Introdução
Em artigo anterior nesta revista (VIANNA, 2006), afirmei que a escala
do Estado no Antigo Regime pressupõe a reorganização da estrutura jurídica
dos corpos de privilégios advinda da Idade Média. Isso significa que tal
estrutura foi reconfigurada à medida que se estreitaram os laços de
dependência entre várias localidades e surgiu a demanda de um poder soberano
estável que pudesse equilibrar os múltiplos interesses concorrentes entre si
(dentro de uma região ou para além da mesma) numa nova simbiose
sócio-política. Justamente por reconhecer esta singularidade estrutural,
historiadores franceses, britânicos e alemães das décadas de 1980 e 1990
revisaram o uso do termo absolutismo (e suas derivações adjetivantes)
como categoria analítica, chegando-se à conclusão de que tem gerado mais
equívocos do que ajudado na análise da formação do Estado na Europa anterior
ao liberalismo. (COSANDEY & DESCIMON, 2002; ASCH & DUCHHARDT, 2000).
O termo absolutismo é tardio,
difundindo-se no vocabulário político francês ao final do século XVIII e, na
Inglaterra, em começos do século XIX, quando a noção de soberania já tinha
mudado de sentido: o Estado, em vias de burocratização, esvaziava cada
corpus societatis de imperio,
criando progressivamente uma situação jurídica de igualdade civil (nesse
sentido, uma societas civilis sine imperio). É frente a tal
inovação institucional que surge um novo debate e uma nova sensibilidade
política – agora numa perspectiva constitucionalista liberal – a respeito de
como deveriam ser organizados os poderes políticos do Estado. Por este viés,
para se contrapor aos “riscos de absolutismo” – i.e., a
concentração do poder soberano de decisão numa autoridade executiva –,
dever-se-ia formar um sistema cameral permanente (autoridade legislativa) e
conferir independência institucional e poder fiscalizador para a justiça
sobre os demais poderes, de modo que o poder limitasse o poder. Ora,
tal tipo de debate só tem sentido quando o Estado de Antigo Regime
não existe mais.
As variações conceituais que proponho ao longo deste ensaio servem
justamente para escaparmos do complexo civilizador – e metafísico – de
definir uma configuração social a partir do que supostamente “falta”, pois
isso tem como conseqüência imediata abordá-la como mera preparação de uma
promessa de futuro. Obviamente, sei que não é fácil abrir mão de um hábito
analítico consolidado por tanto tempo na historiografia nacional e, em certa
medida, na estrangeira. Em todo caso, acredito que todo o esforço de
variação conceitual e modelização teórica que desenvolvo neste ensaio
permitirá que possamos pensar, alternativamente, uma legibilidade para
alguns textos clássicos de teoria política no Antigo Regime, assim como,
para os planos de enredo e personagens de peças do cânone editorial
shakespeareano.
1. A
Contribuição Analítica de António Manuel Hespanha
Em muitos debates políticos durante o século
XIX, absolutismo e absolutista tornaram-se termos pejorativos,
sendo correlatos de tirania, ditadura, autocracia, autoritarismo, cesarismo,
bonapartismo ou despotismo. No Brasil Império, por exemplo, D. Pedro I
(1798-1834) seria, do ponto de vista de sua ação política, acusado pelos
“liberais exaltados” de absolutista por fechar a Constituinte em 1823
e criar para si o Poder Moderador. No entanto, um Estado institucionalmente
liberal não é necessariamente democrático. Portanto, a ação de D. Pedro I
não foi democrática, mas autocrática, no sentido de dar corpo a uma ação
cujos efeitos eram, por excelência, liberais em suas implicações
institucionais: a outorga de uma Constituição em 1824. Nesse sentido,
devemos sempre ter a clareza de diferenciar um conceito como termo
a ser operado historiograficamente do conceito como parte do
vocabulário político de uma época.
Logicamente, abrir mão do conceito de
absolutismo não significa esquecer que a configuração estatal de
qualquer sociedade está historicamente ligada ao surgimento de um poder
político soberano coercitivo e centralizador, mas tal fenômeno deve ser
entendido por um viés analítico que não encare a estrutura
patrimonial-estamental de poder como uma espécie de resíduo arcaico que
deveria ser superado para que o Estado realizasse a sua “plena essência”: a
racionalização burocrática. Os dispositivos patrimoniais-estamentais de
poder da experiência de Estado anterior à burocracia seguem uma
racionalidade própria quanto ao modo de configurar os vínculos sociais e
políticos. Em larga medida, esta dimensão de minha análise apenas desdobra
em novas implicações uma série de inferências analíticas de António Manuel
Hespanha.
Hespanha enfatiza que a forma
patrimonial-estamental de organização política faz parte de uma lógica
institucional cujos elementos principais são: dom, contra-dom,
graça e punição. Tais fatores perpassam todo o corpo político
como dispositivos constituidores de compromissos hierarquicamente
definidos. Ora, se tal lógica não fosse comum a todo o corpo político,
não haveria efeitos agregadores e a possibilidade de centralização política.
Nesse sentido, a centralização política é o resultado da acomodação
relativa de uma tensa concorrência de tipo senhorial-clientelar entre
diferentes graus de forças centrípetas e centrífugas. Ocorre a acomodação
entre as partes quando uma delas emerge com mais poder (militar e
financeiro) e configura para si um território por onde estende sua
preeminência política (auctoritas). No entanto, uma
vez definido um centro, os seus meios de manter a auctoritas
sobre um território continuam operando sob a forma patrimonial-estamental,
ou seja, a centralização política não pressupõe a destruição dos corpos de
privilégios ou a despatrimonialização do poder político. Portanto,
não se pode confundir a noção de centralização política na Europa Moderna
com a noção de soberania da forma burocrático-liberal de Estado,
pois esta última pressupõe um nivelamento político-jurídico da sociedade
(i.e., a igualdade civil ou uma societas civilis sine imperio).
Em 1982, Hespanha fez uma série de
considerações conceituais visando mostrar a especificidade
político-institucional da Europa moderna, criticando a tendência de usar
referências constitucionalistas liberais (para a lógica administrativa) e
positivistas (para a lógica do direito) para se entender o fenômeno da
centralização política.(HESPANHA, 1982: 7-89) As suas considerações teóricas
e inferências de análise são ricas de conseqüências para se entender a
lógica de funcionamento das instituições políticas na Europa Moderna (e suas
extensões coloniais). No entanto, observando as suas conclusões em trabalho
posterior (HESPANHA, 1994), podemos observar algumas limitações do próprio
autor em explorar tais conseqüências, visto que, seguindo rigorosamente a
tipologia weberiana, Hespanha pensa a experiência político-institucional da
Europa Moderna como uma espécie de “proto-Estado” ou “pré-Estado”. Para ele,
se não há burocracia – i.e., despatrimonialização (separação bem
delineada dos meios administrativos em relação aos patrimônios dos agentes
da administração) –, não há Estado plenamente formado.
Entretanto, podemos tomar parte do quadro
analítico de Hespanha e lembrar que, no Estado de Antigo Regime, o
poder central não tem diante de si uma societas civilis
sine imperio e, portanto, a sua autoridade é ratificada e
acionada no território através dos corpos de privilégios, cuja aceitação
é construída e transformada ao longo do tempo conforme costumes, tradições
ou conveniências conjunturais. Como cada corpus tem “leis próprias” –
que a autoridade soberana central confirma como se tivessem emergido de si,
protegendo-as e jurando-as a cada sucessão dinástica –, o modelo de agir
político ou de ação da autoridade política em todos os seus
níveis é jurisdicionalista, ou seja, a ação política de qualquer
autoridade constituída (central ou local) está definida pela imagem
conceitual do Juiz-Deus acomodador e constituidor de acordo,
consentimento, compromisso, harmonia e necessidade
entre as partes de privilégios, em conformidade com as
particularidades dos homens, lugares e tempo.
Logicamente, o hábito de fazer analogias
jurídico-teológicas cumpria um papel fundamental para flexibilizar os
efeitos dos dispositivos legais de acordo com as circunstâncias de demanda
de justiça num mundo cuja dinâmica de hierarquização social e de
constituição de nexos políticos era estamental. Justamente porque esta
racionalização analógica abria um espaço muito grande para o arbitrário
das circunstâncias, havia nela um componente de insegurança que era
contrabalançado, na ordem político-social de Antigo Regime, pelo periódico
reforço dos deveres morais do papel de juiz em relação à eqüidade, ou
seja, deliberar tendo por referências os momentos, lugares e pessoas
sociais, de modo a haver uma boa acomodação das demandas por justiça.
Portanto, no Antigo Regime, a eqüidade é o princípio ou virtude que é
a raiz de um sistema jurídico que pretende organizar uma sociedade
estratificada, porém móvel, em que convivem simultaneamente muitos sistemas
normativos. Nesse sentido, é o princípio ou virtude fundamental para se
construir uma sociedade de justiça entre desiguais.
Ora, não há aqui nada que lembre o
constitucionalismo liberal, pois, mesmo considerando que uma autoridade
soberana central pudesse organizar as “leis fundamentais do reino” em
ordenações gerais, tais leis são apenas um dos repertórios normativos de
deliberações existentes no corpo político, sendo os seus efeitos ativados
ou abandonados conforme cada caso ou circunstância. Há várias
possibilidades de exemplificar isso na prática administrativa.(VIANNA, 2000)
No entanto, podemos observar esta mesma expectativa de prática
jurídico-política ser expressada em trabalhos literários que justamente
afirmam a tese de que é necessário haver eqüidade para se evitar uma
aplicação por demais rígida e inadequada das leis às pessoas sociais
numa dada circunstância. Para demonstrar isso, valer-me-ei dos exemplos de
duas peças do cânone editorial shakespeareano: “O Mercador de Veneza”
e “Medida por Medida”.
2. Poder Preeminente e os riscos da
Deformação Tirânica
O plano dramático de “O Mercador de Veneza”
torna moralmente condenável o modo como o personagem Shylock enrijece o uso
das leis de Veneza ao cobrar uma dívida em carne humana – exorbitância de
inveja, usura e avareza – contra um cidadão honrado: Antônio. Do ponto de
vista estritamente legal, Shylock aciona as leis do contrato comercial,
compartilhadas pelos demais habitantes e/ou comerciantes do fictício Estado
de Veneza, para fazer valer os seus efeitos contra a vida de Antônio. Deste
modo, por mais simpatia que o Duque de Veneza nutrisse por Antônio, havia
algo maior a ser preservado: a credibilidade de Veneza.
O dilema do Duque de Veneza era o seguinte:
se, por razões de gostos e preferências pessoais, ele criasse uma exceção
arbitrária para que os efeitos do contrato não fossem cumpridos, todas as
instituições jurídicas e comerciais da fictícia Veneza poderiam perder
credibilidade, pondo em risco a sua própria sobrevivência enquanto
corporação política; por outro lado, o seu cumprimento representaria a morte
de um homem honrado, em que uma circunstância atenuante (uma tempestade)
fizera-o perder os seus bens empenhados numa empresa comercial, com que
pretendia saldar a sua dívida com Shylock. Assim, como o duque não poderia
salvar Antônio sem ser acusado de tirania, restava para Antônio o
improvável: contar com a misericórdia do credor.
A proposição dramática de tal dilema
representa a exorbitância cômica do espírito usurário e da avareza
anticavalheiresca personificados em Shylock, cujo contraponto cênico
perfeito é o próprio Antônio – um homem honrado, socialmente reconhecido por
seus pares na praça comercial de Veneza e que contraíra empréstimo com
Shylock para ajudar o seu amigo Bassanio a casar com uma rica herdeira:
Portia. Considerando a credibilidade social e respeito que Antônio tem na
praça de Veneza, a atitude mais honrada de Shylock seria perdoar a dívida,
abrindo mão de fazer cumprir os efeitos impiedosos de seu contrato. No
entanto, a inveja e o ressentimento de Shylock em relação a Antônio – que
humilhara Shylock publicamente algumas vezes – transformaram a sua desgraça
comercial numa ótima oportunidade para vingança pessoal através de
dispositivos institucionais de manutenção da ordem pública.
Ora, considerando a teleologia moral da peça,
o dilema que Shylock cria para o Estado de Veneza torna comicamente
justificável que seja derrotado legalmente e dramaticamente pelo engenho
jurídico de Portia (disfarçada de advogado) que, nesse sentido, salva
simultaneamente as instituições de Veneza e o amigo de seu futuro marido.
Antes de chegar à sua vitória jurídica sobre Shylock, há toda uma guerra de
engenho entre Portia e o judeu, tornando mais aflorada a caracterização de
Shylock como vilão dramático e ratificando a tese moral de Portia de que a
“qualidade da misericórdia não pode ser forçada”.
Por tal perspectiva moral, é mais do que
merecido que Shylock seja derrotado por uma mulher rica e nobre travestida
de advogado: Portia consegue criar um silogismo legal em que demonstra que o
cumprimento do direito contratual de Shylock significaria derramar sangue
– um ato criminoso que não poderia estar contido em nenhum contrato sem que
colocasse em risco a própria estabilidade das instituições sociais. De
qualquer forma, toda a situação criada por Shylock lembra ao
“leitor/audiência” a dimensão pharmacon das instituições políticas e
jurídicas: o seu potencial efeito de malignidade e benignidade depende da
medida ou intenção de malignidade e benignidade de quem as aciona, pois a
racionalização analógica, recorrente nas práticas jurídicas de Antigo
Regime, abria um espaço muito grande para o arbitrário das circunstâncias.
No caso de “Medida por Medida”,
Yves-Marie Bercé nos fornece uma chave de leitura interessante: segundo tal
autor, havia como ideal para o exercício do poder nos séculos XVI e XVII o
dom da clarividência, que incidiria sobre a capacidade de o rei saber julgar
os indivíduos, escolher os melhores conselheiros, escutá-los e tirar
proveito de suas informações e opiniões. A freqüência deste argumento sugere
uma verdadeira obsessão com o erro e o engano, que funda o mito positivo do
“rei cauteloso”, dotado de um feliz discernimento e de um exato conhecimento
das coisas. No fundo, tanta cautela apenas demonstrava que, no final das
contas, um rei somente poderia estar bem informado por si mesmo e que não
deveria confiar a ninguém as grandes decisões de seu governo. Tais
princípios suscitam o uso imaginário – expresso nas peças teatrais e nas
novelas exemplares – de passeios discretos, ou sob disfarce, através do
reino, dando ao rei a ocasião de observar diretamente como o seu povo vive,
de encontrar a amável ingenuidade ou a opinião sincera sobre seu governo ou
sua pessoa, sem prevenções ou afetações cortesãs.(BERCÉ, 2003: 249-285).
Na literatura, a figura do “rei cauteloso” ou “oculto” mistura (em sua
eqüidade zombeteira) os papéis de comediante astucioso e justiceiro
soberano. O “rei cauteloso” ideal é aquele que é apaixonado pela verdade e
pela justiça. No entanto, para ele mesmo ter a verdade e fazer a justiça com
eqüidade, terá de figurar uma farsa de si mesmo – eis o paradoxo que funda
as relações de poder na “sociedade de corte” e os seus mecanismos de disputa
por distinção social.(ELIAS, 2001) Em certa medida, como notara Michel de
Montaigne (1533-1592), o rei sofre os efeitos inconvenientes da própria
grandeza de sua dignidade régia e da dinâmica configurativa de seu poder
curializado, que o afasta das práticas de franqueza e da opinião sincera, de
modo que sempre corre o risco de práticas desmedidas à medida que não tem
com quem se medir.(MONTAIGNE, 1972: 419-421).
Nos séculos XVI e XVII, em termos de escolhas
e ação administrativa (i.e., potestas), o
príncipe ideal é aquele capaz de fazer justiça com eqüidade, o que
exige prudência, clarividência e discernimento para saber medir bem as
circunstâncias para fazer com que os efeitos das leis ou costumes
se conformem a elas e à dignidade social ou política das partes
envolvidas numa contenda qualquer. Em “Medida por Medida”, a tópica
do “rei cauteloso” – que, no limite, deve “ocultar-se” para cotejar opiniões
de seus súditos sobre a prática de sua autoridade – aparece através da farsa
montada pelo duque Vicentio da fictícia Viena. No entanto, o seu ato de
ocultar-se, fingindo ter abandonado a dignidade ducal, entregando-a a um
“anjo substituto e vingador” (Angelo), segue uma estratégia de
recuperação de autoridade – depois de tanto tempo de leniência – sem
transfigurar-se em tirano. Ora, este tipo de estratégia era muito análoga
àquela descrita por Maquiavel (1469-1527), em “O Príncipe”, sobre o
modo como o duque César Bórgia se valeu de Ramiro de Orco em Romanha. Embora
em “Medida por Medida” Angelo tenha sido poupado da sorte cruel que
tivera Ramiro, é possível identificar o mesmo princípio de ação de ambos os
duques em relação aos seus prepostos:
“Como esta parte da ação do duque é digna de registro e de
imitação, não quero silenciar a respeito. Logo que se apoderou da Romanha,
tendo-a encontrado, em geral, sujeita a fracos senhores, que mais espoliavam
do que governavam os seus súditos, dando-lhes apenas motivo de desunião
(tanto que aquela província estava cheia de latrocínios, de tumultos e de
toda sorte de violência), julgou o duque que era necessário, para torná-la
pacífica e obediente ao braço régio, dar-lhe bom governo. Então, colocou ali
Ramiro de Orco, homem cruel e expedito, ao qual outorgou plenos poderes.
Este, em pouco tempo, conseguiu fazer com que a Romanha se tornasse pacífica
e unida, tendo alcançado ele mesmo grande reputação. O duque julgou depois
que já não era necessária tanta autoridade, pois temia que se tornasse
odiosa. E constituiu um juízo civil no centro da província, com um
presidente ilustre e benquisto, e onde cada cidade estava representada.
Sabendo que os rigores passados haviam criado ódios contra ele próprio, para
apagá-los do ânimo daqueles povos e conquistá-los a todos definitivamente em
tudo, quis demonstrar que, se haviam sido cometidas crueldades, não
procediam dele e sim da dureza de caráter do ministro. E, em vista disso,
tendo ocasião, mandou exibi-lo certa manhã, em Cesena, em praça pública,
cortado em dois pedaços, tendo ao lado um pedaço de pau e uma faca
ensangüentada. A ferocidade desse espetáculo fez com que o povo ficasse
satisfeito e espantado ao mesmo tempo” (MAQUIAVEL, 1973: 36)
O exemplo do uso estratégico da personalidade
cruel de Ramiro de Orco por César Bórgia também serviria para referendar,
mais adiante, o argumento que Maquiavel desenvolve no capítulo XVII de “O
Príncipe”:
“... Não deve, portanto, importar ao príncipe a qualificação
de cruel para manter os seus súditos unidos e com fé [i.e., empenhados na
fidelidade ao soberano], porque... é ele mais piedoso do que aqueles que,
por muita clemência, deixam acontecer desordens das quais podem nascer
assassínios ou rapinagem...” (MAQUIAVEL, 1973: 75).
Além disso, a continuação do argumento de
Maquiavel no capítulo XVII de “O Príncipe” serviria também para
moralizar, em “Medida por Medida”, o jogo dramático entre um Vicentio
que, antes de “ocultar-se”, era excessivamente clemente nos
efeitos práticos da lei, e um Angelo que, ao assumir a dignidade ducal,
torna-se excessivamente preciso
nos efeitos práticos da lei:
“[O príncipe] deve... proceder equilibradamente com prudência
e humanidade, de modo que a confiança demasiada não o torne incauto e a
desconfiança excessiva não o torne intolerável (...). Nasce daí esta questão
debatida: se será melhor ser amado que temido ou vice-versa...Os... homens
hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem
temer..., ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de
castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca. Deve, portanto, o
príncipe fazer-se temer de maneira que, se não se fizer amado, pelo menos
evite o ódio, pois é fácil ser ao mesmo tempo temido e não odiado, o que
sucederá uma vez que se abstenha de se apoderar dos bens e das mulheres dos
seus cidadãos e dos seus súditos e, mesmo sendo obrigado a derramar sangue
de alguém, poderá fazê-lo quando houver justificativa conveniente e causa
manifesta. Deve-se, sobretudo, abster-se de se aproveitar dos bens dos
outros, porque os homens esquecem mais depressa a morte do pai do que a
perda de seu patrimônio... Concluo, pois,...que um príncipe sábio...deve
somente procurar evitar ser odiado...” (MAQUIAVEL, 1973: 76-77)
Em “Medida por Medida”, o duque
Vicentio claramente expõe que algumas desordens morais e patrimoniais em
Viena seriam o resultado do fato de ter negligenciado o uso eqüitativo de
sua autoridade. No entanto, como ele próprio avalia, a sua falta foi o
excesso de abrandamento nos efeitos da lei. Daí, se algumas desordens e
abusos de seus súditos derivavam disso, seria incoerente que fosse ele o
agente de punição, pois isso torná-lo-ia odioso e tirânico. Assim, ele se
“oculta” para delegar temporariamente o papel punitivo a um “anjo vingador”,
cuja marca dramática era o seu extremo oposto: o excesso de rigidez nos
efeitos da lei.
Deste modo, somente depois de os habitantes
da fictícia Viena experimentarem “a dureza de caráter” de Angelo é
que Vicentio pôde sentir-se respaldado para restaurar a sua preeminência
ducal, mas agora em novas bases: fazendo valer com sabedoria (depois de
observar “ocultamente” – disfarçado de frei – os seus súditos) o princípio
da eqüidade. No entanto, a sua forma de desautorizar Angelo foi
tornar público que o “anjo” ou “preciso” não poderia
transformar toda forma de pecado em crime capital, pois seria odioso cobrar
legalmente de alguém uma conduta moral a que ele próprio tivesse dificuldade
de se submeter. Nesse sentido, as instituições políticas e jurídicas devem
ter a medida certa para regularem a conduta de seres essencialmente
paradoxais. (CROCKETT, 1995).
Ora, se levássemos em conta uma perspectiva
crítica calvinista não-puritana do período elizabetano, poderíamos
afirmar que as formas legais rigoristas de Angelo exigem dos habitantes da
fictícia Viena um grau de perfeição moral que chega ao extremo de negar o
próprio paradoxo humano e, por extensão, o sentido da graça divina inscrita
nas instituições sociais.(DIEHL, 1998) Portanto, o espírito do homem não
pode ser medido sem serem consideradas as suas diferentes formas de
corporificações no espaço e no tempo. E, fundamentalmente, tal como
sistematizaria Thomas Hobbes (1588-1679) em meados do século XVII, era
necessário distinguir juridicamente pecado de crime.(KOSELLECK, 1999:
19-47).
Tudo isso nos serve para demonstrar que, no
Estado de Antigo Regime, o seu conjunto de leis não era entendido
como uma abstração legal que precede e configura as circunstâncias, mas como
um dispositivo que se flexiona, em seus efeitos, às circunstâncias e às
dignidades sociais e institucionais das partes envolvidas. Por isso, quando
uma autoridade soberana inova em algum aspecto, a tendência é que a novidade
se justaponha à realidade existente, em vez de substituí-la. Assim, nesta
configuração social e política, qualquer esfera do poder soberano deve ser
necessariamente jurisdicionalista e, por conseguinte, a sua
prática administrativa deve ser casuística, de outro modo não haveria meios
de acomodar as tensões potenciais dos corpos de privilégios que formam tal
Estado.
Como temos notado, as muitas inferências
conceituais de Hespanha permitem evitar as seduções analíticas do
constitucionalismo liberal quando tratamos do tema do poder
preeminente (monárquico, colegiado ou misto). Elas nos permitem perceber
que a dimensão prática do poder preeminente é bem diferente daquilo
que a crítica liberal do final do século XVIII chamaria de absolutismo
e que, no século XIX, seria tratado como sinônimo de despotismo –
termo até então reservado pelos tratadistas políticos ao Império Otomano (o
Outro civilizacional da Europa).(DIDEROT & D’ALEMBERT, 2006) Antes do
liberalismo, a noção de poder preeminente monárquico, por
exemplo, está ligada justamente à percepção de que um rei era legibus
solutus, isto é, livre para decretar leis, o que não deve ser
confundido com a idéia de tirania, pois não é como vontade privada ou
particular que o rei é legibus solutus, mas como pessoa
pública, como encarnação e instrumento da dignidade régia.
Considerando isso, pensemos mais uma vez no
exemplo do dilema que Shylock cria para o Duque de Veneza: este não pode
alterar os efeitos do contrato da dívida de Antônio com Shylock sem
transformar isso num ato privado, num capricho pessoal, cuja repercussão
poderia criar uma sensação de insegurança em relação a todos os demais
patrimônios e contratos existentes no fictício Ducado de Veneza. Assim, o
ato de perdão da dívida de Antônio deveria partir de Shylock; ou o contrato
deveria ser anulado por artifícios legais suficientemente convincentes que
não gerassem a sensação de ameaça contra a credibilidade das instituições do
ducado. Logo, tais instituições deveriam apresentar uma estabilidade
de forma sucessiva no tempus que justamente gerasse
uma sensação de segurança e previsibilidade. No entanto, dado o paradoxo de
malignidade e benignidade que é o homem no tempus, dever-se-ia
estar sempre atento quanto aos “riscos farmacológicos” de as instituições
serem acionadas com propósitos vis, isto é, desviados do bem comum e da
segurança particular.
Em “Medida por Medida”, por outro
lado, Angelo falha em realizar isso porque transforma a sua autoridade ducal
(uma potestade pública) num instrumento privado para forçar Isabel a
ceder-lhe sua castidade em troca da vida de seu irmão Cláudio, cujo pecado
cometido – a gravidez de sua noiva Julieta, com quem nunca quebrara as
promessas de casamento – era muito pequeno para justificar uma punição
capital. Além disso, Angelo valeu-se de sua posição preeminente para
constranger Isabel a não denunciá-lo publicamente por querer cometer com ela
o mesmo tipo de ato ilícito a partir do qual pretendia condenar o seu irmão
à morte.
Ora, se considerarmos as expectativas dos
muitos tratadistas políticos dos séculos XVI e XVII, que afirmavam que a
dignidade régia deveria ser serva da justiça e da eqüidade, as
escolhas e ações de Angelo transformaram a sua potestade pública em
tirania. Tal idéia fica mais evidenciada se considerarmos que, num
universo de vínculos sociais e políticos configurados a partir de corpos de
privilégios, o poder preeminente ideal é aquele que jamais se confunde com a
dimensão particular de um corpo de privilégio, com caprichos pessoais ou com
conveniências estritamente privadas. Daí, não paradoxalmente, para ser
servo da justiça e da eqüidade, um Rei (dignitas regia)
deve ser legibus solutus. Deste modo, qualquer ação, mesmo que
cruel, por parte de uma potestade pública, é legítima se houver
circunstância que a justifique em nome de manifesto interesse público. Eis a
moral política da Razão de Estado.
Como legibus solutus, um Rei é
conceitualmente “livre” (solutus) porque é, em si, a “lei
viva” (lex animata) que – agindo conforme as circunstâncias e
considerando as dignidades das partes envolvidas numa demanda qualquer –
equilibra as várias unidades corporatistas de “leis particulares” (privatae
leges) no fiel da balança da “utilidade comum do reino”(utilitas
totius regni) e, deste modo, preserva-o como Universitas.
Além disso, desde o século XV, um rei é denominado Ab solutus
porque, como juiz supremo ou “imperador em seu reino”, não reconhece
nenhuma autoridade política acima de si (Papa ou Sacro Imperador) e, por
isso, figura como o primeiro em autoridade (Princeps ou
Superanus) dentro de seu reino, relativizando (mas não
eliminando) a autonomia dos corpos de privilégios que o compõem.(DAVID,
1954) Portanto, o absolutismo – tal como definido pelo debate
constitucionalista liberal – jamais existiu nas práticas de governo e no
debate jurídico durante o Antigo Regime.
A relativização da autonomia dos corpos de
privilégios deve ser entendida como o resultado de um diálogo tenso de
acomodação de interesses locais com centros emergentes de poder
político-militar e financeiro, que criaram em torno de si novos efeitos
agregativos ao final da Idade Média; mas isso não significou alterar a
forma patrimonial-estamental de conectar partes de interesse ao se
constituir novos canais de ação administrativa (potestas).
As compilações de costumes locais e as codificações de direitos são aspectos
sintomáticos da relação de interdependência dos centros emergentes de poder
com as localidades de poder, visto que não responderam apenas a iniciativas
do poder central, mas também a necessidades das próprias localidades, que
agora viviam sob a pressão de novos nexos sociais e espaciais que escapavam
de seu controle imediato. Como bem lembra Norbert Elias, qualquer
configuração estatal de sociedade é historicamente indissociável de uma
certa consciência de que o mundo tornou-se algo mais amplo, alterando a
própria natureza dos nexos que conformam os interesses locais.(ELIAS, 1994)
Por isso, é digno de nota perceber que os poderes do centro
instrumentalizaram as localidades em seu favor, vencendo os casos mais
notórios de resistência, mas não se tratou de uma ação unilateral.(PUJOL,
1991).
Aliás, desde o século XV, podemos observar de
uma forma mais sistemática a progressiva incorporação à jurisdição régia dos
direitos jurisdicionais das cidades e dos feudos de diferentes categorias de
nobres (condes, barões, marqueses, etc). Isso criou uma gama de “oficiais”
locais que, falando em nome de uma autoridade soberana supralocal estável
no tempo, reconfiguraram os seus papéis para darem conta desse novo
campo de experiência social que é o Estado. De modo geral, tais “oficiais”
não dependeram materialmente da figura pessoal de seus soberanos, mas
da estrutura institucional que a Coroa representava – o que é mais um
medidor importante do quanto a despersonificação das instituições
políticas coaduna-se com as estruturas patrimoniais de poder. Não é à toa
que categorias teológicas vinculadas à figura de Cristo (em si mesmo, um
paradoxo de aeternitas e tempus), associadas a
categorias do Direito Romano (Universitas, Fiscus,
Dignitas, Imperio, Usucapione,
etc), foram operadas no debate jurídico do século XV para distinguirem a
dignidade régia (e a Coroa) da pessoa privada do soberano.(KANTOROWICZ,
1998: 193-272).
3. O sentido
recorrente de Absolutismo nos campos historiográficos
No campo disciplinar da História do
Pensamento Político e do Direito, o termo absolutismo foi
habitualmente utilizado em oposição ao termo constitucionalismo,
conformando campos classificativos para autores que legitimariam,
respectivamente, uma autoridade política incondicional (em nome de
Deus, a dignidade régia é a origem, proprietária e usufruturária dos
direitos de soberania) e uma autoridade política condicional
(inspirado por Deus, o conjunto dos corpora do reino é a origem,
proprietário e usufruturário dos direitos de soberania, cabendo ao rei um
papel de supervisor ou administrador).
Este tipo de esquematização analítica não dá conta de uma série de nuanças
teóricas dos séculos XVI e XVII que, mesmo assentando a origem do direito
nos corpora societatum, recorriam igualmente a noções como
usucapione e alienação incondicional – em favor da dignidade régia – dos
direitos de soberania. Ora, particularmente depois das guerras confessionais
inglesas do século XVII, este tipo de nuança visava impedir qualquer
legitimação doutrinal (católica ou protestante) ao “tiranicídio”, para além
do recurso doutrinal, cada vez mais desgastado, ao mistério da providência
divina dos reis.
Na História Social das Instituições, aquilo
que se vai chamar de absolutismo servia para definir a menor
disposição de uma autoridade soberana em dividir suas decisões com corpos
políticos do reino organizados em assembléias consultivas estamentais
(gerais ou provinciais), quando se tratava de uma situação de utilitas
totius regni. Durante o século XVII, devido à intensidade e
longevidade das guerras na Europa e seus efeitos fiscais, revoltas
antifiscais afloraram com mais recorrência e vigor, pois algumas cobranças
de impostos – particularmente aquelas que eram consideradas novidades e
feriam direitos estabelecidos de isenção – deveriam ser feitas, em
princípio, somente depois de consulta ao reino.
Equivocadamente, o dispositivo tradicional de
consulta ao reino foi focado, a posteriori, por uma perspectiva
analítica constitucionalista e, por isso mesmo, a maior ou menor disposição
do poder soberano central em usar estes dispositivos de consulta foi
interpretada pela maioria dos historiadores e cientistas políticos como uma
espécie de patamar de medida para definir se uma monarquia, monarca
ou governo era mais ou menos autocrático (portanto, “absolutista”).
Não sem sentido, desde a década de 1960, em muitos estudos sobre as ditas
revoltas antifiscais (camponesas ou citadinas), assim como sobre a
organização da estrutura financeira dos Estados na Idade Moderna, tornou-se
recorrente o uso do termo absolutismo fiscal.
Deste modo, focadas por uma perspectiva
constitucionalista liberal, as análises sobre a organização administrativa
das “finanças do Estado” ignoraram o fato de que os éditos régios de
cobrança de impostos, mesmo quando não tinham como causa motor uma
consulta ao reino, tinham, no entanto, os seus efeitos
casuisticamente configurados por eventualidades locais ou pelos privilégios
dos lugares ou dos grupos sociais dentro deles. No limite, os éditos
simplesmente não eram cumpridos, mas se ratificava o respeito à autoridade
da Coroa e se justificava a desobediência, seja pela evocação respeitosa dos
privilégios locais, seja por meio do relato de alguma eventualidade local
que impedisse o cumprimento das demandas da Coroa.
Tais justificativas poderiam ser verdadeiras,
exageradas ou simplesmente mentirosas. Em todo caso, isso explica o ritual
administrativo de os reis pedirem notícias de um mesmo assunto a diversas
autoridades locais, confrontando os relatos do presente entre si e com
aqueles do passado recente. Tratava-se de um jogo tenso de negociação de
interesses que as partes envolvidas sabiam muito bem as regras, mas estava
sempre perpassado pelo princípio do compromisso e acomodação das partes, de
modo a não desfigurar o corpo místico do Estado.
Certamente, havia nisso tudo um jogo de decifração recíproca, uma espécie de
“como se fazer ver” e “como se deixar ver” – mote comum na
tratadística política dos séculos XVI e XVII.
Portanto, numa estrutura de governo de Antigo
Regime, é anacrônico enfocar analiticamente as leis régias como se fossem
protótipos de leis universais ao modo de uma Constituição. Além disso,
estudos mais recentes revelaram que as ditas revoltas antifiscais dos
séculos XVI e XVII não tinham necessariamente o caráter de “resistência
contra um poder soberano opressivo”: percebeu-se que não era a cobrança
em si o foco de descontentamento – por vezes, em algumas regiões, os efeitos
do fisco da Coroa eram menos rigorosos sobre os ganhos das pessoas do que as
obrigações com as rendas senhoriais –, mas sim os agentes envolvidos em sua
cobrança, que poderiam ser mandatários locais ou extra-locais, atuantes em
nome da Coroa, cujas atitudes não pareciam representar as expectativas de
proteção e familiaridade projetadas na figura do soberano.(CORNETTE, 1996;
BERCÉ, 1996; BERCÉ, 2003) De qualquer forma, a estrutura patrimonial do
fisco régio compunha uma rede de interesses financeiros, de modo que não se
pode falar em ação necessariamente unilateral dos poderes do centro em
relação aos poderes locais.(CORNETTE, 1994: 201-204).
Durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648),
por exemplo, as regiões de Provence e Languedoc converteram-se em retaguarda
e lugar de passagem das tropas para as frentes das penínsulas ibérica e
itálica. Logicamente, os efeitos materiais e fiscais desta situação eram
enormes para as populações locais, mas não menos propensos a entrelaçar na
malha fiscal os interesses locais com aqueles do centro: durante as décadas
centrais do século XVII, as receitas fiscais para a Coroa francesa que
saíram de Languedoc correspondiam a um terço do total arrecadado na região,
ou seja, por diferentes vias consolidadas de interesses, o restante do fisco
ia parar nas mãos da elite dirigente local, que correspondia a 10% da
população.(PUJOL, 1991) Além disso, metade do arrecadado era gasto dentro da
própria região, o que significa dizer que a estrutura vertical de demanda
fiscal oriunda da guerra impulsionava um mecanismo redistributivo de rendas
em nível local que muito interessava às suas elites tomar parte,
comportando-se, pois, como uma pequena engrenagem tradicional do grande
relógio do Estado.
Conclusão
No vocabulário político dos séculos XVI e
XVII, a lógica e a prática do poder preeminente (monárquico,
colegiado ou misto) não guardam nenhuma correspondência com aquilo que é
habitualmente chamado de absolutismo. Certamente, a partir do século
XVII – tão marcado por intensas guerras civis religiosas e/ou
interdinásticas de longo alcance –, o poder preeminente (central ou
local) também expressou uma tendência à unilateralidade, mas isso deve ser
enxergado como inscrito numa prática de governo que segue uma lógica de
deliberação jurisdicionalista. Nesse sentido, quanto maiores fossem
as circunstâncias extraordinárias (casus necessitas) num
governo, como era comum num contexto de guerras contínuas, maiores seriam as
chances de um representante do poder preeminente agir de forma mais
unilateral na reconfiguração de privilégios, pois, em tais casos, a
necessidade não reconhece a lei (necessitas legem nom habet),
ou seja, de acordo com as circunstâncias, um particular (inclusive, o
próprio rei como pessoa privada) poderia vir a ser sacrificado em
nome daquilo que fosse considerado de utilitas totius regni.
No entanto, deve-se notar que uma maior
capacidade conjuntural de manipular ou suprimir casuisticamente
privilégios não significou que o poder político preeminente pretendesse
deliberadamente acabar com a dinâmica estrutural dos privilégios como
fatores funcionais de agregação das partes constitutivas do corpo político.
Na dinâmica institucional da monarquia no Antigo Regime, quando um
privilégio era suprimido, outro era posto em seu lugar como meio de se
reconstituir periodicamente os laços de fidelidade com a Coroa.
Em todo caso, independentemente de ser
monárquico ou republicano, o Estado no Antigo Regime estava existencialmente
implicado com uma noção de poder preeminente cujos sentidos prático e
conceitual não pressupõem o fim dos privilégios corporatistas ou a imposição
de um dualismo concêntrico Rei/indivíduo. Os corpora simplesmente
passaram a depender ou estar referidos à preeminência estrutural e estável
de um poder político centralizador que era simultaneamente supra legem
(ou lex solutus) – para tratar de questões que afetavam a vida local
mas que estavam implicadas em nexos (causais ou conseqüenciais)
extra-locais, tais como conflitos de jurisdições, proteção do comércio a
longa distância, perpetuidade do fisco, guerras, garantia jurídica de
contratos e do valor fiduciário das moedas – e infra legem (ou
Iustitia Mediatrix) – para assuntos que poderiam ser resolvidos pelos
repertórios locais de leis e costumes.
Portanto, o sentido prático do poder político
preeminente no Antigo Regime era bem claro: subordinar, preservar, confirmar
ou adaptar as diferentes instâncias corporatistas de privilégios às novas
demandas políticas, financeiras e sociais da abertura do mundo das
experiências durante a Idade Moderna. Em outras palavras, a configuração
estatal dos vínculos sociais e políticos no Antigo Regime exigia um tipo de
poder soberano – pouco importando a justificativa jurídico-teológica de sua
origem – que fosse simultaneamente solutus e servum das leis
existentes na corporação política. Por isso mesmo, não saber criar efeitos
práticos adequados para este paradoxo do poder político soberano era o que
mais poderia suscitar contra ele o ódio – assim como, justificativas
doutrinais de resistência ativa ou passiva por parte dos súditos.
Considerando isso, posso afirmar que o Estado
no Antigo Regime possui uma dinâmica estrutural que denota uma forma
específica de “ser moderno”. Ser moderno nesta configuração implica num
exercício de flexibilidade voltado para a conquista periódica do presente,
ou seja, uma abertura de mente para um horizonte expansivo de experiências,
de modo que se possa dominar o imprevisto, empurrar o herdado –
reconfigurado – para frente e, assim, evitar qualquer atitude radicalmente
ruptiva com o passado. Nesse sentido, frente a um horizonte expansivo de
experiências, tanto para a ação administrativa preeminente (potestas
absoluta), a partir dos corpos de privilégios e costumes, quanto
para a ação artística de conceber formas (poiesis), a
partir dos referenciais da Antigüidade (pagã ou cristã), o lema é
adaptação ou variação em relação às leis e significados recebidos
de uma tradição.
Ora, esta forma de pensar é completamente
diferente de “ser moderno” na modernidade (século XVIII e depois), em
que não há submissão a priori a qualquer tradição autorizadora,
mas sim ruptura permanente entre passado e futuro.(GRADY, 1999) Não sem
razão, penso que “ser moderno” no Antigo Regime é operar com uma
lógica cultural marcada pela flexibilidade pendular. Chamo-a assim
por ter em mente a seguinte imagem conceitual: um pêndulo em movimento
semicircular preso com uma roldana numa corda na parte superior; a partir
das novas experiências vividas no presente (ponto inercial), o pêndulo é
empurrado para trás (passado/tradição) em busca de exemplos de estilos de
ação (consolidados ao longo do tempo) para a resolução de casos do presente
tipologicamente similares; no movimento de retorno/adaptação ao ponto
inercial de demandas do presente, todo o conjunto é impulsionado para
frente, avançando sem ruptura.(VIANNA,
2001: 186-194).
Eis uma lógica cultural bastante adequada ao
modo casuístico como as diferentes instâncias jurisdicionais de autoridade
no Antigo Regime lidam com as demandas e tensões advindas das diferentes
unidades corporatistas de privatae leges que fazem do Estado
na Idade Moderna uma Universitas.
Referências bibliográficas:
VIANNA, Alexander Martins. Poder Político da Europa Moderna,
sécs. XV-XVIII. In: Escritos sobre História e Educação: Homenagem
a Maria Yedda Linhares. Rio de
Janeiro: Mauad, 2001. pp.186-194
WELLS, Stanley; TAYLOR, Gary (eds.).
The Oxford
Shakespeare: The Complete Works.
Oxford: Claredon Press, 1998.