por RAFAEL DUARTE OLIVEIRA VENANCIO

Graduando em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e bolsista de Iniciação Científica do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-CEBRAP) com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

 

 

 

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Manual de Redação e a Novilíngua jornalística

Rafael Duarte Oliveira Venancio

 

Resumo:

Esse artigo analisa, criticamente, o universo jornalístico construído pelos verbetes e pelas orientações do Manual de Redação de O Estado de S. Paulo. Não se trata de comparar essa teoria (Manual de Redação) com a prática (ou seja, com os textos publicados no jornal), e sim um estudo que mostre a visão institucional da empresa jornalística em relação ao jornalismo, à sociedade e ao Conhecimento. A primeira etapa é caracterizar o universo jornalístico através dos conceitos da Teoria Crítica/Escola de Frankfurt, usando principalmente o conceito de reificação, e depois, da visão do manual de redação, com destaque à defesa da Língua Portuguesa que ele prega. Em seguida, mostrar onde está centrada a posição de defesa e relacioná-la com outros três casos similares para concluir qual será a influência dela. A idéia central defendida no artigo é que impor a simplicidade, tanto no jornalismo como no Português, implica em danos ao Conhecimento e à sociedade.

Palavras-chave: Jornalismo; manual de redação; Língua Portuguesa; reificação; Escola de Frankfurt.

Abstract:

This article analyzes, critically, the journalistic universe that Manual de Redação de O Estado de S. Paulo´s notes and guidances built. It is not a confrontation between that theory (Manual de Redação) and practice (the newspaper stories), it is a study that shows the relation between journalistic institutional view and journalism, society and knowledge. The first step is to characterize the journalistic universe with the Critical Theory/Frankfurt School´s concepts, using reification concept mainly, and after that, with the stylebook view, specially his defense of Portuguese language. In the next step, to show where is centered that defense position and relate it with three similar cases to conclude how the defense influences. The central notion that this article defends that to impose simplicity in journalism and in Portuguese, involves damages to knowledge and to society.

Key-words: Journalism; stylebook; Portuguese language; reification; Frankfurt School

 

Essa estrutura mostra-se em seus traços mais grotescos no jornalismo, em que justamente a própria subjetividade, o saber, o temperamento e a faculdade de expressão tornam-se um mecanismo abstrato, independente tanto da personalidade do ‘proprietário’ como da essência material e concreta dos objetos em questão, e que é colocado em movimento segundo leis próprias. A ‘ausência de convicção’ dos jornalistas, a prostituição de suas experiências e convicções só podem ser compreendidas como ponto culminante da reificação capitalista. (Lukács, 2003: 222)

 

34 – Sêneca et hoc genus omne

Escrevem e escrevem sempre sua insuportável

E sábia cantilena

Como se tratasse de primum scribere,

Deinde philosophari. (Nietzsche, 2006: 29)

 

Se a opinião pública atingiu um estado em que o pensamento inevitavelmente se converte em mercadoria e a linguagem em seu encarecimento, então a tentativa de pôr a nu semelhante depravação tem de recusar lealdade às convenções lingüísticas e conceituais em vigor, antes que suas conseqüências para a história universal frustem completamente essa tentativa. (Adorno & Horkheimer, 1985: 12)

 

Antes de prosseguir com a leitura dessa introdução, gostaria que o leitor voltasse para a página das epígrafes e a lesse atentamente. Tal retorno é inerente à introdução, pois são essas três citações que darão o tom dessa análise. Elas, além de pontuarem acerca da orientação analítica, construirão boa parte do solo que percorreremos nas próximas páginas.

O objeto de estudo é o Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo, cuja peculiaridade é a construção de um universo jornalístico a partir do texto, que implicaria não apenas uma determinada construção das notícias, mas como uma função deste universo e texto jornalístico na própria cultura e sociedade pautadas pela língua portuguesa.

Porém, como o Manual de Redação interage com as epígrafes? Mostrar tal movimento analítico é a função dessa introdução. A primeira epígrafe foi retirada do artigo A reificação e a consciência do proletariado, de Georg Lukács, presente no livro História e Consciência de Classe. Nele, a passagem, utilizada aqui como epígrafe, tem como função mostrar que a reificação não atinge apenas o proletariado, mas a classe dominante também, que “assume uma atitude contemplativa em relação ao funcionamento de suas próprias faculdades objetivadas e coisificadas” (LUKÁCS, 2003: 222).

Antes de colocar o Manual de Redação interagindo com os conceitos de Lukács, é importante esclarecer o significado de reificação. Esse é o termo utilizado pelo autor para ampliar para as relações sociais o conceito de fetichismo de mercadoria proposto por Karl Marx no livro O Capital. Porém, o conceito já aparece em O rendimento e suas fontes – A economia vulgar. Nele, ao fazer uma análise sobre a relação entre capital, lucro e juros, Marx constata um fetiche nos juros (que não possuem a mediação da produção e circulação). Se o capital já tinha um aspecto obscuro e misterioso, no capital a juros, “se completa esse fetiche automático, de um valor que se valoriza a si mesmo, de um dinheiro que faz dinheiro, de sorte que, nessa forma, não traz mais o estigma de seu nascimento. A relação social se completa como relação da coisa (dinheiro, mercadoria) consigo mesma” (MARX, 1999: 190).

Lukács, leitor de Weber, amplia o conceito ao uni-lo à Teoria da Racionalização weberiana. Com isso, todo o caráter fantasmagórico do capital passa para as outras relações humanas, coisificando-as. A reificação seria, em termos weberianos, uma racionalização parcial da sociedade.  Revisitando a citação dele usada como epígrafe, vemos que o jornalismo é onde tal estrutura reificada possui seus traços mais grotescos e seu ponto culminante. A abstração dos elementos do Conhecimento e da expressão seria independente da personalidade do “proprietário” e da essência material e concreta dos objetos tratados.

Isso é presente no Jornalismo, principalmente nos textos noticiosos. A “personalidade do ´proprietário’” é substituída pela imparcialidade extrema, a “essência material e concreta dos objetos tratados” trocada pela objetividade comparável das máquinas. Tudo isso movido por leis próprias, ou seja, pelo Manual de Redação.

Portanto, essa análise considera como primeira condição que o universo construído pelo Manual de Redação é reificado. Seus textos, instruções e verbetes corroboram para um pensamento fabril na forma de fazer jornalismo, na forma de ver a sociedade e na forma de caracterizar o Conhecimento.

Mas, seria o Manual de Redação o grande culpado ou a grande força motriz desse processo? Para especificar essa relação, entra a 2ª epígrafe, de Nietzsche, que mostra que o movimento desse tipo de teoria é de legitimação. A análise desse trabalho considera que, graças ao próprio caráter reificado, a teoria presente no Manual de Redação é fruto apenas de uma legitimação da prática ou, como disse Nietzsche sobre Sêneca, primeiro escrevem e depois filosofam. Tal visão se embasa na Teoria Crítica pois, segundo Horkheimer e Adorno, “a reificação alargava-se da realidade encarada como objeto natural às próprias teorias que se propunham estudá-la enquanto tal, por argumentos que isolavam as esferas da tecnologia e da política da sua base econômica e social” (PONTES, 2004: 104).

Os frankfurtianos são os autores da terceira epígrafe que, tanto sintetiza o caráter reificado da concepção da linguagem textual que encontraremos no Manual de Redação como aponta para o principal alvo, ou seja, as convenções lingüísticas e conceituais em vigor, ou seja, do Manual de Redação. As próximas páginas buscam mostrar qual é a essência, ou talvez, a principal conseqüência da sistematização feita pelo objeto analisado.

A visão do manual

Manual de redação[1] não é uma Gramática da Língua Portuguesa. Em um livro de Gramática, você encontra apenas as regras de uma determinada língua, enquanto um manual de redação foca a elaboração de um determinado tipo de texto. Portanto, por mais que o Manual de Redação tenha verbetes idênticos aos de uma Gramática, não podemos esquecer que ele está focado na produção do texto jornalístico.

Por isso, podemos afirmar que, enquanto manual de redação de textos jornalísticos, principalmente os noticiosos, o Manual de Redação possui uma ideologia e uma regulação acerca dessa produção, assim como um manual de redação de contos de terror teria os seus próprios. Porém, o jornal O Estado de S. Paulo, representado pelo diretor de redação Aluízio Maranhão, não enxerga o Manual de Redação colado apenas ao texto noticioso ou à prática jornalística.

Na Apresentação do Manual de Redação, Maranhão inicia o seu texto exaltando a grande venda das edições passadas do livro e introduz um valor que perpassa o próprio jornalismo. Segundo ele, o sucesso do Manual de Redação trata-se sem dúvida de uma boa notícia, por servir de termômetro do interesse em escrever melhor, num português objetivo e claro, mas sem pedantismos(Martins Filho, 1997: 5).

Poucos parágrafos adiante, Maranhão deixa bem claro o que quis dizer ao afirmar que

a missão de Eduardo Martins tem de ser cumprida em tempos difíceis, diante do grande estrago causado em atividades que dependem da Língua Portuguesa pelo longo período de trevas em que o ensino no País foi tragado pela falência da máquina pública. Hoje, fala-se e escreve-se pior que em gerações passadas. E as redações brasileiras não são nenhum oásis nesse deserto. Mas, se padecem da mesma síndrome que ataca nos exames para o vestibular e nos textos de telenovelas, as redações podem e devem se converter em sólidas trincheiras de defesa do conhecimento da língua. O Manual é uma afiada arma nessa guerra (MARTINS FILHO, 1997: 6).

Nesse ponto, percebe-se que o Manual de Redação não é apenas o regulador dos textos jornalísticos, mas também, se não da norma culta, de como utilizar bem o Português. O que, à primeira vista, não caracterizaria um problema pode se tornar um ao lembrarmos do começo desse capítulo.

Manual de redação não é Gramática pura e simplesmente. Ele só pode existir se estiver atrelado a um determinado estilo textual. Como, então, colocar um manual de redação como defensor da Língua Portuguesa? Posso acrescentar ainda que isso não fica apenas no detrimento dos outros estilos textuais, pois a própria concepção ou regulação do Português fica a cargo de um único tipo de texto. Com isso, o texto noticioso e a língua ficam no mesmo patamar, ou seja, são igualmente regulados pelo Manual de Redação.

É uma concepção perigosa, pois a língua, instância superior a qualquer texto, fica a mercê de uma prática textual que, conforme foi visto na Introdução desse trabalho, representa o “ponto culminante da reificação capitalista(Lukács, 2003: 222). A língua em si, teoricamente, não deveria ter nenhuma influência de caráter econômico (seja capitalismo, seja comunismo, a língua será sempre a mesma), político (seja democracia, seja ditadura, a língua está acima disso) ou ideológico de curto prazo[2].  

Porém, essa auto-proclamada função, de defesa e de regulação, do Manual de Redação perante a língua é um exemplo factual da chamada Indústria Cultural. Esse termo, cunhado por Adorno e Horkheimer no livro Dialética do Esclarecimento, define a instância que a Cultura e o tema filosófico do Belo são envoltos pela razão instrumental e se unem a todo caráter reificado do capitalismo administrado[3].

Esse tipo específico de capitalismo, que surgiu após o início da prática da intervenção estatal na economia nos anos 20, foi teorizado pelo economista Friedrich Pollock. Sua evolução conceitual acerca do passo anterior do capitalismo significa que ele não encontra o seu fim em crises de produção, como pensava Marx e Lukács, impossibilitando, assim, as possibilidades da revolução do proletariado.

Para eles, a influência dessa conjuntura (que, no caso da nossa análise, é análoga à defesa do Português pelo Manual de Redação) mina a língua pelo próprio caráter da técnica.

A compulsão do idioma tecnicamente condicionado, que os astros e os diretores têm de produzir como algo de natural para que o povo possa transformá-lo em seu idioma, tem a ver com nuanças tão finas que elas alcançam a sutileza dos meios de uma obra de vanguarda, graças à qual esta, ao contrário daquelas, serve à verdade. A capacidade rara de satisfazer minuciosamente as exigências do idioma da naturalidade em todos os setores da indústria cultural torna-se o padrão de competência. O que e como o dizem deve ser controlável pela linguagem quotidiana, como no positivismo lógico. Os produtores são especialistas. O idioma exige a mais espantosa força produtiva, que ele absorve e desperdiça. Ele superou satanicamente a distinção própria do conservadorismo cultural entre o estilo autêntico e o estilo artificial. Artificial poder-se-ia dizer um estilo imposto de fora às potencialidades de uma figura (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 121).   

A essência da defesa da Língua

Horkheimer e Adorno, no trecho anterior, estavam falando acerca do rádio e do cinema, porém, será que aquele mecanismo do “idioma da naturalidade” não pode ser observado dentro do universo construído, tanto jornalístico como de defesa da língua, pelo Manual de Redação? Para isso, temos que buscar uma instrução reguladora geral mais original, ou seja, mais específica da prática sistematizada pelo livro.

Essa instrução mais original para a defesa da língua está presente no próprio Manual de Redação. Mas aonde devemos procurá-la? Qual teoria devemos dissecar para achar esse princípio norteador de regulação? A própria Introdução do Manual de Redação nos aponta para o sítio de buscas.

Aluízio Maranhão, representando a postura ideológica d’O Estado de S. Paulo, mostra e ressalta a utilização cotidiana do Manual de Redação e deixa claro que a aplicação dele é feita no ato de escrever. Lembra que “a profissionalização crescente da atividade jornalística (...) permitiu que se percebesse que aqueles manuais poderiam ser editados em livro para um mercado carente de publicações voltadas para a aplicação prática da língua” (MARTINS FILHO: 1997: 6).

Mais adiante, coloca o Manual de Redação em alta posição para sociedade, ao afirmar que ele

sedimenta, ainda, uma histórica e gratificante convivência do Estado[4] com o ensino e o conhecimento. A mesma preocupação que ligou o jornal à fundação da Universidade de São Paulo e a mesma convicção que o tornou pioneiro na criação do caderno Cultura, na década de 50, fazem-no lançar mais esta edição do Manual, adotado também em outros jornais e até como livro de auxílio para o ensino do Português nas escolas (MARTINS FILHO, 1997: 7).

Considerando o contexto dado pelas outras, essa citação deixa claro, não só o papel de defesa da língua pelo Manual de Redação, mas que a regulação do texto jornalístico tem o primado para a busca da essência da defesa da língua Portuguesa. Isso é comprovado porque a prática que podemos aplicar através da teoria do Manual de Redação é a do texto jornalístico, principalmente o noticioso. É nas instruções gerais acerca desse estilo que temos que buscar tal essência que, além de ser meta, diferencia o Manual de Redação de todas as outras possibilidades de defesa e de regulação da língua.

O primeiro capítulo do Manual de Redação possui, segundo seu autor, “verbetes que tornam claro o que se entende por um bom texto jornalístico e instruções práticas e teóricas para escrever bem, com correção e elegância” (MARTINS FILHO, 1997: 10). Podemos classificar esses verbetes em: “normas internas, gramaticais, ortográficas e de estilo” (MARTINS FILHO, 1997: 13).

Em quais desses grupos de verbetes podemos buscar a instrução reguladora mais original, que diferencia o Manual de Redação dos demais? Ora, podemos lembrar novamente duas afirmações que já trabalhamos no começo da análise. A primeira que um manual de redação não é uma Gramática. A segunda que o que diferencia um tipo de manual de redação dos demais é o texto ao qual está vinculado.

Portanto, podemos deixar de lado as normas gramaticais e ortográficas. Não só embasados nas duas afirmações acima, mas podemos acrescentar que elas são inerentes à língua. Então, se depende somente delas, não haveria cabimento caracterizar o Manual de Redação como “afiada arma” na guerra da defesa do conhecimento da língua.

A nossa atenção se concentra agora nos verbetes de normas internas e nos de estilo. Eles são antecedidos e, de certa forma, resumidos em 49 tópicos reunidos na alcunha de “Instruções gerais”. O primeiro tópico já prega: “Seja claro, preciso, direto, objetivo e conciso” (MARTINS FILHO, 1997: 15). O terceiro resume a anterior ao definir que “a simplicidade é condição essencial do texto jornalístico” (MARTINS FILHO, 1997: 15).

O próprio verbete “simplicidade” faz a relação causal entre os dois ao afirmar que

a simplicidade é condição essencial do texto jornalístico: quanto mais concisa, direta e objetiva for a notícia, maior o número de pessoas que atingirá. Escrever de maneira simples, no entanto, exige esforço e o atendimento de uma série de requisitos. Veja alguns deles: 1 – use frases curtas e na ordem direta; 2 – escolha palavras acessíveis a qualquer tipo de leitor; 3 – opte pelo vocábulo mais simples que defina uma coisa ou situação; 4 – evite os termos técnicos desnecessários e, quando absolutamente indispensáveis, não deixe de explicá-los; 5 – fuja das frases pernósticas e pomposas (MARTINS FILHO, 1997: 269).

Parece que nossa busca chegou ao fim. A essência da defesa da língua pregada pelo Manual de Redação é a simplicidade. Porém, será que para uma língua ou até mesmo para um veículo noticioso, que passa informação e conhecimento, a simplicidade é uma essência adequada? Seria a simplicidade tão democrática quanto o Manual de Redação e certos teóricos pregam?

Três casos de simplicidade na Língua

Usando o solo que foi construído para essa análise logo nas epígrafes, vamos buscar três exemplos de situações de simplicidade na língua para constatar se essa essência de defesa da língua é democrática como o Manual de Redação prega. Um dos exemplos será retirado de dentro da Teoria Crítica e terá relação íntima com os textos jornalísticos. Os outros dois serão retirados da História do Brasil e da literatura de ficção.

Caso 1: perda de valor nos produtos da Indústria Cultural

Segundo Horkheimer e Adorno, o mecanismo da Indústria Cultural tiraria o valor de uso de seus produtos, restando apenas o seu valor de troca. Enquanto “o valor de uso só tem valor para o uso, e se efetiva no processo de consumo” (MARX, 1999: 57), “o valor de troca aparece primeiramente como relação quantitativa em que valores de uso são trocáveis entre si” (MARX, 1999: 58). E “o valor de uso é a base material onde se apresenta uma relação econômica determinada – o valor de troca” (MARX, 1999: 58). Ora, a crítica marxista ao capitalismo se baseia em duas constatações: uma sobre o caráter do valor de troca e a outra acerca do valor do trabalho humano. A primeira constatação, Marx retira do Capítulo IX do Livro Primeiro da De Republica, escrito por Aristóteles. Nela diz que todo bem

pode servir para dois usos... Um é próprio à coisa como tal, mas o outro não o é: assim, uma sandália pode servir como calçado, mas também pode ser trocada. Trata-se, nos dois casos, de valores de uso da sandália, porque aquele que troca a sandália por aquilo de que necessita, alimentos, por exemplo, serve-se também da sandália como sandália. Contudo, não é este o seu modo natural de uso. Pois a sandália não foi feita para a troca. O mesmo se passa com os outros bens (MARX, 1999: 57).

Esse caráter fantasmagórico que o valor de troca traz à mercadoria se une ao desaparecimento do valor do trabalho humano nela, surge o fetichismo de mercadoria. No capítulo de Dialética do Esclarecimento acerca da indústria cultural, os autores mostram que as mercadorias culturais, com a exigência de entretenimento e relaxamento, têm que mudar a sua finalidade, atrelando a tal necessidade. Ao se assimilar

totalmente à necessidade, a obra de arte defrauda de antemão os homens justamente da liberação do princípio da utilidade, liberação essa que a ela incumbia realizar. O que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 148).

Esse movimento pode ser percebido no próprio Manual de Redação e sua essência da simplicidade. Ao justificá-la dizendo que “não é justo exigir que o leitor faça complicados exercícios mentais para compreender o texto” (MARTINS FLIHO, 1997 : 15), podemos ligá-la à concepção de “relaxamento” descrita no movimento da indústria cultural. Mesmo o quarto requisito da simplicidade, que é evitar os termos técnicos, é uma representação de que as notícias não querem ensinar e tornar conhecedores os seus leitores.

Talvez o item que mais exemplifica a citação de Horkheimer e Adorno é o primeiro requisito, o das frases curtas e diretas. Sua presença, principalmente no lead, é tida como indispensável pelo Manual de Redação, pois é, para a regulação jornalística, a melhor forma de passar tudo o que tem de importante, logo no primeiro parágrafo (além de presumir que os seus leitores só terão tempo de ler o começo de cada notícia).

Um exemplo de cumprimento de tal requisito é dado no verbete:

A inflação não caiu? Então, que caia o número. Poucos ministros resistiram à tentação. Em 73, Delfim Netto quis segurar a inflação e fez a FGV pesquisar só preços irreais. Depois, o governo recalculou o índice. Conclusão: 22%, confusão e greves. Simonsen expurgou a ‘inflação do chuchu’. Funaro mudou até de calculador: da FGV ao IBGE. Ontem, o governo multiplicou índices. (MARTINS FILHO, 1997: 269)

Perceba que, ao ler o lead-exemplo, pouco é oferecido em termos de contextualização. Sem isso, um bom entendimento da atualidade não pode ser formado. Parece que o que vale é saber de informações pontuais para em um bate-papo soltá-las para se mostrar informado. Horkheimer e Adorno completam o seu raciocínio dizendo que o

consumidor torna-se a ideologia da indústria da diversão, de cujas instituições não consegue escapar. É preciso ver Mrs. Miniver, do mesmo modo que é preciso assinar as revistas Life e Time. Tudo é percebido do ponto de vista da possibilidade de servir para outra coisa, por mais vaga que seja a percepção dessa coisa. Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo. O valor de uso da arte, seu ser, é considerado como um fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte – torna-se seu único valor de uso, a única qualidade que elas desfrutam (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 148).

Um caráter da simplicidade, essência do texto jornalístico e, de acordo com a nossa análise, da defesa da Língua Portuguesa pelo Manual de Redação, é sua proximidade a todos os tipos de leitores. Na instrução geral 3 que trata da simplicidade, que já foi citada, diz que é necessário lembrar que “escreve para todos os tipos de leitores e todos, sem exceção, têm o direito de entender qualquer texto, seja ele político, econômico, internacional ou urbanístico” (MARTINS FILHO, 1997: 15).

No entanto, podemos lembrar que essa “proximidade ilimitada”

às pessoas expostas a ela consuma a alienação e assimila um ao outro sobre o signo de uma triunfal reificação. Na indústria cultural, desaparecem tanto a crítica quanto o respeito: a primeira transforma-se na produção mecânica de laudos periciais, o segundo é herdado pelo culto desmemoriado da personalidade (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 150).

E completam dizendo que

Tanto lá como cá, a mesma coisa aparece em inúmeros lugares, e a repetição mecânica do mesmo produto cultural já é a repetição do mesmo slogan propagandístico. Lá como cá, sob o imperativo da eficácia, a técnica converte-se em psicotécnica, em procedimento de manipulação de pessoas. Lá como cá, reinam as normas do surpreendente e no entanto familiar, do fácil e no entanto marcante, do sofisticado e no entanto simples. O que importa é subjugar o cliente que se imagina como distraído ou relutante (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 153).

Esse trecho, que mostra mais um pouco da alienação feita pela indústria cultural, pode ser constatado no Manual de Redação, quando ele diz que busca um texto elegante, correto e simples. Ora, isso é quase uma transcrição da penúltima frase da citação anterior da Dialética do Esclarecimento.

Se para o produto cultural podemos constatar que simplicidade é alienação, podemos dizer o mesmo para a língua? Retornando à Teoria Crítica, podemos responder que “quanto mais completamente a linguagem se absorve na comunicação, quanto mais as palavras se convertem de veículos substanciais do significado em signos destituídos de qualidade, quanto maior a pureza e a transparência com que transmitem o que se quer dizer, mais impenetráveis elas se tornam” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 153).

É essa a conseqüência para a língua, antes a palavra e o conteúdo estavam ligados:

Conceitos como melancolia, história e mesmo vida, eram reconhecidos na palavra que os destacava e conservava. Sua forma constituía-os e, ao mesmo tempo, refletia-os. A decisão de separar o texto literal como contingente e a correlação com o objeto como arbitrária acaba com a mistura supersticiosa da palavra e da coisa. O que, numa sucessão determinada de letras, vai além da correlação com o evento é proscrito como obscuro e como verbalismo metafísico. Mas deste modo a palavra, que não deve significar mais nada e agora só pode designar, fica tão fixada na coisa que ela se torna uma fórmula petrificada (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 153-4).

Nesse caso descrito pela Teoria Crítica, simplicidade na língua é alienação. Simplicidade na língua é redução. Simplicidade na língua é petrificação. Simplicidade na língua é matar a sua força e o seu movimento.

Caso 2 : simplificação do Português no Brasil da década de 1930

A essência da simplicidade na defesa da Língua Portuguesa não é uma pauta totalmente nova. Houve, na década de 30 do século XX, todo um processo no Brasil de “Uniformização da Língua”, que veio culminar com o Decreto nº 20108, de 1933. Todo esse percurso, Ana Paula Berberian demonstrou no primeiro capítulo, A Uniformização da Língua e a Unidade Nacional, de seu livro Fonoaudiologia e Educação.

Mostrando que, desde 1910, havia um projeto da construção de uma Língua Nacional embasada em um espírito nacionalista e patriótico. Seguindo a linha de pensamento que levou Jean-Paul Sartre a definir “o poder da imposição da língua do colonizador como instrumento de domesticação do colonizado” (BERBERIAN, 1995: 3) como “mordaça sonora”, Berberian viu a uniformização da língua como “mecanismo de suporte à assimilação das novas relações sociais” (BERBERIAN, 1995: 33). Tal como Enguita, em A face oculta da Escola, viu na uniformização do Inglês nos EUA por meio da escola, esse movimento no Brasil pode ser caracterizado como “assimilação forçada”, principalmente dos imigrantes, ao trabalho fabril e às relações industriais.

Nesse contexto, educadores comprometidos com o ideário urbano-fabril deste período elaboraram programas de incorporação progressiva destes segmentos socioculturais a uma formação histórica construída por selecionados valores culturais brasileiros, o que implicou profundas e violentas expropriações materiais e mentais. Esta desapropriação não foi apenas assumida como responsabilidade da instituição escolar, como estendeu-se aos meios de comunicação – escrita e falada –, à imprensa e às formas de lazer (BERBERIAN, 1995: 34).

Esse movimento não só atingiu os imigrantes, mas também as outras minorias nacionais. Para corroborar com esse projeto, surgiu o conceito de “língua-padrão”, através de um projeto de padronização e simplificação das normas internas da Língua Portuguesa. Isso se deu pelo Decreto nº 20108, de 1933, que se uniu a outros projetos de “Uniformização da Língua”, todos eles feitos pela via estatal.

O próprio autor do projeto, Teixeira de Freitas, disse que o decreto entrava na defesa de que “se o esforço da civilização e o incremento cultural são coisas inseparáveis, se prendem no mundo moderno cada vez mais à ação do Estado, claro que a disciplina da linguagem como manifestação de espiritualidade e cultura, não poderia mais fugir àquela influência que aliás é fato manifesto em todo mundo civilizado” (BERBERIAN, 1995: 55).

Tudo isso para se adaptar à época de progresso vertiginoso, cuja característica seria a “rapidez, aliada à simplicidade dos meios, para atender-se a complexidade dos fins e ao complicado dinamismo da civilização contemporânea” (BERBERIAN 1995: 55). Assim, fica claro a relação direta entre a simplificação da língua e os ideais de produtividade e eficiência fabris, construindo uma análise semelhante à da Dialética do Esclarecimento.

A ideologia de Teixeira de Freitas é muito parecida com a do Manual de Redação que prega que “cada vez se tem menos tempo para a leitura, imperativo que fundamenta várias reformas em jornais baseadas no farto uso de ilustrações e no encurtamento do texto. (...) O jornalismo está ficando mais objetivo, os textos, mais diretos e, por isso mesmo, se torna fundamental o bom manejo da língua” (MARTINS FILHO, 1997: 7).

Podemos dizer que, analogamente, a essência da simplicidade funciona do mesmo modo na defesa da Língua Portuguesa nos dois casos. Portanto, a conclusão de Berberian pode ser muito próxima da nossa acerca do Manual de Redação. Ela afirma que

uma revisão histórica mostra que interferências de agentes ligados ao poder público sobre a língua resultam na expropriação de um direito que é dos seus constituintes e usuários. Através da unificação da língua pretendeu-se não só restringir o modo de a população falar mas fundamentalmente torná-la impotente no agir. Na medida em que a linguagem, ao mesmo tempo que permite o distanciamento do homem sobre o mundo, por meio de representação simbólica e abstrata, é também o que lhe permite retornar à realidade para transformá-la (BERBERIAN, 1995: 56-7).

Nesse caso histórico, a essência da simplicidade na defesa da língua é alienação novamente. Simplicidade na língua é homogeneidade. Simplicidade na língua é a imposição de certos valores culturais em detrimento de outros. E se unirmos, tanto a Teoria Crítica como esse fato histórico, até poderemos dizer que a simplicidade é controle. Porém, o terceiro caso vai exemplificar muito melhor tal faceta da simplicidade.

Caso 3: George Orwell e 1984: a Novilíngua como totalitarismo

Berberian, no decorrer de seu livro, vai utilizando, como epígrafes, trechos de 1984, de George Orwell, para mostrar a sua linha de pensamento acerca da simplificação da Língua Portuguesa no Brasil do começo do século XX. Diz ela que “por suas próprias características, a ficção sintetiza no presente, o passado e futuro” (BERBERIAN, 1995: 57). Ora, 1984 pode ser visto como o livro mais pessimista do século XX. Sua trama é impressionista: “Ao terminar sua leitura, fica em cada um de nós, latente, uma sensação estranha. É como se despertássemos de um pesadelo... e o pesadelo continuasse, em pleno dia” (ORWELL, 1979: contracapa). A sinopse é que, em 1984, o mundo

não conhece mais o que seja democracia: governos totalitários o controlam, de uma forma total, e ultra-eficiente. Sistemas inteiros foram criados para controlar não somente as atividades, mas os próprios pensamentos dos seres humanos. Não há mais liberdade, a não ser aquele tipo de liberdade imposto pelo Estado. Não há mais cultura, a não ser aquela desejada e imposta pelo Estado. Não se conhece mais o amor: entre um homem e uma mulher somente se processam relações determinadas e controladas pelo Estado. É o Estado total, de uma forma total (ORWELL, 1979: contracapa).

Essa redução de pensamento e cultura é feita pela língua, a Novilíngua, construída pelo Departamento de Pesquisa do Ministério da Verdade (Miniver, em novilíngua). No capítulo 5, fica claro qual era o método de criação da Novilíngua. Nele, o protagonista Winston Smith fala sobre isso com seu “camarada” Syme, filólogo, que estava empenhado na feitura da 11ª Edição do Dicionário da Novilíngua. Ele afirma que a nova edição

será definitiva. (...) Estamos dando à língua a sua forma final – a forma que terá quando ninguém mais falar outra coisa. Quando tivermos terminado, gente como tu terá que aprendê-la de novo. Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar novas palavras. Nada disso! Estamos é destruindo palavras – às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos reduzindo a língua à expressão mais simples (ORWELL, 1979: 51).

A construção da Novilíngua tem como essência não só a destruição, mas possui a simplicidade também. Será que essa simplicidade em termos descrita no 1984 é similar àquela pregada pelo Manual de Redação? Vamos ver mais uma fala de Syme que descreve o funcionamento da simplicidade de vocábulos em Novilíngua.

É lindo destruir palavras. Naturalmente, o maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, que justificação existe para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra contém em si o contrário. ‘Bom’, por exemplo. Se temos a palavra ‘bom’, para que precisamos de ‘mau’? ‘Imbom’, faz o mesmo efeito – e melhor, porque é exatamente oposta, enquanto ‘mau’ não é. Ou ainda, se queres uma palavra mais forte para dizer ‘bom’, para que dispor de toda uma série de vagas e inúteis palavras como ‘excelente’ e ‘esplêndido’, etc. e tal? ‘Plusbom’ corresponde à necessidade, ou ‘dupliplusbom’ se queres algo ainda mais forte. Naturalmente, já usamos essas formas, mas na visão final da Novilíngua não haverá outras. No fim, todo o conceito de bondade e maldade será descrito por seis palavras – ou melhor, uma única. Não vês que beleza, Winston? Naturalmente, foi idéia do Grande Irmão – acrescentou, à guisa de conclusão. (ORWELL, 1979: 52)

Ora, guardadas as devidas proporções, muitas das propostas acerca da simplicidade do Manual utilizam a mesma retórica. Além das palavras vetadas, de buscar o termo mais simples e de excluir termos técnicos desnecessários, podemos ver trechos que representam equívocos de discurso similares ao de Syme. O item 11 das instruções gerais diz que

não deve limitar-se a transpor para o papel as declarações do entrevistado, por exemplo, faça-o de modo que qualquer leitor possa apreender o significado das declarações. Se a fonte fala em demanda, você pode usar procura, sem nenhum prejuízo. Da mesma forma traduza patamar por nível, posicionamento por posição, agilizar por dinamizar, conscientização por convencimento, se for o caso, e assim por diante (MARTINS FILHO, 1997 :16).

Ora, conscientização é bem distinto de convencimento. Na própria raiz latina das palavras, elas são opostas. Enquanto consciência vem do latim conscientia, que significa “conhecimento em comum”, convencer vem do latim convincere, que significa “vencer completamente”. Parece então, que o Manual, com esse ato falho somado a todos os outros requisitos da simplicidade, quer, no discurso de uma conscientização da necessidade da defesa do Português, baseado na simplicidade, convencer. Vencer completamente qualquer outra proposta, como se a deles fosse a única possível.

Se, como disse a terceira epígrafe desse trabalho, as conseqüências desse tipo de linguagem podem evitar a própria tentativa de mudança, então temos que nos preocupar com a simplicidade como essência da defesa da língua. Observem como Syme conclui o seu raciocínio acerca da Novilíngua. Ele afirma que em 2050,

todo verdadeiro conhecimento de Anticlíngua terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruída, inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron – só existirão em versões Novilíngua, não apenas transformados em algo diferente, como transformados em obras contraditórias do que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer ‘liberdade é escravidão’, se for abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência (ORWELL, 1979: 53).

Nesse final, fica claro o que esses casos de simplicidade representam. Não são casos quaisquer, pois se baseiam em fortes teorias da sociedade e do Conhecimento, em situações históricas que aconteceram tanto no Brasil como em outros e em livros de ficção cuja importância é marco para a própria cultura do século XX. Na convergência deles podemos dizer que, no limite, simplicidade não é democracia. A essência da simplicidade, principalmente se pensarmos no distópico caso da Novilíngua, é o controle. Controle social, cultural e do pensamento. Podemos, se continuarmos nesse solo crítico, ficar altamente preocupados com os rumos do jornalismo, da sociedade e do Conhecimento em si. Entretanto, não teríamos uma alternativa para fugir dessa prática de defesa baseada na simplicidade, dita democrática, que é controle?

Conclusão ou a possibilidade de mudança

Chegamos a um ponto que, após desvelar o verdadeiro caráter da simplicidade como controle e não democracia, a análise crítica aqui feita corre o risco de se tornar aporia, igual a “via” de emancipação analisada pela Dialética do Esclarecimento. Tudo isso devido a um bloqueio estrutural que impede qualquer tentativa de mudança, fazendo que ela se torne parte do sistema. Como Horkheimer e Adorno afirmam no prefácio, a aporia que

defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro objeto a investigar: a autodestruição do esclarecimento. Não alimentamos dúvida nenhuma – e nisso reside nossa petitio principii – de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda a parte (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 13).

Porém, a Teoria Crítica não parou sua busca pela emancipação por causa disso. Outros pensadores como Habermas, A. Honneth e Nancy Fraser continuaram a pensar a sociedade em outros níveis de emancipação e de racionalidade. Entretanto, toda a construção que Adorno e Horkheimer fizeram da Indústria Cultural ainda tem o seu ar de realidade presente. Tanto 1984 como Dialética do esclarecimento, considerados os livros mais sombrios de suas áreas, possuem essa forma de pesadelo que continua em pleno dia.

Porém, dentro do jornalismo e das Teorias do Jornalismo, a Teoria Crítica vem perdendo espaço gradativamente. Imersa em críticas baseadas no seu caráter marxista ou na sua incompatibilidade com a prática do jornalismo na atualidade, a Teoria Crítica deixa de ser valorizada como pensamento importante para a construção de um Conhecimento, até mesmo de um jornalismo melhor para a sociedade que serve. Essa conclusão também tem como título “A possibilidade de mudança”. Como podemos mudar o jornalismo? Como podemos tirar essa simplicidade redutora e controladora da produção textual noticiosa e da ameaça que ela representa para a Língua Portuguesa?

Primeiramente, temos que perceber que essa simplicidade é utilizada pelos jornais de forma terapêutica, no sentido de esconder as diferenças sociais e não de resolvê-las. É o movimento do pensamento unidimensional que Herbert Marcuse indica em seu livro A ideologia da sociedade industrial. Um pensamento unidimensional para uma sociedade unidimensional. Na verdade, o que ele quer indicar é que a cultura e a Filosofia colaboram para não ter dimensões e diferenciações, onde tudo, já que é reificado, pode ser trocado por tudo. “A redefinição do pensamento que ajuda a coordenar as operações mentais com as da realidade social visa a uma terapia” (MARCUSE, 1967: 163).

Fazendo referências até a Novilíngua orwelliana, Marcuse rechaça a Filosofia analítica da linguagem, principalmente as Investigações Filosóficas, de Ludwig Wittgenstein, como principal representação dessa linha terapêutica. Segundo ele, “todo um ramo da Filosofia analítica está empenhada nessa empresa, mas o método exclui de imediato os conceitos de uma análise política, isto é, crítica. A tradução operacional ou behaviorista assimila termos como ‘liberdade’, ‘governo’, ‘Inglaterra’ com ‘vassoura’ e ‘abacaxi’, e a realidade daqueles com a destes” (MARCUSE, 1967: 172).

Ora, não é isso que, no limite, podemos concluir que a simplicidade como defesa do Português causa? Não será essa uma das facetas do controle que tanto falamos no decorrer dessa análise? Para termos certeza, devemos ver o que Marcuse critica em Wittgenstein.

A pobreza auto-estilizada da Filosofia, comprometida, em todos os seus conceitos, com o estado de coisas em questão, suspeita das possibilidades de uma nova experiência. A sujeição ao império dos fatos estabelecidos é total – somente fatos lingüísticos, não há dúvida, mas a sociedade fala em sua linguagem e nos é dito que devemos obedecer. As proibições são severas e autoritárias: “A Filosofia não pode de modo algum interferir no uso real da linguagem”. “E não podemos apresentar espécie alguma de teoria. Não deve haver coisa hipotética alguma em nossas considerações. Devemos abolir toda explicação e somente a descrição deve tomar o seu lugar” (MARCUSE, 1967: 169-170).

Descrição em detrimento da explicação em Wittgenstein, convencimento em detrimento da conscientização no Manual de Redação, eles são movimentos análogos? Se pensarmos que tanto a descrição como o convencimento não proporcionam linhas de fuga, eles são, em essência, controle. Já os esquecidos, explicação e conscientização, são plurais e dialogais, implicam em profundidade e em várias formas. Com isso, esse jargão da simplicidade que mostramos nessa análise vira dessublimação repressiva em termos marcusianos. O negativo da crítica some e tudo vira uníssono com a atual situação. Como pode o jornalismo, que se diz mecanismo para a mudança social, usar de tal mecanismo de controle? Podemos ver, à guisa de comparação, o que acontece com a filosofia se for pensada nesses termos: “A filosofia simplesmente coloca as coisas, não elucida nada e não conclui nada. – Como tudo fica em aberto, não há nada a elucidar. Pois o que está oculto não nos interessa. Pode-se chamar também de ‘filosofia’ o que é possível antes de todas as novas descobertas e invenções”. (WITTGENSTEIN, 1999: 67).

No entanto, muitos poderão afirmar que as constatações críticas de Marcuse a uma filosofia da linguagem que não está ligada à realidade social. Só que, na concepção utilizada nesse artigo, essa crítica vale para qualquer ciência humana. Vale lembrar da crítica ao positivismo feita por Michael Löwy (LÖWY, 1996) e das inúmeras críticas de que o jornalismo perdeu o seu valor (ou meta) social através da insistência em um agenda-setting das grandes corporações. 

Assim, é sombrio pensar em um jornalismo que nada elucida. Mas será que ele já não está nesse mesmo nível unidimensional? Será que isso não é a conseqüência da simplicidade? O jornalismo acaba, com essa essência de defesa que é controle, sendo aliado do status quo e assim afeta até mesmo a concepção de ver a Língua. Porém, se podemos constatar e prever as conseqüências, podemos ver também uma saída para fugir desse jornalismo e desse Português terapêutico pregados pela simplicidade.

O caráter terapêutico da análise filosófica é fortemente acentuado – para curar de ilusões, decepções, obscuridades, enigmas insolúveis, perguntas irrespondíveis, de fantasmas e espectros. Quem é o paciente? Aparentemente, certo tipo de intelectual cuja mente e linguagem não se amoldam aos termos da locução ordinária. Há, na verdade, boa porção de psicanálise nessa Filosofia – análise sem a introspecção fundamental de Freud segundo a qual o problema do paciente está arraigado numa doença geral que não pode ser curada pela terapia analítica. Ou, em outro sentido, segundo Freud, a doença do paciente é uma reação de protesto contra o mundo doente em que ele vive. Mas o médico deve desprezar o problema “moral”. Tem de restaurar a saúde do paciente, torná-lo capaz de funcionar normalmente em seu mundo. O filósofo não é médico; seu trabalho não é curar os indivíduos, mas compreender o mundo em que eles vivem – entendê-lo em termos do que ele tenha feito ao homem e do que pode fazer ao homem. Pois a Filosofia é (historicamente e sua história ainda é válida) o contrário daquilo que Wittgenstein fez dela quando ele proclamou como a renúncia de toda teoria, como empreendimento que “deixa tudo como é” (MARCUSE, 1967: 174).

O jornalista também não é médico, também precisa analisar a sociedade e, sem dúvida, não pode deixar as coisas como elas são. Jornalismo não pode ser pílulas de controle e não pode levar esse caráter terapêutico de controle para Língua Portuguesa. Como fugir disso? Começamos essa conclusão tentando fugir da aporia, escapar do bloqueio estrutural, temos que indicar onde essa mudança pode ser feita e como fazê-la.

Talvez seja possível achar essa mudança se sairmos do pensamento do jornalista apenas, e passássemos a pensar o público, o leitor. Esse caráter está cada vez mais esquecido dentro da Teoria e da prática do Jornalismo que, às vezes, preferem pensar em como legitimar as políticas mercadológicas da organização midiática do que pensar no seu próprio público. Talvez o jornalismo teria que buscar

o sujeito cognoscente, o sujeito que busca adquirir conhecimento, o sujeito que a teoria de Piaget nos ensinou a descobrir. O que quer isto dizer? O sujeito que conhecemos através da teoria de Piaget é um sujeito que procura ativamente compreender o mundo que o rodeia, e trata de resolver as interrogações que este mundo provoca. Não é um sujeito que espera que alguém que possui um conhecimento o transmita a ele, por um ato de benevolência. É um sujeito que aprende basicamente através de suas próprias ações sobre os objetos do mundo, e que constrói suas próprias categorias de pensamento ao mesmo tempo que organiza seu mundo (FERREIRO & TEBEROSKY, 1991: 26).

Não se trata de revisitar Descartes ou qualquer filósofo iluminista. É utilizar o esclarecimento de forma que retire o proletariado e não mais o burguês de sua condição. Significa não apenas ampliar as possibilidades de criticidade do público, pois isso pode ser feito apenas com uma abertura da produção jornalística (por exemplo, o jornalismo colaborativo ou o jornalismo cidadão de Herbert J. Gans). Significa encaixar, simultaneamente, (1) as chaves de leitura periféricas nas produções de pauta; (2) a busca de um diálogo, proporcionado pelo jornalismo, entre centros de poder e periferias; e (3) o jornalismo ser uma forma de desvelamento das contradições sociais.

Assim, precisamos nos focar no anti-público-leitor usual, ou seja, no “substrato de párias e estranhos, dos explorados e perseguidos de outras raças e de outras cores, os desempregados e os não-empregáveis. Eles existem fora do processo democrático; sua existência é a mais imediata e a mais real necessidade de pôr fim às condições e instituições intoleráveis” (MARCUSE, 1967: 235). A saída é um jornalismo “criador, ao exercício da compreensão crítica” da “prática, sem ter, contudo, a ilusão de ser uma alavanca da libertação, oferece uma contribuição a este processo” (FREIRE, 2006: 26).

 

Bibliografia

ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento (trad. G. Antonio de Almeida). S. Paulo: Jorge Zahar Editor, 1985.

BERBERIAN, A. Fonoaudiologia e Educação. S. Paulo: Plexus, 1995.

Dicionário da Língua portuguesa – Larousse Cultural. S. Paulo: N. Cultural, 1992.

ENGUITA, M. A face Oculta da Escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

FREIRE, P. Ação Cultural para a liberdade. S. Paulo: Paz e Terra, 2006.

LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. S. Paulo: Cortez, 1996.

LUKÁCS, G. História e Consciência de Classe (trad. R. Nascimento). S. Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARTINS FILHO, E. Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo. S. Paulo: O Estado de S. Paulo, 1997.

MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial (trad. G. Rebuá). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.

MARX, K. Os Pensadores (trad. E. Malagodi). S. Paulo: N. Cultural, 1999.

NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência (trad. A. C. Braga). S. Paulo: Escala, 2006.

NOBRE, M. A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2004.

ORWELL, G. 1984 (trad. W. Velloso). S. Paulo: Nacional, 1979.

PONTES, C. Leitura de notícias. Lisboa: Livros Horizontes, 2004.

WITTGENSTEIN, L. Os Pensadores (trad. J.C. Bruni). S. Paulo: N. Cultural, 1999.

[1] A partir de agora, manual de redação será utilizado para designar qualquer publicação desse tipo, enquanto Manual de Redação será utilizado como referência ao Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo.

[2] Há, claro, as instâncias sociais enraizadas na língua (visão defendida, principalmente, por aqueles que consideram a língua como um corpo vivo). No entanto, aqui tratamos de influências muito mais “golpistas” (ver as considerações sobre a Novilíngua em 1984 e na seção sobre ela nesse presente artigo) e de curto prazo do que aquelas que tradicionalmente estudadas (por exemplo, o caso de certos pronomes de tratamento em línguas orientais)

[3] O termo tradicionalmente utilizado por Adorno e Horkheimer é “sociedade administrada”. Utilizamos aqui o termo “capitalismo administrado” para nos referir ao estudo de Friedrich Pollock, essencial para a reflexão inserida na Dialética do Esclarecimento. Mais informações sobre essa relação pode ser encontrada em NOBRE 2004.

[4] O jornal O Estado de S. Paulo e/ou o Grupo Estado, seu mantenedor.

 

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Publicado em 12.12.07 - Última atualização: 13 dezembro, 2007.