por DAIANE CONCEIÇÃO SIMÕES SANTOS

Discente do curso de Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Bolsista de Iniciação científica / CNPq. Orientadora: Sandra Maria Pereira do Sacramento. Grupo de pesquisa: Representações Identitárias Híbridas da Nação.

 

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Literatura sul baiana:

denúncia das relações de poder masculino

Daiane Conceição Simões Santos

 

Resumo: Tomando como ponto de partida a literatura sul baiana, este trabalho objetiva estudar as relações de poder masculino, que são impostas à figura feminina por meio de regras sociais. O objeto de análise foi à obra de Jorge Amado, Tocaia grande: A Face Obscura. Nela, percebeu-se que o poder masculino, estabelecido na sociedade, caracteriza as relações de classe, gênero e etnia, no século XIX. Para tanto, foi analisado também o comportamento da figura feminina na obra, e verificou-se que elas apresentam uma identidade híbrida, podendo ser percebida diferentemente do inventário etnocêntrico europeu. A pesquisa busca contribuir para o reconhecimento das características identitárias brasileiras que se apresentam na literatura sul-baiana.

Palavras-chave: poder masculino, representação feminina, literatura sul baiana.

 

Abstract: Taking south baian literature, this work aims to study the relations of masculine power existing in that are imposed to the feminine figure through social rules. The object of analysis was the romance by Jorge Amado, Tocaia Grande: A Face Obscura. It was perceived that the masculine power, established in the society, characterizes the relations of class, genre and race, XIX century. It also had been analyzed the behavior of the feminine figure in the romance, and it was verified that they present hybrid features, in contrast to the European ethnocentric tradition. The research contributes to the recognition of the Brazilian brazilin features that are presented in south baian literature.

Key words: masculine power, feminine representation, south baian literature

 

A literatura sul-baiana que exibe a sociedade cacaueira do século XIX, especialmente por Jorge Amado, em Tocaia Grande: A Face Obscura apresenta o poder androcêntrico estabelecido nas relações sociais, onde o homem monopoliza as decisões em suas mãos. O poder em si não existe, o que existe são relações que se estabelecem para impor certas regras de dominação. O poder é uma prática social construída historicamente. (FOUCAULT, 1979: X)

Antes de explanar a questão das relações de poder impostas ao sexo feminino, explícitas na literatura sul-baiana, faz-se necessário refletir acerca do contexto sócio-cultural desta localidade, enquanto terra colonizada, ao final do século XIX, e comparar essa realidade ao contexto europeu, continente colonizador, observando as trocas culturais. Desta forma, ampliaremos o entendimento sobre a estruturação da sociedade cacaueira, e conseqüentemente, sobre os mecanismos que caracterizavam a imposição do poder androcêntrico naquela região.

1-O expansionismo europeu e a hibridação no Brasil

A colonização do nosso país, em 1500, impulsionada pela expansão européia marcou o início da hibridização cultural, que foi contínua durante o povoamento no litoral sul da Bahia, não somente através da mistura de etnias pelo simples contato, mas, principalmente, pelas trocas culturais que se solidificaram ao longo do tempo e constituem a cultura brasileira moderna. Hábitos europeus foram incorporados ao modo de vida simples do índio nativo e do negro escravizado, assim como o próprio colonizador assimilou traços culturais do povo dominado. Do “entrelaçamento” de culturas surgiu a identidade do nosso país. Essa cultura híbrida foi documentada na literatura, especialmente por Jorge Amado, cuja obra Tocaia Grande: A face Obscura é alvo desta pesquisa.  Ele retratou o Brasil como resultado da mesclagem de culturas e etnias. E, na condição de escritor transculturador, conta a história de sua própria região, ressaltando os traços mais peculiares e desmistificando a visão de país colonizado. “Escritores e poetas, nos anos 20 e 30 do século XX contribuíram para a consolidação de uma identidade cultural brasileira ao reagirem de modo sistemático aos paradigmas sócio-culturais vigentes, baseados no quadro de referências herdadas da cultura colonizadora”. (CHAVES& MACEDO 2003:42)

Na qualidade de escritor transculturador, Jorge Amado esclarece a visão coletiva da cultura nacional formada pela interatividade entre colonizador e colonizado, não através da simples reprodução do modelo eurocêntrico. Assim, revela-se o nosso Brasil, um país de cultura heterogênea, com influência do colonizador, mas que, em essência, tem a tradição do índio e do negro. Nesse ângulo, a literatura contribui para a consolidação da identidade cultural brasileira, negando os paradigmas sócio-culturais pré-estabelecidos. Jorge, assim, supera a visão de escritores que definiram o Brasil pelas lentes do colonizador. A ficção foi, para ele, um meio de contar a história regional em todas as suas nuances, a partir da sua visão enquanto pessoa que nasceu e viveu naquele cenário retratado. Abordou o povoamento, as lutas sangrentas pela posse das terras cobiçadas, por imigrantes europeus, árabes, sergipanos e alagoanos, que objetivavam enriquecer com os lucros do cacau e também o perfil feminino no litoral sul da Bahia.

Ao final do século XIX, a Europa já se encontrava em processo de industrialização, ao passo que o Brasil, especificamente o sul da Bahia, mantinha a economia ruralista monocultora. O povoamento daquela região era gradativo, impulsionado pela possibilidade de enriquecimento gerado pelo plantio do cacau. Tal fato foi registrado em Tocaia Grande: A Face Obscura.

“Chegado ao Brasil há quinze anos, Fadul viera para trabalhar e enriquecer. Enriquecer é a meta de todos os homens, para alcançá-la Deus lhes dá alma e inteligência. Uns cumprem à risca o mandato do Senhor, ganham dinheiro e se estabelecem, outros não conseguem; alma pequena, inteligência curta ou tão somente pouca disposição para o trabalho, preguiça, malandrice”. (AMADO, 1998:26)

A lavoura cacaueira norteou a estruturação social, econômica e o desenvolvimento da nação grapiúna, entretanto, não deu margem à industrialização. Paralelamente, no litoral sul baiano, as relações de trabalho eram regidas pelo coronelismo. Não havia direitos para o trabalhador. Ele “pertencia” ao seu dono, o coronel, o dono das terras. Naquele momento histórico, a organização econômica européia já se baseava nos ideais iluministas: igualdade, fraternidade e liberdade, porém, no Brasil, principalmente, no litoral sul da Bahia, o modelo que prevalecia era o escravista, baseado na exploração da mão - de - obra. Seria lógico pensar que se a Europa evoluiu no modelo de organização econômica, adotando a industrialização e os ideais iluministas para reger as relações de trabalho, o Brasil seguiria a mesma linha. Mas sabemos que isso não aconteceu de imediato.

O colonizador visava à exploração de tudo o que fosse rentável na terra conquistada; e não a “construção” de uma nova civilização, nos moldes europeus. Se, no momento da expansão marítima, a economia européia era essencialmente agrária, as riquezas naturais encontradas no solo brasileiro subsidiariam o comércio europeu. Justifica-se desta forma o fato de o Brasil não adotar a industrialização ao mesmo tempo em que o seu colonizador.

Desde o início da colonização, o europeu invadiu a terra brasileira e tomou posse dela e dos nativos. Em situação análoga, algum tempo depois, o próprio colonizado, após a República independente, no fim do século XIX, agiu de forma arbitrária. No litoral sul da Bahia, travava-se luta sangrenta pela posse das terras que renderiam muitos lucros, com a comercialização do cacau. O colonizado, ao final do século XIX, criou a figura do coronel, pois ia além de tomar posse da terra. Nesse espaço, ele construía sua família, seu patrimônio e fincava suas raízes em bases interpessoais hierárquicas e plenas de arbitrarismo.

O coronel contemplou os corpos ensangüentados. Berilo morrera com o revólver na mão, não tivera ensejo de atirar: a bala arrancara-lhe o tampo da cabeça, o Coronel desviou a vista. Compreendeu que aquela carnificina significava o fim, já não tinha meios para prosseguir. Trancou a aflição dentro do peito, não deu mostras, não deixou que os demais percebessem. Elevou a voz no comando, ditou ordens (AMADO 1998:6).

Da cultura européia, herdou-se esse espírito de conquista, que passou a se chamar coronelismo. Porém, observam-se algumas diferenças. O colonizador europeu queria usufruir a terra brasileira, sem intenção de cuidar, de construir, apenas para tirar dela o que fosse útil. Ele “sugava” da terra e, em seguida, a abandonava.  Todos queriam extrair do solo excessivos benefícios, sem sacrifícios. “Ou como já dizia o mais antigo dos historiadores, queria servir-se da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para desfrutarem e a deixarem destruída”. (HOLANDA, 2005: 52)

Como o sul da Bahia não seguiu o caminho da industrialização, por estar numa outra coordenada histórica, o extrativismo norteou a economia sendo a luta o que garantia a posse de terras e, conseqüentemente, a riqueza.  Portanto, prevalecia aquele que tivesse mais garra para vencer as batalhas sangrentas. Essa forma de comportamento determinou as relações interpessoais, sendo o patriarcalismo estabelecido aí em bases assimétricas, entre pai-filho, patrão-empregado e, logicamente, entre homem-mulher.

2-A imposição do poder masculino em Tocaia Grande: A Face Obscura

A mulher da fase colonial, tanto a brasileira quanto a européia, evidentemente, foi submetida ao poder androcêntrico. Ambas sofreram exclusões semelhantes, mesmo em contextos histórico-culturais dissociados. A sociedade sempre foi estruturada a partir da ótica masculina. O homem posicionou-se, sempre, ao longo da história, como agente construtor e o papel de “figurante”, nesse processo, era dimensionado à mulher. “... Calada e submissa, trabalhadeira e asseada...” (AMADO, 1998:51).

A mulher retratada por Jorge Amado tem forte carga de erotismo. É sensual e forte, transgredindo, muitas vezes, as convenções sociais, mas, ao mesmo tempo, traduz a opressão sofrida por seu gênero. O simples fato de ser mulher já lhe confere distância da organização política e econômica na sociedade. Em Irisópolis, a cidade ficcional de Jorge Amado, o patriarcalismo também imperava e a figura feminina era submetida ao poder androcêntrico, que era acentuado pelo coronelismo. Comparada a um mero objeto, deveria apenas satisfazer os desejos sexuais masculinos. Mera espectadora na sociedade e isolada à condição de fêmea reprodutora, no romance alvo desta pesquisa, a mulher sul - baiana é representada através da descrição minuciosa de seu corpo, com um erotismo exacerbado.

Moça alta, bem feita, o rosto de lua cheia, as ancas de égua, Malena tomou da mão de Valério, apertou-lhe os dedos brutos, recolheu a moeda, percorreu com a unha a linha do destino numa cócega leve e excitante que descia da palma da mão para os quibas do tangedor de burros (AMADO, 1998:88).

Um dos mecanismos de imposição do poder masculino, engendrados na sociedade sul-baiana, durante o século XIX, era o casamento. Determinado para a mulher como forma de manter patrimônios, o casamento era realizado, na maioria das vezes, entre famílias abastadas, e visava atribuir à figura feminina a condição de mãe e esposa.

Que Jamil escolhesse noivo para a filha e o impusesse, tratava-se de procedimento habitual, correto e justo, digno de aplausos. Pai extremoso, preocupado com a felicidade e o futuro de Aruza, assim agia para lhe assegurar lar abençoado, vida tranqüila, contínuo bem-estar. A boa tradição, provada e comprovada, incontestada, mandava que os pais, responsáveis pela sorte das filhas, elegessem entre os varões do reino ainda solteiros o melhor de todos para lhe propor aliança e dote (AMADO, 1998:120).

Tal imposição nem sempre era cumprida pelas filhas dos coronéis. Havia, entre elas, quem infringisse as regras, tentando escolher o parceiro para o próprio casamento. É o caso da personagem Aruza, filha de Jamil Skaf, comerciante de colchões de luxo e móveis em Irisópolis. “Prenha? Se não estava, deveria estar, segundo as más línguas cochichavam. Aruza e o doutor Epitácio Nascimento, bacharel sem causas, havia enfrentado as lágrimas de dona Jordana e a fúria de Jamil e tinha confessado o mau passo, fruto de amor desesperado.” (AMADO, 1998:124).

Além do gênero, a classe e a etnia definiam o destino da mulher, em Irisópolis, a cidade ficcional do romance Tocaia Grande: A Face Obscura e também no Brasil real ao final do século XIX.  Os noivos não se casavam por amor, e sim para atender aos interesses de ambas as famílias. Essa condição perpetuava a condição de subalternidade da mulher em relação ao homem. O espaço social que lhe cabia era o lar. A fidelidade conjugal era sustentada pela imagem da boa esposa, cujos pensamentos, desejos e ações eram neutralizados pela pressão social. O adultério era permitido para o homem. Mas a esposa que traía o marido enlameava sua imagem diante da sociedade. Entretanto, mesmo no âmbito das esposas de coronéis havia casos de traição. Nesse aspecto, observa-se a superação feminina à ordem estabelecida a partir do ideário europeu.

Ao regressar de Guadalupe onde o marido, tenente-coronel de artilharia, comandara a guarnição, Madeleine fizera duas declarações peremptórias: a) todos os tenentes-coronéis nascem com irrevogável vocação para corno-manso, nem a mais pateta da esposas pode impedir que cumpram seu destino; b)os negros, em matéria de cama, são absolutamente insuperáveis. Não havia melhor prova da primeira afirmativa do que o próprio esposo de Madeleine: fora ele que trouxera para casa, na qualidade de ordenança, o negro Dodum, exatamente a melhor prova, a mais esplêndida da segunda revelação (AMADO, 1998:45).

As moças, oriundas de famílias ricas, eram preparadas somente para o casamento. Ressalta-se que essa regra era comumente atribuída às mulheres brancas ou descendentes destas, cujo destino era constituir família. Tinham acesso à educação para o recato e as regras de etiqueta.

“─ Em dezembro se forma em professora, toca piano, recita poesia de cabeça. Muito instruída, não poupei dinheiro. Silenciou como se calculasse quanto gastara com a educação da herdeira, mas logo prosseguiu enumerando virtudes: ─ Devota e trabalhadora, obediente”. (AMADO, 1998:117)

As mulheres pobres e mestiças eram naturalmente conduzidas pela hierarquia social ao trabalho doméstico escravo ou à prostituição. Em Irisópolis, havia muitas personagens que traduziam esse perfil. Entre elas, Dalila, Epifânia, Bernarda, Zuleica e Coroca. A narrativa amadiana não demonstra nenhum julgamento preconceituoso em relação à condição social representada por essas personagens. Pelas regras sociais, elas não eram destinadas ao casamento, primeiro pela questão financeira, não tinham como perpetuar a riqueza do possível marido, segundo, pelo preconceito que separava as negras e as mestiças da ascensão social. Essas mulheres não tinham nenhum acesso à educação para o lar, não sabiam ler, escrever nem tinham quaisquer meios para aprender regras de etiqueta, que as senhoras casadas deviam, por sua vez, conhecer bem.

As meretrizes tinham liberdade concebida, pois não se sentiam inibidas ao praticar sua sexualidade. Porém, existia entre elas um tipo de acordo. Quando resolviam não atender nenhum homem para o “desfrute”, elas até travavam lutas corporais para defender seus direitos.

Ora, as putas, na influência dos festejos, haviam decidido fechar o balaio, não aceitando fregueses nas noites dos forrós de junho: festa é festa. Estavam na intenção de divertir-se, dançar, folgar, beber e rir, namorar, se fosse o caso. Não sendo noite igual às outras todas ─ noites de afanar-se, de suar em peito estranho, de representar gemendo sem sentir vontade, gozando de mentira ─ as três recusaram em uníssono as ofertas do apatacado boiadeiro e seus dois subordinados: hoje não, vancês desculpem, fica pra outra vez (AMADO, 1998:203).

Na concepção delas, o meretrício não as tornava mercadoria. Esse comportamento transgride os padrões advindos da ideologia européia. Elas eram objeto de prazer, sim, mas não pertenciam a ninguém.

−Pensei que eu tinha rabicho pelo turco. ─ Possa ser. Mas não vou morar com ninguém por xodó ou por dinheiro. ─Pensativa, os olhos no chão explicou: ─Viver junto, que nem marido e mulher só por bem de amor que dura a vida toda que magoa a maldita e o coração. Não podendo ser assim, pra mim se acabou. Mais melhor ser rapariga (AMADO, 1998:68,69).

As prostitutas não se sentiam ligadas a nenhum homem a ponto de ceder somente quando ele quisesse. Essas mulheres eram donas de si mesmas e usavam o próprio corpo para a sobrevivência, sem culpa alguma, já que não lhes restava alternativa. A sociedade as excluía por serem mulheres, pobres e mestiças. O gênero, a classe e a etnia norteavam o destino delas.  Então, faziam do meretrício o seu sentido de suas vidas.

Aprendeu rápido o bastante e se considerou sabida por não se deixar dominar por nenhum homem, não viver com as outras arrenegando pelos cantos a inconstância dos xodós. Tampouco aceitou propostas para desfrutar de abastadas mancebias, escrava sob o relho de um rico coronel. Preferia vagar ao sabor das contingências em cidades, povoados, lugarejos, em mal paradas caixa-pregos que nem Tocaia grande. Livre e soberana (AMADO, 1998: 75).

A figura feminina representada em Tocaia Grande: A face Obscura traduz o perfil da mulher brasileira, fugindo, portanto, ao estereótipo europeu. Porém, em todo esse contexto social, é evidente o conformismo feminino à sujeição imposta. Entretanto, não havia alternativa, pois, sem direito à educação, à participação social e política e vivendo numa sociedade preconceituosa, machista, ruralista, não industrializada. Não podia ser diferente. Mas, o que fazer para modificar a realidade?

Constatamos algumas transgressões no comportamento das personagens femininas no livro alvo desta pesquisa, mas isso não supõe que o androcentrismo tenha sido superado.  O papel social da mulher, na Europa e no Brasil, foi definido por estratégias androcêntricas excludentes, fundamentadas na ideologia cristã, defendida e difundida no processo de colonização. Nessa ideologia, a mulher devia traduzir a santidade associada à mãe de Jesus Cristo e se dedicar inteiramente ao seu casamento, como se viesse ao mundo somente para a missão de mãe e esposa. Esse comportamento estereotipado indica uma estratégia de dominação masculina.

Desde o princípio da história do mundo, através da imagem de Eva, foi associada à mulher a figura de pecadora, ser inútil, que desvia a atenção do homem para os assuntos sérios da sociedade. Essas meta-narrartivas constituíram um grande respaldo para que o poder masculino se perpetuasse. Em Irisópolis, também, os homens em alguns diálogos, expressam a preocupação de não deixar que suas idéias e decisões sejam direcionadas por alguma mulher. “Ainda não nascera fêmea capaz de obrigá-lo a desistir, de mudar o curso do destino. Quem perde a cabeça por mulher a ponto de abandonar o uso da razão, acaba na penúria, objeto de riso e de debique, avacalhado”. (AMADO, 1998:70)

Se o único ofício que o sexo feminino podia realizar, segundo o ideário androcêntrico, era o de mãe e esposa, por que tanta apreensão? O homem teria consciência que a mulher era capaz de muito mais? Talvez sim.

Apesar de não ter construído sua identidade livre das imposições, a mulher sempre demonstrou sua inteligência. Observando o comportamento das personagens femininas de Tocaia Grande: A Face Obscura, notamos ânsia de praticar o livre arbítrio de suas ações e esse sentimento não era restrito a uma só classe social.

Para que não se faça mau juízo de Adroaldo Muniz Saraiva de Albuquerque, Barão de Ituaçu, e se não lhe atribua a pecha de senhor de engenho atrazadão, sustentáculo de vulgares preconceitos, indigno de esposa européia, civilizada, deve-se dizer que o incidente com Castor, motivo da agressão e da fuga, não teve como causa imediata a intimidade estabelecida entre a baronesa e o ajudante de ferreiro. Ao que tudo indica, os chifres provindos dos bucólicos passatempos de Madama não faziam mossa ao barão.Ele os carregava com dignidade e nonchalance num exemplo aos bárbaros senhores do açúcar de justiça sumária: matavam as sinhás e as sinhazinhas que se atreviam com os negros; aos negros mandavam capar antes de matá-los. (AMADO, 1998: 48, 49)

O desejo de liberdade era pertinente às mulheres de todas as classes sociais, como pudemos perceber, e, além disso, esse anseio não ficava “preso” aos pensamentos da mulher sul-baiana. Ela o transformava em ações e, assim, infringia as regras pré-estabelecidas para o seu gênero: cometia adultério, tentava escolher seu esposo ou praticava a prostituição, segundo suas próprias regras, mesmo enfrentando, em contrapartida, as relações de poder masculino.

A traição da mulata doeu-lhe fundo: não se tratava de simples capricho momentâneo de esposa entediada, risível leviandade, pecado venial; tratava-se de pesado agravo afronta vil, humilhante escárnio ao senhor e amo, culpa imperdoável, pecado mortal. Tolerar tal ultraje significaria abalar os fundamentos da moral e da sociedade (AMADO, 1998: 49).

Nesse fragmento, foi registrada a “traição dupla” sofrida pelo Barão de Ituaçu. Como vimos seu poder masculino reforçado pela alta posição social não o impediram de ser traído pela esposa e também pela mulata que mantinha como amante.

3- Considerações finais

Estabelecemos como meta a análise das relações de poder masculino, presentes na literatura regional. Para tanto, observamos o comportamento das personagens femininas criadas por Jorge Amado, na sua obra Tocaia Grande: A Face Obscura. Desta forma, identificamos alguns tipos de regras sociais impostas, como o matrimônio.

Jorge Amado contribuiu para o reconhecimento das características identitárias brasileiras, explícitas na literatura sul-baiana. Suas personagens femininas etnicamente híbridas, fortes e ousadas reafirmam a brasilidade, pois podem ser percebidas como diferentes do inventário etnocêntrico, apesar de sofrerem imposições androcêntricas, já que, muitas vezes, transgrediam as regras sociais.

Como pudemos observar, neste artigo, a produção cultural local explicitou a situação da mulher no litoral sul-baiano, ao final do século XIX, e possibilitou a problematização de fatores econômicos, sociais e políticos, pertinentes àquela época, que influenciaram a condição feminina.

por DAIANE CONCEIÇÃO SIMÕES SANTOS

 
 

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Publicado em 21.04.07 - Última atualização: 20 agosto, 2007.