O mito: elemento gerador da tragédia
O motivo que nos levou a enfocar o tema deste trabalho, ou seja, os aspectos
que promovem a ruptura da tradição na tragédia grega Medéia, de
Eurípedes, foi a originalidade desse poeta, por meio da inovação das
características de seu texto, marcado pelas ações da personagem feminina.
Havia escritores, no século V a.C, que compunham dramas e sátiras nas quais
surgiam, direta ou indiretamente, situações típicas de suas sociedades.
Entre eles, Eurípedes compôs, em suas tragédias, um retrato crítico da
sociedade grega.
E por ser inovador e ter mostrado a porção
frágil e humana de seus protagonistas como foco, foi tido como exemplo para
os escritores romanos. Vários temas de suas peças foram retomados, como a
obra Medéia, na versão do romano Sêneca, a qual foi adaptada, na
contemporaneidade, pelos brasileiros Chico Buarque de Hollanda e Paulo
Pontes.
Gênero que surgiu no referido século, no mundo grego, a tragédia, segundo
Aristóteles, nasceu do ditirambo, hino em honra de Dioniso. Giordani (1972)
afirma que, paulatinamente, a tragédia buscou inspiração não apenas nas
lendas dionisíacas, mas nas aventuras de deuses e heróis, constituindo-se,
assim, seu repertório. Há que se levar em conta, também, a ação interior, os
movimentos da alma, os sentimentos e pensamentos que conduzem aos atos
materialmente vistos ou imaginados.
Para Grant (1994), a tragédia era “compacta” e “concisa”; o objetivo era
expressar os mais intensos pensamentos humanos, e tinha como função
analisar, geralmente num contexto mitológico, as relações entre os mortais e
as divindades, além de expor e avaliar a opinião dos próprios cidadãos
atenienses, que compunham a platéia. De todos os elementos qualitativos o
mais importante é o mito, que arranja sistematicamente as ações, as quais
Aristóteles assimila ao conceito contemporâneo de “fábula” ou “diegese”.
Para Aristóteles, o mito é o gerador da tragédia, seu elemento central; sem
ele, tal gênero não poderia existir. É ratificado como princípio e alma da
tragédia, vindo somente depois os caracteres, as personagens.
Tomando-se como base um dos princípios de Costa (1992), em relação às ações
da trama, Medéia é uma personagem que domina os acontecimentos e age
violentamente.
Segundo a análise de Guimarães (1972), Jasão era filho de Éson, herdeiro do
reino da Tessália, mas não ocupou o trono, pois Pélias, seu irmão, o
usurpou. Logo após o nascimento de Jasão, Pélias mandou matá-lo, mas ele
acabou salvo por seus pais, que o entregaram à guarda do centauro Quíron. O
centauro cuidou de Jasão até que completasse 20 anos. Nessa época Pélias
organizou uma festa, à qual Jasão compareceu.
Pélias reconheceu Jasão. Este, para chegar
à festa, precisou atravessar um rio a nado, perdendo uma de suas sandálias,
o que fez com que o tio se lembrasse de que ouvira de um oráculo a profecia
de que um estrangeiro descalço seria seu inimigo mortal.
Para evitar a perda do trono, Pélias enviou Jasão para a captura do Velocino
de Ouro, um tosão (pele de carneiro com pêlos) totalmente de ouro, feito de
um carneiro muito especial, que tinha a habilidade da fala e do vôo. Era um
presente que a deusa Néfele ganhara do deus Hermes. Néfale deu o carneiro a
seus filhos, Hele e Frixo, quando foram perseguidos por sua madrasta. Os
irmãos montaram no animal, que os levou, voando, para a Cólquida. Lá o
carneiro acabou sacrificado a Zeus, e sua pele (o velo) foi dada de presente
ao rei local, Eetes, com a promessa de que lhe traria prosperidade e poder.
O velo ficava sob a guarda poderosa de um dragão, num bosque.
Pélias tentou enganar Jasão dizendo que se ele conseguisse o velocino
receberia o trono, pois o rei acreditava que seria uma tarefa impossível e
mortal para o sobrinho. Jasão montou uma expedição à procura do tal velocino,
num navio construído por ele, denominado Argos. Acompanhado dos Argonautas
(52 heróis que se tornaram marinheiros para participar da aventura), seguiu
em direção à Cólquida. Tendo enfrentado a difícil e perigosa viagem,
chegaram ao distante país, mas o rei Eetes não permitiu a tomada do velocino,
impondo algumas condições à entrega do Tosão de Ouro.
Segundo Grimal (2000), Jasão teria de
domar dois touros tomados de fúria (que tinham patas de bronze e ateavam
fogo pelas ventas), colocá-los no arado, fazê-los lavrar um terreno virgem e
semear a terra com os dentes de dragão que
haviam sobrado da semeação de Cadmo.
Assim realizado, deveria matar os guerreiros gigantes que nasceriam dos
dentes semeados. Somente depois de determinadas façanhas poderia adquirir o
precioso velo, o qual estava dependurado num carvalho, guardado pelo dragão.
Logo após, Jasão deveria matá-lo.
Eetes apenas designou essa tarefa porque
estava confiante na morte certa de Jasão. Certamente, o herói não teria
sobrevivido à tarefa sem ser ajudado por Medéia, feiticeira famosa, filha do
rei Eetes, neta do sol, e sobrinha da feiticeira Circe. Por ter-se
apaixonada por Jasão resolve ajudá-lo: livra-o de todos os males e
auxilia-o a cumprir a tarefa por meio de sua feitiçaria.
Medéia deu a Jasão uma garrafinha com um
suco de ervas mágicas, o qual, depois de despejado sobre seu corpo,
torná-lo-ia invulnerável. Deu-lhe também uma pedra para lançar no meio dos
gigantes monstruosos que nasceriam dos dentes do dragão; assim, Jasão
poderia matar os poucos que sobrariam, pois os demais brigariam pela pedra.
A seguir, ela fez adormecer o dragão com seus encantamentos, e, então, Jasão
o matou.
Cumpridas todas as tarefas, preparam-se
para a partida. Entretanto, Eetes, furioso, resolve incendiar o navio Argos
e eliminar Jasão. Medéia, sabedora dos planos do pai, corre para informar o
amante. Apressando-se, fogem. O rei lança-se em perseguição aos fugitivos,
atinge o rio Fásis e envia seu filho Apsirto com a ordem de receber o
Velocino de Ouro e de trazer Medéia. Esta, loucamente apaixonada pelo herói,
não hesita: apodera-se do irmão, degola-o e despedaça seu corpo, jogando os
membros ao longo do litoral, certa de que o rei não iria adiante e
recolheria os tristes despojos a fim de dar ao filho uma sepultura digna, o
que faria atrasar, assim, a perseguição ao aventureiro. E é dessa maneira
que tudo acontece, ou seja, Eetes desiste da perseguição, ocupando-se em
recolher os restos mortais de Apsirto.
Jasão foge com Medéia. Passam pela corte
de Alcínoo, rei dos fenícios, o qual já havia recebido o pedido de Eetes
para mandar-lhe a filha de volta se os argonautas aportassem por lá. Alcínoo
prometeu atender ao pedido, mas somente se Medéia ainda fosse virgem.
Arete, mulher do rei, ciente dessa
condição, levou isso ao conhecimento de Medéia, e Jasão uniu-se à amada, sem
perda de tempo, na caverna de Mácris.
Retornando triunfante a Iolcos, na
Tessália, Jasão consagra seu navio a Netuno e entrega o Tosão a Pélias. Logo
soube o que ocorrera durante sua longa ausência. Seu pai fora perseguido por
Pélias, que se recusava, agora, a lhe entregar o trono, como antes havia
prometido.
Medéia encarrega-se da vingança: faz com que as próprias filhas matem o pai.
Entretanto, Jasão não conseguiu o trono, pois, temendo retaliações, foge com
Medéia para Corinto, e tem com ela dois filhos.
Eurípedes inicia sua tragédia a partir desse ponto, anos após o nascimento
dos filhos do casal. A partir daí cria a bela trama que acaba sendo
introduzida, nos dias de hoje, no mito de Medéia: Jasão abandona Medéia e os
filhos para casar-se com Creúsa, filha do rei Creonte. Porém Medéia, tendo
sido expulsa do país pelo rei, que temia o poder de sua magia, aproveita-se
do curto espaço de tempo que lhe resta ali e acaba por assassinar Creonte e
sua filha, e depois os próprios filhos, com a intenção de vingar-se de
Jasão.
No ponto em que termina a tragédia
encenada por Eurípedes, apenas há menção do que poderia ter acontecido com
Medéia. Spalding (1965) apresenta, a respeito, duas versões: na primeira,
após matar os filhos Medéia retorna para Cólquida, seu país de origem, e
reconcilia-se com a família. Ao morrer, desce aos Campos Elíseos, onde
desposou o grande Aquiles. Conforme a outra versão, após a morte dos filhos
dirige-se para Tebas e de lá passou para Atenas, esposou Egeu e dele teve um
filho chamado Medo. Algum tempo depois, querendo assegurar o trono para seu
filho, tentou envenenar Teseu, que procurava fazer-se reconhecer pelo pai.
Egeu o reconheceu antes que o crime fosse cometido. Uniram-se pai e filho;
Medéia, para evitar represália, montou num carro alado e desapareceu nos
ares, retornando para a Cólquida, onde se reconciliou com a família.
Para Kury (2001), Medéia foi bem recebida
por Egeu, em Atenas, mas tentou matar seu filho Medo, pelo mesmo motivo que
Spaldin (1965) menciona. Foge para a Ásia, onde Medo se tornou o herói
epônimo dos medos. Finalmente Medéia retornou à Cólquida, e depois de matar
Perses, que depusera Eetes, repôs o pai no trono.
Apesar das controvérsias, Medéia
tornou-se, em todas as versões, o protótipo da feiticeira.
A inovação de Eurípedes
Visando a uma melhor explanação do tema, cumpre passarmos em revista algumas
características do idealizador desta tragédia. Eurípedes, o autor da versão
mais antiga que conhecemos de Medéia, segundo Giordani (1972), era de
origem humilde. Nasceu em Salamina (ilha situada nas proximidades de
Atenas), provavelmente em 485 a.C.
De acordo com Jaeger (1995), Eurípedes é um lírico dos maiores,
incomparável, nas vozes líricas da realidade. Também é, por excelência, o
primeiro “psicólogo” da dramaturgia, pois é o descobridor da alma num
sentido completamente novo, o inquiridor do inquieto mundo dos sentimentos e
das paixões humanas:
Uma poesia assim era
pela primeira vez possível numa época em que o Homem aprendia a levantar o
véu destas coisas e a orientar-se no labirinto da psique, iluminado por uma
concepção que via nessas possessões demoníacas fenômenos necessários e
submetidos à lei da natureza humana (JAEGER, 1995, p. 408).
Giordani (1972) salienta que o dramaturgo
foi chamado “o filósofo de teatro”, o que se explica pelo fato de haver
ouvido os ensinamentos dos filósofos contemporâneos:
Não possui nem o
espírito religioso de Ésquilo, nem a serenidade de Sófocles e seu culto
quase exclusivo da arte. A seus olhos, uma tradição não é venerável por ser
antiga, e considera o passado, como o presente, sem ilusão nem complacência
(Giordani, 1972, p.308).
Eurípedes teve o mérito de introduzir a crítica na tragédia, um dos fortes
traços de ruptura em comparação à tradição de sua época, que tinha o mito
como elemento gerador, mas desprovido de razão e fortemente influenciado
pelos deuses. Sua obra caracteriza-se pela intervenção de um deus ex
machina.
Aliás, outro ponto a ser ressaltado no estilo de Eurípedes, citado por
Giordani (1972), é a crítica que atinge os deuses, os quais eram
considerados símbolos dos poderes naturais, e tornam-se, então, meras
ficções enganadoras. Conseqüentemente, um mundo que era ainda marcado pela
reverência aos deuses, por um pensamento muito religioso, passaria a se
sentir completamente abalado por esse novo modo de pensar e de entender o
cosmos.
Embora explorando temas antigos, Eurípedes
soube incutir-lhes um espírito novo, que aparece não somente por meio da
crítica, mas também no tom especial que confere às tragédias.
Dessa maneira, a psicologia de Eurípedes teria nascido na coincidência entre
a descoberta do mundo subjetivo e o conhecimento racional da realidade, que
naquele tempo se desenvolvia com a filosofia grega.
Sua poesia seria inconcebível sem a investigação científica. É a primeira
vez que, com despreocupado naturalismo, introduz-se no palco a loucura de
uma personagem que é afligida pelo conflito interno entre matar os próprios
filhos e abandonar a vingança ao marido traidor. Eurípedes crê que ao gênio
tudo é permitido, e assim abre novas possibilidades à tragédia, por meio da
representação de enfermidades da alma humana originadas na vida instintiva,
e que contribuem para a determinação do destino. Na pintura de
caracteres, o dramaturgo é simples e natural. Consegue evocar, em poucos
versos, determinadas formas e atitudes.
Eurípedes escreveu no mínimo 74 peças,
sendo 67 tragédias e 7 dramas satíricos. Certas fontes, entretanto,
atribuem-lhe 92 peças.
Outros dramaturgos também tiveram grande
ascensão dentro da tragédia grega, como já mencionamos. Sendo assim, os
gregos foram os pioneiros na criação do gênero dramático. As gerações
subseqüentes manifestaram sensível preferência por Eurípedes em comparação
com Ésquilo e com Sófocles. Dessa forma, das 74 peças que escreveu, as 19
mencionadas sobreviveram, enquanto das de Ésquilo somente 7 se conservaram,
e das 123 (ou mais) de Sófocles somente 7 chegaram aos dias atuais.
A literatura grega teve grande influência sobre a romana. Dentre os muitos
escritores que utilizaram o mito de Medéia, Sêneca foi um dos mais
importantes. E é no estilo dramático que o insere, tendo como modelo não só
essa tragédia, mas as demais de autoria de Eurípedes, o maior dos trágicos
helênicos.
Uma vez que temos como objetivo analisar a ruptura da tradição por meio da
personagem Medéia, faz-se também necessário entendermos o contexto
histórico e o papel da mulher na época em que a obra está inserida.
A mulher, na sociedade grega
Na antiga sociedade grega a mulher era um símbolo de fraqueza. Não podia ter
os mesmos direitos que os homens, nem tampouco realizar as mesmas funções.
Era considerada como um ser inferior.
Duby e Perrot (1990) evidenciam que a mulher grega não era tida como cidadã,
mas apenas filha de cidadão, título apenas atribuído ao homem.
Em complemento a esse conceito, Vernant
(1994) explica que a população das cidades gregas não era totalmente
constituída por cidadãos. Os cidadãos de pleno direito eram todos os homens
adultos livres (nos casos em que vigorava um regime democrático) ou só
alguns deles (escolhidos entre os membros de certas famílias, de acordo com
o censo ou tendo em conta esses dois requisitos), o que acontecia nos
regimes oligárquicos.
Nessas circunstâncias, as mulheres, as crianças e os escravos eram
considerados membros da família, mas só indiretamente é que eram membros da
cidade, por ser essa sua pátria; entretanto, não faziam parte do domínio
público, porque, segundo os homens, não faziam parte do gênero de coisas que
constituem a vida pública. Nem discutir temas polêmicos, política ou
filosofia era permitido às mulheres, pois seu lugar era dentro de casa, e
sua ocupação, o trabalho doméstico.
A irracionalidade da pretensão masculina
de monopolizar a inteligência política surge claramente nas obras de
Aristófanes. Discutir era algo exclusivo dos homens, e nada restava às
mulheres, que aprendiam, desde muito cedo, a tecer e a cozinhar. Sua
instrução não era proibida, mas também não era encorajada.
Por outro lado, havia também várias formas
de as mulheres aparecerem em público: em competições atléticas femininas, em
Esparta, e, na esfera ritual, as mulheres tinham uma posição semelhante à
dos homens.
O momento de realização da mulher era
apenas o destinado ao ofício do matrimônio. Sendo assim, no plano da
natureza sua função era produzir cidadãos, isto é, herdeiros varões dos
chefes de família que constituíam a cidade.
No plano da cultura as mulheres
funcionavam como penhor, numa transação entre sogro e genro. Vernant (1994)
explica essa transação, denominada engye e engyesis:
tratava-se de um acordo por meio do qual a tutela era transferida do
primeiro (sogro) para o segundo (genro). Dessa forma, o casamento era
concebido como o meio pelo qual o homem obteria descendentes. Casar era uma
forma de aquisição, uma forma de comércio.
Diante dessas considerações a respeito da condição da mulher grega urge,
agora, uma breve explanação sobre a estrutura da tragédia em foco.
A ruptura, em Medéia
Medéia possui um enredo bastante teatral. Seus diálogos são bem
elaborados. A personagem Medéia é marcada por um intenso sofrimento. Por ser
deixada por Jasão, sente-se traída e amargurada, possuída por uma grande
tristeza. Nesse sofrimento, estão embutidos os problemas de um tempo em que
predominavam a exclusão da mulher e o preconceito contra ela:
Ama:
Faz dos deuses
testemunhas de recompensa que recebe do marido e jaz sem alimento,
abandonando o corpo ao sofrimento, consumindo só; em pranto seus dias todos
desde que sofreu as injúrias do esposo; nem levanta os olhos, pois a face
vive pendida para o chão; como um rochedo, ou como as ondas do oceano, ela
está surda à voz de amigos, portadora de consolo (EURÍPEDES, 2001, p.
19-20).
Medéia:
Como sou infeliz! Que sofrimento o meu, desventurada! Ai de mim! Porque não
morro (EURÍPEDES, 2001, p. 23).
Sua dor é tão grande que não deixa de
pensar na própria morte, com vemos em:
“Já perdi de vez o amor à vida; penso
apenas em morrer” (EURÍPEDES, 2001, p.28). Costa (2003) também se refere a
esse sentimento evidenciado por Eurípedes:
Diante desses lamentos
e brados de dor, tentemos compreender o desespero desta personagem. Medéia é
uma mulher que se encontra em uma situação totalmente desfavorável. É uma
estranha, uma estrangeira em uma terra em que não é bem aceita, ainda mais
pelo fato de seu marido, com quem tivera dois filhos, estar casado com a
filha do rei. Sente-se humilhada, ultrajada pelo abandono do marido, pois
ele a deixara a fim de obter vantagens e prestígio, para casar-se com a
filha de Creonte, rei de Corinto (COSTA, 2003, p. 65).
Observamos que Medéia sofre o preconceito
do povo grego de Corinto. Até mesmo o coro formado pelas mulheres da cidade,
que se coloca em sua defesa, apenas a escuta; compadece-se dela, mas não se
compromete. Há piedade por Medéia, que é mulher como elas; entretanto, não
se lançam em luta.
Entretanto, não eram precisamente medéias as mulheres de Atenas.
Eram oprimidas demais, submetidas a uma
educação rígida, que as levava a acreditar na própria inferioridade e em seu
dever de submissão. Por isso Eurípedes escolhe a bárbara feiticeira Medéia
para mostrar a natureza elementar da mulher, livre das limitações da moral
grega. O senso crítico, aliás, é predominante nas falas da personagem, que
faz reflexões filosóficas sobre a posição social da mulher.
Em todo o texto de Eurípedes, a personagem é movida pelo ódio, pelo orgulho
ferido, por ter sido traída pelo homem a quem entregou sua confiança.
Arrepende-se de ter traído seu pai, de ter cometido crimes por pura devoção
a Jasão, que na primeira oportunidade a deixou, sem hesitar, para casar-se
com a filha do rei e tornar-se cidadão entre os gregos, e não mais
estrangeiro, conseguindo, assim, o respeito do povo.
Entretanto, é com a trama da morte dos filhos que Eurípedes faz sua
personagem relutar contra a própria ação maléfica. Lesky (1996) nos diz
sobre a figura “demoníaca” de Medéia, com base na intenção do infanticídio:
A princesa da Cólquida que Jasão tirou da
sua pátria e abandonou em terra estranha é, sobretudo a mulher que opõe à
ofensa a ao sofrimento o caráter desmedido de sua paixão. Por isso
esquecemos a feiticeira com seus truques mágicos, ainda que possam também
ser utilizados para ação, no devido lugar. Não como bruxa e sim como pessoa
humana é demoníaca esta Medéia, que é transformada por Eurípedes em
assassina dos próprios filhos (LESKY, 1996, p. 201).
Porém, por várias vezes, tomada de sentimento materno, ela sucumbe perante o
sofrimento vingativo que se apresenta como superior a ela, dividindo-se,
assim, entre as tendências de praticar ou não o infanticídio.
Ai de mim! Ai de mim!
Por que voltais os olhos tão expressivamente para mim, meus filhos? Porque
estais sorrindo para mim agora com este derradeiro olhar? Ai! Que farei?
Sinto faltar-me o ânimo, mulheres, vendo a face radiante deles... Não! Não
posso! Adeus, meus desígnos de há pouco! Levarei meus filhos para fora do
país comigo. Será que apenas para amargurar o pai vou desgraçá-los,
duplicando a minha dor? Isso não vou fazer! Adeus, meus planos... Não! Mas,
que sentimentos são estes? Vou tornar-me alvo de escárnio, deixando meus
inimigos impunes? Não! Tenho de ousar! A covardia abre-me a alma a
pensamentos vacilantes. Ide para dentro de casa, filhos meus (EURÍPEDES,
2001,p. 62-63).
Seus monólogos ilustram a luta que ela trava consigo mesma, até tomar a
decisão definitiva de matar as crianças. Por fim sai triunfante, vingada, e
ao mesmo tempo voltada para a dor de ter perdido os filhos. Com isso é
ilustrada a imagem da vitória na derrota.
Considerações finais
Diante do exposto, verificamos que Eurípedes ressalta o aspecto psicológico
da tragédia ao escrevê-la, representando os sofrimentos das mulheres de seu
tempo e incorporando-os à grandiosa plástica de representação, com o que se
faz completamente inovador. Coloca sua personagem como um ser crítico, que
busca liberdade e justiça para sua vida, e, sobretudo, exalta a inteligência
dessa mulher. Para conseguir tal resultado, ele sublinha na paixão quase
demoníaca de Medéia a dependência do mundo e do espaço social em que ela
vive.
Outro aspecto importante é a introdução do preconceito masculino, tão
evidente na sociedade da época. Em virtude de aspectos sociais, a antiga
sociedade clássica subtraiu de seu povo a influência da inteligência e da
sabedoria da mulher. Mesmo diante dessa fragilidade, havia homens
inovadores, como Eurípedes, críticos em relação àquilo que vivenciaram.
Apesar de alguns autores o considerarem como misógino, ele apresentou
Medéia também sob um olhar crítico a respeito da posição feminina, o que
o torna um precursor. Sua personagem representa a fortaleza da mulher, que
era reprimida e desvalorizada, resultado da ideologia patriarcal em que a
sociedade grega estava inserida.
Medéia
causou grande espanto entre os demais filósofos da época, pois, além de
imprimir uma ruptura com o conceito de tragédia, acaba também por produzir
uma ruptura com a própria construção desse gênero.
Para Eurípedes a trama da tragédia já não se
rege mais pela tradição, pela origem dos mitos, mas antes pela originalidade
individual, pela criação do próprio autor, o que resulta numa grande ruptura
em relação à própria concepção de tragédia. Ele não cria apenas os versos,
mas cria também a trama, algo extremamente ousado para a época.
O grande ponto de ruptura é evidenciado na salvação de sua personagem, que
só viria com o incremento do erro, como forma de reparação à sua honra,
aspecto completamente grandioso numa tragédia grega.
Esse célebre dramaturgo, usando de recursos estilísticos próprios, imprimiu
à sua obra uma profunda avaliação da condição social e psicológica da mulher
diante da sociedade em que viveu, tornando Medéia uma das mais complexas e
intrigantes personagens da literatura.
Referências bibliográficas
COSTA, E. B. A Poética de Aristóteles e a
Personagem Feminina na Tragédia Grega. Dissertação (Mestrado em Letras)
UNESP, São José do Rio Preto, 2003.
COSTA, L. M. A Poética de Aristóteles.
Mimese e Verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992. (Série Princípios).
DUBY, G. & PERROT, M. História das
Mulheres no Ocidente. Vol. I. Antiguidade. Trad. Alberto Couto, Maria
Manuela Marques da Silva, Maria Carvalho Torres, Maria Teresa Gonçalves e
Teresa Joaquina. Porto: Afrontamento, 1990.
EURÍPEDES. Medéia, As Hipólitas,
As Troianas. Trad. e estudo introdutivo Mário da Gama Kury. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
GIORDANI, M. C. Antiguidade Clássica I:
História da Grécia. Vozes: Petrópolis, 1972.
GRANT, M. História Resumida da
Civilização Clássica: Grécia e Roma. Trad. Luiz Alberto Monjardim. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
GRIMAL, P. Dicionário da Mitologia Grega
e Romana. Trad. Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
GUIMARÃES, R. Dicionário da Mitologia
Grega. São Paulo: Cultrix, 1972.
JAEGER, W. Paidéia: A Formação do Homem
Grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
KURY, M. G. Dicionário de Mitologia Grega
e Romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
LESKY, A. A Tragédia Grega. Trad. J.
Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Perspectiva,
1996.
SPALDING, T. O. Dicionário de Mitologia
Greco-Latina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.
VERNANT, J. P. O Homem Grego. Trad. Maria Jorge Vilar
de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1994.