Segundo Pimenta (1998), o Estado vem sofrendo um processo de reconfiguração,
que incide diretamente na sua administração e desemboca algumas tendências
atuais, tendo como causas de sua mutação, a globalização, o progresso da
tecnologia da informação e a emergência da sociedade civil organizada. Com
efeito, tais mudanças estão diretamente atreladas à consolidação das
estratégias neoliberais no Brasil, desde o início da década de 1990 até os
dias atuais.
Conseqüentemente, é de fundamental importância compreender criticamente esse
pressuposto básico referente à configuração do Estado Brasileiro, para que o
debate acerca das políticas públicas seja situado e fundamentado de modo a
problematizar o perfil que a educação profissional vem assumindo e o perfil
que ela realmente deveria assumir, mediante tal contexto. Pois,
A realidade impõe, assim desafios teórico-metodológicos para
a superação da crise dos paradigmas das ciências sociais. E no centro dessa
crise encontra-se o papel da educação na formação técnico-profissional,
justamente por ser um dos elementos mais importantes na definição da forma,
das possibilidades e das condições de inserção dos indivíduos nos espaços de
produção econômica – no trabalho –, como elemento crucial e irrevogável de
sua sobrevivência (TUPPY, 2002, p. 121).
Compreender a nova configuração do Estado, que aponta para as tendências
atuais da administração pública estatal, traz como objetivo maior
problematizar a educação profissional hoje, situada e relacionada com a
reforma a administrativa do Estado.
A nova configuração do papel do Estado é também designada por vários
autores, em consonância com seus respectivos posicionamentos
teórico-metodológicos, de crise do Estado-nação; enfraquecimento do
Estado-nação; morte do Estado-nação; crescente perda de autonomia relativa
do Estado-nação; Estado competitivo; Estado avaliador; Estado mínimo; etc
(AFONSO, 2001).
Desse modo, de acordo com Afonso (2001), torna-se válido destacar que essa
fase de transição/transformação do Estado é entendida num contexto no qual
ele vem perdendo progressivamente sua autonomia relativa, além de ser
fortemente influenciado pelos processos de globalização e
transnacionalização do capitalismo.
O Estado será aqui genericamente entendido como organização
política que, a partir de um determinado momento histórico, conquista,
afirma e mantém a soberania de um determinado território, aí exercendo,
entre outras, a função de regulação, coerção e controle social (todas essas
funções também são mutáveis e têm suas configurações específicas)
tornando-se, já na transição para a modernidade, gradualmente indispensáveis
ao funcionamento, expansão e consolidação do sistema econômico capitalista
(AFONSO, 2001, p. 17).
Mas nem por isso, o Estado deixa de ser essencialmente interventor em seu
relacionamento com a economia, de modo a incidir diretamente nas demais
esferas que constituem a sociedade.
Nessa perspectiva, fica perceptível que o Estado não se encontra numa
situação irreversível que caminha rumo ao seu fim, decretando a sua morte,
mas sim que ele tem sua autonomia relativa cada vez mais contestada pelo
fenômeno da globalização, transnacionalização, avanços tecnológicos
informacionais e sociedade civil emergente (AFONSO, 2001 E PIMENTA, 1998).
Assim, o Estado vivencia uma crise que não deve ser diretamente considerada
o anúncio de sua morte, pois,
Nesse sentido, e para além da realidade mundial que mostra
que ainda hoje muitos povos e nações lutam para a constituição do seu
próprio Estado soberano, sabemos que a chamada crise do Estado-nação é
também uma crise ideologicamente construída, na medida em que nem todos os
Estados nacionais são igualmente afectados pela globalização, e nem todos
cumprem (ou não estão destinados a cumprir) os mesmos papéis nos processos
de transnacionalização do capitalismo, é também uma crise ideologicamente
construída porque, dependendo das perspectivas teórico-conceptuais adoptadas,
embora o Estado permaneça como realidade política, são cada vez mais
retóricas do que reais as hipóteses de resistir à globalização econômica,
política e cultural quando se pensa neste mesmo Estado como principal ou
único mobilizador nacional de processos contra-hegemônicos (AFONSO, 2001, p.
19).
No que diz respeito à globalização, trata-se de “um estágio avançado do
processo histórico de internacionalização do próprio capitalismo” (BELLONI,
2001, p; 31). Mas é preciso certa cautela quando se refere ao termo
globalização. Nessa perspectiva, Afonso (2001, p. 23) acredita que há
globalizações e não globalização, haja vista que “(...) não é um fenômeno
unívoco, coerente e consensual”, ou seja, não é um fenômeno universal que
acontece do mesmo modo nas mais diferentes partes do planeta. Afinal, a
globalização hegemônica é um processo que se posiciona a favor do capital e
conseqüentemente atinge somente as partes do mundo que beneficiam a
lucratividade do capitalismo. Contrapondo-se a essa vertente mais recorrente
de globalização, Afonso (2001) assumindo a conotação ideológica que essa
categoria traz consigo, aponta que por outro lado é possível dialeticamente
perceber que há também a globalização contra-hegemônica, diretamente
vinculada com a emergência da sociedade civil organizada:
Quando se fala de globalização, também se pode ter em mente,
quer a expressão de movimentos sociais de resistência, quer as experiências
e iniciativas concretas de mudança social, muitas vezes iniciados localmente
a ampliados globalmente, em ambos os casos tendo como fundamento
perspectivas (econômicas, culturais, éticas e políticas) que se constituem
como propostas alternativas sobre a organização do mundo, sobre os direitos
dos seres humanos e sobre a preservação da vida na Terra (globalização
contra-hegemônica) (AFONSO, 2001, p. 23 e 24).
Além de analisar a globalização sob uma perspectiva mais crítica, é de
grande relevância ressaltar que ela traz consigo como característica
primordial, o progresso da tecnologia da informação.
A tecnologia em sua essência, desde seus primórdios, emergiu como um ramo do
conhecimento científico no qual a ciência se tornou força produtiva, no
intuito de sistematizar o processo em que o saber técnico era transmitido,
rompendo-se com as conservadoras práticas artesanais (BRYAN, s/d, p. 16). Já
as novas tecnologias informacionais em sua especificidade e seu respectivo
progresso, por um lado emergiram enquanto resposta do próprio capitalismo, à
crise estrutural a qual ele se aprofunda e por outro lado, contribuem para o
agravamento da precarização do “trabalho vivo”.
Se apelarmos à consideração de Braverman (1981) de que o
desenvolvimento tecnológico impõe ao trabalhador a degradação do trabalho e
do conhecimento à medida que, quanto maior o conteúdo científico incorporado
pelos processos e instrumentos de trabalho, menor é o acesso do trabalhador
a ele, podemos entender que basta, aos detentores dos meios de produção, que
os produtores tenham um conhecimento parcial para dar conta das necessidades
de produção e geração de riqueza (TUPPY, 2002, p. 119).
Diretamente relacionadas com o processo de reestruturação produtiva e com a
educação profissional, as novas tecnologias trazem consigo uma das grandes
contradições do capital: elas são pensadas para suprimir o trabalho vivo (ou
seja, os trabalhadores) em detrimento do trabalho morto
(as máquinas computadorizadas). Mas concomitantemente e contraditoriamente,
demandam a supervisão do “trabalho vivo” para que possam funcionar. Logo, a
operacionalização das novas tecnologias no sistema capitalista, ou seja, sua
inserção no processo de produção, ocorre por meio dos cursos
profissionalizantes (sejam eles técnicos, de aperfeiçoamento, etc). Por
conseguinte, num contexto em consonância com os ditames neoliberais, são
impostas aos indivíduos condições de que eles “invistam” em sua formação
profissional de curto prazo, para que estejam aptos para lidar com essas
novas tecnologias e conseqüentemente se encontrem diante da possibilidade de
conquistar, se manter ou até mesmo ascender no emprego em que se encontram.
“Assim ressaltando os fundamentos do individualismo, os neo-liberais
defendem a iniciativa individual como base da atividade econômica,
justificando o mercado como regulador da riqueza e da renda”
(HÖFLING, 2001, p. 6).
Fica notório, então, que a reforma a qual o Estado Brasileiro vem sofrendo,
ainda é recente e conseqüentemente não está totalmente posta e plenamente
configurada, de modo que a tendência dos países periféricos não é de
constituir seu Estado enquanto Estado mínimo, mas sim de um “(...) Estado
forte, legítimo, ágil, indutor e regulador do desenvolvimento econômico e da
justiça social” (PIMENTA, 1998, p. 182). Compartilhando dessa mesma
perspectiva, Chesnais aponta que:
A mundialização do capital e a pretensão do capital
financeiro de dominar o movimento do capital em sua totalidade não apagam a
existência dos Estados nacionais. Esses processos, no entanto, acentuam os
fatores de hierarquização entre os países, ao mesmo tempo que redesenham sua
configuração (CHESNAIS, 1996, p. 18).
Dentro desse complexo e contraditório quadro, passível de inúmeras
designações e reflexões, é visível a emergência de uma nova concepção de
Estado. Segundo Pimenta (1998), o novo papel do Estado somente pode ser
desempenhado se houver uma consonância entre três grandes dogmas
institucionais: o mercado (neoliberalismo); o Estado (estatismo) e a
comunidade (sociedade civil).
Entretanto, o neoliberalismo, que na verdade não constitui nada mais do que
uma nova roupagem do liberalismo clássico em termos mais conservadores,
prima pelo mercado em detrimento do Estado e pelo individual em detrimento
do coletivo.
As teses neoliberais, absorvendo o movimento e as
transformações da história do capitalismo, retomam as teses clássicas do
liberalismo e resumem na conhecida expressão "menos Estado e mais mercado"
sua concepção de Estado e de governo. Voltadas fundamentalmente para a
crítica às teses de Keynes (1883-1946), que inspiraram o Estado
de Bem-Estar Social, defendem enfaticamente as liberdades individuais,
criticam a intervenção estatal e elogiam as virtudes reguladoras do mercado.
Estas idéias ganharam força e visibilidade com a grande crise do capitalismo
na década de 1970, apresentadas como possíveis saídas para a mesma (HÖFLING,
2001, p. 6).
Por conseguinte, o ideário neoliberal traz em seu cerne a concorrência e a
competição, de modo que as liberdades econômicas, individuais e comerciais
são sinônimas de autonomia. Para Hayeck (1990), precursor do neoliberalismo,
os modos mais eficazes de coordenação do processo econômico são a
concorrência e o mecanismo do sistema de preços, pois ambos resultam do
acaso, além de serem expressões de liberdade, debate, opinião pública. O
sistema de preços é desempenhado dentro da concorrência (ou seja, há uma
interdependência na coexistência de ambos), de modo a transmitir informações
de modo impessoal, baseando-se na observação das oscilações (HAYECK, 1990).
Conseqüentemente, o Estado nesse contexto de superficialidade é
aparentemente mínimo e tem seu papel significativamente limitado. Estado
mínimo nesse sentido se torna sinônimo de Estado neoliberal, que tem como
característica básica a não intervenção no livre jogo de interesses do
mercado. Mas numa análise sociológica mais pormenorizada, fica visível que
competição e a concorrência acirram as desigualdades nas diversas dimensões
da sociedade, fomentando ainda mais a luta de classes. O Estado
aparentemente mínimo, na verdade continua sendo forte e interventor na
economia, a favor dos interesses da lógica do capital. Está posta a
contradição: um Estado aparentemente mínimo que na verdade desempenha o
papel de um Estado forte e regulador. Assim, nessa nova concepção de Estado,
(...) o setor público passa de produtor direto de bens e
serviços para indutor e regulador do desenvolvimento, através da ação de um
Estado ágil, inovador e democrático. As principais funções deste novo Estado
são a regulação, a representatividade política, a justiça e a solidariedade
(PIMENTA, 1998, p. 173 e 174).
Com os princípios neoliberais em voga, que colocam em xeque a proteção dos
direitos sociais e legais dos cidadãos, as desigualdades sociais estimuladas
pelos diferentes interesses econômicos de classe, são progressivamente
intensificadas. Em detrimento dessa situação, emerge então a sociedade civil
organizada, expressa por exemplo, pelos movimentos sociais. Afinal, a partir
do momento em que não são todos os privilegiados e assegurados pelas
políticas econômicas e sociais e pelo Estado, há uma efervescência social
fomentada pelos excluídos desse processo, no intuito de contestar e tentar
reverter sua situação de marginalização na qual eles se encontram. No
Brasil,
(...) a sociedade mostrou uma extraordinária capacidade de
responder ao ataque neoliberal organizado. Não nos esqueçamos de que nesta
década (1980), foram construídas as três grandes centrais de trabalhadores,
com diferenças programáticas e ideológicas, sem dúvida, mas num movimento
totalmente contrário aquilo que o pessimismo indicava como sendo rotineiro
da derrota da sociedade (OLIVEIRA, 1995, p. 25).
É preciso então atentar para o direcionamento que é dado à reforma do
Estado:
(...) a chamada reforma do Estado tem hoje uma amplitude
muito maior do que aquela que pode estar subentendida quando se fala em
simples modernização da administração, sugerida, neste caso, por expressões
como reinvenção do governo, acção administrativa orientada para os
resultados, new public management, entre outras (AFONSO, 2001, p. 24).
Ou seja, compreender criticamente a reforma do Estado implica analisar um
movimento que “vem de cima para baixo”, objetivando reeditar padrões
históricos da administração pública estatal, em novos padrões estruturais no
contexto do neoliberalismo.
Após analisar criticamente a nova configuração, ou reforma do estado em seu
sentido mais amplo, torna-se necessário compreender as tendências atuais da
administração pública estatal, para posteriormente perpassar pela
problematização da educação profissional delineada por este contexto.
De acordo com Pimenta (1998), o processo de reforma do Estado demanda
determinadas estratégias voltadas para o novo papel da administração pública
estatal. Pimenta (1998) sistematizou tais estratégias num nível macro, de
modo a abranger a maior parte das diretrizes próprias das reformas
administrativas, dispersas mundialmente em vários Estados, ressaltando que
“Os princípios gerais da atual reforma gerencial no Brasil são totalmente
compatíveis com a análise dos impactos das grandes tendências mundiais no
processo de transformação do Estado” (PIMENTA, 1998, p. 198).
Ora denominados campos de análise, ora denominadas estratégias ou princípios
para a reforma da administração pública estatal, Pimenta (1998) sistematizou
e apresentou oito itens: 1) desburocratização; 2) descentralização; 3)
transparência; 4) accountability; 5) ética; 6) profissionalismo; 7)
competitividade; 8) enfoque no cidadão. Essas estratégias, nesse sentido,
deixam de ser uma ação imbuída de restrição e de rigidez burocrática para
funcionarem como instrumento de “(...) alinhamento entre pessoas, processos,
estruturas para a construção do futuro desejado. É importante também
‘aprender a desaprender’, desapegando-se de práticas usuais, arriscando e
testando novos caminhos” (MARINI, 2005, p. 2).
Pimenta (1998) ressalta que as ações mais intensas da reforma estão
centradas na desburocratização, descentralização, transparência,
accountability e profissionalismo.
Muitos autores sintetizam a reforma gerencial do estado por meio da
articulação entre três estratégias impostas pelos organismos internacionais:
“(...) desregulamentação, descentralização/autonomia e privatização”
(FRIGOTTO, 1998, p. 223). Articuladas, essas estratégias afirmam a “nova era
do mercado”, em que países periféricos como o Brasil objetivam colocar em
prática um projeto hegemônico de longo prazo e de cunho conservador, que
visa “(...) estabilidade da moeda, da reestruturação produtiva e do ajuste
ao processo de globalização” (FRIGOTTO, 1998, p. 222).
A desregulamentação, favorável às leis do mercado, tenta suprimir ao máximo
o aparato legal que garante os direitos sociais dos cidadãos (FRIGOTTO,
1998). A descentralização e a autonomia transferem a responsabilidade
estatal de “(...) disputar no mercado a venda de seus produtos e serviços”,
para as esferas econômicas, sociais e educacionais (FRIGOTTO, 1998, p. 223).
E a privatização dos bens estatais fecha essa articulação, que traz consigo
o objetivo maior de diluir e esterilizar a “(...) possibilidade do Estado
fazer política econômica e social” (FRIGOTTO, 1998, p. 223).
A título meramente de delimitação da temática aqui abordada, o cerne da
discussão aqui desenvolvida é a estratégia do profissionalismo, diretamente
ligada à educação profissional e ao mundo do trabalho, sob a ótica dos
ditames neoliberais.
De acordo com Pimenta, o profissionalismo consiste em “(...) possuir
recursos humanos qualificados que possam desempenhar suas funções com
eficiência e qualidade” (PIMENTA, 1998, p. 182). No âmbito específico da
esfera pública estatal, essa estratégia se dá no seguinte sentido:
Para melhorar a profissionalização do servidor público, está
sendo criado o Programa Nacional de Capacitação, que é executado
descentralizadamente em cada ministério, mas seguindo diretrizes gerais
únicas que dão ênfase à melhoria da gestão. (...) Assim, os reforços de
profissionalização no serviço público são muito mais necessários em
capacitações específicas, mudança de valores culturais e motivação para o
trabalho (PIMENTA, 1998, p. 195 e 196).
Indo além dos recursos humanos necessários para a reforma da administração
pública estatal, torna-se importante agora, problematizar como esse recurso
é (ou não) qualificado, não somente no âmbito dos servidores públicos, mas
no âmbito da formação dos trabalhadores em geral. Para isso também se torna
necessário constatar como o trabalho está sendo pensado aos moldes dessa
estratégia do profissionalismo e quais os rumos que a educação profissional
vem tomando frente a esse contexto.
Na sociedade capitalista de classes, a educação não é considerada um bem
social, mas um processo diferenciado, comprado, que é de “qualidade” quando
fornecido aos indivíduos pertencentes à classe dominante/capitalista, e um
processo de “aprendizagem/qualificação” precarizado para a classe dos
dominados/subalternos/trabalhadores. Por conseguinte, a educação no contexto
do neoliberalismo é complexa, pois a ela é atribuído um poder que na verdade
ela não tem, ou seja, a formação de trabalhadores é visualizada uma dimensão
idealista.
Conseqüentemente, a educação profissional é vista sob a égide da lógica da
empregabilidade, que defende a lógica da razão instrumental. É exigido do
trabalhador que ele se “qualifique” não necessariamente para ser absorvido
pelo mercado de trabalho, mas para estar em condição de empregabilidade, ou
seja, para estar disponível no exército de reserva.
A educação profissional ou a formação de trabalhadores vista sob este ângulo
deve ser analisada por meio do pano de fundo contextualizado pelas mudanças
que o mundo do trabalho vem sofrendo, em detrimento da crise estrutural que
o capitalismo monopolista mergulhou desde meados de 1970 e se encontra
mergulhado até hoje.
A adequada compreensão do caráter e finalidades da educação
profissional remete ao exame das influências oriundas dos processos
dominantes no mundo do trabalho, em especial aqueles decorrentes da
reestruturação produtiva e da globalização, além daquelas oriundas da
história e da cultura individual e coletiva (BELLONI, 2001, p. 30).
Como afirma Harvey (1996), o capitalismo, sistema essencialmente complexo e
antagônico, cria e recria constantemente novas formas de exploração que
garantam sua existência e hegemonia em sua própria história mundial.
Segundo Lucena (2004), a configuração histórica do capitalismo, incide
diretamente e de modo negativo sobre os trabalhadores e sobre o Estado,
gerando, os tempos de destruição, marcados pelo caos, violência, crime e
desemprego. Sob a ótica capitalista, o emprego hoje, mesmo apesar de ser um
fator de negação da potencialidade humana, tornou-se objeto de luta dos
sujeitos sociais que aspiram pelo “direito” de serem explorados por um
trabalho precarizado e alienado e não pelo direito a melhores salários ou
conquistas sociais.
Além disso, o Estado no contexto do capitalismo deve estar articulado com a
formação de trabalhadores, pois
O sistema de acumulação capitalista engendra em seu
desenvolvimento problemas estruturais relativos à constituição e reprodução
permanente da força de trabalho e à socialização desta através do trabalho
assalariado. O Estado deve “responder” a estes problemas, ou em outros
termos, deve assegurar as condições materiais de reprodução da força de
trabalho – inclusive visando uma adequação quantitativa entre a força de
trabalho ativa e a força de trabalho passiva – e da reprodução da aceitação
desta condição (HÖFLING, 2001, p. 4).
O mundo do trabalho hoje é configurado pelas precarizadas relações e
condições de trabalho que (des)qualificam profissionalmente os trabalhadores
e os mantêm sob constante ameaça do desemprego para que eles não se engajem
na resistência operária. Além disso, os trabalhadores também são
prejudicados pela separação entre o saber e o fazer, entre a elaboração e a
execução – um produto histórico e social de caráter classista (LUCENA,
2004). O objetivo dos defensores do capital é de se apropriar até mesmo do
saber informal dos trabalhadores, também designado de “conhecimento tácito”,
que é adquirido nas experiências e vivências cotidianas ocorridas no local
de trabalho, para que tal conhecimento se volte contra os próprios
trabalhadores.
O chamado saber tácito, ou qualificação tácita, oriundo da
experiência dos trabalhadores individuais e do coletivo do trabalho, ganha
proeminência porque se reconhece sua formação para a resolução dos problemas
diários com que a produção se defronta. (...) o saber/ser, a capacidade de
mobilização dos conhecimentos (não apenas técnicos) para enfrentar as
questões problemáticas postas pela produção (FERRETTI, 2004, p. 415).
Dessa maneira, o movimento do capital caminha rumo às tendências que
precarizam cada vez mais o processo de trabalho. Enquanto que, um
posicionamento contra-hegemônico, favorável ao exercício da educação
essencialmente politécnica, traz em seu cerne a adição entre o saber fazer e
a capacitação teórica, que constituem as aquisições necessárias ou
pré-condições para uma educação profissional de qualidade.
A qualificação profissional, oposta à lógica do capital, deve ter como
princípio a concretização da cidadania, sendo sinônimo de qualidade de vida
e domínio de tecnologia em que os trabalhadores compreendem os limites na
produção sob a ótica da lucratividade, favorável ao capitalismo (LUCENA,
2004). É algo que vai muito além da capacitação profissional (simples
manuseio da máquina).
Já para Machado (2000), a qualificação profissional traz em sua definição
diversas idéias de formação profissional apropriadas por uma função técnica
especializada. O profissionalismo, estratégia pertencente às novas
tendências da administração estatal, diz respeito a um conhecimento
específico, a carreira, aos atributos formais (diplomas, certificados, etc).
Mas o trabalhador pode estar “qualificado” e não ser competente, pois a
competência profissional diz respeito à rela demonstração de domínio de
conhecimento e habilidades necessárias para o exercício de uma profissão; é
mais decisiva por determinar perfil, salário e carreira profissional
(MACHADO, 2000).
Retomando, sinteticamente, o contexto no qual o capitalismo monopolista (que
emergiu em meados de 1870, em que foram fundados os monopólios das
corporações enquanto estratégias de controle econômico e social e a
centralização dos capitais) estava em seu auge, antes de mergulhar na
profunda crise estrutural, foi notável que quanto mais ele se desenvolvia,
maior era a sua brutalidade para atingir seus fins, pois aumentava a
concorrência para o acesso a matérias-primas, como por exemplo, o petróleo.
Essa concorrência foi criada pela internacionalização do capital e gerou
muitos conflitos entre os países.
O capitalismo monopolista mergulhou numa crise estrutural em meados de 1970.
O contexto que antecedeu esse período, do Pós 2ª Guerra Mundial, foi marcado
pela vigência das políticas keynesianas, caracterizadas por um Estado de Bem
estar forte e interventor e pelo processo de reestruturação produtiva. A
organização da produção estava fundamentada nos princípios do
taylorismo/fordismo. O taylorismo trouxe inovações na gestão da produção e o
fordismo trouxe inovações e incrementações tecnológicas na produção. As
características mais marcantes desse modelo/paradigma de significante
expansão dizem respeito à produção e o consumo em larga escala,
intensificação do ritmo de trabalho e redução de tempo morto devido a
introdução da esteira (produção em série) e do cronômetro (controle dos
tempos). De acordo com Harvey (1996), o fordismo foi uma das expressões da
modernidade. Assim, a economia foi regulada aos moldes do consumo de massa e
acima de tudo e de todos deveriam prevalecer os interesses do capital.
Hobsbawm (1995) denomina esse período de “anos dourados”, devido à
estabilidade que ele apresenta, avançando na globalização e na
internacionalização da economia e do capital.
Mas os “anos dourados” começaram a expressar suas contradições: promoveram
um desenvolvimento desigual, que não atingiu e nem beneficiou a todos.
Principalmente os trabalhadores, que eram cada vez mais explorados ao vender
sua força de trabalho. A sociedade era e ainda é até hoje,
hierarquizada/fragmentada entre os que têm e os que não têm acesso ao
consumo. Essa desigualdade desembocou em pressões sociais exercidas por
grupos excluídos/minoritários/marginalizados, por meio dos movimentos
sociais. Outra conseqüência foi a diferenciação que ocorreu no sistema
educacional entre as escolas públicas e as escolas privadas (LUCENA, 2004).
Por conseguinte, o contexto de estabilidade do Pós 2ª Guerra Mundial foi
entrando em decadência e uma nova crise começou a se articular. Foi a crise
do capitalismo monopolista de 1970. Tornava-se cada vez mais evidente a
incapacidade do taylorismo/fordismo e do keynesianismo de conter as
contradições inerentes ao capitalismo, que foi se aprofundando numa
recessão. As dificuldades foram acentuadas pela rigidez dos mercados,
rigidez nos investimentos de capital fixo, pelo aumento da inflação e pelo
choque de petróleo. Caiu o nível de emprego, a economia mundial se tornou
incontrolável e os Estados nacionais tiveram o seu papel modificado.
Desencadeou-se então, uma série de respostas econômicas e políticas do
capitalismo de superar a crise que ele mesmo eclodiu: transnacionalização do
capital, as políticas neoliberais, as novas tendências da reforma do Estado
que reconfiguraram a administração pública estatal, a reorganização da
gestão, da produção e do trabalho sob os moldes do toyotismo ou acumulação
flexível, que incidiu diretamente na formação de trabalhadores.
O toyotismo penetra, mescla-se ou mesmo substitui o padrão
fordista dominante, em várias partes do capitalismo globalizado. Vivem-se
formas transitórias de produção, cujos desdobramentos são também agudos, no
que diz respeito aos direitos do trabalho. Estes são desregulamentados, são
flexibilizados, de modo a dotar o capital do instrumental necessário para
adequar-se a sua nova fase. Direitos e conquistas históricas dos
trabalhadores são substituídos e eliminados do mundo da produção (ANTUNES,
2002, p. 24).
Desse modo, para Lucena (2004), no discurso oficial capitalista, a educação
é um instrumento de grande poder para a promoção do crescimento econômico e
para a redução das desigualdades sociais. Mas na prática, as instituições
públicas de ensino são sucateadas. Portanto, a raiz do problema da educação
está na crescente desvinculação entre educação e trabalho e não na
subordinação da escola ao capital. Pois essa desvinculação gera uma
contradição insolúvel: democratização das oportunidades educacionais X
adequação ao mercado de trabalho.
É evidente que a educação profissional hoje é diretamente voltada apenas
para a adequação ao mercado de trabalho. Além disso, sua articulação com os
princípios neoliberais deixa claro que é o indivíduo/trabalhador o único
responsável por ele mesmo. Portanto, quem deve prover a “qualificação” é ele
mesmo e o capitalismo apenas aproveita dessa “qualificação” ao absorver nem
todos esses trabalhadores, por meio da exploração do processo de trabalho
dos mesmos.
É nessa perspectiva que Tuppy (2002) aponta que a nova LDB (2002) traz em
seus artigos referentes à educação profissional, uma desvinculação entre a
formação geral e a formação específica/profissional, subentendendo que o
Estado enfatiza o conhecimento técnico, que por sua vez é limitado,
fragmentado, parcial, em detrimento de um distanciamento do seu compromisso
com a formação geral, que por ser mais ampla abarca a esfera
teórico-científica, na qual o indivíduo seria consciente do processo de
trabalho ao qual ele tivesse inserido e “(...) da sua articulação com as
estruturas sociais vigentes” (TUPPY, 2002, p. 119).
Mas como afirma Kuenzer (1998), a melhor forma de lutar contra a hegemonia
do capitalismo não é negar a educação profissional aos
excluídos/marginalizados, mas sim contribuir
(...) na compreensão das dimensões pedagógicas das relações
sociais e produtivas, contribuindo para a construção de uma nova teoria
sobre a educação neta etapa de reestruturação do capitalismo, há que indagar
até que ponto ainda o mundo do trabalho tem sido seguido pelo necessário
retorno à escola (KUNZER, 1998, p. 71).
Até porque, como afirma Höfling (2001), o Estado deve transformar o trabalho
não assalariado em trabalho assalariado por meio da implementação de
políticas sociais, haja vista que é por meio da efetivação dessas políticas,
que a ele deve ser delegada a responsabilidade de qualificar constantemente
os trabalhadores para o mercado, além de procurar “(...) manter sob controle
parcelas da população não inseridas no processo produtivo” (HÖFLING, 2001,
p. 4).
Pensar na educação profissional viabilizada pela concretização de políticas
públicas efetivas, remete que ela seja concebida muito além dos limites da
escola enquanto centro de adestramento e treinamento profissional (BRYAN,
s/d). Afinal,
Numa sociedade extremamente desigual e heterogênea como a
brasileira, a política educacional deve desempenhar importante papel ao
mesmo tempo em relação à democratização da estrutura ocupacional que se
estabeleceu, e à formação do cidadão, do sujeito em termos mais
significativos do que torná-lo “competitivo frente à ordem mundial
globalizada” (HÖFLING, 2001, p. 9).
É nesse sentido que torna-se importante destacar a política educacional na
dimensão da educação profissional vista a partir de um viés crítico e
contra-hegemônico:
Ressaltando que seria equivocado pensar nos objetivos da
política educacional voltados estritamente para a qualificação da força de
trabalho conforme interesses de determinadas indústrias ou de determinadas
formas de emprego (HÖFLING, 2001, p. 5).
Nesse viés, partindo de uma perspectiva que caminha rumo a contestação do
trabalho no contexto do capitalismo, a politecnia visa unificar numa relação
de interdependência o trabalho intelectual e o trabalho manual. Assim o
ensino tecnológico combinado com o trabalho produtivo, vem reunificar o que
o capitalismo separou: o saber e o fazer, o trabalho intelectual e o
trabalho físico (BRYAN, s/d, p. 17). Nas palavras de Saviani (1989)
A noção de politecnia se encaminha na direção da superação da
dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre instrução
profissional e instrução geral. Na forma da sociedade moderna, da sociedade
capitalista, que generaliza as exigências do conhecimento sistematizado, o
fato é marcado por uma contradição: como se trata de uma sociedade baseada
na propriedade privada dos meios de produção, a maximização dos recursos
produtivos do homem é acionada, mas em benefício daquela parcela que detém a
propriedade dos meios de produção (SAVIANI, 1989, p. 13).
Assim, o trabalhador qualificado nos princípios da politecnia,
diferentemente do trabalhador “qualificado” pelas escolas criadas e mantidas
pelo Estado, deve ser um trabalhador multilateral, apto para desenvolver
qualquer função do processo produtivo, devido ao fato que ele terá domínio
dos fundamentos científicos que abarcam toda a diversidade das técnicas que
constituem o processo de trabalho (SAVIANI, 1989, p.17).
Portanto, essa breve reflexão, que teve como pano de fundo o a crise do
capitalismo monopolista e os princípios neoliberais, objetivou analisar a
configuração do estado no que diz respeito as suas atuais tendências e
estratégias, no intuito problematizar o seu impacto na educação
profissional, apontando como ela é hoje e como deveria ser. Por trás dessa
tentativa, está o desafio de compreender, ainda que minimamente, uma das
inúmeras problemáticas que a articulação entre educação e trabalho coloca no
debate intelectual fomentado na academia, haja visto que a discussão aqui
desenvolvida está longe de ser esgotada, mas justamente por isso, deve estar
sendo sempre pensada e repensada.
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