por GUSTAVO PINTO DE ARAÚJO

Graduando do curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Santa Catarina

 

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Notas sobre as transformações do capitalismo contemporâneo: desfetichizando a relação capitalista

Gustavo Pinto de Araújo

 

Resumo

Analisar as transformações do capitalismo contemporâneo é fundamental para compreendermos o mundo moderno. Transformações estas, referentes às mudanças processadas no século XX, quando ocorre a transição de um regime de acumulação fordista para um regime de acumulação flexível. Buscamos interpretar essas modificações na sociedade moderna apresentando de forma sintética e introdutória algumas das conseqüências destas mudanças. Discorremos também sobre o tema do capital financeiro mostrando seu papel no mundo capitalista e deixando evidente a sua relação indissociável com a esfera produtiva. Observamos que independentemente das transformações do capitalismo, sua essência conserva-se intacta. Concluímos que o sistema capitalista é marcado por crises e períodos de reestruturação que, se não evidenciam a degeneração deste modo de produção, confirmam a extinção paulatina dos meios de produção da vida social.

Palavras-chave: Capitalismo contemporâneo; Fetiche do capital; Regime de acumulação.

Abstract

To analyze the transformations of the contemporary capitalism is fundamental for us to understand the modern world. Transformations these, regarding the changes processed in the century XX, when occur the transition of a fordist accumulation regime for a regime of flexible accumulation. We looked for to interpret those modifications in the modern society presenting in a synthetic and introductory form some of the consequences of these changes. We also speak about the subject of financial capital showing its role in the capitalist world and leaving its course inseparable relationship with the productive sphere. We also observed that independently of the transformations of the capitalism, his essence was conserved intact. We concluded that the capitalist system is marked by crises and restructuring periods that, if do not show the degeneration of this mode of production, confirm the gradual extinction of the means of production of social life.

Key-words: Contemporary capitalism; Fetish of the capital; Accumulation regime.

 

Introdução

O que nos despertou o interesse pelo tema das transformações do capitalismo contemporâneo, foi o desejo de entender como se processam as novas formas de reprodução do modo de produção capitalista. Ao entender como um fenômeno se reproduz é que podemos desvendar seus detalhes significativos e descobrir qual sua essência, ou seja, quais os elementos que se conservam, com mínimas alterações, com o passar do tempo. Descobrindo então, a essência do fenômeno em questão – a produção e reprodução da vida sob os auspícios do sistema capitalista – podemos avaliar num período de tempo apropriado quais foram as mudanças substanciais em sua forma, em sua aparência. O período pelo qual nos estendemos neste trabalho refere-se ao longo século XX, em especial, o período que abrange o fim da Segunda Guerra Mundial (1945) até os dias atuais, passando pela importante década de setenta. É a partir daí que podemos utilizar o instrumental teórico marxista para interpretar, da forma que pensamos correta, o que significou e qual a importância da transição ocorrida no período em questão no que tange a passagem do regime de acumulação fordista para o regime de acumulação flexível. Da mesma maneira, podemos lançar as bases para um entendimento básico acerca de como o sistema financeiro se desenvolveu até chegar a amplitude que hoje possui e qual seu papel para a manutenção da acumulação capitalista. Independentemente, portanto, de que a essência deste modo de produção tenha sido mantida inalterada, é peremptório e decisivo apreendermos as relações existentes entre o “novo capitalismo” com predominância financeira e o “velho capitalismo” rígido e, ainda, apreendermos o que essas mudanças significam para as pessoas. Para isso, precisamos daquilo que chamei de a desfetichização da relação capitalista.

Para que possamos alcançar da melhor maneira este nosso objetivo, este texto será divido em duas partes. A primeira conterá uma análise teórica do pensamento marxiano no que se refere ao tema, generalizando, das finanças. Ela servirá de base e nos guiará por todo decorrer do trabalho. Mostraremos como o capital dinheiro a juros não é uma unidade autônoma em relação ao processo produtivo e assim sendo, está diretamente ligado à produtividade do trabalho e à própria apropriação do excedente do trabalho. Atentaremos também para o papel importante que desempenha o crédito na produção capitalista e as formas como vêm atuando no capitalismo contemporâneo. Mostraremos como ele desenvolve ao máximo o capital como capital social e, por este motivo, encaminha o modo de produção capitalista para uma mudança, para uma transição. Na segunda parte, analisaremos o regime de acumulação fordista e, dentro dele, que papel o Estado possuía e quais as conseqüências deste regime para o trabalhador. Em seguida, apresentaremos motivos que levaram à crise o Estado fordista-keynesiano e como este foi superado pelo regime de acumulação flexível. Aqui o papel das finanças no desenvolvimento capitalista passa a assumir um lugar nunca antes atingido o que remete a interpretações fetichizadas de uma possível ‘nova economia’ onde a esfera financeira estaria livre dos “empecilhos” materiais da produção. Poderemos então, com o instrumental teórico marxista que dispomos, dar uma explicação mais real e menos ideológica do que significa esse novo papel do mercado financeiro no mundo capitalista. É evidente que não temos a pretensão de esgotar este assunto que já foi e é extensamente teorizado e analisado. O objetivo principal é produzir uma síntese introdutória sobre o tema de forma a levantar novas questões e subsidiar futuras pesquisas. O mérito deste artigo, pensamos, é apresentar a problemática e alguns autores que trataram desta vasta e inesgotável temática de maneira condensada.

Parte primeira – O capitalismo para além das aparências

"O capital como pressuposição da produção, o capital, não como sai desse processo mas como existe antes de nele entrar, é a oposição onde o trabalho está em relação a ele como trabalho alheio e o próprio capital está como propriedade alheia em relação ao trabalho" (Karl Marx)

A relação capitalista, quando analisada em sua aparência, revela-se de uma forma completamente fetichizada. A aparência de um fenômeno – e no caso o fenômeno da circulação do capital – revela apenas sua superfície e, como escreve Marx, isola-o de suas conexões ocultas e de seus elos intermediários mediadores. Como o que nos interessa neste momento são as relações, que podemos chamar, financeiras, o capital a juros (capital dinheiro a juros) constitui a forma mais pura do fetiche capitalista. A princípio forma-se como um valor que se valoriza a si mesmo, não carregando “o estigma de seu nascimento”; a própria relação social que imprime significado ao capital, dá lugar à uma relação da coisa consigo mesma. À esta tentativa de apresentar o capital como fonte autônoma de valor, Marx dá o nome de a economia vulgar. Nela, a fonte do lucro passa a ser então irreconhecível e o processo capitalista, isolado de suas mediações, “se reveste em um modo de existência autônomo”. Se olharmos somente para o capital a juros veremos, portanto, apenas uma forma na qual se apagam suas determinações e seus elementos reais se tornam invisíveis. Nas palavras de Marx, na relação D – D’, “a figura do capital se torna progressivamente mais alheada e carente de relacionamento com sua essência íntima” (MARX, 1978, p. 272). Entretanto, o mais importante a esclarecer é o que essa relação da coisa consigo mesma reflete: sob a forma de valor autonomizado, o caráter do capital como opositivo ao trabalho é totalmente “retocado e apagado”. Quando se deixa de perceber que o capital é uma relação social entre classes antagônicas no que diz respeito à propriedade dos meios de produção, e passa-se a adotar a noção fetichista de que o capital é uma forma autônoma da produção, a própria luta contra o capital se vê prejudicada. Essa é uma das críticas que faz Marx aos socialistas vulgares: propor a luta contra o capital a juros, contra uma suposta “esfera financeira” e não contra a produção capitalista efetiva, ou seja, terminam por atacar apenas um dos resultados do processo capitalista de produção. A negação do juro exige necessariamente a negação deste modo de produção.

A formação do capital a juros sendo um produto necessário do desenvolvimento do capital industrial e do próprio modo de produção capitalista, não deixa que caiamos na ilusão de considerar aquele como uma forma autônoma. O juro é nada mais do que uma parte constituinte do lucro que determinado capitalista paga ao proprietário do capital que tomou emprestado. Fazendo parte então do lucro capitalista, fica clara a ligação entre o juro e a produção de mais-valia, fazendo, por sua vez, do capitalista emprestador não um mero rentista autônomo, mas um rentista parasitário – altamente dependente da produção contínua de mais-valia. Enfatizando esta conexão entre as diversas formas de rendimento (juro e lucro), Marx afirma que não se trata, portanto, de dois capitais diferentes, mas do mesmo capital, “que funciona no processo, extrai lucro e se distribui entre dois capitalistas diferentes”[1] (MARX, 1978, p. 276). De forma complementar, Marx acrescenta que os juros constituem o fruto do capital enquanto este não “trabalha”, e o lucro, o fruto do mesmo capital no “trabalho”, em funcionamento. Os juros equivalem à mais-valia devida ao "capital como capital" (em contraste com o "capital em função"), ou seja, à condição de ser mero proprietário do capital. No entanto, este capital só revelará suas qualidades no processo de produção. E quais são essas qualidades? Ao produzir-se, o capital produz também a relação de produção especificamente capitalista e é somente daí que decorre a reprodução do sistema como um todo.

O fetiche nos faz ver o juro, nas palavras de Marx, como um “rebento do capital”, como uma forma que cabe ao capital enquanto tal. A própria economia vulgar, que tanto a obra marxiana criticou, transforma o lucro em trabalho do capitalista, ao invés de transformá-lo na apropriação do trabalho acrescido do trabalhador sem oferecer em contrapartida um equivalente. Entretanto, sabemos que esse juro, aparentemente tão inofensivo, é a “propriedade do capital como meio de apropriar os produtos do trabalho alheio, como domínio sobre o trabalho alheio” (MARX, 1978, p. 292). E veremos, na segunda parte deste trabalho, como esse domínio sobre o trabalho alheio é fundamental para sustentar a chamada “bolha financeira” estadunidense e, da mesma maneira, que uma possível “esfera financeira” não está desligada/descolada da “esfera produtiva”.

O fetiche do capital é ainda mais fortalecido quando passamos a analisar o papel do crédito na produção capitalista. Este, resultado necessário do desenvolvimento capitalista, nasce junto com a formação dos primeiros bancos e principalmente contra o poder do capital usurário. A própria criação dos bancos é uma reação contra o monopólio que os usurários detinham sob o crédito e contra as exorbitantes taxas de juros que cobravam. Os bancos então davam chance para que aqueles comerciantes que não encontraram bons mercados para suas mercadorias pudessem depositá-las em seu interior. Esses comerciantes receberiam crédito sobre essas mercadorias imobilizadas para que pudessem manter seus empregados ocupados e dar continuidade aos seus negócios até que encontrassem mercados que lhes fossem favoráveis. Porém, rapidamente os bancos e o crédito adquiriram outras funções. Além de ser fundamental para o nivelamento da taxa de lucro, para o decréscimo dos custos de circulação e para a formação das sociedades por ações, o sistema de crédito faz com que o capital assuma a forma social. De acordo com Marx, "só o desenvolvimento do sistema de crédito e do sistema bancário promove e efetiva por inteiro esse caráter social do capital" (MARX, 1980, p. 695). Isso significa dizer que o capital segue rumo a sua abolição como propriedade privada dentro dos limites do próprio capitalismo. Ou seja, através do sistema de ações ou do próprio crédito, o capitalista individual pode dispor de todo excedente social, ou ainda, oferece ao capitalista particular disposição sobre o capital alheio, a propriedade alheia e, lógico, o trabalho alheio. Aqui o capitalismo pode enfim se livrar das “ataduras” do sistema familiar e individual para chegar à corporação e ao sistema social ligando aqueles que possuem excedentes com aqueles que dele necessitam. O capitalista passa então a transacionar, por intermédio do papel centralizador de excedentes que possui o crédito e os modernos fundos de pensão e de investimento, não com sua propriedade, mas com a propriedade social. Através da propriedade privada, seu proprietário (jurídico) se apropria por meio de juros e tributação[2] de qualquer propriedade.

O sistema de crédito deve ser encarado ainda como um produto dos próprios esforços do capital na tentativa de resolver as contradições internas do capitalismo. Quando a acumulação ou a poupança de todas as classes retiram a riqueza de circulação, o sistema de crédito se transforma numa necessidade. Este, proporciona maior eficiência à circulação e diminui custos de transação. Ou seja, no exemplo de Harvey, “eu posso converter em capital os dez dólares que tenho em meu bolso ao depositá-los num banco onde ele poderá ser emprestado imediatamente como capital em troca de um juro” (HARVEY, 1990, p. 257-258). Assim, a acumulação pode seguir livre e sempre ampliadamente, ao invés de ter que esperar até que um capitalista individual tenha guardado capital bastante para investir na produção de mais valor. A acumulação estende o crédito e o próprio crédito tem a função de estender a acumulação, conformando o crédito como peça chave do desenvolvimento capitalista. Qual aos antigos usurários, os “capitalistas de dinheiro” adquirem um poder fundamental para dar seguimento à produção capitalista; adquirem um poder de dominar a determinação da taxa de juros, de subordinar os capitalistas produtivos, de controlar as datas de pagamento dos juros sobre o capital emprestado e, dessa maneira, acabam controlando indiretamente a intensidade da produção de mais-valia. Acaba-se formando uma divisão entre os “donos do dinheiro” e, por conseqüência, donos da produção social, e os capitalistas “escravos de seu capital”, escravos da produção. O que nos leva a propor que quanto maior for a taxa de juros cobrada maior deve ser a exploração, de forma que os lucros possam ser grandes o suficiente para não se abalarem com a dedução que significa o pagamento destes juros.

Legitima-se, dessa forma, o poder daquele que possuir dinheiro, dispor do dinheiro social; legitima-se em proporções muito maiores, o ato, bem observado por Lutero, de assar maçãs na lareira enquanto deixa-se o capital render – sugar excedente do trabalho – em diversas formas e em diversos lugares. Contudo, cabe notar que não se sabe de onde vem a riqueza que se acumula e essa é uma característica do capitalismo em seu explicitar moderno: quebra a relação pessoal/privada e faz da riqueza uma riqueza social, e minha acumulação, meu empréstimo é a riqueza de toda a sociedade. Com qualquer riqueza em minhas mãos, eu me torno sócio da sociedade. Posso, sem dar uma contrapartida, apropriar-me da riqueza social. De uma forma quase fantasiosa, deixo de precisar vender minha força de trabalho para sobreviver, bastando comprar títulos ou ações. O sistema de crédito portanto, acelera a produção capitalista; acelera a exploração do trabalho alheio, “levando a um sistema puro e gigantesco de especulação e jogo, e limita cada vez mais o número dos poucos que exploram a riqueza social” (MARX, 1980, p. 510). Conclui-se portanto, que assim como o capital usurário de ontem cumpriu seu papel revolucionário arruinando os ricos proprietários de terra, esgotando os pequenos produtores e, enfim, servindo para acabar com todas as formas de produção em que o produtor ainda aparece como proprietário dos meios de produção, o capital a juros e o sistema de crédito de hoje, ao centralizar a produção e o valor excedente, funcionam como favorecedores da degeneração do modo de produção capitalista e, por isso, também atuam com papel revolucionário na construção de um novo modo de produção.

Parte segunda – As transformações capitalistas no mundo moderno[3]

O entendimento da história recente do mundo, especialmente o mundo ocidental, alicerçado pelo modo capitalista de produção, pode ser obtido mediante o entendimento da transição sócio-político-econômica ocorrida no decorrer do século XX. Essa transição se refere imediatamente à mudança de configuração do modo de acumulação hegemônico no sistema capitalista. Considerando que um sistema particular de acumulação pode existir somente porque seu esquema de reprodução é condizente com suas necessidades essenciais, a quebra de uma dessas possibilidades de reprodução conduz invariavelmente à crise deste sistema forçando a iminência de uma transição – mesmo que seja uma transição por dentro da ordem. Foi exatamente isso que ocorreu no período iniciado pela década de setenta do século XX. O regime de acumulação iniciado na década de trinta deste século respondia aos anseios do que se costumou denominar fordismo-keynesiano. Esse regime, que teve seu ápice no período do pós-guerra, se caracteriza sobretudo pela forte intervenção estatal com o objetivo de garantir, mediante gastos públicos, o Estado de bem estar social. Por outro lado, o fordismo foi responsável por revolucionar o processo de trabalho estabelecendo a rigidez da linha de produção com jornadas fixas de oito horas diárias e uma remuneração diferenciada. No entanto, afirma Harvey, “os novos sistemas de produção e de marketing, caracterizados por processos de trabalho e mercados mais flexíveis, de mobilidade geográfica e de rápidas mudanças práticas de consumo” (HARVEY, 2002, p. 119), dão luz ao então novo regime de acumulação – a acumulação flexível, marcada pela crescente participação das formas financeiras de posse da riqueza.

É sobre essas transformações de nossa sociedade que nos debruçaremos nesta parte de nosso presente trabalho e, desde já, defendemos a idéia de que estas transformações não fizeram parte de uma evolução natural do capitalismo, mas sim, foram produzidas artificialmente por intermédio de relações de poder, sendo altamente necessárias para a reprodução do sistema. O capitalismo contemporâneo atinge um grau elevadíssimo de desenvolvimento e, do mesmo modo, atinge a consolidação de sua forma mais pura de existência. A acumulação capitalista que aparece em sua forma mais pura, em seu processo de circulação, como a relação D - D’ livre, assim, dos “empecilhos” de suas formas materiais (D - M - D’), deixa transparecer uma relação de auto-reprodução do capital. De acordo com Belluzzo, esse processo obscuro do capital “não se trata de uma deformação, mas do aperfeiçoamento de sua substância, na medida em que o dinheiro é suposto e o resultado do processo de acumulação de riqueza no capitalismo” (BELLUZZO, 2000, p. 116). Isso demonstra o real motivo da produção capitalista: longe de ser a produção de mercadorias, ela é a busca pela valorização do valor antecipado pelo capitalista. O capitalista inteligente não produz por amor à mercadoria. Como disse James Roderick, presidente da US Steel, em 1979, “a tarefa da administração é fazer dinheiro, e não aço” (Citado em HARVEY, 2002, p. 150).

A consolidação do fordismo como regime de acumulação predominante se deu no início da década de 30 do século XX, logo após a quebra da bolsa de Nova York em 1929. O ápice deste regime pode ser considerado como o período do pós-guerra (1945) e significou mudanças profundas na estrutura social daquele tempo. De acordo com Harvey (2002), o fordismo deve ser visto menos como um mero sistema de produção em massa do que como um modo de vida total. Isso porque, a maneira como funcionava resultou na renovação de toda estética e cultura moderna. O fordismo se caracterizou por tornar o mundo, em todas as esferas, um mundo da funcionalidade e da eficiência. A produção em massa então instaurada significaria o consumo de massa, uma nova relação com a força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, enfim, um novo tipo de sociedade altamente racionalizada e cronometrada. O novo método de trabalho é inseparável de uma nova forma de viver, de pensar, de sentir e de produzir a vida. No que se refere especialmente ao trabalhador, o fordismo inaugurou os tempos modernos e significou a familiarização do trabalhador com longas horas de trabalho rotinizado, exigindo pouca habilidade por sua parte e retirando-lhe qualquer forma de controle sobre a produção, desde o que se produz e em que ritmo se produz. Todavia, foi inovador no sentido de “dar aos trabalhadores renda e tempo de lazer suficientes para que consumissem os produtos produzidos em massa que as corporações estavam por fabricar em quantidades cada vez maiores” (HARVEY, 2002, p. 122). No que tange ao Estado, sérias mudanças foram inevitáveis para que o capitalismo pudesse seguir seu caminho de acumulação permanente. Isto é, a continuação do Estado de bem estar social somente poderia ser viável do ponto de vista fiscal, se contasse com a contínua aceleração da produtividade do trabalho – daí ser peremptória a inovação tecnológica e a intervenção estatal. O Estado, segundo Belluzzo (2000), impedia flutuações bruscas do nível de atividades e garantia a segurança interna diante das incertezas inerentes à lógica do mercado, reduzindo assim a influência dos condicionantes externos sobre as políticas macroeconômicas domésticas. O fordismo-keynesiano, dessa forma, foi vital para organizar arranjos sócio-político institucionais que pudessem sustentar as condições necessárias da reprodução do sistema. Na metáfora de Harvey (2002), foi preciso ajustar as velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha da lucratividade segura. O fato é que o capitalismo não sobreviveria sem passar pelas reformas pelas quais passou desde sua formação, mesmo que embrionária, no século XVI.

É bem sabido, por sua vez, que o sistema fordista foi criado nos EUA e tem seu nome devido ao empresário do setor automobilístico Henry Ford. Este país, que foi o grande beneficiário da Segunda Guerra Mundial, atingiu um forte poderio econômico-financeiro em 1944 com o acordo de Bretton Woods. Este transformou o dólar na moeda-reserva mundial e vinculou com firmeza o desenvolvimento econômico do mundo à política fiscal e monetária estadunidense. De acordo com Harvey (2002), os EUA passaram a agir como banqueiros do mundo em troca de uma abertura dos mercados de capital e de mercadorias ao poder das grandes corporações. Esse, a centralização dos capitais de todo o mundo, foi um passo fundamental para alimentar sua posterior dominância financeira. Utilizando-se, portanto, de sua força político econômica o sistema fordista de produção conseguiu elevar, pelo menos nos países de capitalismo avançado, os padrões de vida da população. Para os “insatisfeitos do Terceiro Mundo”, ele promoveu sem grandes exceções o arrasamento de culturas locais e muita violência em troca de benefícios mínimos a não ser para uma elite “nacional” que sempre colaborou e se beneficiou com o contato imperialista. É aqui que retornamos à questão da transição de que falávamos anteriormente. As condições de reprodução do capitalismo fordista de então encontravam-se cada vez mais difíceis de se realizar em parte devido a rigidez do sistema e, segundo Harvey (2002), à formação do mercado de eurodólar e a contração do crédito no período de 1966-1967. Esses foram sinais da redução do poder norte-americano de regulamentação do sistema financeiro internacional e da inviabilidade reprodutiva do sistema que se formava com a manutenção do Estado de bem estar social. O fordismo e keynesianismo não podiam mais conter as crises inerentes ao capitalismo, fazendo-se necessárias diversas reformas dentro deste sistema. As características políticas do novo capitalismo passaram a ser então, a redução dos gastos públicos, os cortes de salários reais e a austeridade nas políticas fiscal e monetária. O papel da desregulamentação, portanto, significou a “progressiva liberalização das transações registradas na conta de capital e o afrouxamento dos controles sobre a atividade dos bancos” (BELLUZZO, 2000, p. 107). Por outro lado, considerando que o capitalismo enfrenta periodicamente o problema da superacumulação, Harvey (2002) afirma que este problema, durante o fordismo, foi superado com o deslocamento temporal e espacial da produção no período de expansão do pós-guerra. Por conseguinte, encontra-se aqui outro fator da crise deste regime de acumulação: quando se esgotaram as opções para tais deslocamentos, o fordismo entrou em crise por não poder lidar com a superacumulação, o que levou à transição para o novo regime de acumulação.

Um novo consenso foi formado e imposto aos países capitalistas, isto é, o consenso de que precisava-se de uma reestruturação econômica e um reajustamento social e político. Contando com a “compressão do espaço-tempo” – resultado da comunicação via satélite e de meios de transporte mais eficientes –, a acumulação flexível pode se consolidar, em confronto direto com a rigidez do fordismo, como novo regime de acumulação. Aquela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. De acordo com Harvey, “caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional” (HARVEY, 2002, p. 140). No que concerne especificamente ao trabalho e ao mercado de trabalho é necessário fazer algumas observações apoiado no pensamento de Sennett (2005).

A flexibilidade, dizem os precursores deste regime, é fundamental para dar às pessoas maior liberdade de moldar suas vidas. Mas como moldar uma vida, como manter o caráter, num mundo de curto prazo, num capitalismo flexível onde tudo se desfaz e refaz? Como ficamos em meio a esta ciranda? A economia moderna, do novo capitalismo, deixa a vida emocional e interior, à deriva. E ao trabalho flexível moderno, Sennett (2005) dá a denominação de ilegível, ou seja, é aquilo que não se entende. Sendo o trabalho e as relações sociais flexíveis, isto é, de curto prazo e instáveis, a incerteza e a angústia são os sentimentos que rodeiam a todo o momento o dia-a-dia do trabalhador. O pior é que esta instabilidade pretende ser normal, ou ainda, é pretendido que o empresário de Schumpeter se torne o homem comum ideal. Se a rotina do fordismo de ontem engessa os indivíduos na rigidez e na hierarquia, a flexibilidade do novo regime de hoje dobra-os e utiliza-se de toda capacidade que têm de se metamorfosear, de perder sua personalidade (caráter) para atender aos rumos correntes. A flexibilização, escreve Sennett, é apenas uma nova trama de controle. Dentro da aparência de desburocratização e de controle do tempo por parte do indivíduo, há em essência uma troca na forma de submissão ao poder. Sob a nova aparência do líder e não mais do patrão hierarquizado, o controle sobre o processo de trabalho continua nas mãos das “elites no poder”. Dessa forma, a liberdade continua sendo um sonho distante e inalcançável dentro de um capitalismo moderno que está sempre reinventando as instituições, que tem a necessidade de mudar tudo para deixar tudo igual.

A flexibilização, igualmente, significa enfraquecimento do poder sindical. Com a redução dos empregos tradicionais e regulares em favor do crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário, subcontratado e terceirizado, acaba-se reduzindo o número de trabalhadores “centrais” e emprega-se uma força de trabalho com elevado grau de rotatividade. Cabe ainda notar que às mudanças no regime de trabalho seguiram-se as alterações significativas na luta trabalhista, pois na medida em que os Estados tinham que se tornar mais “empreendedores” e garantir um clima favorável aos negócios internacionais, o movimento trabalhista organizado e diversos movimentos sociais tinham que ser contidos. A própria flexibilização salarial, junto com a tentativa de corte de direitos adquiridos, é elemento constitutivo da alta da taxa de exploração. Esta é altamente necessária para satisfazer as exigências por acréscimo na rentabilidade, ou seja, “não podia e não pode haver satisfação das expectativas dos investidores sem que haja um salto nas formas de exploração do trabalho” (CHESNAIS, 2003, p. 51). Essas mudanças foram, portanto, fundamentais para que os capitalistas pudessem seguir acumulando com margens de lucros satisfatórias e é claro que a centralização do capital acompanhou esses processos. A “desregulamentação” econômica, marca dessa transição, significou o aumento da monopolização, das incorporações e fusões em vários setores e, para um bom observador, sabe-se que essa centralização é um forte sinal da degeneração do modo capitalista de produção. E o que quer dizer essa degeneração? Significa a produção e reprodução da vida da grande maioria das pessoas acontecendo, quando é possível, em condições cada vez mais difíceis. O capitalismo, como modo de produção, não segue naturalmente para seu fim, mas dá sinais de seu esgotamento e, dessa forma, dá margem para a construção do novo.

O acesso à informação e o domínio do conhecimento científico técnico (fazendo com que universidades se tornem filiais de grandes empresas), tornaram-se os dois motores do novo capitalismo. Contudo, podemos indicar como uma das mudanças mais importantes desse capitalismo flexível, o fortalecimento daquilo que se costumou chamar de o capital financeiro – o capital que tem o dinheiro como mercadoria. Adotando como necessidade explicativa uma dicotomia entre o capital financeiro e o industrial, pesam, de forma negativa, sobre as atividades produtivas as restrições de tempo e espaço, o que dá muito mais força ao setor financeiro. A fetichização do mundo econômico completava-se então com a idéia de que se poderia fortificar as transações financeiras e motivar a obtenção de lucros estritamente financeiros sem dar importância à produção real – retornaremos ainda à questão do fetiche. Foi neste período no qual estamos tratando que se deu, segundo Harvey (2002), pela primeira vez a criação de um único mercado mundial de dinheiro e de crédito. Assim a desregulamentação nas finanças – a abolição completa do Estado keynesiano – tornou-se um requisito para a sobrevivência de todo centro financeiro mundial. Entretanto, o mesmo Harvey acrescenta que a sobrevivência do capitalismo depende de que se consiga algum tipo de equilíbrio de poder entre os interesses industriais e financeiros, deixando claro que “o poder do capital financeiro (como quer que este bloco de poder esteja institucionalizado e definido) é necessariamente um poder restringido, que nunca pode ser ilimitado ou totalmente hegemônico” (HARVEY, 1990, p. 302). 

Em relação à vida em sociedade como um todo poderemos verificar que os valores sólidos que correspondiam às exigências do fordismo, foram suplantados por valores que acentuam o fugidio, o efêmero, o fugaz e o contingente, dando ao “individualismo exacerbado” uma posição de condição necessária, embora não suficiente, da transição do fordismo para a acumulação flexível (HARVEY, 2002). Aliado a isso, a celebração da “mercadificação” de formas culturais, implica seriamente numa mudança cultural em geral, correspondendo (1) aos novos anseios do regime de acumulação flexível e (2) provando, como afirma Harvey, que o capitalismo é uma força constantemente revolucionária capaz de reformular-se de acordo com novas necessidades materiais. Todavia, apesar de todas essas mudanças, o capitalismo conserva sua base intacta. Sua essência imutável e inquebrantável, a saber, a relação entre proprietários e não proprietários dos meios de produção, não se modificou. Relação esta sob a qual o capitalismo se erigiu e que continua a reproduzir para que consiga se manter. A produção capitalista, e aqui retornamos ao pensamento marxiano, independentemente da forma em que se realiza (sob regime rígido ou flexível), nunca deixou e nunca deixará de ser a produção e reprodução das relações de produção especificamente capitalistas. A produção capitalista, portanto, é a reprodução ampliada, por um lado, da classe trabalhadora não proprietária e, por outro lado, da classe capitalista proprietária dos meios de produção. Em outras palavras, é a reprodução ampliada do mundo em que vivemos: o mundo da fome, da ignorância, da violência, da miséria, da degradação da humanidade e de seu espaço natural. Analisar as mudanças na forma com a qual o capitalismo se reproduz é importante apenas para verificar as novas condições em que se dão a reprodução de seus pressupostos. Tivemos a oportunidade de verificar aqui, por exemplo, a maneira pela qual a classe trabalhadora é atacada sob o novo regime de acumulação.

O novo regime de acumulação com dominância financeira, designa portanto, uma relação estreita com aquilo que Chesnais (2003) chama de a mundialização do capital. Isto é, uma etapa particular em que o capitalismo se explicita no estágio imperialista, compreendido como a dominação – desde os países centrais – interna e internacional do capital financeiro. Entretanto, essa dominação financeira não nos ilude, não nos faz passar despercebido o fetiche do dinheiro. A princípio, uma possível relação D – D’ nos engana a consciência por ser o dinheiro a figura monetária do valor, sendo o próprio dinheiro a forma mais palpável e tangível em todo o processo de circulação. Nós não tocamos na produção de mais-valia, mas podemos ver que, após certo período, temos mais dinheiro de que quando entramos no processo de circulação. Aparentemente o dinheiro de maneira autônoma se transforma em mais dinheiro, porém acreditamos ter deixado claro que esse movimento é mera aparência que esconde a relação de produção baseada na sociedade classista. Para escapar deste fetichismo, apreendemos que é só a alta da produtividade do trabalho “que permite explicar como um regime de acumulação, no qual os dividendos e os juros têm um peso bastante expressivo sobre a parte dos lucros que permanece nas mãos das empresas, não conduziu a um impasse” (CHESNAIS, 2003, p. 56). Foi justamente o aumento da taxa de exploração que contrabalançou o incremento da parte dos lucros distribuídos aos acionistas. Isso permite desvendar o mistério que abarca os Estados Unidos nas últimas duas décadas.

Com a imobilização do capital em circuitos prévios de acumulação, o capital a juros pode nascer. Este nasce então, “da necessidade de perpétua expansão e valorização do capital para além dos limites de seu processo mais geral e elementar de circulação e reprodução” (BELLUZZO, 2000, p. 88). É importante frisar, entretanto, a importância da palavra imobilização citada acima. O capital não se desmaterializa (torna-se capital a juros) se não estiver materializado, se o produto do trabalho humano não objetivou-se em coisas. Somente a partir desta imobilização é que a “classe financeira” pode especular e alcançar seus rendimentos. Belluzzo, resgatando o pensamento de Hobson, afirma que esta classe só especulará, portanto, “nos mercados de capitais ou de dinheiro com os ganhos excedentes que resultam de suas práticas monopolísticas em negócios bem administrados (industriais ou mercantis) ou, então, com os resultados acumulados de suas bem-sucedidas especulações passadas” (BELLUZZO, 2002, p. 91). Nesta passagem podemos ver enfim, a relação eterna existente no capitalismo entre o “trabalho vivo” e o “trabalho morto”, ou seja, é de acordo com as imobilizações e as conseguintes produções de mais-valia que se poderá atuar na “esfera financeira” ou utilizar-se do capital-dinheiro. No entanto, mesmo na medida em que a classe financeira só se mantém devido a produção real, ela, controlando o crédito e o fluxo de ativos, exerce papel fundamental sobre a produção. Cada vez mais se torna poderosa tomando para si, como lucros, uma proporção significativa do produto da indústria – nos casos mais expressivos, formam-se grandes corporações que dominam diversos setores da produção e investem em diversos segmentos seu capital-dinheiro.

É apresentado por Chesnais, e aqui nos será útil como exemplificação, o panorama da economia estadunidense, a qual obteve um crescimento forte e consistente nestes últimos tempos. A explicação ideologicamente por eles apresentada parte da inovação tecnológica e do sucesso “autônomo” da esfera financeira. Bom, essa é a explicação completamente fetichizada de um fenômeno real. Costumou-se falar que após um crescimento expressivo (um “boom”) da economia há um “crash”. Desfetichizando esse fato, é preciso notar que a “bolha financeira” que então surgiu, só pode assegurar rendimentos aos investidores sob a condição de ser permanentemente alimentada pela produção real. E é justamente nesse ponto que intervêm os fluxos de capital exteriores de que os EUA se beneficiam. É aqui que entra o fundamental papel dos mexicanos (representando toda a mão de obra barata apta a ser explorada) e das remessas de lucros para a sustentação deste regime. Essas remessas centralizam as frações de valor e de mais-valia produzida rumo à Wall Street e à NASDAQ. Ou seja, os países capazes de acolher capitais de investimento estrangeiro (dada a sua “segurança”) se beneficiam dessa mundialização financeira sendo capazes de estender ao máximo o inchaço da “bolha financeira”, o inchaço dos rendimentos dos acionistas. No entanto, a manutenção desse inchaço, como dissemos, é conseguida através da sucção da mais-valia mundial (por meio do sistema de crédito). Esta sucção, por sua vez, é obtida graças à adesão obrigatória dos países periféricos nesse sistema mundializado e com predominância financeira. A nova forma de adesão, ou a inserção no sistema internacional é imposta pelo poder imperialista e dá a esses países um caráter meramente figurativo, conformando-lhes como uma província do império. Essa imposição de que falamos pode ser exemplificada na adoção, pelos países “dependentes”, do consenso de Washington ou da adoção de um novo consenso macroeconômico que responde ao fato de que o Estado deve abandonar o padrão keynesiano e se preocupar com as funções monetaristas e com o respeito às metas de inflação; utilizando como seu instrumento principal o controle da taxa de juros. Em resumo, a opulência financeira estadunidense não está desligada em momento algum da produção constante e ampliada de mais-valia. O capital é um só, é uma relação social. Ele apenas aparece de forma distinta nos diversos momentos de sua circulação. Tanto é assim, que a queda recente na taxa de crescimento da produtividade preocupa o “mercado financeiro”. É na base real da produção que pode se desencadear um crash no mercado acionário. Para exemplificar, com uma queda repentina na bolsa chinesa, deixa-se apenas de ganhar alguns milhões. Porém, se desencadeada uma greve em setores estratégicos da acumulação capitalista (os portos, por exemplo), há que se reprimir violentamente, pois a conseqüente queda na produção desse setor representará queda na acumulação financeira.

É daí que advém a ênfase na reorganização do trabalho proposta e imposta pelo regime de acumulação flexível. É dela que depende a produção, em proporções ampliadas, da mais-valia. Sendo a ação de uma empresa apenas um direito de dispor de parte da mais-valia produzida é peremptório a manutenção dessa produção. O fato, socialmente legitimado, de, por eu ter dinheiro, conseguir mais dinheiro (essência do modo de produção capitalista) não está descolado do fato de que precisa-se produzir continuamente mais-valia. É isso que leva Chesnais a afirmar que “esta manifestação acentuada do ‘poder da finança’ repousa, apesar de tudo, sobre fundamentos reais. Os mecanismos de auto-realização das apostas financeiras com tendência de alta teriam sido incapazes por si só de manter movimentos de alta de tal amplitude” (CHESNAIS, 2003, p. 64). O capital que, em seu processo de circulação, está engajado na bolsa de valores não cria valor, por este motivo sua continuidade no processo depende da produção real. E o âmbito geopolítico-econômico que serve de base à esta acumulação financeira é mundial. Precisa ser mundial; precisa centralizar (mediante fundos de pensão e fundos de aplicação financeira) o máximo da mais-valia produzida mundialmente para manter o máximo de acumulação na fantasmagórica “esfera financeira”. A desregulamentação político-econômica que tanto presa o regime de acumulação flexível serve para que os Estados subservientes não imponham controle aos fluxos desses capitais advindos das diversas regiões do globo. São esses capitais – cuja origem é a mais-valia extraída de assalariados e camponeses pobres e, principalmente, de países pobres – que fornecem a substância real aos mercados de ações dos grandes centros financeiros. Os movimentos de capitais, da periferia ao centro do sistema, funcionam como estabilizadores das economias centrais e, mais ainda, os ajustes, ou melhor, a queda de preços dos produtos (commodities) produzidos pela periferia tem o virtuoso papel de sustentar a bolha financeira naqueles países. Os EUA (como maior expoente da potência financeira mundial) se beneficiam diariamente das desgraças dos países asiáticos, latino-americanos e africanos. E é por esse beneficiamento que eles se estabeleceram como o único país onde o regime de acumulação com dominância financeira deu certo, ou seja, refletiu-se em melhorias das condições de vida de parte de sua população.

Conclusão

“Vem que passa teu sofrer, se todo mundo sambasse seria tão fácil viver” (Chico Buarque)

O mundo moderno alicerçado sobre a relação capitalista agora desfetichizada, nos revela, ao contrário de uma possível esfera financeira autônoma, um mundo onde o domínio da financeirização reflete o mesmo mundo da exploração do trabalho; da sucção da mais-valia produzida social e mundialmente. A financeirização, acreditamos ter deixado claro, só se processa quando a riqueza se materializa, ou seja, só onde há uma relação de produção efetiva e, em nosso caso, assalariada. Ela só existe na sociedade burguesa em que o desenvolvimento das forças produtivas permitiram um nível tão elevado de produtividade que pode-se produzir para além da subsistência. A imobilização do capital necessária para a financeirização da riqueza revela esta qualidade do modo de produção capitalista, a qualidade de que se precisa produzir para além das necessidades das pessoas, devido a necessidade de acumular. Acumula-se para financeirizar e financeiriza-se para acumular. Esta é a lógica racional do ponto de vista do capital (que se reproduz cada vez mais e melhor), mas podemos dizer, irracional do ponto de vista da humanidade e do próprio planeta em que habitamos. Ela exige que o produto do trabalho social seja centralizado em grandes centros financeiros, que o homem continue sendo um ser não-emancipado, não-livre, dada a necessidade ininterrupta de precisar vender sua força de trabalho; exige que se mantenha a produção de coisas inúteis para a vida em geral; exige a manutenção da pobreza, da fome, pois como vimos, a acumulação capitalista se beneficia dos fluxos de capital das regiões mais pobres às regiões mais ricas e da própria imigração dos povos pobres aos países mais ricos. Lá, esses povos pobres podem produzir mais-valia inclusive em regime de mais-valia absoluta, além da relativa. Exige a guerra como importante instrumento de realização da mais-valia e exige, assim, a destruição das culturas milenares e da riqueza humana. A produção capitalista exporta a padronização cultural, exporta uma maneira de viver em que os homens se sacrificam em troca da subsistência diária. Quando não havendo condições para adquirir essa subsistência miserável, força-se o uso da violência, da ilegalidade, da prostituição, da mercantilização de todas as esferas da vida.

O mundo fetichizado do capital dinheiro parece, aos olhos daqueles que dele se beneficiam ou daqueles que ainda não descobriram o que há por detrás da névoa, o melhor dos mundos. Um mundo onde, somente pelo fato de eu ter dinheiro, consigo mais dinheiro. É um mundo onde não é preciso roubar, produzir, comprar nem vender. Só por ser proprietário privado da riqueza em sua forma abstrata, dispõe-se do direito de apropriar-se da riqueza social. A circulação do capital deixa transparecer que o motor do capitalismo é o dinheiro e obscurece as relações sociais. Contudo, a ciência ainda não foi capaz de criar uma árvore de dinheiro e, deixando de lado a ficção, sabemos que o dinheiro não nasce do dinheiro. Este é a mera expressão do processo produtivo, é a expressão desenvolvida da relação de classes. O capital, deixamos explícito em diversas passagens acima, é uma totalidade que aparece dividida como os dois lados de uma mesma moeda. Foi para verificar, por fim, no mundo concreto, para verificar a realidade do mundo moderno que achamos prudente a realização deste artigo. As evidências e corroborações para as idéias aqui apresentadas estão diante de nós e muito visíveis para aqueles que olham atentamente as ruas de nossas cidades.

 

Referências

BELLUZZO, L. G. Finança global e ciclos de expansão. In: FIORI, J. L. (Org.), Estados e moedas no desenvolvimento das nações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 87-117.

CHESNAIS, F. A ‘nova economia’: uma conjuntura própria à potência econômica estadunidense. In: CHESNAIS, F. et al. Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Xamã, 2003. p. 43-70.

HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 11. ed. São Paulo: Loyola, 2002.

__________. Los límites del capitalismo y la teoría marxista. México, D.F.: Fondo de Cultura Econômica, 1990.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro III, Volume V. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

__________. O rendimento e suas fontes: a economia vulgar. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).

SENNETT, R. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

[1] Mais adiante, Marx afirmará que esses capitalistas diferentes existem como sócios: um sendo o proprietário jurídico do capital, e o outro, o proprietário econômico durante o tempo em que o aplica.

[2] O Estado moderno funciona, por meio da dívida pública, como um grande mediador que transfere a renda das famílias (e proporcionalmente das classes mais pobres de nossa sociedade) sob a forma de tributos, para os grandes centros de especulação e acumulação financeira. Além da mais-valia, do excedente social centralizado no sistema de crédito, suga-se do trabalhador sua própria renda, isto é, aquela parte do produto de seu trabalho que não lhe é expropriado.

[3] Até aqui compomos nosso instrumental teórico de forma a dar o embasamento necessário para passarmos à segunda etapa de nosso trabalho: a análise das transformações capitalistas no mundo moderno com ênfase na mudança de regime de acumulação.

 

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Publicado em 12.12.07 - Última atualização: 13 dezembro, 2007.