Essa estrutura mostra-se em seus traços mais grotescos no jornalismo, em
que justamente a própria subjetividade, o saber, o temperamento e a
faculdade de expressão tornam-se um mecanismo abstrato, independente tanto
da personalidade do ‘proprietário’ como da essência material e concreta
dos objetos em questão, e que é colocado em movimento segundo leis
próprias. A ‘ausência de convicção’ dos jornalistas, a prostituição de
suas experiências e convicções só podem ser compreendidas como ponto
culminante da reificação capitalista. (Lukács, 2003: 222)
34 – Sêneca et hoc genus
omne
Escrevem e escrevem sempre sua insuportável
E sábia cantilena
Como se tratasse de primum scribere,
Deinde philosophari. (Nietzsche, 2006: 29)
Se a opinião pública atingiu um estado em que o pensamento
inevitavelmente se converte em mercadoria e a linguagem em seu
encarecimento, então a tentativa de pôr a nu semelhante depravação tem de
recusar lealdade às convenções lingüísticas e conceituais em vigor, antes
que suas conseqüências para a história universal frustem completamente
essa tentativa. (Adorno & Horkheimer, 1985: 12)
Antes de prosseguir com a leitura dessa introdução, gostaria que o leitor
voltasse para a página das epígrafes e a lesse atentamente. Tal retorno é
inerente à introdução, pois são essas três citações que darão o tom dessa
análise. Elas, além de pontuarem acerca da orientação analítica, construirão
boa parte do solo que percorreremos nas próximas páginas.
O objeto de estudo é o Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo,
cuja peculiaridade é a construção de um universo jornalístico a partir do
texto, que implicaria não apenas uma determinada construção das notícias,
mas como uma função deste universo e texto jornalístico na própria cultura e
sociedade pautadas pela língua portuguesa.
Porém, como o Manual de Redação interage com as epígrafes? Mostrar
tal movimento analítico é a função dessa introdução. A primeira epígrafe foi
retirada do artigo A reificação e a consciência do proletariado, de
Georg Lukács, presente no livro História e Consciência de Classe.
Nele, a passagem, utilizada aqui como epígrafe, tem como função mostrar que
a reificação não atinge apenas o proletariado, mas a classe dominante
também, que “assume uma atitude contemplativa em relação ao funcionamento de
suas próprias faculdades objetivadas e coisificadas” (LUKÁCS, 2003: 222).
Antes de colocar o Manual de Redação interagindo com os conceitos de
Lukács, é importante esclarecer o significado de reificação. Esse é o termo
utilizado pelo autor para ampliar para as relações sociais o conceito de
fetichismo de mercadoria proposto por Karl Marx no livro O Capital.
Porém, o conceito já aparece em O rendimento e suas fontes – A economia
vulgar. Nele, ao fazer uma análise sobre a relação entre capital, lucro
e juros, Marx constata um fetiche nos juros (que não possuem a mediação da
produção e circulação). Se o capital já tinha um aspecto obscuro e
misterioso, no capital a juros, “se completa esse fetiche automático,
de um valor que se valoriza a si mesmo, de um dinheiro que faz dinheiro, de
sorte que, nessa forma, não traz mais o estigma de seu nascimento. A relação
social se completa como relação da coisa (dinheiro, mercadoria) consigo
mesma” (MARX, 1999: 190).
Lukács, leitor de Weber, amplia o conceito ao uni-lo à Teoria da
Racionalização weberiana. Com isso, todo o caráter fantasmagórico do capital
passa para as outras relações humanas, coisificando-as. A reificação seria,
em termos weberianos, uma racionalização parcial da sociedade. Revisitando
a citação dele usada como epígrafe, vemos que o jornalismo é onde tal
estrutura reificada possui seus traços mais grotescos e seu ponto
culminante. A abstração dos elementos do Conhecimento e da expressão seria
independente da personalidade do “proprietário” e da essência material e
concreta dos objetos tratados.
Isso é presente no Jornalismo, principalmente nos textos noticiosos. A
“personalidade do ´proprietário’” é substituída pela imparcialidade extrema,
a “essência material e concreta dos objetos tratados” trocada pela
objetividade comparável das máquinas. Tudo isso movido por leis próprias, ou
seja, pelo Manual de Redação.
Portanto, essa análise considera como primeira condição que o universo
construído pelo Manual de Redação é reificado. Seus textos,
instruções e verbetes corroboram para um pensamento fabril na forma de fazer
jornalismo, na forma de ver a sociedade e na forma de caracterizar o
Conhecimento.
Mas, seria o Manual de Redação o grande culpado ou a grande força
motriz desse processo? Para especificar essa relação, entra a 2ª epígrafe,
de Nietzsche, que mostra que o movimento desse tipo de teoria é de
legitimação. A análise desse trabalho considera que, graças ao próprio
caráter reificado, a teoria presente no Manual de Redação é fruto
apenas de uma legitimação da prática ou, como disse Nietzsche sobre Sêneca,
primeiro escrevem e depois filosofam. Tal visão se embasa na Teoria Crítica
pois, segundo Horkheimer e Adorno, “a reificação alargava-se da realidade
encarada como objeto natural às próprias teorias que se propunham estudá-la
enquanto tal, por argumentos que isolavam as esferas da tecnologia e da
política da sua base econômica e social” (PONTES, 2004: 104).
Os frankfurtianos são os autores da terceira epígrafe que, tanto sintetiza o
caráter reificado da concepção da linguagem textual que encontraremos no
Manual de Redação como aponta para o principal alvo, ou seja, as
convenções lingüísticas e conceituais em vigor, ou seja, do Manual de
Redação. As próximas páginas buscam mostrar qual é a essência, ou
talvez, a principal conseqüência da sistematização feita pelo objeto
analisado.
A visão do manual
Manual de redação
não é uma Gramática da Língua Portuguesa. Em um livro de Gramática, você
encontra apenas as regras de uma determinada língua, enquanto um manual de
redação foca a elaboração de um determinado tipo de texto. Portanto, por
mais que o Manual de Redação tenha verbetes idênticos aos de uma
Gramática, não podemos esquecer que ele está focado na produção do texto
jornalístico.
Por isso, podemos afirmar que, enquanto manual de redação de textos
jornalísticos, principalmente os noticiosos, o Manual de Redação
possui uma ideologia e uma regulação acerca dessa produção, assim como um
manual de redação de contos de terror teria os seus próprios. Porém, o
jornal O Estado de S. Paulo, representado pelo diretor de redação
Aluízio Maranhão, não enxerga o Manual de Redação colado apenas ao
texto noticioso ou à prática jornalística.
Na Apresentação do Manual de Redação, Maranhão inicia o seu texto
exaltando a grande venda das edições passadas do livro e introduz um valor
que perpassa o próprio jornalismo. Segundo ele, o sucesso do Manual de
Redação “trata-se sem dúvida de uma boa notícia, por servir de
termômetro do interesse em escrever melhor, num português objetivo e claro,
mas sem pedantismos” (Martins Filho,
1997: 5).
Poucos parágrafos adiante, Maranhão deixa bem claro o que quis dizer ao
afirmar que
a missão de Eduardo Martins tem de ser
cumprida em tempos difíceis, diante do grande estrago causado em atividades
que dependem da Língua Portuguesa pelo longo período de trevas em que o
ensino no País foi tragado pela falência da máquina pública. Hoje, fala-se e
escreve-se pior que em gerações passadas. E as redações brasileiras não são
nenhum oásis nesse deserto. Mas, se padecem da mesma síndrome que ataca nos
exames para o vestibular e nos textos de telenovelas, as redações podem e
devem se converter em sólidas trincheiras de defesa do conhecimento da
língua. O Manual é uma afiada arma nessa guerra (MARTINS FILHO, 1997: 6).
Nesse ponto, percebe-se que o Manual de Redação não é apenas o
regulador dos textos jornalísticos, mas também, se não da norma culta, de
como utilizar bem o Português. O que, à primeira vista, não caracterizaria
um problema pode se tornar um ao lembrarmos do começo desse capítulo.
Manual de redação não é Gramática pura e simplesmente. Ele só pode existir
se estiver atrelado a um determinado estilo textual. Como, então, colocar um
manual de redação como defensor da Língua Portuguesa? Posso acrescentar
ainda que isso não fica apenas no detrimento dos outros estilos textuais,
pois a própria concepção ou regulação do Português fica a cargo de um único
tipo de texto. Com isso, o texto noticioso e a língua ficam no mesmo
patamar, ou seja, são igualmente regulados pelo Manual de Redação.
É uma concepção perigosa, pois a língua, instância superior a qualquer
texto, fica a mercê de uma prática textual que, conforme foi visto na
Introdução desse trabalho, representa o “ponto culminante da reificação
capitalista” (Lukács, 2003: 222).
A língua em si, teoricamente, não deveria ter nenhuma influência de caráter
econômico (seja capitalismo, seja comunismo, a língua será sempre a mesma),
político (seja democracia, seja ditadura, a língua está acima disso) ou
ideológico de curto prazo.
Porém, essa auto-proclamada função, de defesa e de regulação, do Manual
de Redação perante a língua é um exemplo factual da chamada Indústria
Cultural. Esse termo, cunhado por Adorno e Horkheimer no livro
Dialética do Esclarecimento, define a instância que a Cultura e o tema
filosófico do Belo são envoltos pela razão instrumental e se unem a todo
caráter reificado do capitalismo administrado.
Esse tipo específico de capitalismo, que surgiu após o início da prática da
intervenção estatal na economia nos anos 20, foi teorizado pelo economista
Friedrich Pollock. Sua evolução conceitual acerca do passo anterior do
capitalismo significa que ele não encontra o seu fim em crises de produção,
como pensava Marx e Lukács, impossibilitando, assim, as possibilidades da
revolução do proletariado.
Para eles, a influência dessa conjuntura (que, no caso da nossa análise, é
análoga à defesa do Português pelo Manual de Redação) mina a língua
pelo próprio caráter da técnica.
A compulsão do idioma tecnicamente
condicionado, que os astros e os diretores têm de produzir como algo de
natural para que o povo possa transformá-lo em seu idioma, tem a ver com
nuanças tão finas que elas alcançam a sutileza dos meios de uma obra de
vanguarda, graças à qual esta, ao contrário daquelas, serve à verdade. A
capacidade rara de satisfazer minuciosamente as exigências do idioma da
naturalidade em todos os setores da indústria cultural torna-se o padrão de
competência. O que e como o dizem deve ser controlável pela linguagem
quotidiana, como no positivismo lógico. Os produtores são especialistas. O
idioma exige a mais espantosa força produtiva, que ele absorve e desperdiça.
Ele superou satanicamente a distinção própria do conservadorismo cultural
entre o estilo autêntico e o estilo artificial. Artificial poder-se-ia dizer
um estilo imposto de fora às potencialidades de uma figura (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985: 121).
A essência da defesa da Língua
Horkheimer e Adorno, no trecho anterior, estavam falando acerca do rádio e
do cinema, porém, será que aquele mecanismo do “idioma da naturalidade” não
pode ser observado dentro do universo construído, tanto jornalístico como de
defesa da língua, pelo Manual de Redação? Para isso, temos que buscar
uma instrução reguladora geral mais original, ou seja, mais específica da
prática sistematizada pelo livro.
Essa instrução mais original para a defesa da língua está presente no
próprio Manual de Redação. Mas aonde devemos procurá-la? Qual teoria
devemos dissecar para achar esse princípio norteador de regulação? A própria
Introdução do Manual de Redação nos aponta para o sítio de buscas.
Aluízio Maranhão, representando a postura ideológica d’O Estado de S.
Paulo, mostra e ressalta a utilização cotidiana do Manual de Redação
e deixa claro que a aplicação dele é feita no ato de escrever. Lembra que “a
profissionalização crescente da atividade jornalística (...) permitiu que se
percebesse que aqueles manuais poderiam ser editados em livro para um
mercado carente de publicações voltadas para a aplicação prática da língua”
(MARTINS FILHO: 1997: 6).
Mais adiante, coloca o Manual de Redação em alta posição para
sociedade, ao afirmar que ele
sedimenta, ainda, uma histórica e
gratificante convivência do Estado
com o ensino e o conhecimento. A mesma preocupação que ligou o jornal à
fundação da Universidade de São Paulo e a mesma convicção que o tornou
pioneiro na criação do caderno Cultura, na década de 50, fazem-no lançar
mais esta edição do Manual, adotado também em outros jornais e até como
livro de auxílio para o ensino do Português nas escolas (MARTINS FILHO,
1997: 7).
Considerando o contexto dado pelas outras, essa citação deixa claro, não só
o papel de defesa da língua pelo Manual de Redação, mas que a
regulação do texto jornalístico tem o primado para a busca da essência da
defesa da língua Portuguesa. Isso é comprovado porque a prática que podemos
aplicar através da teoria do Manual de Redação é a do texto
jornalístico, principalmente o noticioso. É nas instruções gerais acerca
desse estilo que temos que buscar tal essência que, além de ser meta,
diferencia o Manual de Redação de todas as outras possibilidades de
defesa e de regulação da língua.
O primeiro capítulo do Manual de Redação possui, segundo seu autor,
“verbetes que tornam claro o que se entende por um bom texto jornalístico e
instruções práticas e teóricas para escrever bem, com correção e elegância”
(MARTINS FILHO, 1997: 10). Podemos classificar esses verbetes em: “normas
internas, gramaticais, ortográficas e de estilo” (MARTINS FILHO, 1997: 13).
Em quais desses grupos de verbetes podemos buscar a instrução reguladora
mais original, que diferencia o Manual de Redação dos demais? Ora,
podemos lembrar novamente duas afirmações que já trabalhamos no começo da
análise. A primeira que um manual de redação não é uma Gramática. A segunda
que o que diferencia um tipo de manual de redação dos demais é o texto ao
qual está vinculado.
Portanto, podemos deixar de lado as normas gramaticais e ortográficas. Não
só embasados nas duas afirmações acima, mas podemos acrescentar que elas são
inerentes à língua. Então, se depende somente delas, não haveria cabimento
caracterizar o Manual de Redação como “afiada arma” na guerra da
defesa do conhecimento da língua.
A nossa atenção se concentra agora nos verbetes de normas internas e nos de
estilo. Eles são antecedidos e, de certa forma, resumidos em 49 tópicos
reunidos na alcunha de “Instruções gerais”. O primeiro tópico já prega:
“Seja claro, preciso, direto, objetivo e conciso” (MARTINS FILHO, 1997: 15).
O terceiro resume a anterior ao definir que “a simplicidade é condição
essencial do texto jornalístico” (MARTINS FILHO, 1997: 15).
O próprio verbete “simplicidade” faz a relação causal entre os dois ao
afirmar que
a simplicidade é condição essencial do texto
jornalístico: quanto mais concisa, direta e objetiva for a notícia, maior o
número de pessoas que atingirá. Escrever de maneira simples, no entanto,
exige esforço e o atendimento de uma série de requisitos. Veja alguns deles:
1 – use frases curtas e na ordem direta; 2 – escolha palavras acessíveis a
qualquer tipo de leitor; 3 – opte pelo vocábulo mais simples que defina uma
coisa ou situação; 4 – evite os termos técnicos desnecessários e, quando
absolutamente indispensáveis, não deixe de explicá-los; 5 – fuja das frases
pernósticas e pomposas (MARTINS FILHO, 1997: 269).
Parece que nossa busca chegou ao fim. A essência da defesa da língua pregada
pelo Manual de Redação é a simplicidade. Porém, será que para uma
língua ou até mesmo para um veículo noticioso, que passa informação e
conhecimento, a simplicidade é uma essência adequada? Seria a simplicidade
tão democrática quanto o Manual de Redação e certos teóricos pregam?
Três casos de simplicidade na Língua
Usando o solo que foi construído para essa análise logo nas epígrafes, vamos
buscar três exemplos de situações de simplicidade na língua para constatar
se essa essência de defesa da língua é democrática como o Manual de
Redação prega. Um dos exemplos será retirado de dentro da Teoria Crítica
e terá relação íntima com os textos jornalísticos. Os outros dois serão
retirados da História do Brasil e da literatura de ficção.
Caso 1: perda de valor nos produtos da Indústria Cultural
Segundo Horkheimer e Adorno, o mecanismo da Indústria Cultural tiraria o
valor de uso de seus produtos, restando apenas o seu valor de troca.
Enquanto “o valor de uso só tem valor para o uso, e se efetiva no processo
de consumo” (MARX, 1999: 57), “o valor de troca aparece primeiramente como
relação quantitativa em que valores de uso são trocáveis entre si” (MARX,
1999: 58). E “o valor de uso é a base material onde se apresenta uma relação
econômica determinada – o valor de troca” (MARX, 1999: 58). Ora, a crítica
marxista ao capitalismo se baseia em duas constatações: uma sobre o caráter
do valor de troca e a outra acerca do valor do trabalho humano. A primeira
constatação, Marx retira do Capítulo IX do Livro Primeiro da De Republica,
escrito por Aristóteles. Nela diz que todo bem
pode servir para dois usos... Um é próprio à
coisa como tal, mas o outro não o é: assim, uma sandália pode servir como
calçado, mas também pode ser trocada. Trata-se, nos dois casos, de valores
de uso da sandália, porque aquele que troca a sandália por aquilo de que
necessita, alimentos, por exemplo, serve-se também da sandália como
sandália. Contudo, não é este o seu modo natural de uso. Pois a sandália não
foi feita para a troca. O mesmo se passa com os outros bens (MARX, 1999:
57).
Esse caráter fantasmagórico que o valor de troca traz à mercadoria se une ao
desaparecimento do valor do trabalho humano nela, surge o fetichismo de
mercadoria. No capítulo de Dialética do Esclarecimento acerca da
indústria cultural, os autores mostram que as mercadorias culturais, com a
exigência de entretenimento e relaxamento, têm que mudar a sua finalidade,
atrelando a tal necessidade. Ao se assimilar
totalmente à necessidade, a obra de arte
defrauda de antemão os homens justamente da liberação do princípio da
utilidade, liberação essa que a ela incumbia realizar. O que se poderia
chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo
valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar
informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um
conhecedor (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 148).
Esse movimento pode ser percebido no próprio Manual de Redação e sua
essência da simplicidade. Ao justificá-la dizendo que “não é justo exigir
que o leitor faça complicados exercícios mentais para compreender o texto”
(MARTINS FLIHO, 1997 : 15), podemos ligá-la à concepção de “relaxamento”
descrita no movimento da indústria cultural. Mesmo o quarto requisito da
simplicidade, que é evitar os termos técnicos, é uma representação de que as
notícias não querem ensinar e tornar conhecedores os seus leitores.
Talvez o item que mais exemplifica a citação de Horkheimer e Adorno é o
primeiro requisito, o das frases curtas e diretas. Sua presença,
principalmente no lead, é tida como indispensável pelo Manual de
Redação, pois é, para a regulação jornalística, a melhor forma de passar
tudo o que tem de importante, logo no primeiro parágrafo (além de presumir
que os seus leitores só terão tempo de ler o começo de cada notícia).
Um exemplo de cumprimento de tal requisito é dado no verbete:
A inflação não caiu? Então, que caia o
número. Poucos ministros resistiram à tentação. Em 73, Delfim Netto quis
segurar a inflação e fez a FGV pesquisar só preços irreais. Depois, o
governo recalculou o índice. Conclusão: 22%, confusão e greves. Simonsen
expurgou a ‘inflação do chuchu’. Funaro mudou até de calculador: da FGV ao
IBGE. Ontem, o governo multiplicou índices. (MARTINS FILHO, 1997: 269)
Perceba que, ao ler o lead-exemplo, pouco é oferecido em termos de
contextualização. Sem isso, um bom entendimento da atualidade não pode ser
formado. Parece que o que vale é saber de informações pontuais para em um
bate-papo soltá-las para se mostrar informado. Horkheimer e Adorno completam
o seu raciocínio dizendo que o
consumidor torna-se a ideologia da indústria
da diversão, de cujas instituições não consegue escapar. É preciso ver
Mrs. Miniver, do mesmo modo que é preciso assinar as revistas Life
e Time. Tudo é percebido do ponto de vista da possibilidade de
servir para outra coisa, por mais vaga que seja a percepção dessa coisa.
Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é
algo em si mesmo. O valor de uso da arte, seu ser, é considerado como um
fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como
hierarquia das obras de arte – torna-se seu único valor de uso, a única
qualidade que elas desfrutam (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 148).
Um caráter da simplicidade, essência do texto jornalístico e, de acordo com
a nossa análise, da defesa da Língua Portuguesa pelo Manual de Redação,
é sua proximidade a todos os tipos de leitores. Na instrução geral 3 que
trata da simplicidade, que já foi citada, diz que é necessário lembrar que
“escreve para todos os tipos de leitores e todos, sem exceção, têm o direito
de entender qualquer texto, seja ele político, econômico, internacional ou
urbanístico” (MARTINS FILHO, 1997: 15).
No entanto, podemos lembrar que essa “proximidade ilimitada”
às pessoas expostas a ela consuma a alienação
e assimila um ao outro sobre o signo de uma triunfal reificação. Na
indústria cultural, desaparecem tanto a crítica quanto o respeito: a
primeira transforma-se na produção mecânica de laudos periciais, o segundo é
herdado pelo culto desmemoriado da personalidade (ADORNO & HORKHEIMER, 1985:
150).
E completam dizendo que
Tanto lá como cá, a mesma coisa aparece em
inúmeros lugares, e a repetição mecânica do mesmo produto cultural já é a
repetição do mesmo slogan propagandístico. Lá como cá, sob o imperativo da
eficácia, a técnica converte-se em psicotécnica, em procedimento de
manipulação de pessoas. Lá como cá, reinam as normas do surpreendente e no
entanto familiar, do fácil e no entanto marcante, do sofisticado e no
entanto simples. O que importa é subjugar o cliente que se imagina como
distraído ou relutante (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 153).
Esse trecho, que mostra mais um pouco da alienação feita pela indústria
cultural, pode ser constatado no Manual de Redação, quando ele diz
que busca um texto elegante, correto e simples. Ora, isso é quase uma
transcrição da penúltima frase da citação anterior da Dialética do
Esclarecimento.
Se para o produto cultural podemos constatar que simplicidade é alienação,
podemos dizer o mesmo para a língua? Retornando à Teoria Crítica, podemos
responder que “quanto mais completamente a linguagem se absorve na
comunicação, quanto mais as palavras se convertem de veículos substanciais
do significado em signos destituídos de qualidade, quanto maior a pureza e a
transparência com que transmitem o que se quer dizer, mais impenetráveis
elas se tornam” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 153).
É essa a conseqüência para a língua, antes a palavra e o conteúdo estavam
ligados:
Conceitos como melancolia, história e mesmo
vida, eram reconhecidos na palavra que os destacava e conservava. Sua forma
constituía-os e, ao mesmo tempo, refletia-os. A decisão de separar o texto
literal como contingente e a correlação com o objeto como arbitrária acaba
com a mistura supersticiosa da palavra e da coisa. O que, numa sucessão
determinada de letras, vai além da correlação com o evento é proscrito como
obscuro e como verbalismo metafísico. Mas deste modo a palavra, que não deve
significar mais nada e agora só pode designar, fica tão fixada na coisa que
ela se torna uma fórmula petrificada (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 153-4).
Nesse caso descrito pela Teoria Crítica, simplicidade na língua é alienação.
Simplicidade na língua é redução. Simplicidade na língua é petrificação.
Simplicidade na língua é matar a sua força e o seu movimento.
Caso 2 : simplificação do Português no Brasil da década de 1930
A essência da simplicidade na defesa da Língua Portuguesa não é uma pauta
totalmente nova. Houve, na década de 30 do século XX, todo um processo no
Brasil de “Uniformização da Língua”, que veio culminar com o Decreto nº
20108, de 1933. Todo esse percurso, Ana Paula Berberian demonstrou no
primeiro capítulo, A Uniformização da Língua e a Unidade Nacional, de
seu livro Fonoaudiologia e Educação.
Mostrando que, desde 1910, havia um projeto da construção de uma Língua
Nacional embasada em um espírito nacionalista e patriótico. Seguindo a linha
de pensamento que levou Jean-Paul Sartre a definir “o poder da imposição da
língua do colonizador como instrumento de domesticação do colonizado” (BERBERIAN,
1995: 3) como “mordaça sonora”, Berberian viu a uniformização da língua como
“mecanismo de suporte à assimilação das novas relações sociais” (BERBERIAN,
1995: 33). Tal como Enguita, em A face oculta da Escola, viu na
uniformização do Inglês nos EUA por meio da escola, esse movimento no Brasil
pode ser caracterizado como “assimilação forçada”, principalmente dos
imigrantes, ao trabalho fabril e às relações industriais.
Nesse contexto, educadores comprometidos com
o ideário urbano-fabril deste período elaboraram programas de incorporação
progressiva destes segmentos socioculturais a uma formação histórica
construída por selecionados valores culturais brasileiros, o que implicou
profundas e violentas expropriações materiais e mentais. Esta desapropriação
não foi apenas assumida como responsabilidade da instituição escolar, como
estendeu-se aos meios de comunicação – escrita e falada –, à imprensa e às
formas de lazer (BERBERIAN, 1995: 34).
Esse movimento não só atingiu os imigrantes, mas também as outras minorias
nacionais. Para corroborar com esse projeto, surgiu o conceito de
“língua-padrão”, através de um projeto de padronização e simplificação das
normas internas da Língua Portuguesa. Isso se deu pelo Decreto nº 20108, de
1933, que se uniu a outros projetos de “Uniformização da Língua”, todos eles
feitos pela via estatal.
O próprio autor do projeto, Teixeira de Freitas, disse que o decreto entrava
na defesa de que “se o esforço da civilização e o incremento cultural são
coisas inseparáveis, se prendem no mundo moderno cada vez mais à ação do
Estado, claro que a disciplina da linguagem como manifestação de
espiritualidade e cultura, não poderia mais fugir àquela influência que
aliás é fato manifesto em todo mundo civilizado” (BERBERIAN, 1995: 55).
Tudo isso para se adaptar à época de progresso vertiginoso, cuja
característica seria a “rapidez, aliada à simplicidade dos meios, para
atender-se a complexidade dos fins e ao complicado dinamismo da civilização
contemporânea” (BERBERIAN 1995: 55). Assim, fica claro a relação direta
entre a simplificação da língua e os ideais de produtividade e eficiência
fabris, construindo uma análise semelhante à da Dialética do
Esclarecimento.
A ideologia de Teixeira de Freitas é muito parecida com a do Manual de
Redação que prega que “cada vez se tem menos tempo para a leitura,
imperativo que fundamenta várias reformas em jornais baseadas no farto uso
de ilustrações e no encurtamento do texto. (...) O jornalismo está ficando
mais objetivo, os textos, mais diretos e, por isso mesmo, se torna
fundamental o bom manejo da língua” (MARTINS FILHO, 1997: 7).
Podemos dizer que, analogamente, a essência da simplicidade funciona do
mesmo modo na defesa da Língua Portuguesa nos dois casos. Portanto, a
conclusão de Berberian pode ser muito próxima da nossa acerca do Manual
de Redação. Ela afirma que
uma revisão histórica mostra que
interferências de agentes ligados ao poder público sobre a língua resultam
na expropriação de um direito que é dos seus constituintes e usuários.
Através da unificação da língua pretendeu-se não só restringir o modo de a
população falar mas fundamentalmente torná-la impotente no agir. Na medida
em que a linguagem, ao mesmo tempo que permite o distanciamento do homem
sobre o mundo, por meio de representação simbólica e abstrata, é também o
que lhe permite retornar à realidade para transformá-la (BERBERIAN, 1995:
56-7).
Nesse caso histórico, a essência da simplicidade na defesa da língua é
alienação novamente. Simplicidade na língua é homogeneidade. Simplicidade na
língua é a imposição de certos valores culturais em detrimento de outros. E
se unirmos, tanto a Teoria Crítica como esse fato histórico, até poderemos
dizer que a simplicidade é controle. Porém, o terceiro caso vai exemplificar
muito melhor tal faceta da simplicidade.
Caso 3: George Orwell e 1984: a Novilíngua como totalitarismo
Berberian, no decorrer de seu livro, vai utilizando, como epígrafes, trechos
de 1984, de George Orwell, para mostrar a sua linha de pensamento
acerca da simplificação da Língua Portuguesa no Brasil do começo do século
XX. Diz ela que “por suas próprias características, a ficção sintetiza no
presente, o passado e futuro” (BERBERIAN, 1995: 57). Ora, 1984 pode
ser visto como o livro mais pessimista do século XX. Sua trama é
impressionista: “Ao terminar sua leitura, fica em cada um de nós, latente,
uma sensação estranha. É como se despertássemos de um pesadelo... e o
pesadelo continuasse, em pleno dia” (ORWELL, 1979: contracapa). A sinopse é
que, em 1984, o mundo
não conhece mais o que seja democracia:
governos totalitários o controlam, de uma forma total, e ultra-eficiente.
Sistemas inteiros foram criados para controlar não somente as atividades,
mas os próprios pensamentos dos seres humanos. Não há mais liberdade, a não
ser aquele tipo de liberdade imposto pelo Estado. Não há mais cultura, a não
ser aquela desejada e imposta pelo Estado. Não se conhece mais o amor: entre
um homem e uma mulher somente se processam relações determinadas e
controladas pelo Estado. É o Estado total, de uma forma total (ORWELL, 1979:
contracapa).
Essa redução de pensamento e cultura é feita pela língua, a Novilíngua,
construída pelo Departamento de Pesquisa do Ministério da Verdade (Miniver,
em novilíngua). No capítulo 5, fica claro qual era o método de criação da
Novilíngua. Nele, o protagonista Winston Smith fala sobre isso com seu
“camarada” Syme, filólogo, que estava empenhado na feitura da 11ª Edição do
Dicionário da Novilíngua. Ele afirma que a nova edição
será definitiva. (...) Estamos dando à língua
a sua forma final – a forma que terá quando ninguém mais falar outra coisa.
Quando tivermos terminado, gente como tu terá que aprendê-la de novo. Tenho
a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em
inventar novas palavras. Nada disso! Estamos é destruindo palavras – às
dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos reduzindo a língua à expressão
mais simples (ORWELL, 1979: 51).
A construção da Novilíngua tem como essência não só a destruição, mas possui
a simplicidade também. Será que essa simplicidade em termos descrita no
1984 é similar àquela pregada pelo Manual de Redação? Vamos ver
mais uma fala de Syme que descreve o funcionamento da simplicidade de
vocábulos em Novilíngua.
É lindo destruir palavras. Naturalmente, o
maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos
que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os
antônimos também. Afinal de contas, que justificação existe para a
existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra
contém em si o contrário. ‘Bom’, por exemplo. Se temos a palavra ‘bom’, para
que precisamos de ‘mau’? ‘Imbom’, faz o mesmo efeito – e melhor, porque é
exatamente oposta, enquanto ‘mau’ não é. Ou ainda, se queres uma palavra
mais forte para dizer ‘bom’, para que dispor de toda uma série de vagas e
inúteis palavras como ‘excelente’ e ‘esplêndido’, etc. e tal? ‘Plusbom’
corresponde à necessidade, ou ‘dupliplusbom’ se queres algo ainda mais
forte. Naturalmente, já usamos essas formas, mas na visão final da
Novilíngua não haverá outras. No fim, todo o conceito de bondade e maldade
será descrito por seis palavras – ou melhor, uma única. Não vês que beleza,
Winston? Naturalmente, foi idéia do Grande Irmão – acrescentou, à guisa de
conclusão. (ORWELL, 1979: 52)
Ora, guardadas as devidas proporções, muitas das propostas acerca da
simplicidade do Manual utilizam a mesma retórica. Além das palavras
vetadas, de buscar o termo mais simples e de excluir termos técnicos
desnecessários, podemos ver trechos que representam equívocos de discurso
similares ao de Syme. O item 11 das instruções gerais diz que
não deve limitar-se a transpor para o papel
as declarações do entrevistado, por exemplo, faça-o de modo que qualquer
leitor possa apreender o significado das declarações. Se a fonte fala em
demanda, você pode usar procura, sem nenhum prejuízo. Da mesma forma traduza
patamar por nível, posicionamento por posição, agilizar por dinamizar,
conscientização por convencimento, se for o caso, e assim por diante
(MARTINS FILHO, 1997 :16).
Ora, conscientização é bem distinto de convencimento. Na própria raiz latina
das palavras, elas são opostas. Enquanto consciência vem do latim
conscientia, que significa “conhecimento em comum”, convencer vem do
latim convincere, que significa “vencer completamente”. Parece então,
que o Manual, com esse ato falho somado a todos os outros requisitos
da simplicidade, quer, no discurso de uma conscientização da necessidade da
defesa do Português, baseado na simplicidade, convencer. Vencer
completamente qualquer outra proposta, como se a deles fosse a única
possível.
Se, como disse a terceira epígrafe desse trabalho, as conseqüências desse
tipo de linguagem podem evitar a própria tentativa de mudança, então temos
que nos preocupar com a simplicidade como essência da defesa da língua.
Observem como Syme conclui o seu raciocínio acerca da Novilíngua. Ele afirma
que em 2050,
todo verdadeiro conhecimento de Anticlíngua
terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruída, inteirinha.
Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron – só existirão em versões Novilíngua,
não apenas transformados em algo diferente, como transformados em obras
contraditórias do que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as
palavras de ordem. Como será possível dizer ‘liberdade é escravidão’, se for
abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será
diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos.
Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é
inconsciência (ORWELL, 1979: 53).
Nesse final, fica claro o que esses casos de simplicidade representam. Não
são casos quaisquer, pois se baseiam em fortes teorias da sociedade e do
Conhecimento, em situações históricas que aconteceram tanto no Brasil como
em outros e em livros de ficção cuja importância é marco para a própria
cultura do século XX. Na convergência deles podemos dizer que, no limite,
simplicidade não é democracia. A essência da simplicidade, principalmente se
pensarmos no distópico caso da Novilíngua, é o controle. Controle social,
cultural e do pensamento. Podemos, se continuarmos nesse solo crítico, ficar
altamente preocupados com os rumos do jornalismo, da sociedade e do
Conhecimento em si. Entretanto, não teríamos uma alternativa para fugir
dessa prática de defesa baseada na simplicidade, dita democrática, que é
controle?
Conclusão ou a possibilidade de mudança
Chegamos a um ponto que, após desvelar o verdadeiro caráter da simplicidade
como controle e não democracia, a análise crítica aqui feita corre o risco
de se tornar aporia, igual a “via” de emancipação analisada pela
Dialética do Esclarecimento. Tudo isso devido a um bloqueio estrutural
que impede qualquer tentativa de mudança, fazendo que ela se torne parte do
sistema. Como Horkheimer e Adorno afirmam no prefácio, a aporia que
defrontamos em nosso trabalho revela-se assim
como o primeiro objeto a investigar: a autodestruição do esclarecimento. Não
alimentamos dúvida nenhuma – e nisso reside nossa petitio principii –
de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor.
Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio
conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as
instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para
a regressão que hoje tem lugar por toda a parte (ADORNO & HORKHEIMER, 1985:
13).
Porém, a Teoria Crítica não parou sua busca pela emancipação por causa
disso. Outros pensadores como Habermas, A. Honneth e Nancy Fraser
continuaram a pensar a sociedade em outros níveis de emancipação e de
racionalidade. Entretanto, toda a construção que Adorno e Horkheimer fizeram
da Indústria Cultural ainda tem o seu ar de realidade presente. Tanto
1984 como Dialética do esclarecimento, considerados os livros
mais sombrios de suas áreas, possuem essa forma de pesadelo que continua em
pleno dia.
Porém, dentro do jornalismo e das Teorias do Jornalismo, a Teoria Crítica
vem perdendo espaço gradativamente. Imersa em críticas baseadas no seu
caráter marxista ou na sua incompatibilidade com a prática do jornalismo na
atualidade, a Teoria Crítica deixa de ser valorizada como pensamento
importante para a construção de um Conhecimento, até mesmo de um jornalismo
melhor para a sociedade que serve. Essa conclusão também tem como título “A
possibilidade de mudança”. Como podemos mudar o jornalismo? Como podemos
tirar essa simplicidade redutora e controladora da produção textual
noticiosa e da ameaça que ela representa para a Língua Portuguesa?
Primeiramente, temos que perceber que essa simplicidade é utilizada pelos
jornais de forma terapêutica, no sentido de esconder as diferenças sociais e
não de resolvê-las. É o movimento do pensamento unidimensional que Herbert
Marcuse indica em seu livro A ideologia da sociedade industrial. Um
pensamento unidimensional para uma sociedade unidimensional. Na verdade, o
que ele quer indicar é que a cultura e a Filosofia colaboram para não ter
dimensões e diferenciações, onde tudo, já que é reificado, pode ser trocado
por tudo. “A redefinição do pensamento que ajuda a coordenar as operações
mentais com as da realidade social visa a uma terapia” (MARCUSE, 1967: 163).
Fazendo referências até a Novilíngua orwelliana, Marcuse rechaça a Filosofia
analítica da linguagem, principalmente as Investigações Filosóficas,
de Ludwig Wittgenstein, como principal representação dessa linha
terapêutica. Segundo ele, “todo um ramo da Filosofia analítica está
empenhada nessa empresa, mas o método exclui de imediato os conceitos de uma
análise política, isto é, crítica. A tradução operacional ou behaviorista
assimila termos como ‘liberdade’, ‘governo’, ‘Inglaterra’ com ‘vassoura’ e
‘abacaxi’, e a realidade daqueles com a destes” (MARCUSE, 1967: 172).
Ora, não é isso que, no limite, podemos concluir que a simplicidade como
defesa do Português causa? Não será essa uma das facetas do controle que
tanto falamos no decorrer dessa análise? Para termos certeza, devemos ver o
que Marcuse critica em Wittgenstein.
A pobreza auto-estilizada da Filosofia,
comprometida, em todos os seus conceitos, com o estado de coisas em questão,
suspeita das possibilidades de uma nova experiência. A sujeição ao império
dos fatos estabelecidos é total – somente fatos lingüísticos, não há dúvida,
mas a sociedade fala em sua linguagem e nos é dito que devemos obedecer. As
proibições são severas e autoritárias: “A Filosofia não pode de modo algum
interferir no uso real da linguagem”. “E não podemos apresentar espécie
alguma de teoria. Não deve haver coisa hipotética alguma em nossas
considerações. Devemos abolir toda explicação e somente a descrição
deve tomar o seu lugar” (MARCUSE, 1967: 169-170).
Descrição em detrimento da explicação em Wittgenstein, convencimento em
detrimento da conscientização no Manual de Redação, eles são
movimentos análogos? Se pensarmos que tanto a descrição como o convencimento
não proporcionam linhas de fuga, eles são, em essência, controle. Já os
esquecidos, explicação e conscientização, são plurais e dialogais, implicam
em profundidade e em várias formas. Com isso, esse jargão da simplicidade
que mostramos nessa análise vira dessublimação repressiva em termos
marcusianos. O negativo da crítica some e tudo vira uníssono com a atual
situação. Como pode o jornalismo, que se diz mecanismo para a mudança
social, usar de tal mecanismo de controle? Podemos ver, à guisa de
comparação, o que acontece com a filosofia se for pensada nesses termos: “A
filosofia simplesmente coloca as coisas, não elucida nada e não conclui
nada. – Como tudo fica em aberto, não há nada a elucidar. Pois o que está
oculto não nos interessa. Pode-se chamar também de ‘filosofia’ o que é
possível antes de todas as novas descobertas e invenções”.
(WITTGENSTEIN, 1999: 67).
No entanto, muitos poderão afirmar que as constatações críticas de Marcuse a
uma filosofia da linguagem que não está ligada à realidade social. Só que,
na concepção utilizada nesse artigo, essa crítica vale para qualquer ciência
humana. Vale lembrar da crítica ao positivismo feita por Michael Löwy (LÖWY,
1996) e das inúmeras críticas de que o jornalismo perdeu o seu valor (ou
meta) social através da insistência em um agenda-setting das grandes
corporações.
Assim, é sombrio pensar em um jornalismo que nada elucida. Mas será que ele
já não está nesse mesmo nível unidimensional? Será que isso não é a
conseqüência da simplicidade? O jornalismo acaba, com essa essência de
defesa que é controle, sendo aliado do status quo e assim afeta até
mesmo a concepção de ver a Língua. Porém, se podemos constatar e prever as
conseqüências, podemos ver também uma saída para fugir desse jornalismo e
desse Português terapêutico pregados pela simplicidade.
O caráter terapêutico da análise filosófica é
fortemente acentuado – para curar de ilusões, decepções, obscuridades,
enigmas insolúveis, perguntas irrespondíveis, de fantasmas e espectros. Quem
é o paciente? Aparentemente, certo tipo de intelectual cuja mente e
linguagem não se amoldam aos termos da locução ordinária. Há, na verdade,
boa porção de psicanálise nessa Filosofia – análise sem a introspecção
fundamental de Freud segundo a qual o problema do paciente está arraigado
numa doença geral que não pode ser curada pela terapia analítica. Ou,
em outro sentido, segundo Freud, a doença do paciente é uma reação de
protesto contra o mundo doente em que ele vive. Mas o médico deve desprezar
o problema “moral”. Tem de restaurar a saúde do paciente, torná-lo capaz de
funcionar normalmente em seu mundo. O filósofo não é médico; seu trabalho
não é curar os indivíduos, mas compreender o mundo em que eles vivem –
entendê-lo em termos do que ele tenha feito ao homem e do que pode fazer ao
homem. Pois a Filosofia é (historicamente e sua história ainda é válida) o
contrário daquilo que Wittgenstein fez dela quando ele proclamou como a
renúncia de toda teoria, como empreendimento que “deixa tudo como é” (MARCUSE,
1967: 174).
O jornalista também não é médico, também precisa analisar a sociedade e, sem
dúvida, não pode deixar as coisas como elas são. Jornalismo não pode ser
pílulas de controle e não pode levar esse caráter terapêutico de controle
para Língua Portuguesa. Como fugir disso? Começamos essa conclusão tentando
fugir da aporia, escapar do bloqueio estrutural, temos que indicar onde essa
mudança pode ser feita e como fazê-la.
Talvez seja possível achar essa mudança se sairmos do pensamento do
jornalista apenas, e passássemos a pensar o público, o leitor. Esse caráter
está cada vez mais esquecido dentro da Teoria e da prática do Jornalismo
que, às vezes, preferem pensar em como legitimar as políticas mercadológicas
da organização midiática do que pensar no seu próprio público. Talvez o
jornalismo teria que buscar
o sujeito cognoscente, o sujeito que busca
adquirir conhecimento, o sujeito que a teoria de Piaget nos ensinou a
descobrir. O que quer isto dizer? O sujeito que conhecemos através da teoria
de Piaget é um sujeito que procura ativamente compreender o mundo que o
rodeia, e trata de resolver as interrogações que este mundo provoca. Não é
um sujeito que espera que alguém que possui um conhecimento o transmita a
ele, por um ato de benevolência. É um sujeito que aprende basicamente
através de suas próprias ações sobre os objetos do mundo, e que constrói
suas próprias categorias de pensamento ao mesmo tempo que organiza seu mundo
(FERREIRO & TEBEROSKY, 1991: 26).
Não se trata de revisitar Descartes ou qualquer filósofo iluminista. É
utilizar o esclarecimento de forma que retire o proletariado e não mais o
burguês de sua condição. Significa não apenas ampliar as possibilidades de
criticidade do público, pois isso pode ser feito apenas com uma abertura da
produção jornalística (por exemplo, o jornalismo colaborativo ou o
jornalismo cidadão de Herbert J. Gans). Significa encaixar, simultaneamente,
(1) as chaves de leitura periféricas nas produções de pauta; (2) a busca de
um diálogo, proporcionado pelo jornalismo, entre centros de poder e
periferias; e (3) o jornalismo ser uma forma de desvelamento das
contradições sociais.
Assim, precisamos nos focar no anti-público-leitor usual, ou seja, no
“substrato de párias e estranhos, dos explorados e perseguidos de outras
raças e de outras cores, os desempregados e os não-empregáveis. Eles existem
fora do processo democrático; sua existência é a mais imediata e a mais real
necessidade de pôr fim às condições e instituições intoleráveis” (MARCUSE,
1967: 235). A saída é um jornalismo “criador, ao exercício da compreensão
crítica” da “prática, sem ter, contudo, a ilusão de ser uma alavanca da
libertação, oferece uma contribuição a este processo” (FREIRE, 2006: 26).
Bibliografia
ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética
do Esclarecimento (trad. G. Antonio de Almeida). S. Paulo: Jorge Zahar
Editor, 1985.
BERBERIAN, A. Fonoaudiologia e Educação.
S. Paulo: Plexus, 1995.
Dicionário da Língua portuguesa – Larousse
Cultural. S. Paulo: N. Cultural,
1992.
ENGUITA, M. A face Oculta da Escola.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Psicogênese
da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
FREIRE, P. Ação Cultural para a liberdade.
S. Paulo: Paz e Terra, 2006.
LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra
o Barão de Münchhausen. S. Paulo: Cortez, 1996.
LUKÁCS, G. História e Consciência de
Classe (trad. R. Nascimento). S. Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARTINS FILHO, E. Manual de Redação e
Estilo de O Estado de S. Paulo. S. Paulo: O Estado de S. Paulo, 1997.
MARCUSE, H. A ideologia da sociedade
industrial (trad. G. Rebuá). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
MARX, K. Os Pensadores (trad. E.
Malagodi). S. Paulo: N. Cultural, 1999.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência (trad. A.
C. Braga). S. Paulo: Escala, 2006.
NOBRE, M. A Teoria Crítica. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 2004.
ORWELL, G. 1984 (trad.
W. Velloso). S. Paulo: Nacional, 1979.
PONTES, C. Leitura de notícias.
Lisboa: Livros Horizontes, 2004.
WITTGENSTEIN, L. Os Pensadores (trad.
J.C. Bruni). S. Paulo: N. Cultural, 1999.