Adorno
e a dimensão social da Arte
Wisley
Francisco Aguiar
Resumo:
Neste trabalho, procuro enfatizar a perspectiva dada por Adorno
(1903-1969) com relação à arte, considerando-a como forma de
conhecimento e, conseqüentemente, de crítica social. Mas se pode
considerar toda forma de expressão artística como sendo arte
libertadora? O filósofo coloca um impasse com relação ao material
artístico. Nem tudo pode ser considerado arte “autêntica”.
Existe um tipo de arte que serve aos interesses do capital,
neutralizando qualquer perspectiva de cognição. A arte com vistas
ao entretenimento não pode desempenhar o papel de emancipação do
sujeito, uma vez que seu objetivo é ser “comercializável”.
Assim, a arte só pode ser abarcada numa dimensão social quando está
vinculada à crítica e à filosofia, para resistir ao processo de
dominação que usurpa sua autonomia.
Palavras-chave:
Arte, Dimensão Social, Cognição, Indústria Cultural
Abstract:
I try to emphasize the perspective given by Adorno (1903-1969)
regarding Art, considering it as a way of knowledge and,
consequently, of social criticism. Is that possible to consider all
kinds of artistic expression as redeemer Art? The philosopher
proposes an impasse regarding the artistic material. Not everything
can be considered as “authentic’ Art. That kind of Art obeys the
capital interests, neutralizing any cognition perspective. Art as a
way of entertainment is not able to play the role of the subject’s
emancipation, since its objective (the one of the Art) is a
“marketable” one. Thus, art can only be approached on a social
dimension when it is entailed to criticism and philosophy to resist
to the domination process that encroaches upon its autonomy.
Keywords:
Art, Social Dimension, Cognition, Cultural Industry |
A
obra de Candido Portinari (1903-1962), Retirantes,
de 1944, é um misto de sensibilidade e emoção que retrata perfeitamente
o sofrimento do povo nordestino em meio à seca. Em traços profundos e
marcantes, o pintor expressa seus sentimentos diante de uma realidade fria
e desumana. Portinari desenhou um protesto ao descaso que a modernidade
legou àqueles que foram excluídos dos benefícios da técnica. Num mundo
onde o avanço científico poderia proporcionar o fim da penúria entre as
pessoas, o que mais se vê é a acentuada banalização do sofrimento e do
horror em prol do interesse econômico. A pintura de Portinari ilustra bem
uma situação vivida por milhões de brasileiros que não tiveram a mesma
oportunidade de vida. Assim, sua obra é exemplo de como a arte, ao longo
da história, se volta para uma nova realidade. Ela se destaca como dimensão
social. Ao se relacionar com outras atividades humanas, a arte deixa
transparecer seu forte caráter de protesto social. É a partir dessa dinâmica
que procuro apresentar as posições de Theodor W. Adorno (1903-1969), filósofo
alemão, em relação à arte. Trata-se de elucidar algumas questões que
giram em torno de sua filosofia estética, principalmente sobre o tema da
indústria cultural, desenvolvido nos anos 1940 em pleno exílio
norte-americano.
A
concepção de arte para Adorno não pode ser desvinculada de seu
compromisso social. É por meio da análise do fenômeno artístico
contemporâneo que o filósofo procura “denunciar” o caráter de
manipulação do capital na arte. Crítica social e crítica artística não
podem se separar quando o assunto é a consciência das pessoas. “A priori, antes de suas obras, a arte é uma crítica da feroz
seriedade que a realidade impõe sobre os seres humanos” (ADORNO, 2001,
p. 13)
Mas
se pode considerar toda forma de expressão artística como sendo arte
libertadora? O filósofo coloca um impasse com relação ao material artístico.
Nem tudo pode ser considerado arte “autêntica”. Existe um tipo de
arte que serve aos interesses do capital, neutralizando qualquer
perspectiva de cognição. A arte com vistas ao entretenimento não pode
desempenhar o papel de emancipação do sujeito, uma vez que seu objetivo
é ser “comercializável”. Assim, a arte só pode ser abarcada numa
dimensão social quando está vinculada à crítica e à filosofia, para
resistir ao processo de dominação que usurpa sua autonomia.
O
filósofo frankfurtiano dá à arte um tratamento especial. Diferente de
outros pensadores que colocaram o problema estético como algo periférico
em seus escritos, Adorno centraliza sua crítica social à experiência íntima
que teve como músico. Segundo Freitas (2003, p. 8), “a arte não é
apenas uma questão teórica a mais, [para Adorno – wfa], no meio
daquelas consagradas pela tradição sociológica e filosófica”.
Visivelmente, suas pesquisas giram em torno de uma análise do fenômeno
artístico contemporâneo.
Na
história da Filosofia, o discurso estético não possui uma uniformidade
característica como em outros temas. Entre os filósofos, a concepção
de arte sempre oscilou em diferentes perspectivas. Muitos consideravam
essenciais apenas a beleza natural e artística da obra, outros a
abarcavam no âmbito da metafísica do belo ou da relação empírica do
gosto. Assim, mesmo divergindo entre uma e outra forma artística, os filósofos
eram unânimes em dar a arte um status
privilegiado em suas teorias. Aos poucos, foi se construindo um paradigma suis
generis do artístico, que rodeou a vida humana em seus múltiplos
aspectos, partindo de uma experiência sensível até a elaboração de
sistemas filosóficos complexos.
Todo
o discurso sobre a arte representava conferir-lhe certa importância como
autêntica expressão do conhecimento. Adorno sabe dessa importância, e
por isso adota em sua filosofia o “ensaio” como forma de vínculo
entre arte e pesquisa. Valorizar a arte, contudo, significa em seu
pensamento algo mais do que a reflexão estética. Ela se torna relevante
quando está inserida em uma crítica da cultura, da sociedade
capitalista, da razão científica, da cultura do entretenimento e alienação
das consciências. Não se pode, pois, desvincular o discurso estético de
Adorno com o projeto da Teoria Crítica.
Para
defender a arte como conhecimento, Adorno desenvolveu sua teoria sobre um
alicerce teórico onde a crítica exerce um papel fundamental no processo
de cognição. Segundo Olgária Matos (2005, p. 20) “com a adoção da
crítica, a teoria frankfurtiana se filia a uma tríplice tradição:
Kant, Hegel e Marx”. É sobre a herança desses filósofos que Adorno
buscará subsídios para sua teoria crítica, dando a eles uma roupagem
mais dialética e fragmentária, como atesta a maioria de seus livros e
ensaios.
A
concepção de arte para Adorno pode ser abordada a partir de sua obra
mais importante sobre o tema: a Teoria
Estética. Este trabalho foi publicado 1969, neste mesmo ano, Adorno
veio a falecer deixando-a inacabada. Mesmo sem ter sido concluída, ela
apresenta todo o trabalho sobre o conceito de arte no pensamento do filósofo.
Também se pode encontrar em outros textos, como Notas
de Literatura e Teses
sobre sociologia da Arte, dentre inúmeros artigos, suas noções
sobre a arte, que deveras não deixam de ser sintetizadas na Teoria
Estética.
A
Teoria Estética de Adorno pode
ser lida a partir de uma perspectiva de denúncia. Nisso, uma passagem do Prismas
é exemplar no que diz respeito à situação em que se encontra a
sociedade hoje. O filósofo afirma: “quanto mais totalitária for a
sociedade, tanto mais reificado será também o espírito, e tanto mais
paradoxal será o seu intento de escapar por si mesmo da reificação”
(ADORNO, 1998, p. 26). Tal constatação é referendada com a sua mais
famosa sentença que diz, “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro”
(ADORNO, 1998, p. 26).
Uma
leitura profunda da Teoria Estética
pressupõe algumas teses fundamentais como a manipulação da produção
artística contemporânea pelo capital e o combate aos recursos ideológicos
que permitem e “justificam” essa manipulação. Entende-se então que
a arte no mundo contemporâneo só resiste enquanto pode ser crítica e a
filosófica para garantir seu direito a existência.
As
idéias do filósofo recaem num certo ceticismo, pois ele não acredita
que a arte possa recuperar esse direito de existência, a não ser em uma
sociedade livre. Mesmo assim, ele não deixa claro o que seria essa
sociedade livre, mas acredita que mudanças são urgentes e necessárias.
Nas imprecisões das teses adornianas, essa necessidade de mudança é
determinada por uma visão pessimista e cristalizada da situação atual.
A
estrutura da obra Teoria Estética
apresenta um conjunto que não se ajusta à progressão do texto. Os parágrafos
se concorrem num tema central e os conceitos giram em torno das relações
existentes entre “mundo administrado” e o lugar que este atribui à
arte. Salienta-se que Adorno escreve de um modo diferente que
habitualmente um trabalho científico está estruturado. Não se sabe o
que é introdução, desenvolvimento e conclusão. Ao contrário dos que
acreditam ser essa uma maneira do filósofo dizer ao leitor que conclua
seu trabalho, a preocupação, no entanto, é outra. No fundo, a maneira
como Adorno escreve seu trabalho é uma fuga das estruturas desse “mundo
administrado” que visa encontrar para arte uma função específica,
colocando em jogo sua autonomia e imanência.
Assim,
“tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser
evidente, tanto em si mesma como na sua relação ao todo, e até mesmo o
seu direito à existência” (ADORNO, 1970, p. 11). O problema da existência
da arte é o ponto principal de análise que irá permear toda Teoria
Estética, pois falar da arte numa dimensão social pressupõe sua própria
existência enquanto arte, sua autonomia e imanência. A partir de agora,
o filósofo procede uma leitura profunda da situação em que se encontra
a obra de arte no mundo contemporâneo.
Segundo
Adorno (1970, p. 266), “a situação da arte é hoje aporética”. Ela
se encontra num verdadeiro estado de paralisia, pois mesmo tendo se
livrado das funções que outrora exercia – funções culturais,
religiosas ou morais – o mundo capitalista soube atribuir-lhe um lugar
específico no seio da realidade social. A arte acabe se integrando na
rotina das mercadorias. Sua autonomia, conquistada a duras penas, se volta
contra ela, sendo levada também a ser veículo ideológico do poder
social.
A
sociedade vive uma “ilusão da totalidade”, adquirida pela falsidade e
a mentira da coisa pronta, polida e acabada. Criou-se uma tendência do
sempre igual, reproduzindo o mesmo método de apropriação do objeto. A
idéia de um “artista reacionário” se liga a conclusão de sua obra
por meio do “constrangimento”, da “manipulação do material”, em
sua violência. Não se leva em conta as forças desses próprios objetos,
muito menos a história.
Na
Teoria Estética, a perspectiva
de que uma nova libertação estaria na arte revolucionária parece tender
ao fracasso. Isso se deve ao fato de que a arte revolucionária e de
protesto acaba reproduzindo com excessiva freqüência um processo análogo
as intenções do realismo socialista. Segundo Adorno (1970, p. 281),
“as perturbações vanguardistas das reuniões da vanguarda estética são
tão ilusórias como a crença de que elas são revolucionárias e que a
revolução é uma forma do belo”. Dizer “arte revolucionária” a
determinada tendência artística é um erro, pois a própria arte em si
é um protesto, uma forma de escapar das estruturas totalitárias.
A
arte é, nas palavras de Adorno (1970, p. 117), “protesto constitutivo
contra a pretensão à totalidade do discursivo [...]”. Um protesto
radical contra todo o poder, inscrito não em seu conteúdo, mas em sua
forma. É na forma que se encontra o verdadeiro elemento de protesto. Para
ter forças contra uma sociedade gananciosa e de concorrência, a arte
precisa ser inútil em sua forma, uma inutilidade radical para resistir ao
poder da falsa integração.
O
filósofo alemão apresenta uma nova teoria, a teoria das obras de arte,
num aprofundamento marcado pela análise técnica, cujo objetivo é
revelar o conteúdo de verdade que passa despercebida pela visão
idealista das obras. Para Adorno (1970, p. 49), “o conteúdo de verdade
das obras de arte funde-se com o seu conteúdo crítico”, um conteúdo
que não se encontra “fora da história, mas constitui a sua cristalização
nas obras” (ADORNO, 1970, p. 154).
A
arte, por meio de suas obras, é uma aparência de verdade, testemunhando
um mundo dominado pela violência. Por isso, a arte de Portinari, que foi
citada no início deste artigo, representa esse testemunho. Uma obra cuja
forma denuncia a opressão, uma vez que não se deve levar em conta o
retrato dos Retirantes, mas sim como são retratados, em traços destorcidos e
que clamam por socorro. Assim, a função crítica das obras é revelar o
conteúdo de verdade, que num primeiro momento deve destruir o “caos”
de interpretações idealistas.
A
função crítica das obras está ligada a uma crítica filosófica, e
essa por sua vez, atribui a estas um caráter de enigmas. Por isso, a crítica
tradicional é precária por achar que sabe a
priori o que são as obras de arte. A crítica autêntica é aquela
que destaca o momento intrínseco que toda obra opõe à sociedade. Dessa
forma, Adorno nos convida a uma nova leitura das obras de arte. Ao se
deparar com um novo ambiente,
o filósofo não teve dúvidas de que urgentes reflexões a partir da
Filosofia eram necessárias, e por isso foi radical em suas críticas,
aproximando arte e crítica filosófica.
Para
salientar essa proximidade da arte com a crítica filosófica, uma das
obras mais significativas no contexto teórico frankfurtiano é, sem dúvida,
a Dialética do Esclarecimento,
escrita em parceria com Max Horkheimer e publicada em 1947. O trabalho
empreendido na construção da Dialética resultou em uma análise das “conseqüências filosóficas”
do iluminismo. Consiste basicamente em mostrar que “o esclarecimento, ao
mesmo tempo que permitiu ao homem libertar-se dos grilhões que o
acorrentavam, traz consigo a sua própria antinomia, ao tornar o homem
escravo da reificação” (SILVA, 1999, p. 29).
A
proposta da Dialética do Esclarecimento é verificar como essa razão
instrumental invadiu o terreno da cultura e da criação artística. No
segundo capítulo intitulado “a Indústria Cultural: o esclarecimento
como mistificação das massas”, o termo “indústria cultural” é
empregado pela primeira vez para designar a “etapa mais acabada da
autodestruição do esclarecimento” (SILVA, 1999, p. 30). O objetivo
dessa indústria é vender bens com o selo de “arte”. Assim, a indústria
cultural representa a destruição da dimensão social da arte, uma vez
que lhe interessa apenas o sucesso comercial.
O
filósofo frankfurtiano contrapõe os produtos da indústria cultural com
o sentido de obra de arte autêntica e autônoma. A arte autônoma possui
um valor de verdade, pois se mostrava muito distante da precária condição
material humana e, ao mesmo tempo, se manifestava como protesto a ordem
vigente. Quando a arte protesta negando o âmbito das relações sócio-econômicas,
ela atrai para si uma “promessa de felicidade”, que significa afirmar
no contexto da obra uma possibilidade para o futuro.
Mas
a arte autônoma não era tão acessível às massas, justamente pelo
esforço cognitivo que exigia de quem a apreciasse. Contudo, isso não
significa um pretexto para torná-la fácil. É em sua difícil compreensão
que a arte resiste à falsa universalidade da integração, e seu valor de
verdade se mostra preservado, além de sua seriedade designar um aspecto
de denúncia contra a falsa organização social. As massas estavam mais
ligadas a uma arte de entretenimento, que servia de “descanso”. Assim,
arte séria e arte ligeira se mostravam irreconciliáveis, mas a indústria
cultural fez uma forçosa união entre essas duas esferas, cujo resultado
se vê na banalização da obra autêntica. O quadro de Portinari que
destaquei no início do texto se torna apenas uma peça de museu para
visitação do público em seu momento de lazer.
A
indústria cultural transforma a arte em diversão. Esse fato é analisado
no ensaio “O fetichismo na música e a regressão da audição” de
1938, em que Adorno apresenta elementos centrais de sua filosofia estética.
O filósofo se apropria do fenômeno social da música para estender sua
crítica à cultura de massas. A obra de arte, em especial a música,
perde todo seu valor em meio a um universo de mercadorias padronizadas. O
impacto dessa desvalorização é medido pelo fetichismo da mercadoria,
onde o valor de troca prevalece sobre o valor de uso, ou seja, a qualidade
se torna indiferente aos olhos de quem aprecia a arte (ADORNO, 1983).
O
que se instalou no ouvinte moderno, ou naquele que aprecia a obra de arte
em geral, foi uma regressão da capacidade auditiva, pois a música passou
a ser um mero ritual, uma mercadoria abstrata. Essa regressão se
caracteriza por um estágio infantil, onde a mímesis
volta a desempenhar o papel de conhecimento. As músicas que fazem sucesso
são aquelas que estão em constante difusão nos meios de comunicação.
Outro
agravante nesse estágio é o esquecimento. O ouvinte perde a capacidade
de reconhecer o que ouve, pois a música só é lembrada quando tocada várias
vezes, mas depois esquecida uma vez que desaparece da divulgação dos
meios de comunicação. Por isso, Adorno não só procura denunciar o
estado em que a arte se encontra, como também tenta salvar a arte autônoma.
Para ele, “a música de entretenimento preenche os vazios do silêncio
que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e
pela docilidade de escravos sem exigências” (ADORNO, 1983, p. 166).
A
contribuição dos escritos musicais para a elaboração crítica do
pensamento de Adorno é fundamental. Não apenas o ensaio sobre o
“Fetichismo da música...” alerta para uma perda visível da autonomia
estética, como também outros escritos se aprofundam na temática
exposta, entre eles o texto “Sobre música popular” de 1941. Esse
trabalho possui como referência o contexto norte-americano vivido por
Adorno durante seu exílio e antecipa formulações da própria Dialética.
O
caráter marcante em todos os seus textos é a perspectiva de “denúncia”.
Para Adorno, não se pode confundir “arte de protesto” com o conteúdo
disseminado nas letras de construções musicais fáceis de serem
absorvidas pelo ouvinte. Já é característico da obra de arte ser um
protesto social, mas essa tarefa esta contida na forma. Segundo o filósofo,
“não se trata de seu conteúdo, mas de seu procedimento, do abstrato de
que sobretudo é arte por abrir-se à realidade cuja violência ao mesmo
tempo denuncia” (ADORNO, 2001, p. 12).
É
por muitos motivos que os produtos da indústria cultural taxados com o
selo de “arte” não expressam uma dimensão social de protesto. São
produtos para o deleite e “vitaminas a cansados homens de negócios”
(ADORNO, 2001, p. 12). Para mostrar o potencial libertador da arte e ao
mesmo tempo denunciar sua alienação na esfera da dominação, Adorno e
Horkheimer, na Dialética
utilizam o mito da Odisséia de Homero como antecipação do estado de
coisas do capitalismo avançado.
O
aventureiro Ulisses, para não ser seduzido pelo canto das sereias, pede
para ser amarrado ao mastro. Para evitar o fracasso da travessia, ordena
aos seus remadores que tampem seus os ouvidos com cera, para que não
escutem o canto e não corram o risco de serem seduzidos por ele. Assim,
Ulisses ouve a excitante música das sereias, mas não pode se entregar a
ela, pois está amarrado na sua condição de dominador. Ele é a imagem
do burguês que paga para assistir a um concerto. Ele aprecia o canto sem
se entregar a sua promessa de felicidade, pois precisa sair dali com suas
energias repostas, dando continuidade ao processo de produção. No fundo,
a regressão das massas é “a incapacidade de poder ouvir o imediato com
os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos”
(ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 47)
O
que Adorno exige da arte contemporânea é, segundo Seligamann-Silva
(2003, p. 38) “que recupere a capacidade de auto-reflexão; que dialogue
com indivíduos autênticos, e não com membros de uma massa amorfa”.
Procedendo dessa maneira, a arte se renova e cumpre seu papel de dimensão
social, de conhecimento. Ao que parece, é difícil pensar em uma superação,
pois até a arte séria caiu nos ditames da indústria cultural. Se a arte
recuperar seu caráter libertador, isso só vai acontecer quando a própria
sociedade também mudar, o que parece permanecer apenas uma promessa.
Segundo Jimenez (1977, p. 35), Adorno nos convida a uma nova leitura da
arte. Essa leitura deve ser feita a partir da conciliação entre reflexão
e prática. Mesmo parecendo pessimista em seus escritos, Adorno vislumbra
um otimismo prático, em que talvez as coisas um dia melhorem. Valorizar a
arte que surgem entre as camadas mais populares pode representar um misto
de resistência e denúncia, desde que elas não sejam integradas pelo
interesse econômico da indústria cultural.
Referências
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Theodor W. A arte é alegre? In:
RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton; ZUIN, Antônio Álvaro Soares; PUCCI, Bruno (Orgs.).
Teoria crítica, estética educação.
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O fetichismo na música e a regressão da audição. 2.ed. In: BENJAMIN,
W.; HABERMAS, J.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Textos escolhidos. São
Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 165-191.
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Teoria Estética. Trad. Artur
Morão. Lisboa: Edições 70, 1970.
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Prismas: crítica cultural e
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Filosofia da nova música. São
Paulo: Perspectiva, 2004.
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Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética
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Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985.
FREITAS,
Verlaine. Adorno e a arte contemporânea.
Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.
JIMENEZ,
Marc. Para ler Adorno. Rio de
Janeiro: F. Alves, 1977.
MATOS,
Olgária C. F. A Escola de
Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. 2.ed. São Paulo: Moderna,
2005.
SELIGMANN-SILVA,
Márcio. Adorno. São Paulo:
Publifolha, 2003.
SILVA,
Rafael Cordeiro. A atualidade da crítica de Adorno à Indústria
Cultural. Educação e Filosofia,
Uberlândia, v. 13, n. 25, p. 27-42, jan./jun. 1999.