IZA REIS GOMES

Mestre em Letras – Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre (2008); Especialista em Letras – Estudos Literários e Lingüísticos pela Facisa (2006); Especialista em Metodologia e Didática da Educação Superior pela Unipec (2002) ; Graduada em Letras / Português pela Universidade Federal de Rondônia (1996). Professora do Ensino Médio do Governo do Estado de Rondônia e professora universitária (especialização) da Unintes

 

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Ana: um ser inconcluso?

Iza Reis Gomes

 

Resumo: No presente texto, procuramos refletir sobre a construção identitária de uma personagem do livro “Ana e a margem do rio – confissões de uma jovem Nauá” do escritor Godofredo de Oliveira Neto. Ana, uma índia Nauá, escritora e questionadora de suas ações, constrói sua identidade através dos discursos dos outros e seus. Trabalhamos com teóricos como  Tzvetan Todorov que discute sobre a hibridização e Homi Bhabha com as diferenças culturais. Afirmamos que Ana é um ser híbrido, mesclado, que adquiriu um aprendizado com os estrangeiros e luta por sua nação e identidade através de uma resistência negociada com o outro.

Palavras-chave: Identidade; Hibridização; Diferenças;

Abstract In this text we look for a reflection on the identitary construction of the character of the book “Ana e a margem do rio – confissões de uma jovem Nauá” written by Godofredo de Oliveira Neto. Ana, a Nauá Indian, a writer and a questioner of her actions, builds her identity through the discourses of her and of the others. We work with theorics like Tzvetan Todorov who discuss about hybridization and Hommi Bhabha with the cultural differences. We assert that Ana is a hybrid being, mixed that gat a leering with the foreigners and fight for her nation and her identity through her resistence negociated with the other.

Key-words: Identitary; Hybridization; Differences;

 

No fazer poético o tempo vivido e o tempo social perseguem-se e defrontam-se como dois lutadores que, no seu enlace, formam um só corpo. As palavras são signos aprendidos, marcas de uso cultural e, a um só tempo, traços riscados pelas pulsões indestrutíveis da vida e da morte. Quem distinguirá, em cada palavra, a denotação, que vem registrada no dicionário, e os ressôos conotativos que a sua aura de memória e paixão acorda no leitor empático? 

 

(Alfredo Bosi, Universidade de São Paulo, julho de 1992. Nos meandros do manuscrito In: WILLEMART, Philippe. Universo da criação literária. São Paulo: Edusp, 1993).).

 

OLIVEIRA NETO, Godofredo. Ana e a margem do rio – Confissões de uma jovem nauá. Rio de Janeiro: Record, 2002A obra Ana e a margem do rio – confissões de uma jovem Nauá – conta a história de Ana, índia da nação Nauá, educada em um colégio religioso em plena floresta amazônica. Aos poucos, a jovem índia – dividida entre o mundo da oralidade, herdado de sua tribo, e a religiosidade, imposta pelo sistema educacional – divide com os amigos as aventuras fabulosas tantas vezes ouvidas de sua mãe. Aventuras essas que, modificada pela influência que Ana recebe das freiras salesianas, passam a ser parte de sua própria construção identitária junto com a narrativa. Godofredo de Oliveira Neto intercala, como recurso literário, a vida de Ana e a lenda narrada, separando-as em capítulos escritos na primeira e na terceira pessoas. O efeito é revelar ao leitor as dificuldades da índia Nauá em montar sua própria identidade, tornando o leitor cúmplice do conflito interno da personagem.

Com ilustrações de Roger Mello – vencedor de vários prêmios Jabuti –, Ana e a margem do rio aborda, ainda, a explicação indígena para os mais diferentes fenômenos naturais e segredos do universo. Com a fala hipotética de animais, Godofredo explora como a tolerância pode, e deve, coexistir com a diferença. Godofredo de Oliveira Neto, romancista consagrado pela crítica, nasceu em Blumenau, Santa Catarina, em 1951. Atualmente é professor da UFRJ e autor de obras como Faina de Jurema, O bruxo do contestado, Pedaço de santo, Oleg e os clones, Marcelino Naumbrá, o manumisso e O menino oculto.

O objetivo que procuramos é olhar o texto como um processo discursivo, uma rede de lugares e posições que se abrem ao diálogo, ao encontro de palavras, idéias e resistências. É um despertar do discurso através de seu contexto, de seus sujeitos, lugares, objetos e dizeres. E tudo isso através da personagem Ana, um ser que consideramos inacabado, inconcluso.

Ana, um ser discursivo em fase de construção identitária. Partindo para uma explicação através do nome Nauá, temos Nawa que corresponde à autodesignação ou a um indicador de alteridade (outra gente) de muitas sociedades de língua Pano.

O termo Nawa (também grafado em diversas fontes escritas como Nauá, Nauá ou Nahua), provém da língua Pano e pode ser traduzido como “gente”, “povo” e “outro”. Em geral, Nawa é utilizado pelos povos Pano para se referirem à alteridade.

Como essa designação, temos um contato de significados entre o que é dito nos discursos de Ana e o significado do nome de seu povo “Nauá”. A alteridade está sempre ligada aos dizeres de Ana, um discurso que apresenta uma índia diferente dos outros indígenas, uma outra Ana transformada e construindo-se no confronto dos valores de seu povo e o novo conhecimento e realidade oferecida a ela.

Evocando Tzvetan Todorov (1999), poderíamos dizer que Ana seria um ser desenraizado? Segundo Caldas Aulete, desenraizado diz respeito a quem “perdeu suas características de origem” (apud TODOROV, 1999). Ana perdeu as características de origem? Respondendo esta pergunta, podemos desvelar um lado de Ana, uma visão que supomos ter sobre a índia Nauá.

Sobre o fato de Ana ter perdido ou não suas características de origem, relacionamos aos dizeres de Todorov: “O que é preciso crer e lamentar é a própria desculturação, degradação da cultura de origem; mas ela talvez seja compensada pela aculturação, aquisição progressiva de uma nova cultura, de que todos os seres humanos são capazes” (1999, p.24). Ana passou por essas duas etapas: desculturação e aculturação; mas não de forma totalizante. A desculturação se deu por ela ter passado alguns anos distante de seu povo, de sua origem, no entanto, continua com traços e configurações de sua tribo Nauá, de sua origem. A aculturação se deu através dos novos conhecimentos, novos traços adquiridos, uma nova cultura que se mesclou com o já existente.

Todorov complementa a idéia da desculturação e aculturação:

É verdade que não poderemos jamais nos libertar de certos traços decididos pela genética. [...]. Condenar o indivíduo a continuar trancado na cultura dos ancestrais pressupõe de resto que a cultura é um código imutável, o que é empiricamente falso: talvez nem toda mudança seja boa, mas toda cultura viva muda (1999, p. 24-25).

Assim, não houve uma desculturação total de Ana, já que sua luta pela tribo continua mais forte que nunca, e somada aos novos traços adquiridos pela aculturação. Todorov chama esse estado de transculturação: “a aquisição de um novo código sem que o antigo tenha se perdido” (1999, p. 26). Tem-se também a teorização sobre a hibridização:

[...] as identidades culturais não são apenas nacionais, existem outras, ligadas aos grupos pela idade, sexo, profissão, meio social; em nossos dias, então, todos já vivemos, ainda que em níveis diferentes, este reencontro de culturas no interior de nós mesmos: somos todos híbridos. (1999, p. 26).

Com essa afirmação, sustentamos a hibridização de Ana, uma personagem índia que passou por algumas etapas de aquisição cultural diferente da de origem e que utiliza essa mistura para lutar por sua gente, pela identidade particular e grupal, ou seja, de seu povo.

A hipótese de Ana ser ou não desenraizada, justificamos com a idéia descrita acima, um ser que está vivo e em plena mudança, capaz de adquirir novos traços, modificar os antigos ou / e somar as duas culturas, transformando-se num ser híbrido, ou seja, inconcluso.

Ao mesmo tempo que afirmamos a inconclusão, a hibridização de Ana, nos perguntamos como ela chegou a esse estado, de que forma Ana conseguiu escrever uma lenda, um texto de maneira a desejarem publicar o material? Ana seria uma escritora completa aos dezessete anos? Como isso aconteceu? O texto é mesmo dela?

Perguntas como essas, foram feitas na escrita do livro, houve dúvidas sobre a autoria da lenda: “[...] Lembrei que, ao duvidar da minha honestidade em relação ao texto – ‘ é seu mesmo’ –, ela duvidou da minha cultura, da minha vida, dos meus ancestrais, em suma, do meu mundo” (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 147). Neste trecho, Ana se lembra da dúvida da professora em relação à autoria do texto. Essa dúvida também pode ter o leitor do texto; mas Ana responde à dúvida: “A professora não conheceu as exigências da irmã Gicélia, as dissertações diárias, as fichas de leitura, as redações sobre temas da atualidade, os pequenos contos que eu devia escrever de um dia para o outro, os versos que devia compor nos fins de semana” (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 147-148). Com esse discurso, detectamos toda uma preparação por qual Ana passou; etapas de uma prática da escrita:

E hoje a professora me chamava pra perto novamente! Sussurrou (não foi bem um sussurro, mas quase) que as autoridades encarregadas da educação nos estados da região amazônica, baseadas em laudos e pareceres de especialistas do Rio de Janeiro e de São Paulo que trabalham sobre textos escritos por mim durante toda a escolaridade, pensam em me indicar para um prêmio em dinheiro oferecido pelo governo dos Estados Unidos. Pretendem, ainda, conceder uma bolsa de estudo para cursar uma escola de segundo grau que faz parte de uma prestigiosa universidade daquele país. E querem publicar o texto que estou escrevendo agora (2002, p. 148).

Essa prática da escrita confirmada por especialistas e corroborada com a possível publicação do texto de Ana, nos revela uma constituição da identidade da índia Nauá, uma rede de fios discursivos contribuindo para a história de Ana, para a sua formação identitária. A pergunta agora é: Ana aceitará o discurso do colonizador e fará parte do mundo globalizado estando no espaço do dominador?

Neste momento, Ana se encontra na fronteira da sua cultura e as maravilhas dos elogios ao seu texto, podendo ser levado para fora, para os Estados Unidos.

Tinha prometido mostrar trechos da história para ela [a professora]. [...]. Eu leria alguns episódios dos capítulos [...]. Li várias partes. Ela ficou como que hipnotizada. Olhava extasiada, repetia algumas palavras em inglês. Sua reação me encabulou. [...]. As palavras em inglês e o seu ar embevecido foram embora comigo pela estrada. Das árvores vinham assobios e gorjeios de pássaros. Desta vez vou abrir mesmo o próximo capítulo com essa melodia. Fico feliz por um lado, preocupada por outro, com tudo o que está acontecendo comigo. Dá vontade de me transformar em rã e me esconder dentro de um lago (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 159).

Ana se encanta, ou melhor, fica surpresa com os elogios ao seu texto, e destaca as palavras em inglês, uma possível metáfora da admiração que tem em relação aos estrangeiros, ao parecer do outro (considerado superior), à confirmação do outro. Mas também, demonstra a preocupação com toda essa nova realidade, esse novo espaço, tempo e sujeitos adentrando em sua vida através da escrita de uma índia contando uma lenda amazônica. Esses elementos diferentes, que possuem cada um o seu espaço, tempo e sujeitos se misturam nesse texto híbrido, são formas de vida, seres, mistérios, histórias, transformações, poderes, criações, olhares preconceituosos, confrontadores, conciliadores – todos envolvidos através da lenda amazônica escrita por uma índia Nauá, chamada Ana, educada e avaliada por estrangeiros.

Esse fato se reflete de forma particular na lenda contada por Ana. Relembrando o jacaré e a jibóia que lutavam por carne fresca. Mas, no capítulo 24, temos as traíras-pixunas e os bagres numa conversa proposta por um dos líderes (lembrando que o nome traíra não evoca em nenhum momento o diálogo, a compreensão, o raciocínio de pensar no outro, e sim, a destruição, uma postura predadora):

‘Devemos bater-nos pela integridade da floresta amazônica. Rios, riachos e igarapés são o nosso universo. E eles só existem dentro de uma floresta preservada. Nossa dignidade depende disso. O destino de toda região amazônica está ao nosso alcance. Infelizmente, temos que lutar. Mas devemos sempre nos bater para que a proposta de paz se sobreponha a todos os outros. É por aí que devemos começar e, espera-se, acabar. Vaidades, raivas, ódios e preconceitos devem ceder lugar ao entendimento, à justiça e à paz. A floresta amazônica deve ser uma floresta cada vez mais fraterna. Nós, as traíras, costumamos vir com julgamos já feitos. Fiamo-nos nas aparências e no que dizem por aí. É necessário fazer um julgamento próprio, expor as nossas idéias, discuti-las, amadurecê-las, prontos a modificá-las caso surja outra melhor. Idéia não tem dono. Idéia é o resultado do saber acumulado durante séculos, acumulado por todos’ (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 174).

Esse discurso se cruza com a idéia de Ana, pensar num espaço em que haja a convivência com o outro, com a diferença, mas sempre lutando por um ideal justo para todos os lados.

Os bagres também evocavam a concórdia, a divisão, o entendimento entre “seres superiores” (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 178) [o jacaré e a jibóia] e os outros peixes. O bagre lembrou-se de um aprendizado no tempo de escola:

O saber deve auxiliar na emancipação e melhoria da vida dos animais como um todo e não servir de instrumento para a dominação de uns sobre os outros. O conhecimento que a instituição escolar produz tem um raio de ação universal e exerce um papel social. O conhecimento é libertação. Você, como aluno, é o receptor e o emissor principal de tudo o que se ensina, pensa e produz aqui; logo, entenda a sua importância e responsabilidade. Mire-se no exemplo dos índios que vivem nas florestas (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 179)

A reflexão do bagre seria uma auto-reflexão de Ana sobre sua situação? Sim, seria uma justificativa para continuar com a idéia de adquirir conhecimento e lutar, só faltaria decidir: lá ou em Xapuri.

A mudança nas atitudes do jacaré e da jibóia se concretiza. Os dois conseguem ver um mundo diferente do que eles viviam, junto com os bagres e as traíras, ou seja, com os outros considerados inferiores.

O jacaré, a jibóia, a traíra e o bagre puderam ver, além do casal de piavas, o boto que descia as águas calmamente, quase se deixando levar pela leve correnteza. [...]. Os quatro animais olharam-se, tentaram compreender-se. O boto voltava feliz, sim, por conseguir conhecer um outro universo. Um novo universo. Mas os quatro bichos do encontro na margem do rio amazonas foram também agora, mais experientes, mais sorridentes, mais leves, mais felizes, viver melhor o mundo deles (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 200 – 2001).

Foi uma mudança visando o respeito à diferença, ao outro, através dos conhecimentos de todos, uma mistura de visões que desencadeou numa atitude conciliadora.

Voltando à Ana, aliás, nunca deixamos de falar dela, temos alguns argumentos criados por ela mesma, a favor e contra à ida para os Estados Unidos.

Os argumentos contra:

[...] Irmã Gicélia já sabia de tudo. Insistiu para que eu fosse. [...] Eu não poderia jogar fora essa oportunidade (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 171-172).

É claro que tem que ir, sua boba. Vê se arranja alguma coisa também pra gente. E, de qualquer maneira, você vai voltar mesmo um dia; é tudo provisório [fala de Josimar] (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 186).

Eu sabia, Ana, que você era diferente de nós. Um dia, a gente ia te perder [...] Claro que você deve ir, vamos ficar aqui de longe torcendo. Sei que você não vai esquecer mesmo da gente (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 186)

Os argumentos a favor:

[...] O fato é que aqueles garranchos das árvores escreviam num código diferente. Escreviam, com caligrafia própria, outra realidade. Os garranchos queriam significar algo. Aquelas linhas, intensificadas pelo vôo incerto dos morcegos, diziam que eu não viajasse. Que ficasse em Xapuri e dali mesmo fizesse ecoar a nossa voz. E, ficando, poderia ajudar a reforçar a identidade do Brasil (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 204).

[...] E é claro que Felício prefere que eu fique em Xapuri (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 205)

[...] E eu também acho; obviamente, melhor ficar (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 205).

Ana busca autorização e opiniões sobre a viagem para os Estados Unidos. São opiniões que contam, principalmente as que argumentam a favor do Brasil, a ficar em Xapuri, já que a própria decide por também permanecer em seu espaço.

Ana prefere ficar em seu local e lutar pela floresta dali mesmo. Fisicamente, fica em Xapuri, mas a sua voz, junto com a de sua mãe, avó e da tribo ecoarão por todo o mundo com a publicação de seu texto:

Foi o próprio Felício quem fez a proposta de desempate. Que a organização missionária encontrasse uma empresa encarregada de divulgar essa história em todo o mundo. O texto da minha mãe podia ir para Nova York, Rio de Janeiro, São Paulo. Ele argumentaria por mim. De povo para povo. Que se transformasse na tribuna de que fala a irmã Gicélia. Eu, em pessoa, não tinha por que ir. Para quê? Tempo é o que não nos falta para viajar um dia. Acresça-se a isso – como sabem – o fato de que a professora Elza já havia dito várias e várias vezes que era desejo, justamente, da organização missionária e de várias organizações brasileiras e americanas publicar a história que estou acabando de escrever no caderno de capa brilhante com desenho do mapa do Brasil. [...]. Agradeço o convite, estou envaidecida, mas no momento [Ana quer] comer caldeirada de tucunaré com pimenta, de preferência murupi, e costela de tambaqui na brasa. Ser professora primária em Xapuri, lutar pela floresta amazônica e pelos povos indígenas da região. Levem o texto, se quiserem. Ele vai sem título (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 206).

Assim, Ana consegue conciliar sua identidade indígena com as novas aquisições escolares e culturais de um outro povo. Percebeu a mistura, a hibridização, a possível convivência com o diferente e com o outro. Como o próprio nome Nawa/Nauá, Ana consegue ser povo e outro, ser um entrecruzamento de culturas com desejos, sonhos e também preconceitos e falhas.

Segundo Roland Corbisier no prefácio da obra Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador de Albert Memmi:

Convencido da superioridade do colonizador e por ele fascinado, o colonizado, além de submeter-se, faz do colonizador seu modelo, procura imitá-lo, coincidir, identificar-se com ele, deixar-se por ele assimilar. É o momento que poderíamos chamar de alienação. Ocupado, invadido, dominado, sem condições para reagir, nem ideológicas nem materiais, não pode evitar que o colonizador o mistifique, impondo-lhe a imagem de si mesmo que corresponde aos interesses da colonização e a justifica (1977, p. 8).

Poderíamos encaixar Ana nessa configuração de colonizada em relação ao outro, aos estrangeiros? De forma alguma, Ana luta contra isso, tenta absorver a cultura do outro para utilizá-la a seu favor. Um ser colonizado presente na obra, citaríamos a amiga de Ana, a índia que pinta os cabelos da cor do sol.

Corbisier ainda comenta:

Para justificar, para legitimar o domínio e a espoliação, o colonizador precisa estabelecer que o colonizado é por ‘natureza’, ou por ‘essência’, incapaz, preguiçoso, indolente, ingrato, desleal, desonesto, em suma, inferior. Incapaz, por exemplo, de educar-se, de assimilar a ciência e a tecnologia modernas, bem como de exercer a democracia, de governar-se a si mesmo (1977, p. 9).

O lado do colonizador na narrativa analisada, segundo as palavras de Corbisier, pode ser representado na surpresa e dúvida da professora em relação ao texto de Ana:

Peço desculpas por ter duvidado de você naquela vez; não sabia que as suas qualidades já vinham sendo estudadas por especialistas do Brasil inteiro há mais de um ano; fui informada naquela semana mesmo. Mas sabe, Ana, é que você atrapalha a gente. Esses traços finos, essa beleza suave, esse corpo perfeito, você tem parentes brancos? (OLIVEIRA NETO, 2002, p. 149).

A professora achava Ana incapaz de produzir aquele texto pro ser uma índia, aquela visão racista em relação ao índio, considerado um ser inferior em relação ao estrangeiro. É uma forma de subjugar o outro, de enquadrá-lo no estereótipo de índio incapaz de aprender novos conhecimentos e produzi-los.

Ana percebe que o caminho para o convívio com o estrangeiro, com o outro é a luta, o enfrentamento, mas não o físico, e sim através das armas do conhecimento, do diálogo, da resistência racional.

Confirmamos essa atitude de Ana com as palavras de Corbisier:

Não só poderá mas deverá, doravante, apropriar-se da ciência e da tecnologia dos colonizados e talvez de algumas de suas instituições jurídicas e sociais. Essa apropriação, essa utilização, no entanto, se fará livremente, e em função dos interesses e das necessidades da nova nação e do seu projeto próprio de desenvolvimento. O essencial foi, enfim, conquistado. Pouco importa que haja obstáculos e resistências a vencer, provações a enfrentar, sacrifícios numerosos a fazer. De que não é capaz o ser humano quando o entusiasmo o arrebata, quando o amor inflama seu coração? (1977, p. 16-17).

A índia Nauá está neste papel, apropriou-se da ciência, da cultura do colonizador e a utilizará em função de si e de seu povo, lutará de Xapuri contra a submissão da floresta e de seu povo, é lógico, que enfrentará vários obstáculos, e ela é sabedora disso, não importa, o que interessa é que tomou a atitude de enfrentar o outro, não no sentido de destruir, mas de lutar pelos seus direitos e pela cultura da floresta amazônica.

Na obra de Godofredo de Oliveira Neto Ana e a margem do rio – confissões de uma jovem Nauá, temos identidades sendo construídas através de discursos, ou seja, a constituição de identidades é um efeito discursivo.  Consideramos este discurso um agregador de culturas, idéias, preconceitos, diálogos, confrontos e lutas. Ligamos o discurso ao processo sócio-histórico-cultural por qual passa todo sujeito enunciador, o que coloca a palavra na arena de lutas discursivas.

A partir deste quadro, afirmamos ser Ana um sujeito híbrido, localizado entre fronteiras simbólicas, atiçada a escolher um espaço para a continuação de sua identidade: o local ou/e global. Ana escolhe os dois, pois ao decidir ficar em Xapuri, não significa ser um lugar com menor valor que os Estados Unidos, mas que possibilita uma luta a partir de um local que apresenta sua cultura, suas raízes. Há uma negociação com a diferença do outro, com os olhares do outro. São contradições, confrontos, escolhas e ambivalências que acompanham cada leitura de Ana sobre si, seu povo e o outro.

A índia Nauá faz uma revisão de suas referências, normas e valores, procura comparar com outras conquistas, e todo esse processo ocasiona deslocamentos, perdas, novas configurações. Ao mesmo tempo que recupera histórias de suas raízes ao escrever a lenda do jacaré e da jibóia, adapta e acrescenta novos olhares, novas análises oriundas da cultura dominante. São questões que envolvem a linguagem, o discurso, instigando uma série de reflexões sobre a constituição histórica de sujeitos e suas representações identitárias ficcionais. É através do discurso (escrito, oral, visual) que operamos construções e desconstruções de identidades.

Arriscamos dizer que é na alteridade, no outro, que Ana descobre o que deixou de ser, de possuir, lembrando Ítalo Calvino (1991), e também o que está sendo, revelando em diferentes situações que a identidade se apresenta em várias faces de si mesma, de uma base que veio de outras e que dá origem a novas representações.

Através das lendas, das análises, dos questionamentos da índia Nauá, são construídos sujeitos que se representam e representam o outro, produzindo conhecimento sobre aquele grupo de pessoas que se vêem de uma forma, são vistos de outra e se constituem nessa mistura, nessa hibridização.

Assim, Ana é uma índia Nauá buscadora de respostas para suas dúvidas e para modificar posições, idéias, crenças em determinadas realidades que não conseguem mais responder ou satisfazer sua tribo e seu íntimo. Esta análise não buscou um combate contra isso ou aquilo, e nem uma procura de soluções para a questão da identidade: propomos uma reflexão sobre uma ficção que se encontra na nossa realidade.

 

Referências

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. 3ª reimpressão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.

BOSI, Alfredo. Nos meandros do manuscrito. In: WILLEMART, Philippe. Universo da criação literária. São Paulo: Edusp, 1993.

KHALIL, Marisa Gama; CRUVINEL, Maria de Fátima; GREGOLIN, Maria do Rosário. (orgs.) Análise do discurso: entornos do sentido. São Paulo: Cultura acadêmica, 2001.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Tradução de Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

OLIVEIRA NETO, Godofredo. Ana e a margem do rio – Confissões de uma jovem nauá. Rio de Janeiro: Record, 2002.

PINO, Claudia Amigo. O conceito de “criação”, segundo o laboratório do manuscrito literário. In: WILLEMART, Philippe. Encontro Internacional de pesquisadores do Manuscrito – Fronteiras da criação: [anais] do 6° Encontro Internacional de Pesquisadores do Manuscrito. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2000.

TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Tradução de Christina Cabo. Rio de Janeiro: Record, 1999.

 

 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 22 abril, 2008.