A
Arte Semântica dos primórdios do Cristianismo: a Disciplina do Arcano e
o Simbolismo Cristão
Ivan
Bilheiro
Resumo:
A arte dos primórdios do Cristianismo, praticada por homens do
povo, em sua maioria autodidatas, ou sem qualquer tipo de técnica,
cumpria a tarefa, determinada pela Disciplina do Arcano, de não
deixar explícita qualquer aparência dos mistérios da religião.
Ocultou-se, por trás de símbolos (apropriados e re-significados em
muitos casos), a doutrina da nascente religião. A partir daí, o
simbolismo, algo extremamente poderoso e útil, em especial à
linguagem religiosa, passou a ser largamente utilizado pelos cristãos
e muitos dos símbolos utilizados pela Igreja, hoje, são produtos
da época das perseguições a estes nos tempos do Império Romano,
antes de Constantino e o Édito de Milão de 313.
Palavras-chave:
História do cristianismo, arte cristã, arte catacumbária,
simbolismo cristão, disciplina do arcano.
Abstract:
The art of primordial Christianity, practiced by common people
without any kind of technique, went through the rule of Arcane’s
discipline, which is to keep the religion mysteries dark. At the
beginning, this religion was replaced by symbols (sometimes
appropriated and resignified). From this time, the symbolism started
to be used by Christians, mainly in religious language. Many of
Church symbols used nowadays were produced when persecutions took
place, before Constantino and Edito de Milan (313).
Key
words:
Christianity History, Christian Art, Art from catacombs, Arcane’s
discipline. |
1)
Intróito
A
arte do assim chamado Cristianismo Primitivo é usualmente dividida em
duas grandes fases: a Arte Paleocristã ou Catacumbária e a Arte Triunfal
(Bizantina no Oriente e Românica no Ocidente) (GAUER & POZENATO,
2006, p. 31). O grande marco divisor entre as duas fases, as quais
correspondem, necessariamente, a fases distintas de todo o cenário do
Cristianismo, é o Édito de Milão promulgado pelo imperador romano do
Ocidente, Constantino, e seu co-imperador do Oriente, Licínio.
O
Édito de Milão de 313 d.C. proclamou a liberdade de culto no Império e,
conseqüentemente, permitiu que os cristãos saíssem da
“clandestinidade”. A partir daí, começou a rápida ascensão da
religião cristã até se tornar estatal em 380, com Diocleciano e,
depois, chegar a colocar o próprio Estado sob seu jugo (ROUGIER, 1995, p.
80-81).
A
liberdade de culto iniciou o triunfo do Cristianismo. No entanto, houve um
período anterior a este acontecimento, no qual os cristãos sofreram
variadas e violentas perseguições, das quais pode-se destacar, para
exemplo, as ações do imperador Nero.
Foi
neste contexto de perseguição e “clandestinidade” que teve início o
desenvolvimento da Arte Cristã.
O
presente trabalho trata especificamente do período da arte cristã
encontrada no Império Romano anterior ao Édito de Milão, ou seja, a
Arte Paleocristã; e da característica semântica
(simbólica) desta arte, oriunda de um contexto que gerava necessidades
peculiares, justamente o que propiciou o início da prática da Disciplina
do Arcano, também tratada aqui.
2)
Contexto
Para
compreender a arte praticada e desenvolvida pelos primeiros núcleos de
cristãos, é preciso compreender também o contexto no qual esta se
manifestou.
A
Arte Paleocristã desenvolveu-se, especialmente, dentro do Império
Romano. No período deste início das práticas cristãs, no que tange ao
campo artístico, havia uma relativa tolerância para com todas as religiões
que se mostravam presentes dentro do vasto Império. Entretanto, havia um
culto oficial voltado ao imperador, o qual deveria ser seguido por todos.
“O culto imperial era o equivalente do juramento cívico, da saudação
à bandeira” (Ibid, p. 86).
Os
cristãos enxergavam neste culto imperial uma apostasia, uma prática errônea,
e, portanto, negavam-se a seguí-lo. O Império Romano colocou-se,
portanto, como perseguidor dos cristãos, e estes se viram obrigados a
colocar suas práticas na “clandestinidade”. É necessário salientar
que não só a “desobediência civil”, ou seja, a negação do culto
imperial padrão, fez com que o Império se voltasse contra os cristãos.
Trata-se, na verdade, de uma série de fatores, que inclui a pressão da
opinião pública que, em geral, tinha completa ignorância a respeito das
práticas usuais dos cristãos e os atacava veementemente por vários
crimes e delitos. Também alguns imperadores colocaram sobre os cristãos
a culpa por alguns fatos esporádicos, até de ordem natural. “Nas
palavras de Tertuliano: ‘se o Tibre atinge as muralhas, se o Nilo não
consegue subir até os campos, se o céu não se move ou se a terra o faz,
se há fome ou peste, o clamor é um só: ‘aos leões os cristãos!’’”
(JOHNSON, 2001, p. 87-88).
Muitos
cristãos se tornaram mártires, neste período, por fazerem oposição à
submissão de sua religião ao Império e/ou ao culto imperial. Visando
evitar profanação dos túmulos, estes mártires, bem como os demais
falecidos cristãos (cronologicamente, em fase posterior) passaram a ser
sepultados em cemitérios subterrâneos, as chamadas catacumbas.
Estes
sepulcros subterrâneos, que objetivavam inumar os cristãos, constituíram,
justamente, o ponto de nascimento da Arte Cristã. Por tal motivo, a Arte
Paleocristã é, também, chamada de Arte Catacumbária.
Faz-se
mister ressaltar que, “antes de Constantino, Roma ainda não era o
centro oficial da fé; comunidades cristãs maiores e mais antigas
existiam [...] e provavelmente tinham suas próprias tradições artísticas”
(JANSON & JANSON, 1996, p. 89). Porém, as fontes sobre tais
comunidades cristãs são extremamente escassas e, para se tratar da Arte
Paleocristã, quase inexistentes. Excetua-se Roma que, por certos motivos,
manteve intactas algumas catacumbas e algumas outras pouco danificadas.
3)
Arte Catacumbária
Do
ponto de vista econômico, os cristãos dos anos anteriores ao imperador
Constantino
não eram abastados. Muito ao contrário, eram muitas vezes pobres (tal
fato remete à característica inicial do Cristianismo de atrair a grande
parcela da população de poucos recursos financeiros; e é este um dos
fatores que permitiu a expansão e, mais tarde, o triunfo da religião).
Este
atributo dos primeiros cristãos é importantíssimo para o estudo da arte
do período: justamente por tal situação de poucos recursos, “[...]
essa arte cristã primitiva não era executada por grandes artistas, mas
por homens do povo, convertidos à nova religião. Daí sua forma rude, às
vezes grosseira, mas, sobretudo, muito simples” (PROENÇA, 1999, p. 45).
Partindo
desta característica inicial, é inevitável não fazer uma observação
e uma reflexão de importância considerável: a princípio, a Arte Cristã
foi praticada por homens do povo, pobres, sem domínio técnico. Vista sob
certos aspectos, era realmente “[...] uma arte pobre, pela própria
situação de vida dos cristãos” (GAUER & POZENATO, 1996, p. 32).
Contudo, assim como a própria religião que, ao mostrar seu poder e seu
potencial, foi incorporada pelos poderosos do Império, sua arte também o
foi. O que, a princípio, foi uma arte tosca, praticada sem técnicas por
homens simples, acabou se tornando um estilo elaborado e próprio à época
da ascensão do Cristianismo, e, obviamente, passou a ser executada por técnicos
e artistas importantes e, por vezes, de renome. A arte cristã deixou de
ser, após o triunfo da religião, arte do povo – o que a tornava
peculiar em relação às demais. Houve uma forte mudança, e por isso
existe a divisão já citada entre Arte Catacumbária e Arte Triunfal.
Contrariamente
ao que se pensa usualmente, as catacumbas não serviam de locais de culto
para os cristãos. Eram elas utilizadas, somente, para sepultamento dos mártires
e dos fiéis comuns, ou seja, constituíam somente cemitérios subterrâneos,
e não locais de reunião. As investigações arqueológicas mostraram que
os cultos eram praticados em residências, tanto em Roma quanto em outras
cidades.
São
características da arte do período não só a pintura e a escultura, mas
também a música e a poesia. “A música não utilizava [...] nenhum
instrumento musical, porque os instrumentos estavam, no conceito cristão,
ligados às orgias romanas. Os cantos realizados nos cultos eram [...] a
uma só voz (monódicos), de estrutura musical simples e austera” (Ibid.,
p. 33).
A
escultura e a pintura – mais essa que aquela – eram mais largamente
utilizadas. Serviram, inicialmente, para adornar os sepulcros exclusivos
aos mártires da religião, estendendo-se depois para os demais túmulos
cristãos.
A
pintura era “[...] mural, ornamental e figurativa, em afresco. [...] A
escultura, mais rara do que a pintura, aparece em túmulos e sarcófagos,
quase sempre em baixo-relevo [...]” (Ibid., p. 32).
4)
Disciplina do Arcano e Simbolismo
Como
já mostrado, “a primeira manifestação da arte cristã está ligada à
decoração dos cemitérios subterrâneos” (MONTERADO, 1968, p. 65).
Além
das já expostas peculiaridades da arte cristã inicial, de técnica, de
aplicação, de local, de produtores e alvos da arte, etc; o contexto do
Império Romano e das condições de vida dos primeiros cristãos
contribuiu para que um novo elemento surgisse: a Disciplina do Arcano.
“No primeiro século, os sepulcros são ainda particulares, privados, e
a decoração é geométrica, enriquecendo-se com elementos tirados da
flora e da fauna, segundo o tipo pagão” (Ibid., p. 65).
A
influência do paganismo, neste início, é tida como inevitável, visto
que era esta a idéia arraigada na consciência coletiva, incluindo-se aí
os cristãos. Também, é preciso dizer, algumas obras eram executadas por
“pessoas de fora” (pagãos), e os temas do paganismo apareciam para
evitar que recaíssem suspeitas sobre aqueles que solicitavam o serviço.
“Os
artistas recorriam [...] a motivos pagãos, dando-lhes, no entanto, uma
interpretação cristã” (MAHLER; UPJOHN; WINGERT, 1974, p. 92).
Conforme se vê, o cristianismo foi (e ainda é) “[...] uma religião
que conseguiu incorporar elementos oriundos de uma variedade de fontes
[...]” (BATTISTONI FILHO, 1989, p. 43).
“No
segundo século, quando as catacumbas se tornam cemitérios comuns,
entra o simbolismo, prevalecendo a disciplina do arcano que
proibia, rigorosamente, representar os mistérios da religião, por medo
de profanação” (MONTERADO, 1968, p. 65 – Grifo do autor).
A
partir do segundo século, portanto, a arte cristã passou a ser composta,
principalmente, por simbolismo. Em síntese, tornou-se uma arte semântica.
O
surgimento da Disciplina do Arcano – regra não expressa, mas difundida
de não retratar, explicitamente, mistérios da religião para evitar
reconhecimento pelos leigos – refletia o contexto das seguidas perseguições
aos cristãos: era preciso que a religião não ficasse discriminável nas
obras, que estas só pudessem ser percebidas e interpretadas por
iniciados, por integrantes da religião.
Assim,
a arte cristã voltou-se para a representação de símbolos. Até mesmo
as simples estruturas geométricas, mais largamente utilizadas no século
I, foram reinterpretadas a fim de cumprir um novo papel.
O
simbolismo deu, logicamente, grande força ao Cristianismo. Ao mesmo tempo
em que protegia os cultos e a expressão dos fiéis, auxiliava na
representação e na compreensão de conceitos religiosos: “A idéia de
Deus não pode ser expressa por um quadro; não pode ser plenamente
expressa nem mesmo em palavras; o símbolo é um meio de transmitir uma idéia
demasiado tremenda para a expressão humana” (ANSON & CONALY, 1969,
p. 1104). “Um dos aspectos mais importantes dessa iconografia diz
respeito aos fenômenos sincréticos de transposição de temas não-cristãos
em temas cristãos.” (ALET, 1994, p. 51)
Houve,
então, um processo de mistura de elementos diversos e de variadas fontes.
Imagens simples que muitas vezes somente adornavam obras foram
re-significadas, bem como imagens dos cultos pagãos e outras imagens de
elementos simples da vida cotidiana.
Contrariamente
à arte usual (e ao conceito que se faz desta), a arte cristã do período
das perseguições passou a ser criada a fim de ter conceitos embutidos,
significado interno de coisas e/ou idéias exteriores.
Assim,
por exemplo, a simples forma geométrica do círculo passou a representar
Jesus Cristo, e quando vinha este símbolo sobre uma cruz, significava a
crucificação (considerado o fato de que as cruzes eram, geralmente,
evitadas, por serem um símbolo bem óbvio da perseguida religião), e,
nesse caso, nota-se o sincretismo simbólico com o Deus-sol do paganismo;
ou o mesmo símbolo podia servir para representar a eternidade de Deus.
Muitos
outros símbolos foram sendo criados, como o peixe, que representava, também,
Jesus. Este símbolo foi escolhido porque, em grego, a palavra peixe forma
um acróstico das iniciais de “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”,
também em grego. O símbolo do peixe também era utilizado para
reconhecimento mútuo entre os cristãos.
A
renovação da força do Cristianismo propiciada pelo simbolismo nascente
foi um dos elementos constituintes das bases que asseguraram o triunfo da
religião pós-Constantino.
As
catacumbas deixaram de ser usadas somente no século V, ainda que já
houvesse liberdade de culto no Império, extensiva ao Cristianismo, bem
como esta religião já fosse estatal. Já o simbolismo não foi
totalmente suprimido, embora tenha perdido a força que o fez nascer por
conta da liberdade de culto e tenha diminuído em muito, dando lugar às
representações menos misteriosas, geralmente de passagens bíblicas.
5)
Considerações finais
Como
se pode notar, a perseguição aos cristãos fez nascer uma das armas
utilizadas por eles para propagação da fé. A Disciplina do Arcano deu
origem ao simbolismo da religião cristã, o qual é utilizado até os
dias atuais.
O
estudo da arte deste período permite observar o dinamismo da Igreja,
quando ainda embriônica, e a capacidade de adaptação, não só da
instituição em si, mas também dos fiéis.
As
apropriações e re-significações de temas pagãos e laicos são provas
disso, bem como a capacidade criativa de escapar da perseguição ao culto
quando ainda se mantinha à margem da sociedade romana.
Todo
esse cenário que permitiu o aparecimento da Disciplina do Arcano e do
conseqüente e inevitável simbolismo cristão foram, sem dúvida,
fundamentais na história da Igreja, para que esta pudesse se tornar uma
das instituições mais bem sucedidas na história da humanidade.
A
força de comunicação dos símbolos é inquestionável e adaptou-se
muito bem à linguagem religiosa (ou esta adaptou-se muito bem à
linguagem dos símbolos), e a junção das duas permitiu, em aliança com
outros fatores, a construção da base de uma das instituições mais bem
sucedidas na história da humanidade.
Referências
ALET,
Xavier Barral I. História da arte. 2 ed. Campinas: Papirus, 1994.
ANSON,
Peter F. & CONALY, Iris. A arte na igreja. Rio de
Janeiro: Renes, 1969.
BATTISTONI
FILHO, Duílio. Pequena história da arte. 9 ed. São Paulo:
Papirus, 1989.
GAUER,
Mauriem & POZENATO, Kenia. Introdução à história da arte. 3
ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.
MONTERADO,
Lucas de. História da arte. São Paulo: São Paulo, 1968.
PROENÇA,
Graça. História da arte. São Paulo: Ática, 1999.
Referências
eletrônicas
Arte
Crsitã Primitiva. Disponível em: < http://www.brasilescola.com/historiag/arte-crista.htm
>. Acesso em: 29 out. 2007.
Símbolos
litúrgicos.
Disponível em: < http://www.ielb.org.br/recursos/rec_liturgia/Simbolos
>. Acesso em: 29 out. 2007.