1. Introdução
A possibilidade humana de se comunicar, de interagir no nível
das idéias, só é possível com a aquisição desta ferramenta abstrata que é a
língua. Se até hoje persistem dúvidas para conceituá-la de uma forma
“correta”, ou mesmo sobre o que permite sua assimilação, sua utilização e
ainda questões como por que existem tantas concepções de língua, podemos ter
noção da complexidade da temática. Assim, para compreender por que a
conceituação de língua não é consensual, propomos a construção de um
caminho, buscando compreender como diferentes perspectivas teóricas abordam
a questão da língua. Faremos isso a partir do viés da Gramática Normativa e
da Lingüística, tratando, em especial, das abordagens de Saussure e Chomsky.
A partir disso, buscaremos também compreender a noção de língua na
perspectiva teórica da Análise do Discurso.
Este percurso faz-se necessário para pensarmos nas
implicações que surgem a partir dessas diferentes abordagens. Pensar a
língua significa pensar também nos processos de fala e de escrita, enfim,
pensar a linguagem em seu uso. A maneira com que estas vertentes teóricas
tratam a língua implicará a maneira como elas percebem esses processos, para
os quais a língua é fundamental. Assim, justifica-se o interesse em
compreender as distintas noções de língua.
2. De que língua trata a Gramática Normativa?
Começamos este percurso teórico a partir de 1952, com os
estudos de Napoleão Mendes de Almeida, publicados na Gramática metódica
da língua portuguesa. A essa época a gramática estava em sua sexta
edição. Trinta e seis edições depois, em 1999, a definição de língua
permanecia a mesma na gramática do autor: “Conquanto constitua a linguagem
dom comum de todos os homens, nem todos eles se comunicam pelas mesmas
palavras. O conjunto de palavras, ou melhor, a linguagem própria de um povo
chama-se língua ou idioma” (op. cit, 1999, p. 17). Podemos
perceber que o autor define a língua quando se dedica a conceituar o que é a
linguagem, e assim diferencia os dois termos. A noção de língua parece então
emergir apenas nos aspectos que a diferem da linguagem. Esse processo se
repete em inúmeras outras gramáticas.
É esse o caso de Cunha e Cintra (1985), que também conceituam
a língua diferenciando-a da linguagem. Em um capítulo específico dessa
gramática, estabelecem uma distinção entre linguagem, língua e discurso.
Assim, a postura teórica é próxima daquela que nos trazia Mendes de Almeida.
Para Cunha e Cintra, a língua é um “sistema gramatical pertencente a um
grupo de indivíduos. Meio através do qual uma coletividade se expressa,
concebe o mundo e age sobre ele. É a utilização social da faculdade da
linguagem” (op. cit, p.1). Outro ponto importante na gramática de Cunha e
Cintra é que, embora na primeira definição de língua eles a tratem como um
“sistema gramatical”, a seguir, referem-se à língua como um conjunto de
sistemas lingüísticos, ou diassistema.
Contrapondo-se a esta visão de conjunto de sistemas, Rocha
Lima (2003), apresenta uma noção de língua como um sistema único: “[A
língua] é um sistema: um conjunto organizado e opositivo de relações,
adotado por determinada sociedade para permitir o exercício da linguagem
entre os homens” (op. cit., p.5). Se há aí uma diferença conceitual em
relação à abordagem teórica de Cunha e Cintra, essa diferença é relativizada
ao percebermos que Rocha Lima demonstra estar de acordo com as definições
desses autores, e ainda com a de Mendes de Almeida, considerando a língua
como um fator que permite a realização da linguagem. Quanto ao fato de
tratar-se de um “sistema”, é importante destacar que Rocha Lima trata a
língua como um instrumento de comunicação geral, aceito pelos membros de uma
coletividade. Ele ainda pontua que há uma dicotomia entre o que chama de
diferenciação e unificação da língua, já que, embora cada
indivíduo apresente um estilo (a seleção por ele feita a partir dos recursos
da língua), a língua não se desfigura, não perde suas características
gerais.
Bechara (2001), quando se dedica a conceituar língua, trata
de duas possibilidades: a língua histórica e a língua funcional. Assim, a
língua seria um produto histórico e, ao mesmo tempo, uma unidade idealizada,
devido à impossibilidade de alcançar, na realidade, uma língua que se quer
homogênea, unitária.
Esse autor também considera que a língua nunca é um sistema
único, mas um conjunto de sistemas, que encerra em si várias tradições. Uma
mesma língua apresenta diferenças internas: no espaço geográfico, no nível
sócio cultural e no estilo ou aspecto expressivo. Nesse sentido, Bechara
utiliza uma abordagem muito próxima àquela utilizada por Cunha e Cintra,
quando esses autores se referem à língua como um diassistema.
Importante destacar que, para Bechara, um língua nunca está plenamente
pronta, mas se faz continuamente, devido à atividade lingüística.
Assim, podemos perceber que, para os gramáticos, a língua é
tida como um sistema, ou conjunto de sistemas. A preocupação em defini-la
não é uma constante: muitas gramáticas não fazem sequer menção a uma
conceituação de língua. Nas gramáticas em que esta conceituação está
presente, na maioria das vezes, ela surge como um recurso para diferençar a
língua da linguagem, e nesse caso, o foco dos gramáticos é a linguagem e não
a língua. Curiosamente, as regras a que se dedicam os gramáticos estão no
nível da língua.
Na Lingüística, a língua vai ocupar uma outra posição,
diferente daquela da gramática. A língua é tida como um sistema de signos
lingüísticos que pode ser considerada um fato social, embora este não seja
da ordem do histórico social, e sim pelo fato de envolver a massa de
falantes. A Lingüística Moderna desenvolveu essa e outras premissas a partir
dos estudos de Ferdinand de Saussure, aos quais recorremos a seguir.
3. A definição de língua em Saussure
Quando Saussure inaugura a Lingüística Moderna, no início do
século XX, conhecida a partir da publicação do Curso de lingüística geral,
provavelmente o aspecto mais importante de seu estudo inovador seja
justamente a definição da língua como objeto da Lingüística. Saussure afirma
que a lingüística é constituída por todas as manifestações da linguagem
humana, mas faz uma diferenciação importante dentro da própria linguagem.
Para ele, a linguagem tem duas partes: a língua, considerada essencial, e a
fala, tida como secundária. Poderíamos falar dessa distinção nos termos
langue e parole, ambos introduzidos por Saussure. O primeiro
termo, em traços gerais, refere-se à língua como sistema de signos
interiorizado culturalmente pelos sujeitos falantes, ao passo que parole
(fala) se refere ao ato individual de escolha das palavras para a
enunciação do que se deseja.
Saussure ainda diferenciou os aspectos evolutivos, históricos
da língua, a que denominou diacrônicos; e o estudo dos estados de língua, da
relação entre os elementos simultâneos, a que denominou sincrônicos.
Para o autor, a faculdade de constituir uma língua seria
natural ao homem, embora seja ela própria uma convenção (Saussure, 1970,
p.18). Para Saussure, a língua é um sistema de signos lingüísticos, no qual,
“de essencial, só existe a união do sentido e da imagem acústica, e onde as
duas partes do signo são igualmente psíquicas” (op. cit, p.23).
A assimilação da língua pelos grupos sociais é explicada pelo
autor:
A língua existe na coletividade sob a forma duma soma de
sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos
exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos.
Trata-se, pois, de algo que está em cada um deles, embora seja comum a todos
e independe da vontade dos depositários (op. cit, p.27).
Considerando essas afirmações, é possível entender porque
Saussure afirma que os sujeitos, individualmente, não podem criar uma
língua, ou mesmo modificar uma já existente. A língua é um fato social.
“Ela é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só,
não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma
espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (op. cit,
p. 22).
É certo que Saussure inaugurou uma nova forma de pensar a
língua e, com isso, concedeu à
Lingüística o estatuto de cientificidade. Mas a partir de seus estudos,
surgiram muitos outros, que, com diferentes abordagens e recortes teóricos,
foram desenvolvendo os estudos na área. Chomsky é um dos autores que, embora
faça parte da mesma vertente teórica que Saussure (estruturalismo),
apresenta uma nova teoria, a Gramática Gerativa, com a qual propõe pensar
maneiras através das quais os indivíduos formulam as sentenças.
4. A definição de língua em Chomsky
Os estudos de Chomsky nos indicam que os seres humanos
apresentam uma predisposição genética que permite a aquisição da linguagem.
Assim, ele utiliza o termo “estado inicial” para caracterizar o que seria um
dispositivo de aquisição da língua (Chomsky, 1998).
Ora, se todos os seres humanos estão aptos a adquirirem uma
língua, a experiência vivida pelos sujeitos
seria um “dado de entrada” no sistema (permitindo a assimilação de
palavras e seus significados) e a língua propriamente dita, um “dado de
saída”. Assim, para Chomsky, “cada língua em particular é uma manifestação
específica do estado inicial uniforme” (op. cit. p. 24).
Perini (1985), numa introdução ao estudo do gerativismo,
afirma que, para os gerativistas, a língua é tida como “um conjunto de
sentenças, sendo cada uma delas formada por uma cadeia de elementos
(palavras e morfemas)” (op. cit, p.16). Em outras palavras, Chomsky
considera que o sujeito que dominar um conjunto finito de regras será capaz
de produzir um número infinito de sentenças.
A teoria que abarca os estudos chomskyanos é o gerativismo.
Gerativismo porque propõe o uso de uma gramática gerativa, relacionada com
as possibilidades de cada língua de gerar expressões. Assim, para Lyons
(1981), os gerativistas estão interessados no que as línguas têm em
comum, o que representa um retorno à antiga tradição da gramática universal.
Ainda para este autor, o “coração” do gerativismo está na distinção entre
competência e desempenho.
Perini (1985) nos traz uma explicação bastante didática para
o termo desempenho: “O uso que fazemos da língua, resultado desse
complexo de fatores lingüísticos e extralingüísticos se denomina desempenho.
[...] O desempenho é, afinal, aquilo que efetivamente realizamos quando
falamos (ou quando ouvimos, ou escrevemos ou lemos)” (op. cit, p. 27).
Já competência, afirma o autor, trata-se de um
“conjunto de normas internalizadas, ou regras, que nos permite emitir,
receber e julgar enunciados de nossa língua” (op. cit, p.27).
Embora os conceitos de desempenho e competência
de Chomsky se assemelhem aos conceitos de langue e parole de
Saussure, para Lyons, há uma distinção fundamental entre eles. O que Lyons
apresenta de comum entre esses conceitos cunhados pelos dois autores é que
ambos separam o que é lingüístico do que não é. Para o autor recém citado,
Saussure apresenta uma tendência mais psicológica do que Chomsky. Além
disso, conforme Lyons, a questão principal é que na definição dos dois
conceitos de Saussure não existe nada que trate sobre as regras para gerar
sentenças, o que é fundamental em Chomsky, e explícito no seu sistema de
competência e desempenho.
Se comparássemos a langue de Saussure com a
competência de Chomsky, a diferença fundamental é que a langue
trata de um sistema interiorizado, e a competência, embora trate
também de um sistema interiorizado, trata não dos signos internalizados, mas
das regras para gerar os enunciados da língua. Nas palavras do próprio
Chomsky (1978), a distinção entre competência e desempenho
realmente está relacionada com a distinção langue-parole de Saussure,
mas, segundo ele, “é necessário rejeitar o seu conceito de langue
como sendo meramente um inventário sistemático de itens e regressar antes à
concepção Humboldtiana de competência subjacente como um sistema de
processos generativos” (op. cit, p. 84).
É aí que reside a principal diferença conceitual entre os
dois autores. Para Saussure, a língua, de forma generalizada, é um sistema
de signos, e para Chomsky, um conjunto de sentenças. A partir dos estudos
desses dois importantes autores no campo na Lingüística, partiremos para o
estudo de dicionários de lingüística para analisarmos como a Lingüística
contemporânea conceitua a língua.
5. A abordagem de dicionários de Lingüística sobre a noção
de língua
A Lingüística atualmente engloba os conceitos cunhados por
Saussure, principalmente, mas também os de Chomsky. Assim, é comum
encontrarmos referência a esses autores nos modernos dicionários de
Lingüística, quando se referem às concepções/noções de língua.
O Dicionário de lingüística e fonética, de Crystal
(1988) caracteriza vários conceitos para o termo língua. Cita inicialmente o
ato concreto de fala como um dos sentidos que a língua tem, em seu nível
mais específico. Talvez porque o livro seja traduzido do inglês (em que
language significa tanto língua como linguagem), muitas vezes, após a
palavra língua, há, entre parênteses a palavra linguagem, indicando a dupla
possibilidade de definição. O texto aponta para o fato de que variedades da
língua também podem receber essa denominação, como no exemplo de “língua
científica” (aqui poderia haver a substituição por linguagem).
O autor registra que o sentido para o termo língua dado em
expressões como “língua-mãe”, ou “língua inglesa”, é o de um sistema
abstrato de signos lingüísticos subjacente à fala/escrita usadas
coletivamente por uma comunidade, e então se refere à noção de langue,
de Saussure. Mas também afirma que o sentido para língua pode ser o
conhecimento deste sistema por um indivíduo, e então nos remete à noção de
competência, de Chomsky (op. cit, p.159).
Já Dubois et. al. (1993) inicialmente concebe a língua como
um instrumento de comunicação, um sistema de signos específicos aos membros
de uma mesma comunidade. O Dicionário de Lingüística em questão refere-se a
termos como língua materna, línguas vivas, línguas mortas, e a
distinção entre língua escrita e língua falada, sendo consideradas
cada uma como um sistema singular dentro da própria língua.
Saussure é uma referência importante para a definição de
língua apresentada pelos autores, tendo assim, seus conceitos de língua,
fala e linguagem explicitados. Os autores referem-se à língua como aspecto
social, e à fala como ato individual. Da soma de ambas, teríamos a
linguagem. O sistema de signos a que Saussure denomina língua é também
destacado, como um sistema cujas partes devem ser consideradas em sua
solidariedade sincrônica (op. cit, p. 380). Saussure é também retomado
quando os autores explicam que as palavras só significam pela diferença de
valores em relação às outras palavras.
Os estudos saussurianos das relações sintagmáticas são
abordados, como a maneira de organizar os elementos da língua, com as
possíveis variações de combinações e escolha de palavras. Lembramos aqui
que, para os estruturalistas, “a língua é um complexo de estruturas de
naturezas diferentes” (op. cit, p. 382).
Retomando os sintagmas de Saussure, os autores concluem: “A
língua é, portanto, um sistema de signos cujo funcionamento repousa sobre um
certo número de regras, de coerções. É, portanto, um código que permite
estabelecer uma comunicação entre um emissor e um receptor” (op. cit, p.
383).
Apesar de os autores conceberem a língua como um sistema de
signos, conforme a abordagem de Saussure, Chomsky também é retomado no
dicionário, sendo que os autores aproximam seu conceito de competência
ao de língua, e o de desempenho ao de fala. Assim, reafirma-se a
importância de Saussure para a definição de língua desse dicionário, já que
os conceitos chomskyanos são reduzidos à comparação com os conceitos de
Saussure.
A partir das definições já mencionadas, os autores trazem
ainda um conceito para língua em que se reconhece a pluralidade de línguas e
dialetos. Há aqui o esclarecimento de que
a noção de língua é uma noção prática introduzida bem antes
que a lingüística se constituísse; o termo foi empregado com valores tão
diversos pelos lingüistas e não-especialistas, que ninguém está de acordo
com uma definição, que seria, entretanto, essencial estabelecer com precisão
(op. cit, p. 384).
Assim, admitindo-se a não existência de uma definição clara
para a noção de língua, os autores discutem a relação das línguas vigentes
com as instituições, as maneiras que fazem com que um dialeto ou uma língua
prevaleça sobre outro(a).
Diferentes noções de língua são apresentadas no Dicionário
de linguagem e lingüística de R.L. Trask (2004), tais como: “língua
artificial, língua de sinais, língua do imigrante, língua franca, língua
minoritária, língua morta etc., além de relações como língua e etnicidade,
língua e identidade, língua e ideologia, língua e poder” dentre outras.
O autor trata da língua como objeto central do estudo em
Lingüística, na mesma perspectiva de Saussure, o que também observamos nos
dicionários já citados. Distingue língua específica e língua em geral,
destacando que muitos lingüistas acreditam que as várias línguas possuem
propriedades comuns.
São citados os estudos de Chomsky, relativos à análise
exaustiva de poucas línguas para identificar princípios abstratos, o que,
como indica Trask (op. cit.), é criticado por outros lingüistas, que
consideram essa abordagem estreita e enganadora. O autor resgata os
conceitos de lange e parole de Saussure, e de competência
e performance (desempenho) de Chomsky. É possível notar que a
descrição de língua de Trask (op. cit.) é muito mais voltada às técnicas e
definições dos lingüistas, do que à descrição da língua em si.
Desta maneira, com base nas definições de língua encontradas
nos três dicionários estudados, entendemos que os conceitos de Chomsky e de
Saussure nos levam a compreender a língua como um sistema de signos
lingüísticos, e também como o conhecimento deste sistema pelos indivíduos,
em sua capacidade de gerar sentenças. Outras abordagens lingüísticas,
contudo, introduzem aspectos não considerados pelos autores até aqui
citados, e passam a pensar a língua em atos concretos de fala, isto é, na
realização da interlocução humana, sendo que a própria língua se constitui
como o instrumento fundamental para que esse processo ocorra.
6. Do sistema da língua ao funcionamento do discurso
No percurso teórico que percorremos, foi possível perceber
como o conceito/noção de língua varia de acordo com a perspectiva teórica em
questão. Na Gramática Tradicional, observamos uma visão delimitada,
“fechada”, que considera a língua como um sistema de regras que permite a
realização da linguagem.
Saussure problematizou a questão e transformou a língua no
objeto de estudo da Lingüística, dando a esta o estatuto de ciência, tal foi
a importância de seus estudos.
Chomsky, seguindo a mesma perspectiva de Saussure, inicia os
estudos que fundam o campo do gerativismo, introduzindo uma abordagem
voltada para a criatividade humana, para a capacidade de gerar/criar
sentenças.
Alguns seguidores da Lingüística Moderna, embora também numa
perspectiva estruturalista, introduzem novas questões para pensar a língua,
concebendo-a como um instrumento de comunicação, ou como um código que
permite que se estabeleça a comunicação humana. Isso justifica a afirmação
de Dubois (1993), no sentido de que não há uma definição de língua com a
qual todos estejam de acordo. O mesmo autor escreve que seria essencial
estabelecer uma definição comum, para avançar nos estudos lingüísticos.
Podemos pensar, no entanto, afastando-nos do que defende esse
autor, que a pluralidade de concepções de língua permite, dentre outras
coisas, que aceitemos a diversidade de pontos de vista, bem como de
concepções das noções de fala, de escrita, de comunicação, dentre outras.
É justamente a partir de distintas vertentes teóricas, cada
uma com sua importância, que hoje podemos pensar a língua como o “lugar” em
que se configura a materialidade do discurso, conforme os estudos
desenvolvidos em Análise do Discurso (AD).
Se a língua, através das abordagens visitadas nesse texto, é
concebida como um sistema, a AD vai apresentar uma perspectiva diferenciada.
Não se trata, no entanto, de negar a idéia de sistema, mas de compreender
que a língua é a base material para que o discurso ocorra, como afirma
Pêcheux (1988, p.91), ou seja, para que tratemos do uso e do funcionamento
da língua.
Conforme Cazarin (2005), o discurso “não é a língua nem a
fala de Saussure, mas situa-se entre elas, em um lugar particular, porém
social” (p. 230). Essa autora salienta que Saussure apresenta a língua como
um fato social, mas social no sentido de compartilhada por todos os membros
de uma comunidade lingüística. Diferentemente, a AD trata o aspecto social
da língua quando a considera a partir de uma perspectiva histórico-social. O
sujeito que enuncia não o faz simplesmente como um ato individual; o lugar
do sujeito é o lugar de um sujeito histórico, que enuncia a partir de uma
posição-sujeito, e afetado pelo inconsciente e pela ideologia. Esta é a
ruptura introduzida pela AD: uma língua que perpassa a condição de sistema
para ser uma língua que é a base do discurso, e que por isso apresenta
também espaço para o impossível, para o “indizível” na estrutura. É o que os
analistas do discurso chamam de “real da língua”, ou seja, “o furo, o lapso,
o equívoco ocorrem e são apreendidos na e pela língua – o real da língua é a
língua como ela funciona em situações de uso, e não na sua abstração” (op.
cit. p. 231). A introdução da perspectiva da AD desloca o “lugar” e a
importância da língua na realização de processos discursivos, quer na sua
abordagem escrita, quer em outros processos de interlocução.
__________
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