Introdução
O que nos despertou o interesse pelo tema das transformações do capitalismo
contemporâneo, foi o desejo de entender como se processam as novas formas de
reprodução do modo de produção capitalista. Ao entender como um fenômeno se
reproduz é que podemos desvendar seus detalhes significativos e descobrir
qual sua essência, ou seja, quais os elementos que se conservam, com mínimas
alterações, com o passar do tempo. Descobrindo então, a essência do fenômeno
em questão – a produção e reprodução da vida sob os auspícios do sistema
capitalista – podemos avaliar num período de tempo apropriado quais foram as
mudanças substanciais em sua forma, em sua aparência. O período pelo qual
nos estendemos neste trabalho refere-se ao longo século XX, em especial, o
período que abrange o fim da Segunda Guerra Mundial (1945) até os dias
atuais, passando pela importante década de setenta. É a partir daí que
podemos utilizar o instrumental teórico marxista para interpretar, da forma
que pensamos correta, o que significou e qual a importância da transição
ocorrida no período em questão no que tange a passagem do regime de
acumulação fordista para o regime de acumulação flexível. Da mesma maneira,
podemos lançar as bases para um entendimento básico acerca de como o sistema
financeiro se desenvolveu até chegar a amplitude que hoje possui e qual seu
papel para a manutenção da acumulação capitalista. Independentemente,
portanto, de que a essência deste modo de produção tenha sido mantida
inalterada, é peremptório e decisivo apreendermos as relações existentes
entre o “novo capitalismo” com predominância financeira e o “velho
capitalismo” rígido e, ainda, apreendermos o que essas mudanças significam
para as pessoas. Para isso, precisamos daquilo que chamei de a
desfetichização da relação capitalista.
Para que possamos alcançar da melhor maneira este nosso objetivo, este texto
será divido em duas partes. A primeira conterá uma análise teórica do
pensamento marxiano no que se refere ao tema, generalizando, das finanças.
Ela servirá de base e nos guiará por todo decorrer do trabalho. Mostraremos
como o capital dinheiro a juros não é uma unidade autônoma em relação
ao processo produtivo e assim sendo, está diretamente ligado à produtividade
do trabalho e à própria apropriação do excedente do trabalho. Atentaremos
também para o papel importante que desempenha o crédito na produção
capitalista e as formas como vêm atuando no capitalismo contemporâneo.
Mostraremos como ele desenvolve ao máximo o capital como capital social e,
por este motivo, encaminha o modo de produção capitalista para uma mudança,
para uma transição. Na segunda parte, analisaremos o regime de acumulação
fordista e, dentro dele, que papel o Estado possuía e quais as conseqüências
deste regime para o trabalhador. Em seguida, apresentaremos motivos que
levaram à crise o Estado fordista-keynesiano e como este foi superado pelo
regime de acumulação flexível. Aqui o papel das finanças no desenvolvimento
capitalista passa a assumir um lugar nunca antes atingido o que remete a
interpretações fetichizadas de uma possível ‘nova economia’ onde a esfera
financeira estaria livre dos “empecilhos” materiais da produção. Poderemos
então, com o instrumental teórico marxista que dispomos, dar uma explicação
mais real e menos ideológica do que significa esse novo papel do mercado
financeiro no mundo capitalista. É evidente que não temos a pretensão de
esgotar este assunto que já foi e é extensamente teorizado e analisado. O
objetivo principal é produzir uma síntese introdutória sobre o tema de forma
a levantar novas questões e subsidiar futuras pesquisas. O mérito deste
artigo, pensamos, é apresentar a problemática e alguns autores que trataram
desta vasta e inesgotável temática de maneira condensada.
Parte primeira – O capitalismo para além das aparências
"O capital como pressuposição da produção, o capital, não como sai
desse processo mas como existe antes de nele entrar, é a oposição onde o
trabalho está em relação a ele como trabalho alheio e o próprio capital
está como propriedade alheia em relação ao trabalho" (Karl Marx)
A relação capitalista, quando analisada em sua aparência, revela-se de uma
forma completamente fetichizada. A aparência de um fenômeno – e no caso o
fenômeno da circulação do capital – revela apenas sua superfície e, como
escreve Marx, isola-o de suas conexões ocultas e de seus elos intermediários
mediadores. Como o que nos interessa neste momento são as relações, que
podemos chamar, financeiras, o capital a juros (capital dinheiro a juros)
constitui a forma mais pura do fetiche capitalista. A princípio forma-se
como um valor que se valoriza a si mesmo, não carregando “o estigma de seu
nascimento”; a própria relação social que imprime significado ao capital, dá
lugar à uma relação da coisa consigo mesma. À esta tentativa de apresentar o
capital como fonte autônoma de valor, Marx dá o nome de a economia vulgar.
Nela, a fonte do lucro passa a ser então irreconhecível e o processo
capitalista, isolado de suas mediações, “se reveste em um modo de existência
autônomo”. Se olharmos somente para o capital a juros veremos, portanto,
apenas uma forma na qual se apagam suas determinações e seus elementos reais
se tornam invisíveis. Nas palavras de Marx, na relação D – D’, “a figura do
capital se torna progressivamente mais alheada e carente de relacionamento
com sua essência íntima” (MARX, 1978, p. 272). Entretanto, o mais importante
a esclarecer é o que essa relação da coisa consigo mesma reflete: sob a
forma de valor autonomizado, o caráter do capital como opositivo ao trabalho
é totalmente “retocado e apagado”. Quando se deixa de perceber que o capital
é uma relação social entre classes antagônicas no que diz respeito à
propriedade dos meios de produção, e passa-se a adotar a noção fetichista de
que o capital é uma forma autônoma da produção, a própria luta contra o
capital se vê prejudicada. Essa é uma das críticas que faz Marx aos
socialistas vulgares: propor a luta contra o capital a juros, contra uma
suposta “esfera financeira” e não contra a produção capitalista efetiva, ou
seja, terminam por atacar apenas um dos resultados do processo capitalista
de produção. A negação do juro exige necessariamente a negação deste modo de
produção.
A formação do capital a juros sendo um produto necessário do desenvolvimento
do capital industrial e do próprio modo de produção capitalista, não deixa
que caiamos na ilusão de considerar aquele como uma forma autônoma. O juro é
nada mais do que uma parte constituinte do lucro que determinado capitalista
paga ao proprietário do capital que tomou emprestado. Fazendo parte então do
lucro capitalista, fica clara a ligação entre o juro e a produção de
mais-valia, fazendo, por sua vez, do capitalista emprestador não um mero
rentista autônomo, mas um rentista parasitário – altamente dependente da
produção contínua de mais-valia. Enfatizando esta conexão entre as diversas
formas de rendimento (juro e lucro), Marx afirma que não se trata, portanto,
de dois capitais diferentes, mas do mesmo capital, “que
funciona no processo, extrai lucro e se distribui entre dois capitalistas
diferentes”
(MARX, 1978, p. 276). De forma complementar, Marx acrescenta que os juros
constituem o fruto do capital enquanto este não “trabalha”, e o
lucro, o fruto do mesmo capital no “trabalho”, em funcionamento. Os
juros equivalem à mais-valia devida ao "capital como capital" (em contraste
com o "capital em função"), ou seja, à condição de ser mero proprietário do
capital. No entanto, este capital só revelará suas qualidades no processo de
produção. E quais são essas qualidades? Ao produzir-se, o capital produz
também a relação de produção especificamente capitalista e é somente daí que
decorre a reprodução do sistema como um todo.
O fetiche nos faz ver o juro, nas palavras de Marx, como um “rebento do
capital”, como uma forma que cabe ao capital enquanto tal. A própria
economia vulgar, que tanto a obra marxiana criticou, transforma o lucro
em trabalho do capitalista, ao invés de transformá-lo na apropriação do
trabalho acrescido do trabalhador sem oferecer em contrapartida um
equivalente. Entretanto, sabemos que esse juro, aparentemente tão
inofensivo, é a “propriedade do capital como meio de apropriar os produtos
do trabalho alheio, como domínio sobre o trabalho alheio” (MARX, 1978, p.
292). E veremos, na segunda parte deste trabalho, como esse domínio sobre o
trabalho alheio é fundamental para sustentar a chamada “bolha financeira”
estadunidense e, da mesma maneira, que uma possível “esfera financeira” não
está desligada/descolada da “esfera produtiva”.
O fetiche do capital é ainda mais fortalecido quando passamos a analisar o
papel do crédito na produção capitalista. Este, resultado necessário do
desenvolvimento capitalista, nasce junto com a formação dos primeiros bancos
e principalmente contra o poder do capital usurário. A própria criação dos
bancos é uma reação contra o monopólio que os usurários detinham sob o
crédito e contra as exorbitantes taxas de juros que cobravam. Os bancos
então davam chance para que aqueles comerciantes que não encontraram bons
mercados para suas mercadorias pudessem depositá-las em seu interior. Esses
comerciantes receberiam crédito sobre essas mercadorias imobilizadas para
que pudessem manter seus empregados ocupados e dar continuidade aos seus
negócios até que encontrassem mercados que lhes fossem favoráveis. Porém,
rapidamente os bancos e o crédito adquiriram outras funções. Além de ser
fundamental para o nivelamento da taxa de lucro, para o decréscimo dos
custos de circulação e para a formação das sociedades por ações, o sistema
de crédito faz com que o capital assuma a forma social. De acordo com Marx,
"só o desenvolvimento do sistema de crédito e do sistema bancário promove e
efetiva por inteiro esse caráter social do capital" (MARX, 1980, p. 695).
Isso significa dizer que o capital segue rumo a sua abolição como
propriedade privada dentro dos limites do próprio capitalismo. Ou seja,
através do sistema de ações ou do próprio crédito, o capitalista individual
pode dispor de todo excedente social, ou ainda, oferece ao capitalista
particular disposição sobre o capital alheio, a propriedade alheia e,
lógico, o trabalho alheio. Aqui o capitalismo pode enfim se livrar das
“ataduras” do sistema familiar e individual para chegar à corporação e ao
sistema social ligando aqueles que possuem excedentes com aqueles que dele
necessitam. O capitalista passa então a transacionar, por intermédio do
papel centralizador de excedentes que possui o crédito e os modernos fundos
de pensão e de investimento, não com sua propriedade, mas com a propriedade
social. Através da propriedade privada, seu proprietário (jurídico) se
apropria por meio de juros e tributação
de qualquer propriedade.
O sistema de crédito deve ser encarado ainda como um produto dos próprios
esforços do capital na tentativa de resolver as contradições internas do
capitalismo. Quando a acumulação ou a poupança de todas as classes retiram a
riqueza de circulação, o sistema de crédito se transforma numa necessidade.
Este, proporciona maior eficiência à circulação e diminui custos de
transação. Ou seja, no exemplo de Harvey, “eu posso converter em capital os
dez dólares que tenho em meu bolso ao depositá-los num banco onde ele poderá
ser emprestado imediatamente como capital em troca de um juro” (HARVEY,
1990, p. 257-258). Assim, a acumulação pode seguir livre e sempre
ampliadamente, ao invés de ter que esperar até que um capitalista individual
tenha guardado capital bastante para investir na produção de mais valor. A
acumulação estende o crédito e o próprio crédito tem a função de estender a
acumulação, conformando o crédito como peça chave do desenvolvimento
capitalista. Qual aos antigos usurários, os “capitalistas de dinheiro”
adquirem um poder fundamental para dar seguimento à produção capitalista;
adquirem um poder de dominar a determinação da taxa de juros, de subordinar
os capitalistas produtivos, de controlar as datas de pagamento dos juros
sobre o capital emprestado e, dessa maneira, acabam controlando
indiretamente a intensidade da produção de mais-valia. Acaba-se formando uma
divisão entre os “donos do dinheiro” e, por conseqüência, donos da produção
social, e os capitalistas “escravos de seu capital”, escravos da produção. O
que nos leva a propor que quanto maior for a taxa de juros cobrada maior
deve ser a exploração, de forma que os lucros possam ser grandes o
suficiente para não se abalarem com a dedução que significa o pagamento
destes juros.
Legitima-se, dessa forma, o poder daquele que possuir dinheiro, dispor do
dinheiro social; legitima-se em proporções muito maiores, o ato, bem
observado por Lutero, de assar maçãs na lareira enquanto deixa-se o capital
render – sugar excedente do trabalho – em diversas formas e em diversos
lugares. Contudo, cabe notar que não se sabe de onde vem a riqueza que se
acumula e essa é uma característica do capitalismo em seu explicitar
moderno: quebra a relação pessoal/privada e faz da riqueza uma riqueza
social, e minha acumulação, meu empréstimo é a riqueza de toda a sociedade.
Com qualquer riqueza em minhas mãos, eu me torno sócio da sociedade. Posso,
sem dar uma contrapartida, apropriar-me da riqueza social. De uma forma
quase fantasiosa, deixo de precisar vender minha força de trabalho para
sobreviver, bastando comprar títulos ou ações. O sistema de crédito
portanto, acelera a produção capitalista; acelera a exploração do trabalho
alheio, “levando a um sistema puro e gigantesco de especulação e jogo, e
limita cada vez mais o número dos poucos que exploram a riqueza social”
(MARX, 1980, p. 510). Conclui-se portanto, que assim como o capital usurário
de ontem cumpriu seu papel revolucionário arruinando os ricos proprietários
de terra, esgotando os pequenos produtores e, enfim, servindo para acabar
com todas as formas de produção em que o produtor ainda aparece como
proprietário dos meios de produção, o capital a juros e o sistema de crédito
de hoje, ao centralizar a produção e o valor excedente, funcionam como
favorecedores da degeneração do modo de produção capitalista e, por isso,
também atuam com papel revolucionário na construção de um novo modo de
produção.
Parte segunda – As transformações capitalistas no mundo moderno
O entendimento da história recente do mundo, especialmente o mundo
ocidental, alicerçado pelo modo capitalista de produção, pode ser obtido
mediante o entendimento da transição sócio-político-econômica ocorrida no
decorrer do século XX. Essa transição se refere imediatamente à mudança de
configuração do modo de acumulação hegemônico no sistema capitalista.
Considerando que um sistema particular de acumulação pode existir somente
porque seu esquema de reprodução é condizente com suas necessidades
essenciais, a quebra de uma dessas possibilidades de reprodução conduz
invariavelmente à crise deste sistema forçando a iminência de uma transição
– mesmo que seja uma transição por dentro da ordem. Foi exatamente isso que
ocorreu no período iniciado pela década de setenta do século XX. O regime de
acumulação iniciado na década de trinta deste século respondia aos anseios
do que se costumou denominar fordismo-keynesiano. Esse regime, que teve seu
ápice no período do pós-guerra, se caracteriza sobretudo pela forte
intervenção estatal com o objetivo de garantir, mediante gastos públicos, o
Estado de bem estar social. Por outro lado, o fordismo foi responsável por
revolucionar o processo de trabalho estabelecendo a rigidez da linha de
produção com jornadas fixas de oito horas diárias e uma remuneração
diferenciada. No entanto, afirma Harvey, “os novos sistemas de produção e de
marketing, caracterizados por processos de trabalho e mercados mais
flexíveis, de mobilidade geográfica e de rápidas mudanças práticas de
consumo” (HARVEY, 2002, p. 119), dão luz ao então novo regime de acumulação
– a acumulação flexível, marcada pela crescente participação das formas
financeiras de posse da riqueza.
É sobre essas transformações de nossa sociedade que nos debruçaremos nesta
parte de nosso presente trabalho e, desde já, defendemos a idéia de que
estas transformações não fizeram parte de uma evolução natural do
capitalismo, mas sim, foram produzidas artificialmente por intermédio de
relações de poder, sendo altamente necessárias para a reprodução do sistema.
O capitalismo contemporâneo atinge um grau elevadíssimo de desenvolvimento
e, do mesmo modo, atinge a consolidação de sua forma mais pura de
existência. A acumulação capitalista que aparece em sua forma mais pura, em
seu processo de circulação, como a relação D - D’ livre, assim, dos
“empecilhos” de suas formas materiais (D - M - D’), deixa transparecer uma
relação de auto-reprodução do capital. De acordo com Belluzzo, esse processo
obscuro do capital “não se trata de uma deformação, mas do aperfeiçoamento
de sua substância, na medida em que o dinheiro é suposto e o resultado do
processo de acumulação de riqueza no capitalismo” (BELLUZZO, 2000, p. 116).
Isso demonstra o real motivo da produção capitalista: longe de ser a
produção de mercadorias, ela é a busca pela valorização do valor antecipado
pelo capitalista. O capitalista inteligente não produz por amor à
mercadoria. Como disse James Roderick, presidente da US Steel, em 1979, “a
tarefa da administração é fazer dinheiro, e não aço” (Citado em HARVEY,
2002, p. 150).
A consolidação do fordismo como regime de acumulação predominante se deu no
início da década de 30 do século XX, logo após a quebra da bolsa de Nova
York em 1929. O ápice deste regime pode ser considerado como o período do
pós-guerra (1945) e significou mudanças profundas na estrutura social
daquele tempo. De acordo com Harvey (2002), o fordismo deve ser visto menos
como um mero sistema de produção em massa do que como um modo de vida total.
Isso porque, a maneira como funcionava resultou na renovação de toda
estética e cultura moderna. O fordismo se caracterizou por tornar o mundo,
em todas as esferas, um mundo da funcionalidade e da eficiência. A produção
em massa então instaurada significaria o consumo de massa, uma nova relação
com a força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do
trabalho, enfim, um novo tipo de sociedade altamente racionalizada e
cronometrada. O novo método de trabalho é
inseparável de uma nova forma de viver, de pensar, de sentir e de produzir a
vida. No que se refere especialmente ao trabalhador, o fordismo inaugurou os
tempos modernos e significou a familiarização do trabalhador com longas
horas de trabalho rotinizado, exigindo pouca habilidade por sua parte e
retirando-lhe qualquer forma de controle sobre a produção, desde o que se
produz e em que ritmo se produz. Todavia, foi inovador no sentido de “dar
aos trabalhadores renda e tempo de lazer suficientes para que consumissem os
produtos produzidos em massa que as corporações estavam por fabricar em
quantidades cada vez maiores” (HARVEY, 2002, p. 122). No que tange ao
Estado, sérias mudanças foram inevitáveis para que o capitalismo pudesse
seguir seu caminho de acumulação permanente. Isto é, a continuação do Estado
de bem estar social somente poderia ser viável do ponto de vista fiscal, se
contasse com a contínua aceleração da produtividade do trabalho – daí ser
peremptória a inovação tecnológica e a intervenção estatal. O Estado,
segundo Belluzzo (2000), impedia flutuações bruscas do nível de atividades e
garantia a segurança interna diante das incertezas inerentes à lógica do
mercado, reduzindo assim a influência dos condicionantes externos sobre as
políticas macroeconômicas domésticas. O fordismo-keynesiano, dessa forma,
foi vital para organizar arranjos sócio-político institucionais que pudessem
sustentar as condições necessárias da reprodução do sistema. Na metáfora de
Harvey (2002), foi preciso ajustar as velas em certos aspectos para seguir
com mais suavidade a trilha da lucratividade segura. O fato é que o
capitalismo não sobreviveria sem passar pelas reformas pelas quais passou
desde sua formação, mesmo que embrionária, no século XVI.
É bem sabido, por sua vez, que o sistema fordista foi criado nos EUA e tem
seu nome devido ao empresário do setor automobilístico Henry Ford. Este
país, que foi o grande beneficiário da Segunda Guerra Mundial, atingiu um
forte poderio econômico-financeiro em 1944 com o acordo de Bretton Woods.
Este transformou o dólar na moeda-reserva mundial e vinculou com firmeza o
desenvolvimento econômico do mundo à política fiscal e monetária
estadunidense. De acordo com Harvey (2002), os EUA passaram a agir como
banqueiros do mundo em troca de uma abertura dos mercados de capital e de
mercadorias ao poder das grandes corporações. Esse, a centralização dos
capitais de todo o mundo, foi um passo fundamental para alimentar sua
posterior dominância financeira. Utilizando-se, portanto, de sua força
político econômica o sistema fordista de produção conseguiu elevar, pelo
menos nos países de capitalismo avançado, os padrões de vida da população.
Para os “insatisfeitos do Terceiro Mundo”, ele promoveu sem grandes exceções
o arrasamento de culturas locais e muita violência em troca de benefícios
mínimos a não ser para uma elite “nacional” que sempre colaborou e se
beneficiou com o contato imperialista. É aqui que retornamos à questão da
transição de que falávamos anteriormente. As condições de reprodução do
capitalismo fordista de então encontravam-se cada vez mais difíceis de se
realizar em parte devido a rigidez do sistema e, segundo Harvey (2002), à
formação do mercado de eurodólar e a contração do crédito no período de
1966-1967. Esses foram sinais da redução do poder norte-americano de
regulamentação do sistema financeiro internacional e da inviabilidade
reprodutiva do sistema que se formava com a manutenção do Estado de bem
estar social. O fordismo e keynesianismo não podiam mais conter as crises
inerentes ao capitalismo, fazendo-se necessárias diversas reformas dentro
deste sistema. As características políticas do novo capitalismo passaram a
ser então, a redução dos gastos públicos, os cortes de salários reais e a
austeridade nas políticas fiscal e monetária. O papel da desregulamentação,
portanto, significou a “progressiva liberalização das transações registradas
na conta de capital e o afrouxamento dos controles sobre a atividade dos
bancos” (BELLUZZO, 2000, p. 107). Por outro lado, considerando que o
capitalismo enfrenta periodicamente o problema da superacumulação, Harvey
(2002) afirma que este problema, durante o fordismo, foi superado com o
deslocamento temporal e espacial da produção no período de expansão do
pós-guerra. Por conseguinte, encontra-se aqui outro fator da crise deste
regime de acumulação: quando se esgotaram as opções para tais deslocamentos,
o fordismo entrou em crise por não poder lidar com a superacumulação, o que
levou à transição para o novo regime de acumulação.
Um novo consenso foi formado e imposto aos países capitalistas, isto é, o
consenso de que precisava-se de uma reestruturação econômica e um
reajustamento social e político. Contando com a “compressão do espaço-tempo”
– resultado da comunicação via satélite e de meios de transporte mais
eficientes –, a acumulação flexível pode se consolidar, em confronto direto
com a rigidez do fordismo, como novo regime de acumulação. Aquela se apóia
na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos
produtos e padrões de consumo. De acordo com Harvey, “caracteriza-se pelo
surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de
fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas
altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e
organizacional” (HARVEY, 2002, p. 140). No que concerne especificamente ao
trabalho e ao mercado de trabalho é necessário fazer algumas observações
apoiado no pensamento de Sennett (2005).
A flexibilidade, dizem os precursores deste regime, é fundamental para dar
às pessoas maior liberdade de moldar suas vidas. Mas como moldar uma vida,
como manter o caráter, num mundo de curto prazo, num capitalismo flexível
onde tudo se desfaz e refaz? Como ficamos em meio a esta ciranda? A economia
moderna, do novo capitalismo, deixa a vida emocional e interior, à deriva. E
ao trabalho flexível moderno, Sennett
(2005) dá a denominação de ilegível, ou seja, é aquilo que não se
entende. Sendo o trabalho e as relações sociais flexíveis, isto é, de curto
prazo e instáveis, a incerteza e a angústia são os sentimentos que rodeiam a
todo o momento o dia-a-dia do trabalhador. O pior é que esta instabilidade
pretende ser normal, ou ainda, é pretendido que o empresário de
Schumpeter se torne o homem comum ideal. Se a rotina do fordismo de
ontem engessa os indivíduos na rigidez e na hierarquia, a flexibilidade do
novo regime de hoje dobra-os e utiliza-se de toda capacidade que têm de se
metamorfosear, de perder sua personalidade (caráter) para atender aos rumos
correntes. A flexibilização, escreve Sennett, é apenas uma nova trama de
controle. Dentro da aparência de desburocratização e de controle do tempo
por parte do indivíduo, há em essência uma troca na forma de submissão ao
poder. Sob a nova aparência do líder e não mais do patrão hierarquizado, o
controle sobre o processo de trabalho continua nas mãos das “elites no
poder”. Dessa forma, a liberdade continua sendo um sonho distante e
inalcançável dentro de um capitalismo moderno que está sempre reinventando
as instituições, que tem a necessidade de mudar tudo para deixar tudo igual.
A flexibilização, igualmente, significa enfraquecimento do poder sindical.
Com a redução dos empregos tradicionais e regulares em favor do crescente
uso do trabalho em tempo parcial, temporário, subcontratado e terceirizado,
acaba-se reduzindo o número de trabalhadores “centrais” e emprega-se uma
força de trabalho com elevado grau de rotatividade. Cabe ainda notar que às
mudanças no regime de trabalho seguiram-se as alterações significativas na
luta trabalhista, pois na medida em que os Estados tinham que se tornar mais
“empreendedores” e garantir um clima favorável aos negócios internacionais,
o movimento trabalhista organizado e diversos movimentos sociais tinham que
ser contidos. A própria flexibilização salarial, junto com a tentativa de
corte de direitos adquiridos, é elemento constitutivo da alta da taxa de
exploração. Esta é altamente necessária para satisfazer as exigências por
acréscimo na rentabilidade, ou seja, “não podia e não pode haver satisfação
das expectativas dos investidores sem que haja um salto nas formas de
exploração do trabalho” (CHESNAIS, 2003, p. 51). Essas mudanças foram,
portanto, fundamentais para que os capitalistas pudessem seguir acumulando
com margens de lucros satisfatórias e é claro que a centralização do capital
acompanhou esses processos. A “desregulamentação” econômica, marca dessa
transição, significou o aumento da monopolização, das incorporações e fusões
em vários setores e, para um bom observador, sabe-se que essa centralização
é um forte sinal da degeneração do modo capitalista de produção. E o que
quer dizer essa degeneração? Significa a produção e reprodução da vida da
grande maioria das pessoas acontecendo, quando é possível, em condições cada
vez mais difíceis. O capitalismo, como modo de produção, não segue
naturalmente para seu fim, mas dá sinais de seu esgotamento e, dessa forma,
dá margem para a construção do novo.
O acesso à informação e o domínio do conhecimento científico técnico
(fazendo com que universidades se tornem filiais de grandes empresas),
tornaram-se os dois motores do novo capitalismo. Contudo, podemos indicar
como uma das mudanças mais importantes desse capitalismo flexível, o
fortalecimento daquilo que se costumou chamar de o capital financeiro – o
capital que tem o dinheiro como mercadoria. Adotando como necessidade
explicativa uma dicotomia entre o capital financeiro e o industrial, pesam,
de forma negativa, sobre as atividades produtivas as restrições de tempo e
espaço, o que dá muito mais força ao setor financeiro. A fetichização do
mundo econômico completava-se então com a idéia de que se poderia fortificar
as transações financeiras e motivar a obtenção de lucros estritamente
financeiros sem dar importância à produção real – retornaremos ainda à
questão do fetiche. Foi neste período no qual estamos tratando que se deu,
segundo Harvey (2002), pela primeira vez a criação de um único mercado
mundial de dinheiro e de crédito. Assim a desregulamentação nas finanças – a
abolição completa do Estado keynesiano – tornou-se um requisito para a
sobrevivência de todo centro financeiro mundial. Entretanto, o mesmo Harvey
acrescenta que a sobrevivência do capitalismo depende de que se consiga
algum tipo de equilíbrio de poder entre os interesses industriais e
financeiros, deixando claro que “o poder do capital financeiro (como quer
que este bloco de poder esteja institucionalizado e definido) é
necessariamente um poder restringido, que nunca pode ser ilimitado ou
totalmente hegemônico” (HARVEY, 1990, p. 302).
Em relação à vida em sociedade como um todo poderemos verificar que os
valores sólidos que correspondiam às exigências do fordismo, foram
suplantados por valores que acentuam o fugidio, o efêmero, o fugaz e o
contingente, dando ao “individualismo exacerbado” uma posição de condição
necessária, embora não suficiente, da transição do fordismo para a
acumulação flexível (HARVEY, 2002). Aliado a isso, a celebração da
“mercadificação” de formas culturais, implica seriamente numa mudança
cultural em geral, correspondendo (1) aos novos anseios do regime de
acumulação flexível e (2) provando, como afirma Harvey, que o capitalismo é
uma força constantemente revolucionária capaz de reformular-se de acordo com
novas necessidades materiais. Todavia, apesar de todas essas mudanças, o
capitalismo conserva sua base intacta. Sua essência imutável e
inquebrantável, a saber, a relação entre proprietários e não proprietários
dos meios de produção, não se modificou. Relação esta sob a qual o
capitalismo se erigiu e que continua a reproduzir para que consiga se
manter. A produção capitalista, e aqui retornamos ao pensamento marxiano,
independentemente da forma em que se realiza (sob regime rígido ou
flexível), nunca deixou e nunca deixará de ser a produção e reprodução das
relações de produção especificamente capitalistas. A produção capitalista,
portanto, é a reprodução ampliada, por um lado, da classe trabalhadora não
proprietária e, por outro lado, da classe capitalista proprietária dos meios
de produção. Em outras palavras, é a reprodução ampliada do mundo em que
vivemos: o mundo da fome, da ignorância, da violência, da miséria, da
degradação da humanidade e de seu espaço natural. Analisar as mudanças na
forma com a qual o capitalismo se reproduz é importante apenas para
verificar as novas condições em que se dão a reprodução de seus
pressupostos. Tivemos a oportunidade de verificar aqui, por exemplo, a
maneira pela qual a classe trabalhadora é atacada sob o novo regime de
acumulação.
O novo regime de acumulação com dominância financeira, designa
portanto, uma relação estreita com aquilo que Chesnais (2003) chama de a
mundialização do capital. Isto é, uma etapa particular em que o capitalismo
se explicita no estágio imperialista, compreendido como a dominação – desde
os países centrais – interna e internacional do capital financeiro.
Entretanto, essa dominação financeira não nos ilude, não nos faz passar
despercebido o fetiche do dinheiro. A princípio, uma possível relação D – D’
nos engana a consciência por ser o dinheiro a figura monetária do valor,
sendo o próprio dinheiro a forma mais palpável e tangível em todo o processo
de circulação. Nós não tocamos na produção de mais-valia, mas podemos ver
que, após certo período, temos mais dinheiro de que quando entramos no
processo de circulação. Aparentemente o dinheiro de maneira autônoma se
transforma em mais dinheiro, porém acreditamos ter deixado claro que esse
movimento é mera aparência que esconde a relação de produção baseada na
sociedade classista. Para escapar deste fetichismo, apreendemos que é só a
alta da produtividade do trabalho “que permite explicar como um regime de
acumulação, no qual os dividendos e os juros têm um peso bastante expressivo
sobre a parte dos lucros que permanece nas mãos das empresas, não conduziu a
um impasse” (CHESNAIS, 2003, p. 56). Foi
justamente o aumento da taxa de exploração que contrabalançou o incremento
da parte dos lucros distribuídos aos acionistas. Isso permite desvendar o
mistério que abarca os Estados Unidos nas últimas duas décadas.
Com a imobilização do capital em circuitos prévios de acumulação, o capital
a juros pode nascer. Este nasce então, “da necessidade de perpétua expansão
e valorização do capital para além dos limites de seu processo mais geral e
elementar de circulação e reprodução” (BELLUZZO, 2000, p. 88). É importante
frisar, entretanto, a importância da palavra imobilização citada acima. O
capital não se desmaterializa (torna-se capital a juros) se não estiver
materializado, se o produto do trabalho humano não objetivou-se em coisas.
Somente a partir desta imobilização é que a “classe financeira” pode
especular e alcançar seus rendimentos. Belluzzo, resgatando o pensamento de
Hobson, afirma que esta classe só especulará, portanto, “nos mercados de
capitais ou de dinheiro com os ganhos excedentes que resultam de suas
práticas monopolísticas em negócios bem administrados (industriais ou
mercantis) ou, então, com os resultados acumulados de suas bem-sucedidas
especulações passadas” (BELLUZZO, 2002, p. 91). Nesta passagem podemos ver
enfim, a relação eterna existente no capitalismo entre o “trabalho vivo” e o
“trabalho morto”, ou seja, é de acordo com as imobilizações e as
conseguintes produções de mais-valia que se poderá atuar na “esfera
financeira” ou utilizar-se do capital-dinheiro. No entanto, mesmo na medida
em que a classe financeira só se mantém devido a produção real, ela,
controlando o crédito e o fluxo de ativos, exerce papel fundamental sobre a
produção. Cada vez mais se torna poderosa tomando para si, como lucros, uma
proporção significativa do produto da indústria – nos casos mais
expressivos, formam-se grandes corporações que dominam diversos setores da
produção e investem em diversos segmentos seu capital-dinheiro.
É apresentado por Chesnais, e aqui nos será útil como exemplificação, o
panorama da economia estadunidense, a qual obteve um crescimento forte e
consistente nestes últimos tempos. A explicação ideologicamente por eles
apresentada parte da inovação tecnológica e do sucesso “autônomo” da esfera
financeira. Bom, essa é a explicação completamente fetichizada de um
fenômeno real. Costumou-se falar que após um crescimento expressivo (um
“boom”) da economia há um “crash”. Desfetichizando esse fato, é preciso
notar que a “bolha financeira” que então surgiu, só pode assegurar
rendimentos aos investidores sob a condição de ser permanentemente
alimentada pela produção real. E é justamente nesse ponto que intervêm os
fluxos de capital exteriores de que os EUA se beneficiam. É aqui que entra o
fundamental papel dos mexicanos (representando toda a mão de obra barata
apta a ser explorada) e das remessas de lucros para a sustentação deste
regime. Essas remessas centralizam as frações de valor e de mais-valia
produzida rumo à Wall Street e à NASDAQ. Ou seja, os países capazes de
acolher capitais de investimento estrangeiro (dada a sua “segurança”) se
beneficiam dessa mundialização financeira sendo capazes de estender ao
máximo o inchaço da “bolha financeira”, o inchaço dos rendimentos dos
acionistas. No entanto, a manutenção desse inchaço, como dissemos, é
conseguida através da sucção da mais-valia mundial (por meio do sistema de
crédito). Esta sucção, por sua vez, é obtida graças à adesão obrigatória
dos países periféricos nesse sistema mundializado e com predominância
financeira. A nova forma de adesão, ou a inserção no sistema internacional é
imposta pelo poder imperialista e dá a esses países um caráter meramente
figurativo, conformando-lhes como uma província do império. Essa imposição
de que falamos pode ser exemplificada na adoção, pelos países “dependentes”,
do consenso de Washington ou da adoção de um novo consenso macroeconômico
que responde ao fato de que o Estado deve abandonar o padrão keynesiano e se
preocupar com as funções monetaristas e com o respeito às metas de inflação;
utilizando como seu instrumento principal o controle da taxa de juros. Em
resumo, a opulência financeira estadunidense não está desligada em
momento algum da produção constante e ampliada de mais-valia. O capital é um
só, é uma relação social. Ele apenas aparece de forma distinta nos diversos
momentos de sua circulação. Tanto é assim, que a queda recente na taxa de
crescimento da produtividade preocupa o “mercado financeiro”. É na base real
da produção que pode se desencadear um crash no mercado acionário. Para
exemplificar, com uma queda repentina na bolsa chinesa, deixa-se apenas de
ganhar alguns milhões. Porém, se desencadeada uma greve em setores
estratégicos da acumulação capitalista (os portos, por exemplo), há que se
reprimir violentamente, pois a conseqüente queda na produção desse setor
representará queda na acumulação financeira.
É daí que advém a ênfase na reorganização do trabalho proposta e imposta
pelo regime de acumulação flexível. É dela que depende a produção, em
proporções ampliadas, da mais-valia. Sendo a ação de uma empresa
apenas um direito de dispor de parte da mais-valia produzida é peremptório a
manutenção dessa produção. O fato, socialmente legitimado, de, por eu ter
dinheiro, conseguir mais dinheiro (essência do modo de produção capitalista)
não está descolado do fato de que precisa-se produzir continuamente
mais-valia. É isso que leva Chesnais a afirmar que “esta manifestação
acentuada do ‘poder da finança’ repousa, apesar de tudo, sobre fundamentos
reais. Os mecanismos de auto-realização das apostas financeiras com
tendência de alta teriam sido incapazes por si só de manter movimentos de
alta de tal amplitude” (CHESNAIS, 2003, p. 64). O capital que, em seu
processo de circulação, está engajado na bolsa de valores não cria valor,
por este motivo sua continuidade no processo depende da produção real. E o
âmbito geopolítico-econômico que serve de base à esta acumulação financeira
é mundial. Precisa ser mundial; precisa centralizar (mediante fundos de
pensão e fundos de aplicação financeira) o máximo da mais-valia produzida
mundialmente para manter o máximo de acumulação na fantasmagórica “esfera
financeira”. A desregulamentação político-econômica que tanto presa o regime
de acumulação flexível serve para que os Estados subservientes não imponham
controle aos fluxos desses capitais advindos das diversas regiões do globo.
São esses capitais – cuja origem é a mais-valia extraída de assalariados e
camponeses pobres e, principalmente, de países pobres – que fornecem a
substância real aos mercados de ações dos grandes centros financeiros. Os
movimentos de capitais, da periferia ao centro do sistema, funcionam como
estabilizadores das economias centrais e, mais ainda, os ajustes, ou melhor,
a queda de preços dos produtos (commodities) produzidos pela periferia tem o
virtuoso papel de sustentar a bolha financeira naqueles países. Os EUA (como
maior expoente da potência financeira mundial) se beneficiam diariamente das
desgraças dos países asiáticos, latino-americanos e africanos. E é por esse
beneficiamento que eles se estabeleceram como o único país onde o regime de
acumulação com dominância financeira deu certo, ou seja, refletiu-se em
melhorias das condições de vida de parte de sua população.
Conclusão
“Vem que passa teu sofrer, se todo mundo sambasse seria tão fácil
viver” (Chico Buarque)
O mundo moderno alicerçado sobre a relação capitalista agora desfetichizada,
nos revela, ao contrário de uma possível esfera financeira autônoma, um
mundo onde o domínio da financeirização reflete o mesmo mundo da exploração
do trabalho; da sucção da mais-valia produzida social e mundialmente. A
financeirização, acreditamos ter deixado claro, só se processa quando a
riqueza se materializa, ou seja, só onde há uma relação de produção efetiva
e, em nosso caso, assalariada. Ela só existe na sociedade burguesa em que o
desenvolvimento das forças produtivas permitiram um nível tão elevado de
produtividade que pode-se produzir para além da subsistência. A imobilização
do capital necessária para a financeirização da riqueza revela esta
qualidade do modo de produção capitalista, a qualidade de que se precisa
produzir para além das necessidades das pessoas, devido a necessidade de
acumular. Acumula-se para financeirizar e financeiriza-se para acumular.
Esta é a lógica racional do ponto de vista do capital (que se reproduz cada
vez mais e melhor), mas podemos dizer, irracional do ponto de vista da
humanidade e do próprio planeta em que habitamos. Ela exige que o produto do
trabalho social seja centralizado em grandes centros financeiros, que o
homem continue sendo um ser não-emancipado, não-livre, dada a necessidade
ininterrupta de precisar vender sua força de trabalho; exige que se mantenha
a produção de coisas inúteis para a vida em geral; exige a manutenção da
pobreza, da fome, pois como vimos, a acumulação capitalista se beneficia dos
fluxos de capital das regiões mais pobres às regiões mais ricas e da própria
imigração dos povos pobres aos países mais ricos. Lá, esses povos pobres
podem produzir mais-valia inclusive em regime de mais-valia absoluta, além
da relativa. Exige a guerra como importante instrumento de realização da
mais-valia e exige, assim, a destruição das culturas milenares e da riqueza
humana. A produção capitalista exporta a padronização cultural, exporta uma
maneira de viver em que os homens se sacrificam em troca da subsistência
diária. Quando não havendo condições para adquirir essa subsistência
miserável, força-se o uso da violência, da ilegalidade, da prostituição, da
mercantilização de todas as esferas da vida.
O mundo fetichizado do capital dinheiro parece, aos olhos daqueles que dele
se beneficiam ou daqueles que ainda não descobriram o que há por detrás da
névoa, o melhor dos mundos. Um mundo onde, somente pelo fato de eu ter
dinheiro, consigo mais dinheiro. É um mundo onde não é preciso roubar,
produzir, comprar nem vender. Só por ser proprietário privado da riqueza em
sua forma abstrata, dispõe-se do direito de apropriar-se da riqueza social.
A circulação do capital deixa transparecer que o motor do capitalismo é o
dinheiro e obscurece as relações sociais. Contudo, a ciência ainda não foi
capaz de criar uma árvore de dinheiro e, deixando de lado a ficção, sabemos
que o dinheiro não nasce do dinheiro. Este é a mera expressão do processo
produtivo, é a expressão desenvolvida da relação de classes. O capital,
deixamos explícito em diversas passagens acima, é uma totalidade que aparece
dividida como os dois lados de uma mesma moeda. Foi para verificar, por fim,
no mundo concreto, para verificar a realidade do mundo moderno que achamos
prudente a realização deste artigo. As evidências e corroborações para as
idéias aqui apresentadas estão diante de nós e muito visíveis para aqueles
que olham atentamente as ruas de nossas cidades.
Referências
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expansão. In: FIORI, J. L. (Org.), Estados e moedas no
desenvolvimento das nações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 87-117.
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própria à potência econômica estadunidense. In: CHESNAIS, F. et
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HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma
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MARX, K. O Capital: crítica da economia
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__________. O rendimento e suas fontes:
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SENNETT, R. A corrosão
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