Considerações iniciais
A
história do sul da Bahia está diretamente ligada à cultura do Cacau.
História de um povo que surgiu literalmente no "meio do mato", lutou contra
o poder dos "coronéis" e as mulheres, contra o patriarcalismo da época.
A história
do cacau se confunde com a própria história da região. Este poderoso fruto
fez surgir cidades e patrimônios. A criação de uma identidade regional
também foi fruto desta monocultura, sua implementação determinou a História
dos habitantes que se aglomeraram à volta das plantações.
Desde a Colônia até o século XIX, a
produção sul-baiana estava baseada na exploração de madeira e na produção de
farinha, açúcar e cachaça. Segundo Barbosa (2003), além do cultivo da
cana-de-açúcar, outros produtos de subsistência eram cultivados como arroz,
milho, mandioca e algodão. Com a chegada do cacau, trazido para o sul da
Bahia pelo colono francês Frederico Warneau, por volta de 1700, o
florescimento econômico voltou, pois aqui ele encontrou condições climáticas
favoráveis, semelhantes às da sua região de origem. (ANDRADE, 2003). Junto
com o desenvolvimento, chegaram imigrantes de diversos lugares do mundo,
principalmente turcos, que fundaram as primeiras casas de comércio de venda
e compra de cacau. Aqui se inicia a grande luta pela terra tão cobiçada.
Além disso, o coronelismo, tão citado na história brasileira, veio atrelado
a esta cultura.
Depois de ter passado por um ciclo
de cana-de-açúcar, a região vivia a opulência do ciclo do cacau, formando
milionários e coronéis da noite para o dia. Esse momento colaborou para um
intenso movimento de ocupação e povoamento, pois os colonos de diversas
partes migraram para a região. (COELHO FILHO, 2000). Esses grupos, em sua
maioria, eram formados por descendentes dos colonos europeus chegados nas
primeiras décadas do século XIX. Vinhaes (2001) afirma que esse episódio
transformou Ilhéus e as cidades vizinhas num verdadeiro “eldorado”,
despertando, ainda, em outras regiões do estado e do país (Sergipe, Ceará e
Alagoas) o interesse em busca das riquezas geradas pelo cacau, criando uma
corrente migratória intensa.
Esses fatos vão compondo uma nova
paisagem nesse espaço do sul da Bahia e definindo aí uma nova estrutura
social, no corpo de uma fase de prosperidade econômica ainda desconhecida na
região. A presença desses imigrantes foi fundamental no processo da formação
da região o qual possibilitou o desenvolvimento de uma sociedade que
começava a instituir uma estrutura própria.
No Brasil, as relações entre os
brancos e as raças de cor foram desde a primeira metade do século XVI
condicionadas, de um lado pelo sistema de produção econômica – a monocultura
latifundiária; do outro, pela escassez de mulheres brancas, entre os
conquistadores. (Freyre, 2005, p.32-3).
Com a imigração e a migração de
muitos povos, porém, a sociedade sofreu muitas influências em seu cotidiano
e neste contexto, a mulher sul baiana. Por meio dessas influências,
principalmente vindas da Europa, as mulheres de classe alta que habitavam a
região eram vistas, muitas vezes, como mãe, santa, deusa e rainha do lar.
Segundo Sacramento (2000), “a mística do patriarcalismo povoa [o] universo
de uma atmosfera de sacralidade cristã, em que a mulher espelha,
metafisicamente, o modelo virtuoso da mãe de Cristo” (p.64). Esta visão de
cunho místico e mítico define a função das mulheres, identificado-as e
aproximando-as à Maria, mãe de Cristo, a mãe-esposa dessexualizada. Assim,
afirma-se a missão sagrada das mulheres, a sua vocação natural, a sua
procriação como centro disseminado de sentido.
Diante disso, busca-se, neste
texto, levantar alguns pontos para reflexão acerca da figura da mulher
sul-baiana levando em consideração a sua inserção na sociedade. A análise
dar-se-á através de receitas, muitas delas, constantes em obras de Jorge
Amado centradas em torno da cultura cacaueira, especificamente em Tocaia
Grande, a face obscura e Gabriela, cravo e canela. Há que se
destacar que os títulos das receitas fazem menção a um papel complementar da
mulher na sociedade Assim, procura-se perceber as possibilidades para a
produção do conhecimento pelas discussões que circundam em torno do gênero,
da classe e das relações étnicas existentes na região.
O papel atribuído à mulher
sul-baiana
O modelo de recato feminino não
tem origem na obra artística, mas sim na sociedade que lhe deu origem, e as
metas-narrativas da sociedade ocidental encarregaram-se de “gendrar” este
ser. (Sacramento, 2000, p. 59).
Em primeiro lugar, a sociedade
definia como características femininas a fragilidade, o predomínio da
afetividade sobre a racionalidade e o recato. Desta forma, era exigida das
mulheres a submissão. Aquelas dedicadas à função doméstica, de classe média,
desobrigadas de qualquer trabalho produtivo, representam o ideal de
proibição social imposto. “(...) a ela[s] não se destinava[m] a esfera
pública (...). A mulher não era considerada cidadã política” (FALCI, 1007,
p.251). Elas eram excluídas de uma participação efetiva na sociedade, de
ocupar cargos públicos, de assegurar sua própria sobrevivência, e até mesmo,
impedidas do acesso à educação. Segundo Rossi-Doria (1995), a concepção de
esfera pública no Ocidente foi criada tendo como alicerce a exclusão
feminina, não representando seu esquecimento, mas seu encerramento nas
funções domiciliares, vistas como seu dever e destino. Diante disso, a
dicotomia entre esfera pública e privada estribava a representação de papéis
do masculino/feminino, com a exclusão da mulher da esfera pública e sua
opressão na esfera privada.
Ao se casarem, elas se vestiam de
preto, não se perfumavam mais, não amarravam mais os cabelos com laços ou
fitas etc. A função delas era ser “mulher casada” para serem vistas somente
pelos seus maridos (PRIORE, 2005). Seu valor perante a sociedade estava
ligado à honestidade, expressa pelo recato, pelo exercício de suas funções
dentro do lar e pelo número de filhos que daria ao marido, sem mais poder
passear, já que lugar de mulher honesta é no lar. “Percebe-se o endosso
desse papel por parte dos meios médicos, educativos e da imprensa na
formulação de uma série de propostas que visavam ‘educar’ a mulher para seu
papel de guardiã do lar e da família” (D’INCAO, 1997, p. 230). Essas viviam
ocupadas com afazeres domésticos e não davam muita atenção à instrução.
Além disso, nos casamentos das
famílias ricas, o matrimônio significava a transmissão do patrimônio, sendo
sua origem fruto de acordos familiares e não da escolha da pessoa pelo
cônjuge, principalmente, da mulher. Segundo D’Incao (1997) o casamento de
pessoas ricas era usado como um degrau de ascensão social ou uma forma de
manutenção do status. Em outras palavras, os casamentos eram
realizados, na maioria das vezes, sem amor por parte dos cônjuges.
O amor era excluído dessas
transações, pois a paixão era tida como algo fatal. O casamento movido por
sentimento era coibido entre pessoas que não estivessem dentro dos mesmos
grupos mantenedores de poder, uma vez que, dessa forma, garantia-se a
sucessão patriarcal entre os envolvidos. (Sacramento, 2006.).
Dessa maneira, por imposição dos
pais, muitos casamentos eram arranjados e as mulheres se submetiam à união
muito cedo, ainda adolescentes.
Elas se casavam entre os
doze e os quinze anos com homens muito mais velhos (FREYRE, 2005).
Logo, havia meninas, que,
casadas, manifestavam repugnância em consumar o matrimônio. Em conseqüência
disto,
(...) ocorriam casamentos após o
rapto da donzela, reforçando a tendência de as uniões ocorrerem pura e
simplesmente por afeição e não em obediência aos pais. E 'o escolhido' pela
noiva era sempre alguém de fora da família ou da oligarquia. (...) no
Nordeste, os casamentos estabeleciam-se normalmente entre integrantes da
mesma classe social, tanto entre os da elite branca, quanto entre os pobres
e libertos. (GILBERTO FREYRE APUD SACRAMENTO, 2006).
Outro problema dos casamentos
arranjados é que raramente davam alegria às mulheres. Poucos anos depois do
casamento, muitas vezes, os maridos separavam-se delas, despediam-se da casa
e as substituíam por mulheres moças que estavam dispostas a suprir-lhes o
lugar sem se prenderem pelos vínculos matrimoniais (PRIORE, 2005). Por outro
lado, o casamento das mulheres pobres e das escravas não envolvia dote, nem
acerto familiar, mas representava um valor social. As jovens, sem bens e que
não tinham conseguido casamento no “estreito mercado matrimonial”,
encontravam no homem mais velho, casado, o amparo financeiro de que
precisavam.
Existiam, no entanto, enormes
discrepâncias no que diz respeito à realidade feminina quando se comparam
diferentes classes sociais e étnicas no Brasil, tanto no que diz respeito às
funções domésticas e administrativas, quanto à maternidade. Diferentemente
das mulheres de elite, na maioria das vezes, correspondentes ao estereótipo
de mulher submissa e mãe dedicada (seguindo as normas de conduta difundidas
pela Igreja), as mulheres mais pobres, por outro lado, pertencentes
às camadas populares, eram mães solteiras, que foram vítimas de exploração
sexual e doméstica, traduzindo-se em humilhações, abandono e violência por
parte do homem progenitor da criança. Assim, caracterizadas “como
auto-sacrificadas, submissas sexualmente e materialmente reclusas, a imagem
da mulher de elite se opõe à promiscuidade e à lascívia da mulher de classe
subalterna, em regra mulata ou índia” (DEL PRIORE, 1993. p. 46).
Nesse contexto, o que se notou é
que às mulheres brancas e de elite era reservado o ambiente doméstico, o
cuidar da casa, dos filhos, do marido. A essas, eram dirigidos os discursos
da Igreja que as apresentavam como mulheres ideais para constituir família e
perpetuar a moral. Em contrapartida, as pobres, as negras ou mestiças eram
depreciadas, e os seus relacionamentos eram vistos como um problema para a
moral vigente.
A moral conservadora da época
exigira a conservação da virgindade nas mulheres até o casamento vista,
nesta época, como fator essencial para a manutenção da ordem social, sendo
um dever da família, da sociedade e do Estado zelar pela honra feminina.
Em outras palavras, nos casamentos
das classes altas, a respeito dos quais temos documentos e informações, a
virgindade feminina era um requisito fundamental. Independente de ter sido
ou não praticada como um valor ético propriamente dito, a virgindade
funcionava como um dispositivo para manter o status (...). (D’INCAO,
1997, p. 235).
Embora os abusos sexuais fossem
definidos como um crime, uma ameaça a toda a sociedade, muitos casos de
estupros eram praticados contra as mulheres das camadas populares, uma vez
que não possuíam outros mediadores a não ser a lei e o poder público para
ajudá-las na reparação da ofensa sofrida. As mulheres pobres, em
conseqüência de suas condições sócio-econômicas, tornavam-se mais
suscetíveis às investidas masculinas, seja pelo seu trânsito maior no espaço
público das ruas, na luta pela sobrevivência, ou mesmo no espaço doméstico,
trabalhando como criadas, que as tornavam alvo dos assédios dos patrões (DEL
PRIORE, 2005).
No universo discursivo masculino da
época, as mulheres negras e mestiças eram consideradas ideais para as
práticas sexuais, mas não para o casamento. Segundo Freyre (2005)
as negras mais bonitas eram
objeto dos desejos sádicos dos homens e como se sabe, desde o descobrimento
do Brasil, por não haver muitas mulheres brancas, era comum a prática sexual
de portugueses, aqui instalados, com mulheres negras e índias. Diante disso,
os luso-brasileiros usaram e abusaram integralmente dos corpos de sua
escravaria, inclusive como objetos sexuais, convivendo desde o nascimento
com amas de leite e serviçais negras. Encontrariam os brancos nas mulheres
de cor a possibilidade fácil de realizarem suas fantasias, dada à
prostituição praticada nas casas e fazendas do Brasil antigo.
Na sociedade cacaueira as mulheres
brancas eram as ideais para o casamento. Às de classe alta eram obrigadas a
se casarem por imposição dos pais, já que o casamento significava a
transmissão do patrimônio e a manutenção do status. O casamento de
mulheres pobres e escravas, por sua vez, não envolviam dote, porém
representava um valor social. As que não encontravam casamento terminavam,
muitas vezes, com homens casados que financiavam seus “gastos”. Muitas
mulheres, em sua maioria negra e mestiça, tentaram trabalhar, conviver em
sociedade, porém eram desprezadas e mal vistas perante a mesma, já que a
igreja condenava esse tipo de atitude. As mulheres, no geral, não eram
consideradas cidadãs, deveriam estar presas ao lar e eram vistas como seres
inferiores aos homens, impedidas de assegurar sua sobrevivência.
É a partir desse lugar periférico
que as mulheres se encontravam. Localizadas nos limites da sociedade, entre
outros grupos de minorias, elas nos falam através de documentos e receitas
difundidas através da história, contando-nos sobre as violências e
humilhações que sofreram, sobre seus prazeres de ontem e também sobre suas
decepções e sentimentos mais profundos. Assim fica notado que muitas
mulheres educavam seus filhos, cuidavam deles nas suas doenças, que algumas
conseguiram ganhar a vida com costura, com o fabrico de doces, trabalhos
manuais em geral, que eram vendidos, muitas vezes, em tabuleiros pelas ruas
(DEL PRIORE 2005). Houve ainda aquelas, que, por pobreza, se alternavam
entre fazer renda, roçar ou carregar água e ainda cuidar dos filhos e ainda
aquelas que buscavam a valorização do seu gênero.
Mas afinal, ver a história das
mulheres através de receitas e de escritos antigos serve para entendê-las?
Sim, porque pode-se perceber de que modo existiam, viviam, e mais do que
tudo, como eram, isto é, como se formava uma individualidade em seres
cercados e “castrados”.
As receitas culinárias ligadas
ao gênero, ao hibridismo e à classe social.
Como se vem discutindo, a mulher da
região, desde pequena, devido a influências externas, foi criada para o lar,
educada para cuidar dos filhos, costurar e, principalmente, cozer, o que
significava distinção e fator de endosso da arquitetura social, sustentada
no modus vivendi do coronelismo. Diante disso, noções de higiene e
puericultura, aula de corte e costura, trabalhos manuais variados, aula de
moral e religião, além de cozer, era o que a mulher deveria saber.
A partir da análise de receitas,
muitas vezes, originárias dos velhos cadernos com as quais as famílias
transmitiam de geração à geração a arte de cozinhar, observou-se que os
títulos dessas receitas revelam questões relativas ao papel da mulher e ao
hibridismo étnico cultural.
Como cozer era uma das principais
tarefas doméstica designada a mulher, a partir da leitura e observação de
registros culinários, ou seja, das receitas feitas durante muito tempo por
mulheres, notou-se que alguns de seus títulos fazem menção a uma imagem
feminina construída na sociedade. Receitas da região do cacau como “engorda
marido”, “bolo casamenteiro”, “bolo de mãe Benta”, “compotas de banana à
moda da vovó”, “Bolachinhas da vovó”, “Espera marido” foram preparadas
durante anos por senhoras da sociedade, marcando o apogeu do ciclo do cacau.
Essas receitas marcaram a vida da
mulher pela extrema dedicação à família e aos afazeres domésticos e
mostram-na presa ao lar, ao marido e ao estereótipo do sexo frágil, sempre à
procura de um protetor, através do casamento. Essa era treinada para
desempenhar o papel de mãe e esposa respeitada, ou seja, orientar os filhos,
costurar, cuidar e cozinhar para o marido, com sua sexualidade subordinada à
maternidade. Tais receitas eram passadas para filhas e netas como garantia
da perpetuação de uma tradição.
Na obra Tocaia Grande, a face
obscura, de Jorge Amado, percebe-se esse mesmo comportamento da
personagem Aruza. Dedicada à família e aos aspectos domiciliares, ela
prepara uma grande refeição para seu pai e o seu convidado: “Apesar dos
convidados serem apenas eles dois, Álvaro e Fadul, o jantar teve aspecto de
banquete, tal a variedade de pratos árabes e brasileiros e a categoria das
sobremesas. (1984, p. 34)” Essa comezaina foi elaborada e servida por ela,
única filha dos donos da casa, quem também preparou e organizou o jantar.
“Cozinheira emérita, de forno e fogão” (1984, p. 34). Nota-se que as
mulheres estavam ligadas aos trabalhos domésticos e eram elogiadas,
normalmente, pelos seus dotes culinários, pré-condição para o casamento.
Na Obra Gabriela, cravo e canela,
a personagem principal serve ao seu marido com muito gosto e dedicação:
“Gabriela acabava de pôr na mesa os bules fumegantes de café e leite. Sobre
a alva toalha, cuscuz de milho com leite de coco, banana-da-terra frita,
inhame, aipim.” (1958, p. 33)
Em relação às receitas relativas ao
hibridismo étnico-cultural, percebe-se que a
Bahia recebeu influências, em suas receitas, de países europeus como
Portugal, Inglaterra, França e Espanha. Estes trouxeram para a nossa
culinária comidas como roupa velha, feita a partir de restos de lombo
assado, de carne de cozido ou de almoço fresco, ensopados e rosbife, prato
típico inglês roast beef abrasileirado por nós. É uma carne mal
assada, porém as cozinheiras baianas, como ocorreram com outras receitas,
aperfeiçoaram-no e deram-lhe outro cheiro e sabor. Enfim, aprimoraram o
prato muito baianamente e fizeram a carne mal passada com molho ferrugem.
Não apenas o roast
beef, mas também
as moquecas de bacalhau e o peixe salgado
podem então servir como exemplo da culinária da mulher branca.
O bacalhau seco, de Portugal e da Espanha era abundante e foi se
incorporando à culinária baiana. Em outras palavras, a região cacaueira é
uma mistura de raças e povos formada de índios, negros, árabes, mulatos,
espanhóis e outras contribuições, que se completam numa junção que
proporcionou uma amplitude de receitas que compõem a culinária sul-baiana.
Diante disso, pode-se encontrar,
ainda, em receitas do final do século XIX e início do XX, do ciclo do cacau,
a influência da cultura Árabe e Síria na culinária Sul-baiana. Como exemplo
desta influência, apresenta-se as receitas “Pão árabe” e “Pastel sírio”.
Essas receitas exemplificam uma identidade híbrida em nossa sociedade,
valores e comportamentos incutidos em nossas vidas, enquanto representantes
da diferença cultural, absorção e digestão destas influências.
Nas literaturas regionais
encontramos receitas que fazem menção à influência árabe na culinária
Sul-baiana. Ainda em Tocaia Grande, por exemplo, alguns pratos árabes
são apresentados e degustados pelo turco Fadul como pode ser visto no
excerto a seguir: “o sublime sabor do araife, pastel de amêndoa com calda de
mel, seu doce predileto” (1986, p.34), e ainda os quibes crus que são
servidos no decorrer da obra.
Da mesma forma, em Gabriela
cravo e canela, a personagem principal usa especiarias como pimenta do
reino e pimenta malagueta, típicas da culinária árabe, para fazer os seus
famosos bolinhos de carne: “os bolinhos da carne, picantes, eram cantados em
prosa e verso - em verso, porque o professor Josué a eles dedicara uma
quadra, onde rimava frigideira com abrideira, cozinheira com faceira” (1975,
p.154). O Manjericão e o hortelã também são muito utilizados nos pratos
árabes feitos por Gabriela, talvez por influência de Nacib: “esse brasileiro
nascido na Síria, sentia-se estrangeiro ante qualquer prato não baiano, à
exceção de quibe.” (1975, p. 32). Esses servem de exemplo da forte presença
árabe na região, apontando a miscigenação grapiúna.
A partir dessas receitas, então,
pôde-se unir e criar pratos diversificados pelo saber de outras culturas
quer indígena, européia, quer africana, sendo talvez esse o motivo pelos
quais as receitas da região têm sabores diferentes, únicos, porque pode-se
encontrar nelas o passado e cultura do povo grapiúna.
A Bahia encerra superioridade, a
excelência, a primazia, na arte culinária do país, pois que o elemento
africano, com a sua condimentação requintada de exóticos adubos, alterou
profundamente as iguarias portuguesas, resultando daí um produto todo
nacional, saboroso, agradável ao paladar mais exigente, o que excede a
justificada fama que precede a cozinha baiana. (QUERINO, 1922, p. 23).
Através dessas receitas, pode-se
resgatar a identidade cultural local, portanto o resgate das raízes
culturais, o conhecimento dos elementos fundadores da cultura à que o povo
pertence. Sendo assim, a partir do conhecimento dessa cultura, através das
receitas culinárias, pôde haver o intercâmbio, o comércio, uma relação
respeitosa com a cultura do outro.
Além da contribuição indígena e de
outros países colonizadores, a Bahia vem transmitindo, durante anos, como se
cozinha desde a era do descobrimento. Tais pratos são mais comuns, triviais
e os mais numerosos e exóticos. Neles, são nítidas as influências
estrangeiras e é, muitas vezes, o que constitui o comum da comida do
cotidiano baiano.
Para mais uma vez exemplificar esta
identidade híbrida adquirida pelos baianos, pode-se citar receitas como o
caruru, o efó, o vatapá e o quindim de Iaiá, que mostram tal influência
cultural. Estes pratos constituem uma trilogia culinária da Bahia. São
pratos criados por africanos na Bahia, à base de dois ingredientes, o azeite
de dendê e o camarão seco. O xinxim, guisado africanizado na Bahia, bobó de
camarão, eguedé, bobó de feijão, entre outros, por mais uma influência
nitidamente africana, também foram introduzidos na culinária regional e fez
com que o baiano começasse a se deliciar com essas refeições, feitas com
feijão, com consistência de pirão e angu, usando para isto a farinha de
mandioca, ou seja, um verdadeiro bobó de feijão, preparado no prato. Assim,
teve início o processo de criação da famosíssima culinária baiana.
Em Gabriela Cravo e Canela,
de Jorge Amado, vê-se nitidamente essa influência africana. A personagem
principal, muitas vezes, no decorrer da narrativa, faz uso de diversas
especiarias típicas africanas e que hoje já fazem parte da culinária
regional. O azeite de dendê, por exemplo, condimento tipicamente baiano,
evidencia a origem negra da região e está presente nos pratos típicos de
Gabriela: acarajés de cobre, abarás de prata, o mistério de ouro do vatapá,
etc: “Seus acarajés, as fritadas envoltas em folhas de bananeira, os
bolinhos de carne (...); os acarajés apimentados, os bolinhos salgados de
bacalhau.” (1975, p. 154)
Então, dessas diversas influências,
a culinária Sul-baiana surge através das cozinheiras da Bahia, sendo as
receitas passadas de geração em geração. Porém, a tradição da culinária vai
além do cozimento dos pratos. São importantes também os acompanhamentos, a
maneira de servir e a de comer. Tudo isto consistindo em hábitos que compõem
a culinária tradicional, convergem para o entrelaçamento entre a culinária e
a mulher e marcam um traço específico de uma comunidade. Traço este, que,
com certeza, sofreu influências diretas e indiretas, de outras culturas e
fez com que fossem criadas receitas que caracterizam a comida típica e
regional do Sul da Bahia.
Em resumo, é notório que o Sul da
Bahia encerra a excelência, a primazia na arte culinária do país, pois os
elementos africanos, indígenas e europeus alteraram as iguarias portuguesas,
resultando num produto saboroso, celebrado e reconhecido em todo o mundo.
Essas receitas, ou seja, seus títulos mais especificamente, dizem respeito a
questões relativas ao hibridismo étnico cultural, como também ao papel
atribuído à mulher pela sociedade, já que essas eram criadas para cuidar do
lar, do marido e dos filhos e ainda cozinhar significava um fator de
distinção, sustentada pelo coronelismo. Através dessas receitas, pode-se
perceber como as mulheres existiam e viviam em sociedade, além de servir de
referência para entender como se relacionavam.
Considerações finais
Pensar o papel da mulher, sua
sensibilidade e vivência, remete a uma visão intrinsecamente ligada ao
aspecto familiar e doméstico. A história da mulher, durante muito tempo,
encontrava-se praticamente ausente da historiografia brasileira. Atualmente,
entretanto, poucos são os estudos sobre a mulher nos espaços brasileiros
entre os séculos XVII e XX, principalmente do Sul da Bahia. Não existem
estudos sobre as mulheres do sul da Bahia no tripé classe, gênero e etnia,
que constituem ancoragens identitárias, hoje reivindicadas pelo
pós-feminismo (BUTLER, 1999) que se, por um lado, constituíram fator de
assujeitamento das mulheres, por outro abrem como zonas de escape para que
essas se assumam enquanto seres sociais produtivos.
Assim, o estudo dessas mulheres,
através de receitas culinárias, serve para mostrar como elas estiveram
presas a estereótipos, como o título dessas receitas serve de referencial
cultural para entender o que passaram e como viveram. A partir de receitas
culinárias também é possível ver a influência étnica e social que formou a
mulher Sul-Baiana. Logo, trata-se de desvendar as complexas relações entre
as mulheres e seu meio; mostrando como esse ser social se articulava e tecia
relações estreitas como parte integrante de um todo social.
por SUELLEN THOMAZ DE AQUINO
MARTINS SANTANA