O conjunto das relações internacionais, de acordo com o
filósofo político italiano Norberto Bobbio, não se caracteriza pelo método
democrático, no entanto, o é potencialmente. Sendo que tais relações
repousam em um sistema de equilíbrio de poder, auferindo-se a sociedade
internacional um caráter anárquico que funciona a partir de mecanismos de
autodefesa, no qual, o poder só pode contrapor-se a outro poder, movendo-se
a partir do elemento surpresa, ou seja, a partir de um poder não-público, e,
portanto, oculto.
Os poderes, na esfera das relações internacionais,
constituem-se enquanto poderes invisíveis, permanecendo em um estado
hobbesiano, e, portanto, nos termos kantianos, não se alcançou à maioridade
no nível das relações internacionais, onde o poder é e só pode ser exercido
através do uso público da razão. Predomina-se, na esfera das relações
internacionais, o arcana imperii, se legitimando como mecanismo de
autodefesa contra os demais Estados, que também funcionam sob a égide do
poder oculto, utilizando-se do mesmo expediente.
Segundo Bobbio, ao examinar as relações entre democracia
e autocracia, em um nível interno, e as relações entre paz e guerra,
em um nível externo, pôde-se observar uma possível correspondência entre as
relações internas e externas. Enquanto que, por um lado, a relação entre
autocracia e democracia diz respeito e ilustra as relações políticas do
Estado-nação, por outro, a relação entre paz e guerra diz respeito e busca
ilustrar as relações internacionais.
As duas grandes dicotomias do pensamento político –
paz-guerra e democracia-despotismo – convergem e permitem traçar um quadro
no qual se podem esboçar em grandes linhas as diversas e possíveis
perspectivas da história futura. O despotismo pode ser considerado a
continuação da guerra dentro dos Estados, e a democracia pode ser
considerada, no sistema internacional, como a maneira de expandir e de
tornar mais segura a paz fora das fronteiras dos Estados específicos (BOBBIO,
2003b: p.9).
A ausência de um poder comum, supranacional, que regule e
garanta o cumprimento dos pactos entre as nações é que lhe confere este
caráter anárquico, no qual, o poder disperso acaba por possibilitar o uso
unilateral da força de um ou outro Estado-nação. Todavia, é imperativo
lembrar que uma guerra é sempre permeada pelo seu caráter coletivo, no qual,
é caracterizada por uma força exercida não de maneira individual, mas
coletiva, que tem por incumbência resolver as controvérsias pelo uso da
razão da espada.
Para caracterizar a paz, portanto, torna-se necessário
caracterizar a guerra. A guerra, conseqüentemente, em oposição à paz,
pressupõe o caráter organizativo de um determinado Estado-nação para tal,
pois se exige nesse momento a presença de um aparato coercitivo, previamente
constituído, para empreender e trilhar tal caminho. É a organização através
de um forte aparato coercitivo e a constituição de uma força coletiva que
atribui ao Estado, sua característica de estado de guerra.
Em oposição ao estado de guerra podemos caracterizar o estado
de paz, que para Bobbio, caracteriza-se como estado de não-guerra. No
entanto, para fazer a guerra é necessário constituir uma força organizativa
por duas vias: a força coercitiva através das armas; e a força coletiva
através do convencimento. Sendo que só é plausível torná-la crível em um
estado de paz. A paz, portanto, só se torna possível através e mediante a
preparação para a guerra. Guerra e paz, consequentemente, são termos
antitéticos, separados por uma tênue linha, na qual a afirmação de um dos
elementos só se torna possível e viável através da negação e mediante o
exercício do outro.
No Estado liberal burguês o elemento garantidor da paz é a
constituição de um ordenamento jurídico através do direito. O contrato, ou,
se quiser, o neocontratualismo, emerge como elemento garantidor da paz, como
instrumento racional-legal que se converte em reordenador das antinomias
sociais, não passiveis de resolução, segundo o pensamento neokantiano. No
qual, emerge um conjunto de regras estatuídas previamente, garantidas por um
poder comum através do monopólio legítimo da força. Como nas relações
internacionais não há este estatuto juridicizante, capaz de garantir a paz,
através do poder coercitivo, emerge o poder unilateral que se impõem através
da força. A força, deste modo, entre os Estados-nação, diferentemente do que
ocorre no interior de cada um deles, ao invés de ser permeada e mediada pelo
direito passa a converter-se em guerra.
A guerra, a partir de tal acepção, assume duas vertentes
através de juízos de valor axiológicos: de um lado assume o caráter
negativo, quando esta se constitui para submeter e pôr fim aos direitos
individuais, convertendo-se na chamada guerra injusta; e pelo outro,
assume o caráter positivo, quando tem por finalidade estabelecer o direito,
que foi violado por um determinado membro da comunidade internacional,
constituindo-se assim na chamada guerra justa.
A legitimação da guerra justa depende de sua relação com o
direito. É o direito, em termos hobbesianos, que confere à espada da
guerra o caráter de espada da justiça. Ou em termos kantianos, é
o direito através do contrato que retira o homem das trevas, da menoridade,
e o converte em um ser racional, que alcança a maioridade através do uso
público da razão. Daí a guerra assumir o caráter de justa, e, portanto,
legítima.
É partindo de tal legitimidade que Kant desenvolve um projeto
de paz perpétua em contraposição a paz parcial, rompendo-se assim com a
doutrina do equilíbrio do poder, na qual, a paz é sempre uma situação
provisória. Para Kant, a única possibilidade de paz perpétua só poderia ser
concebida a partir da hipótese hobbesiana, no entanto, aplicada em uma
esfera internacional. Ou seja, de conceber uma situação humana natural, na
qual, o indivíduo caracterizara-se por ser negativo, e, portanto, teria que
abrir mão de sua liberdade em nome de um poder comum que pudesse
garantir a liberdade, através do uso legítimo da força, limitando-a. A
hipótese hobbesiana transposta para a esfera das relações internacionais por
Kant, permitiria que se constituísse um soberano, com o poder de resolver as
contendas entre Estados, através do uso e monopólio legítimo da força, ou
seja, através da espada. Emerge, conseqüentemente, o estado de paz perpétua
e universal.
[...] quem cumpre primeiro não tem a segurança de que o outro
cumprirá depois, já que os laços das palavras são fracos demais para refrear
a ambição humana, a avareza, a cólera, e outras paixões dos homens, quando
estes não sentem o temor de um poder coercitivo, poder que não cabe supor
que não exista na condição de mera natureza, na qual todos os homens são
iguais e juízes da retidão de seus próprios temores. Por isso, quem cumpre
primeiro confia-se a seu inimigo, contrariando o direito [...] de defender
sua vida (HOBBES, 1974: p.132).
A tese de Kant, fundada na hipótese hobbesiana, é a de que os
Estados nacionais, assim como os indivíduos, deveriam sair de seu estado
natural e pré-político, em suas relações uns com os outros, e constituir um
poder comum capaz de impor pela força os acordos e os pactos estabelecidos,
evitando a invasão mútua entre os Estados. Para edificar tal empreendimento,
os Estados deveriam instituir um pacto que os integrasse em uma confederação
permanente, na qual se constituiria uma confederação republicana, fundada no
controle dos cidadãos, para que esta não viesse a ser uma monarquia
universal.
O propósito de Kant era, portanto, não fundar o Estado dos
Estados, mas estabelecer uma sociedade de Estados que desse vida e corpo
político a uma comunidade internacional, garantindo a paz perpétua.
Entretanto, a garantia da paz perpétua pressuporia que todos os
Estados-nação fossem, fundamentalmente, instituídos a partir da forma de
governo republicana. O filósofo alemão, Immanuel Kant, parte do princípio
iluminista que compreende como causa precípua das guerras, os próprios
regimes despóticos. Portanto, para ultimar a guerra, necessitar-se-ia
debelar as monarquias, e, em seu lugar, estabelecer formas de governos
baseadas na soberania popular. Portanto, o tratado de paz perpétua,
proposto na teoria kantiana, estabelece como pressuposto para a fundação de
uma confederação de Estados, e por conseqüência para a garantia da paz
perpétua, que todos os Estados monárquicos se convertessem em Estados
democráticos.
Diferentemente das relações que se estabelecem no
Estado-nação, no qual há um poder público unificado que garanta a ordem
interna do país, nas relações internacionais não se verifica a constituição
deste poder, com características supranacionais, que tivesse por intuito
ordenar as relações externas dos Estados-nacionais. Ou seja, não há uma
autoridade equivalente à do Estado nacional devido a não unificação do poder
internacional que se encontra disperso na realidade contemporânea.
Assim sendo, a ingovernabilidade das relações internacionais
faz emergir, nestes termos, um paradoxo entre a ordem interna e a
desordem externa que colocam em risco a própria democracia, seja em uma
perspectiva interna, seja em uma perspectiva externa. Partindo do
pressuposto, segundo o qual, a melhor maneira de assegurar a paz é a
expansão da democracia no âmbito internacional, a ausência de um poder
supranacional democrático, capaz de regular e ordenar as relações
internacionais pode, antes, levar a descaminhos.
Deste modo, somente com a democratização do sistema
internacional pode-se pensar na tão desejada paz perpétua kantiana,
sendo que tal processo só poderia avançar a partir da defesa inconteste dos
direitos humanos acima dos Estados. Há uma necessária ligação tripartite,
entre: democracia, direitos humanos e paz. Tal ligação seria necessária para
a garantia desses três elementos, que só poderiam existir, se e somente se,
de maneira mútua, nunca separadamente.
Norberto Bobbio, muito influenciado e adepto confesso da
filosofia iluminista, parte do princípio de que a razão é o elemento
substancial e progressivo da modernidade. Para ele, o iluminismo legou à
modernidade a razão, e através dessa racionalidade tornou-se possível o
homem tomar o seu destino em mãos, não ficando a mercê das intempéries do
destino, orientando-se e orientando os rumos da sociedade através de
projetos racionais, dos quais, se acreditara no progresso da modernidade, no
domínio do conhecimento, enfim, no reino da razão.
Torna-se necessário – e aqui Bobbio busca seguir o projeto de
Kant – naquilo que se refere à paz perpétua, que se democratize o sistema
internacional através de um funcionamento semelhante a um sistema
republicano: uma confederação permanente de Estados independentes que se
comprometessem primeiramente, através do pacto negativo, não se invadirem
mutuamente. Ou seja, um pacto de não-agressão. Para logo em seguida
assegurar a constituição de um pacto positivo, que criasse leis para regular
as relações internacionais de maneira a não necessitarem do uso da força. E
como último elemento democratizador, submeterem-se a um poder comum que
fizesse prevalecer o pacto e as leis de adesão inconteste e reconhecimento
das liberdades civil e política.
Partindo de Kant, Norberto Bobbio, sugere uma fórmula
normativa que pudesse solucionar a relação da guerra e da paz entre os
Estados, para tanto, seria necessário à emergência de um poder político
unificado e comum a todos, que fosse capaz de impor a ordem legítima através
das normas anteriormente acordadas entre as partes. Daí o título de um dos
seus livros que trata do assunto: O terceiro ausente, no qual, Bobbio
caracteriza a sua ausência – do poder comum na esfera das relações entre
Estados – como um estado de anomia. Bobbio parte da premissa da
existência de um estado de natureza hobbesiano na esfera das relações
internacionais, que só poderia cessar através do uso da razão, ou seja,
através do contrato. Só por meio do contrato estabelecido em comum acordo
entre os Estados, ou seja, através da fórmula democrática liberal,
poder-se-ia pensar na emergência de uma paz perene e sólida, isto é, no
projeto de paz perpétua kantiano. Todavia, como o próprio Bobbio advertira,
nem a democracia é necessariamente liberal nem o liberalismo o é
necessariamente democrático.
É de acordo com esta linha de pensamento que Bobbio argumenta
que o regime democrático nascera a partir de três pactos: o primeiro, diz
respeito a um pacto negativo, ou seja, um pacto de não-agressão entre as
partes conflitantes, no qual, de maneira recíproca extingue-se o uso da
força como alternativa para resolver ou mediar às relações entre as partes
divergentes; o segundo, diz respeito a um pacto positivo, no qual, as partes
em comum acordo e de maneira mútua decidem contratar, estabelecendo,
previamente, regras para resolver pacificamente possíveis desavenças,
saindo-se assim do estado de natureza; o terceiro e último pacto, diz
respeito à necessidade de ambas as partes, de maneira recíproca e em comum
acordo, atribuírem a um terceiro elemento, situado acima das partes, à
capacidade de fazer respeitar os pactos, pela força da espada, se
necessário, constituindo-se assim uma sociedade civil. Sendo a instituição
de um poder comum, o elemento garantidor do cumprimento dos pactos
pelas partes divergentes.
Os desafios da democracia do final do segundo milênio, e,
portanto, também do século XXI, colocados pelo pensador italiano Norberto
Bobbio estão no fato de que se torna necessário, para a saúde da democracia,
que se caminhe por duas vias conexas e inter-relacionadas: por um lado
necessitar-se-ia a ampliação da esfera dos Estados democráticos; e pelo
outro, da democratização do sistema internacional em seu conjunto. Tais vias
deveriam, segundo Bobbio, caminhar de maneira interdependente, na qual, uma
passaria a ser garantidora do complemento e constituição da outra. Um Estado
democrático, de acordo com Bobbio, só poderia se desenvolver e se expandir à
medida que habitasse uma comunidade de Estados democráticos, pois o
contrário representaria uma democracia incompleta. Parte-se do princípio de
que, somente se todos os Estados contemporâneos constituídos fossem
republicanos, formando uma comunidade democrática, poder-se-ia constituir a
tão desejada paz perpétua, idealizada por Kant.
A democratização das relações entre os Estados nacionais,
portanto, constitui-se em baluarte da democracia. Ou seja, somente através
da expansão da fórmula democrática ocidental, da democracia burguesa a todo
o globo terrestre, podemos pensar em uma possibilidade de paz perpétua. A
democracia, de acordo com tal discurso, assume um caráter civilizador. Pois
a democracia não pode ser entendida como um ser, que existe por si,
tampouco, como um elemento neutro que tem vontade própria. Mas, e,
substancialmente, como uma forma de dominação que como o próprio Bobbio diz,
define quem e como está autorizado a participar. Desta forma,
abrem-se a possibilidade de legitimação das guerras travadas pelas grandes
potências capitalistas, como guerras justas. Justificando-as através
do discurso de expansão da democracia como única possibilidade de garantir a
paz. A única possibilidade de garantir a paz é através da guerra, dita
justa, que assume um caráter civilizador, mas que tem como intuito debelar
seus oponentes. É através da destruição de toda e qualquer forma de
organização política, social e cultural diferente da fórmula democrática
burguesa, que se pode garantir a paz perpétua.
Segundo Bobbio é a constituição deste poder comum que
garante o nascimento e a manutenção de um Estado democrático, pois o
monopólio legítimo da força, atribuído a tal poder, torna-se o elemento
garantidor das liberdades civis e dos direitos políticos:
[...] o exercício exclusivo da força por parte do Estado
democrático deve servir para garantir o uso pacifico das liberdades civis e
políticas, e, por meio delas, para definir as decisões coletivas mediante o
debate livre e a contagem de votos. A rigor o direito de reunião está
garantido, desde que os participantes não portem armas. O direito de
associação está reconhecido, com exceção das sociedades militares e
paramilitares. A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são
reconhecidas, desde que não sejam usadas para instigar a violência. A
principal forma de oposição de massas, que é a greve, é uma forma típica de
oposição não violenta. A própria desobediência civil pode ser tolerada em
casos extremos, caso se realize por meio de manifestações pacificas ou como
resistência passiva (BOBBIO, 2003c: p.239).
Ora, toda forma de atuação político-social passa a ser
permissível, desde que não coloque em xeque a democracia burguesa, e não se
constitua em alternativa a ela. Portanto, o princípio da maioria, defendido
pela democracia liberal, tem um limite de validade. Ou seja, o limite de
validade da regra da maioria, tal como foi institucionalizada na democracia
burguesa, está na possibilidade de a própria maioria decidir pela extinção
do princípio da maioria. Portanto, a questão colocada repousa sobre a ética
dos resultados, segundo o qual, se torna necessário garantir o princípio da
maioria instituído pela democracia burguesa, mesmo que a maioria assim não o
queira. Ou melhor, neste
sentido só se poderia pensar de maneira unilateral o princípio
liberal-burguês da maioria, não abrindo possibilidades para se pensar outro
princípio de maioria, fundado em outros parâmetros.
Ora, o princípio da maioria, e, portanto, das liberdades
civis e políticas, são permitidos na democracia liberal até o momento em que
a maioria não coloque em risco a ordem social liberal. Portanto, os direitos
são garantidos pela democracia liberal até o momento em que se garanta a
ordem democrática liberal-burguesa, sob pena de utilizar-se de expedientes
não democráticos para se manter a ordem democrática, cassando os direitos
políticos e civis daqueles que a ameaçam. Eis os limites da validade da
regra da maioria. Portanto, a regra da maioria aqui não tem uma validade
absoluta, e sim relativa, na medida em que só é válida enquanto não admita
sua própria extinção – pelo menos da maneira como foi concebida no Estado
liberal-burguês – mesmo que a maioria assim o decida proceder.
A partir da complexa teia de argumentos construídos por
Bobbio pode-se observar que em uma sociedade policêntrica como a
contemporânea, só se pode haver uma convivência pacífica entre maioria e
minoria, através da constituição, primeiro de uma sociedade civil, depois de
uma comunidade política que a garanta, através do contrato, valendo-se do
monopólio da força se necessário.
Ao se estabelecer às regras do jogo, torna-se necessário que
tais regras apenas sofram alterações à medida que varie a correlação de
forças entre maioria e minoria, emergindo-se assim o compromisso de nunca
rompê-las, apenas reformá-las. O limite das regras do jogo é a própria
ruptura de tais regras.
O limite da democracia moderna está na inviolabilidade de
seus fundamentos, ou seja, na garantia dos ditos direitos invioláveis do
homem e do cidadão, mesmo que o homem e o cidadão deste estatuto não os
queiram, pelo menos da maneira como os concebera a democracia
liberal-burguesa. Ao constituírem-se enquanto pedras elementares das
constituições liberais, os direitos do homem e do cidadão assumem a forma de
um ordenamento jurídico normativo indelével, e, portanto, inextinguível, que
não podem ser limitados e muito menos suprimidos, mesmo que tal decisão
advenha do princípio da maioria, constituído sob outros parâmetros que não o
liberal-burguês.
por MARCELO LIRA SILVA