própria natureza. (....) O Brasil erguia-se como realidade geográfica anterior à colonização, como herança recebida pelos portugueses. Ao invés de conquista e exploração colonial, dádiva e destino. (MAGNOLI, 1997, p. 47).

A força da noção de Ilha-Brasil encontra-se na subversão do horizonte histórico e diplomático e na substituição do mesmo por um ordenamento ancestral. Tratados são subvertidos e uma verdade ‘pré-histórica’ é invocada em seu lugar.

Nesse contexto, o bandeirismo é um elemento fundamental para se pensar a construção nacional no Brasil. Considerado por alguns, como Cassiano Ricardo, como a epopéia da construção nacional, o bandeirismo leva consigo a idéia-chave de interpenetração entre ‘colonizador’ e a terra, legitimando a inserção nas configurações territoriais imaginárias relativas ao mito da Ilha-Brasil. Ademais, o bandeirismo também é visto, nessa perspectiva, como criador de um proto-Estado brasileiro e de difusão territorial de uma nova soberania. Os bandeirantes são, enfim, analisados como os ‘obscuros trabalhadores da diplomacia’, engrandecendo e dilatando o patrimônio territorial até suas ‘fronteiras naturais’, apertando, assim, o nó do discurso mitológico.

O pressuposto do mito da Ilha-Brasil é uma suposta unidade colonial brasileira, que até hoje se manifesta com o uso corriqueiro da expressão ‘Brasil-Colônia’, como se tivesse havido realmente uma unidade política unificada na América portuguesa. Jamais existiu, contudo, uma unidade colonial. A América portuguesa, submetida como um todo à soberania da Coroa, foi fragmentada em diferentes colônias. Na verdade, os contornos políticos desses territórios flutuaram ao longo do tempo em função das estratégias administrativas adotadas em Lisboa. Não obstante, o mito da Ilha-Brasil e a doutrina das fronteiras naturais fundiram-se na narrativa territorial brasileira, onde o ‘Brasil-Colônia’ apresenta-se como fruto. Tal narrativa territorial, construída pelas elites ilustradas do Império do Brasil, inaugurou uma tradição cultural que ainda hoje reverbera e é elemento definidor da identidade nacional brasileira.

Dado o caráter conservador, tanto no plano político quanto no territorial, da Independência brasileira, a obra imperial de limites combinou a força do argumento com o argumento da força, mas obedeceu a concepção geral das “fronteiras naturais” contida no mito da Ilha-Brasil, e manipulou habilmente a noção do uti possidetis. Nesse sentido, o Tratado de Madrid, o qual fora negociado pelo diplomata brasileiro em defesa da Coroa portuguesa, Alexandre de Gusmão (considerado um dos patronos da diplomacia brasileira hoje), tornou-se marco de fundação do território brasileiro. No tratado ficou acordada prevalência da idéia do uti possidetis de facto (ou seja, tem direito à propriedade aquele que de fato ocupa o território) na definição das fronteiras entre as colônias espanholas e portuguesas, legitimando as incursões portuguesas para bem-além da linha de Tordesilhas, aproximando-se das fronteiras míticas da Ilha-Brasil.

Destarte, o elemento que faz o Tratado de Madrid ser considerado um marco fundador do território brasileiro está intimamente vinculado ao mitológico. O Tratado alimentaria a idéia do território natural nacional e tem importância e lugar incomparáveis derivados do papel que desempenha na mitologia da nacionalidade. Ao tratar da importância do Tratado de Madri na construção da mitologia territorial nacional, Magnoli conclui:

O Tratado de Madri une as pontas do discurso ideológico. Absorvido como chave diplomática das fronteiras brasileiras, funciona como depositário da epopéia territorial bandeirante que reafirmou o direito primordial inscrito no mito da Ilha-Brasil. Assim a realidade geográfica anterior à história franqueava o seu caminho, consubstanciando-se como realidade política: o corpo da pátria. (MAGNOLI, 1997, p. 77).

Ao se pensar na construção do ‘corpo da pátria’, é importante ressaltar o caráter conservador e elitista da construção do mesmo. Como aborda Porto-Gonçalves (2006), “no Brasil a unidade territorial foi conformada por meio do pacto das oligarquias em torno de um monarca e de uma burocracia esclarecida de gestores estatais com formação acadêmica em Coimbra, (Carvalho, 1996) e se fez contra os de baixo ao manter o latifúndio e a escravidão” (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 162). Assim, as condições particulares da monarquia e da escravidão moldaram o discurso identitário, impondo-lhe características ideológicas específicas: o território, e não a sociedade, emergiu como traço definidor da nacionalidade.

Moraes (2005), ao falar da criação identitária nacional relata: “o Brasil não será concebido como um povo e sim como uma porção do espaço terrestre, não uma comunidade de indivíduos mas como um âmbito espacial” (MORAES, 2005, p. 93). “O Estado será o guardião da soberania e construtor da nacionalidade, entendida como o povoamento do país” (MORAES, 2005, p. 94). Ideologias geográficas vão ser geradoras de discursos legitimadores de uma identidade nacional onde o Brasil é visto como um espaço a ser conquistado e ocupado[2]. Em sendo assim, o povo é visto como mero instrumento de construção do país, subalternos às idéias e projetos das elites. Relacionado a tal fato, observa-se também a construção de novos mitos nacionais como o da homogeneidade étnica da identidade nacional, abordado por Radcliffe e Westwood (1999), deixando à margem da identidade massas de índios e negros.

A política de fronteiras do Império foi uma derivação da narrativa da Ilha-Brasil, isto é, a horogênese das fronteiras nacionais constituiu-se desde o início a partir de concepções imaginárias construídas e selecionadas coletivamente por uma elite nacional no sentido de garantir a posse de um território imaginado como pré-existente numa “pré-proto-história” nacional. Tais elementos sempre foram pensados a partir da idéia de geração de continuidade histórica para o território nacional, e tendo a diplomacia imperial como elemento de desenvolvimento e maturação da mitologia territorial nacional.

Desde a Independência, a política externa brasileira orientou-se pelo imperativo de construir a nação, o que significou essencialmente moldar o seu território. Já no período republicado, a configuração das fronteiras nacionais continuou sendo o mote da diplomacia nacional. É interessante aqui ressaltar que, foi no período do Império que mais da metade do território atual brasileiro foi delimitado, 32% durante a Primeira República e somente 17% no período colonial. Assim, quanto ao período de delimitação, os dados derrubam facilmente o mito da antiguidade das linhas limítrofes do país: o Império é o grande período de horogênese das fronteiras nacionais. Contudo, esses mesmos dados, ao atestarem a relevância do período imperial para a construção e consolidação territorial do Brasil, deixam claro o porquê da ‘invenção da nação brasileira’ ter sido fundada em mitos territoriais surgidos dos imaginários geográficos das elites desse período.

A partir do mito da Ilha-Brasil e da idéia das fronteiras naturais, observou-se a sedimentação do território enquanto elemento básico do discurso e da identidade nacional brasileira. A formação de ideologias geográficas, ao longo do século XX, no Brasil, se fez tendo sempre em por trás a sombra do território. Construir o país é o mote ideológico que orienta um projeto nacional que, atravessando diferentes conjunturas e distintos atores políticos, firma-se enquanto um dos objetivos mais importantes desde o Império. A própria idéia de construir o país dota as elites de coesão para atuar na construção de um projeto nacional comum, o qual tem na base da identidade a própria mitologia territorial.

Nesse sentido, a interação entre o mito e a identidade, forjando o projeto nacional espacialmente apresentado, se deu, durante o século XIX, de forma a conceber o papel catalisador da noção de “civilização”. A monarquia brasileira via, portanto, que construir o país era levar a civilização aos sertões, ocupar o solo e subtrair os lugares da barbárie (integrar o índio, apropriar-se da terra, etc.). Civilizar, enquanto ideologia geográfica, deveria ser entendida como uma outra forma de qualificar a expansão territorial, no bojo do processo de invenção da nação.

A partir das primeiras décadas do século XX, observam-se no Brasil mudanças de ideologia geográfica. O papel catalisador que a idéia de civilização cumpriu para a antiga mentalidade será agora ocupado pelo conceito de modernização. Modernizar significa, dentre outras coisas, reorganizar e ocupar o território, valorizando-o. É importante notar que o povo continua de fora da construção da identidade nacional ainda nesse período. O Estado Novo, liderado por Vargas, traz em seus traços autoritários a caracterização da máxima: “tutela do povo em nome da integridade do território”.

Ademais, vale ressaltar que, como coloca Moraes (2005), no período do Estado Novo, alguns dos elementos essenciais da ideologia geográfica eram a mitologização da hinterland e a emergência da temática regional como central na interpretação do Brasil. Destarte, modernização e regionalismo passaram ser elementos coordenados dentro de um mesmo padrão ideológico-geográfico. A mitologização da hinterland trouxe consigo a inovação valorativa do interior do país, que passa a ser visto como matriz da brasilidade e santuário do verdadeiro caráter nacional. Nesse período, a visão da brasilidade como sendo uma soma das culturas regionais do país gera a invenção de tradições e criação de identidade regionais fundadas nas diversas partes do território nacional.

Somente em meados do século XX, a idéia de povo começa a ganhar alguma ressonância e significado na discussão da identidade nacional no Brasil. Contudo, com o golpe militar em 1964, o autoritarismo espacialista retoma o controle sobre a imaginação e construção da identidade nacional, reforçando uma visão geopolítica de atuação governamental e identificando o Brasil ao seu território. Observa-se, nesse período, de forma cabal, o divórcio entre o Estado e a nação que se sedimenta então.

Com o processo de redemocratização do Brasil nas últimas décadas do século XX, o qual ocorre no contexto da de aceleração do processo de globalização, torna-se patente o desafio de repensar o Brasil enquanto uma sociedade, requalificando a abordagem do território nacional, devendo este ser visto como um patrimônio da nação, e não sua razão de ser. Tendo em vista a importância que o território e os mitos territoriais tiveram (e ainda têm) na ‘invenção do Brasil’, na construção da identidade nacional brasileira, o desafio aqui citado não é nada desprezível, mas completamente plausível e executável a partir da re-imaginação da identidade nacional em nova base, multifacetada e multiétnica.

3. Considerações finais

Como se pôde analisar ao longo do presente trabalho, a identidade nacional brasileira tem raízes fincadas na imaginação geográfica da elite imperial acerca do território, tendo como fundamentação essencial a doutrina das fronteiras naturais. A mitologia fundadora da nacionalidade, o mito da Ilha-Brasil, traz consigo elementos discursivos que irão povoar o imaginário nacional até os dias de hoje. O elemento territorial sempre esteve presente de forma marcante na construção identitária brasileira. Nas ideologias geográficas, forjadas pelas elites ao longo da história nacional, o espaço foi onipresente. Tal fato encontra eco na história nacional, a qual vê a construção/invenção do território preceder a construção do Estado nacional, que por sua vez antecede e preside a criação da própria nação.

Essa hipertrofia do territorial na construção da identidade nacional brasileira marca, como não poderia deixar de ser, o estabelecimento do ‘outro’ com o qual, e contra o qual, a auto-afirmação da identidade nacional tornou-se possível. A idéia, não rara, de ver o Brasil como um grande enclave na América do Sul (ou mesmo na América Latina), encontra significação no mito fundador da identidade, da idéia da Ilha-Brasil. Destarte, o ‘outro’ e a ‘circunstância’ na qual a identidade brasileira é conformada e imaginada estão imediatamente ligados à América hispânica, com aspectos históricos que remetem à própria rivalidade luso-espanhola.

Por fim, vale frisar que, conforme coloca Moraes (2005): “A superação do espacialismo autoritário não deve ser a supressão do território no ordenamento do projeto nacional, mas seu equacionamento adequado ao ideal democrático” (MORAES, 2005, p.103). Repensar, re-imaginar, recriar, resignificar a identidade nacional, passa por um maior equilíbrio do tripé formador da narrativa identitária (território, cultura e história), com a incorporação de novos conceitos e a recriação de maquinarias imaginárias que venham a reinventar o próprio território e a nação brasileira.

 

Referências

BAUD, Michiel. Fronteras y la construcción del Estado en América Latina. In: CISNEROS, G. T. et al. Cruzando fronteras. Quito: Abya Yala, 2004. p.41-86.

MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria. São Paulo: Moderna/EDUNESP, 1997.

MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e História no Brasil. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2005.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A reinvenção dos territórios: A experiência latino-americana e caribenha. In: CECEÑA, A. E. (comp.). Los desafíos de las emancipaciones en un contexto militarizado. Buenos Aires: CLACSO, 2006. p.151-197.

RADCLIFFE, Sarah; WESTWOOD, Sallie. Rehaciendo la nación: Lugar identidad y política en América Latina. Quito: Abya Yala, 1999.


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[1] Assumimos aqui uma perspectiva que pode ser considerada como ‘modernista’ acerca da identidade, não considerando a existência de identidades originais e imutáveis, mas sim observando sua construção/invenção como um elemento social e histórico.

[2] Não é por acaso que, no plano do mito territorial da constituição da nacionalidade brasileira, os bandeirantes ocupam um lugar de destaque.

 

 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 18 abril, 2008.